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Louk Hulsman - Abolicionismo Penal

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    louk hulsman, abolicionista penal(1923-2009)

    Do mesmo modo que foi preciso vencer a fora da gravidade para explorar o mundo exterior Terra, pre-ciso sair da lgica do sistema penal para poder conceber uma sociedade em que este tenha desaparecido. (Louk Hulsman)

    Louk Hulsman, morreu em 28 de janeiro de 2009.

    Louk Hulsman foi um abolicionista penal de mui-tas palavras, gestos delicados, sorrisos tranquilos, fa-las convincentes, presena surpreendente e de poucos escritos.

    Um pouco de seu jeito est no Nu-Sol, desde 1997, quando realizamos em parceria com o Instituto Brasileiro de Criminologia e a Ps-Graduao em Cincias Sociais da PUC-SP as Conversaes abolicionistas. O livro perma-nece esgotado, mas a contundente exposio de Hulsman foi reeditada na Revista Verve 3 http://www.nu-sol.org/verve/verveview1.php?id=3 e ali se encontra na compa-nhia de outros de seus escritos e entrevistas.

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    Dossi Louk Hulsman

    A presena de Louk Hulsman est relacionada dis-seminao de seu irreversvel entusiasmo e precioso ri-gor intelectual na luta incessante pelo fi m das punies e dos encarceramentos. Uma luta que se desenrola nas universidades e nos movimentos sociais, e que conta com os guerreiros defensores da liberdade sem castigo.

    Para Hulsman, o abolicionismo penal um estilo de vida. No utopia; para acontecer agora, no planeta e em cada um. Para ele, o fi m do castigo comea com sua abolio em ns mesmos.

    Hulsman foi o intelectual e ativista sempre em for-mao, experimentando liberdades, por conversaes, atento s macabras negociaes dos portavozes, dos profetas, dos representantes, e daqueles que pretende-ro falar em seu nome.

    Louk Hulsman foi, tambm, Professor Emrito da Universidade de Roterd e muitas coisas mais. Foi, em especial, um andarilho libertrio atravessando e alte-rando rotas previsveis, tornando mais fcil e necessrio acabar com prises e punies: tudo pode comear com um simples QUERER.

    Escreveu Penas perdidas, em 1982, em companhia de Jacqueline Bernat de Clis, traduzido para o portu-gus e que permanece esgotado.

    Louk Hulsman afi rmou o abolicionismo penal liber-trio. Andamos com ele.

    nu-sol

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    To Louk

    That he willwake up

    just before daybreakpick up a book

    some paperand a pen

    his glassescomb his hair

    and with his sandalsand short trousers

    armed with a camera,opens the door, leaves

    and touches his gardenin a soft breezegreets the birds

    lifts his leg over the sideand his other leg

    in his vestsandwiches

    and a thermos of teawith his pocket-knife

    Para Louk

    Ele acordarantes do nascer do diapegar um livroalguns papise uma canetaseus culospentear seus cabelose com suas sandliase bermudamunido de uma cmeraabre a porta, saie alcana seu jardimnuma leve brisasada os pssaroslevanta sua perna para o ladoe sua outra perna no coletesanduchese uma trmica de chcom seu canivete

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    he cuts the linesand takes off majestically.

    people become antscities, dots

    roads, hairsand lakes, dropsuntil he, so high,

    higher than the birds,soaring in the vast sky

    overseeshow many miracles the world is

    recognizeswhere all his friends live

    softly oatingwithout any force and wind

    free and owingon an unknown current

    to gain newknowledge

    new ways of knowing

    Jehanne Hulsman

    ele corta as linhase parte magistralmente.pessoas tornam-se formigascidades, pontosestradas, cabelose lagos, caiat que ele, to alto,mais alto que os pssaros,planando no vasto cuassiste aosmuitos milagres que o mundoreconheceonde moram todos os seus amigos utuando levementesem qualquer fora ou ventolivre e uindonuma corrente desconhecidapara adquirir novos conhecimentosnovas maneiras de conhecer

    Poema de Jehanne Hulsman,fi lha de Louk.

    Traduo do ingls por Andre Degenszajn.

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    a perspectiva abolicionista: apresentao em dois tempos qual abolio?1

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    (...) Pr-seleo

    Afi nal, quem vai para a priso? Se a mdia no se dedicasse apenas ao sensacionalismo, se no se preo-cupasse somente em dar repercusso a esses horrveis processos dos tribunais que considera mais importan-tes, poderamos saber melhor o que se passa todos os dias nas centenas de saletas, onde juzes tm compe-tncia para condenar as dezenas de milhares de pessoas que povoam nossas prises.

    Numa determinada poca, na Frana, um jornalista do Libertion teve a idia de observar o que acontecia diariamente na 23 Cmara Correcional do Tribunal de Paris, que julgava fl agrantes delitos. Foi uma tima idia. Representantes da imprensa deveriam estar pre-sentes em todas as salas correcionais, o que, alis, previsto: em todos os tribunais, h um lugar reservado para jornalistas. Mas, normalmente, este lugar fi ca va-zio. Os responsveis pela mdia desprezam as sesses banais, rotineiras, onde os burocratas desempenham seus papis sem convico, onde todo mundo se abor-rece. Se estes representantes da imprensa cumprissem sua misso, fi caramos sabendo que centenas de pessoas so sumariamente julgadas todos os dias no pas e que

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    so sempre os mesmos que vo para a priso: as camadas mais frgeis da populao, os despossudos.

    As crnicas de Christian Hennion2 foram reunidas em um livro curto mas impressionante, onde se v pas-sar como um relmpago a clientela habitual dos tribu-nais correcionais: batedores de carteira, ladrezinhos de toca-fi tas ou de mercadorias em lojas, estrangeiros que infringem regulamentaes especfi cas, pessoas acusa-das de no pagar o txi ou a conta do restaurante, de ter quebrado uns copos num caf, ou de ter desacatado um agente da autoridade... Em suma, pessoas que tm problemas com a lei e no tm ningum a seu lado para resolver as coisas amigavelmente... os marginalizados, os casos sociais. O sistema penal visivelmente cria e refora desigualdades sociais.

    Deixar pra l

    Quando voc se contenta com as idias que so trans-mitidas sobre o sistema penal e as prises; quando voc d de ombros para certas notcias que, de todo modo, even-tualmente aparecem nos jornais notcias assombrosas sobre problemas penitencirios, como encarceramento de adolescente em celas de isolamento, suicdios de jovens, motins, violncias e mortes entre presos; quando aqueles que acionam a mquina e conhecem seu horror se dizem impotentes diante do mal causado e continuam em seus postos; voc e eles esto consentindo na priso e no sis-tema penal que a criou. Voc realmente aceita estar com-prometido com as atividades que levam a tais situaes?

    Distncias siderais

    Voc acha a priso um meio normal de castigar e excluir alguns de seus semelhantes? Entretanto, evitar o sofrimento alheio deve ser algo que ocupa um dos primeiros lugares em sua escala de valores! H a uma

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    contradio para a qual s posso encontrar uma expli-cao: a distncia psicolgica criada entre voc e aque-les que o sistema encarcera.

    Os diversos burocratas annimos que decidem ou contribuem para que seja ditada uma condenao pri-so tm poucos contatos sociolgicos com os que iro sofr-la. Entre os que decidem, o policial, por sua edu-cao, seus gostos, seus interesses provenientes de um meio social anlogo, talvez pudesse se sentir prximo da pessoa presa. Mas, o sentimento de respeito devido sua autoridade cria entre ele e o preso a distncia que h entre o vencedor e o vencido. Alm disso, o policial s intervm no comeo da linha, com um papel minsculo e dentro de um processo de diviso do trabalho, que impe-de de avaliar a importncia desta sua interveno.

    evidente que os polticos, que fazem as leis, agem no abstrato. Se, uma vez ou outra, visitaram a priso, foi como turistas. Certamente, foram bem escolhidos o dia e o lugar, para que no tivessem uma impresso to m. Talvez tenha, at mesmo, sido organizada uma fes-tinha no estabelecimento, com cnticos e um banquete. Assim, quando estes polticos propem ou votam uma nova incriminao, sequer imaginam suas consequn-cias na vida das pessoas.

    Os juzes de carreira, tanto quanto os polticos, esto psicologicamente distantes dos homens que condenam, pois pertencem a uma camada social diversa daquela da clientela normal dos tribunais repressivos. No se trata de m vontade da parte deles. Entre pessoas de cultura, modo de vida, linguagem, modo de pensar dife-rentes, naturalmente se cria uma espcie de incomuni-cabilidade difcil de superar. De todo modo, o papel que o sistema penal reserva ao juiz o impermeabiliza contra qualquer aproximao humana. Dentro deste sistema, a condenao priso , para o juiz, um ato burocr-tico, uma ordem escrita a ser executada por terceiros e que ele assina em alguns segundos. Quando o juiz vira a cabea para entregar os autos ao escrivo, o conde-

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    nado, que minutos antes estava diante de seus olhos, j foi levado e tirado de sua vista, passando-se ento para o prximo.

    E para voc que circula livremente, a priso e o preso so coisas ainda mais longnquas.

    O jogo de propostas discordantes

    Os agentes do sistema alimentam o monstro mesmo sem querer. Algumas vezes esto conscientes e tentam limitar seus danos. Nos Pases-Baixos, por exemplo, existe um Conselho Consultivo que chamado a opi-nar sobre os diferentes rgos do sistema penal, encar-regando-se de promover sua integrao. Tal Conselho tem trs ramos, que se ocupam, respectivamente, das prises comuns e casas de deteno, dos servios psi-quitricos das prises e dos casos probation.3 O que se constata j fi z parte dos ramos da probation que este Conselho reproduz a especializao dos servios ofi ciais que est encarregado de assistir, praticamen-te condenando a coordenao de esforos ao fracasso. Sua assemblia plenria, que alis s se rene uma vez por ano, a imagem viva da inoperncia deste tipo de encontros, onde cada um sempre fala de seu prprio ponto de vista ou do de seu grupo, sem ouvir o que os outros dizem.

    Lembro-me especialmente de uma sesso desta as-semblia plenria, onde foi debatido o problema da herona. Eu expliquei o que os junkies me contaram sobre suas experincias; como aqueles que usam hero-na entram num processo praticamente inexorvel de decadncia social, de marginalizao, por no serem reconhecidos. Eles precisam de herona, esta substn-cia muito cara, eles no podem pagar e a polcia est espera do momento em que iro roubar para consegui-la. H tambm a assistncia mdico-social, que alguns temem mais do que a prpria priso. L, lhes fornecem

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    substitutivos da herona, mas desde que se submetam a toda espcie de exames, de urina, de sangue, etc., o que lhes parece uma imposio degradante. Eu disse ao Conselho: os junkies entendem que a poltica de drogas que os joga nessa situao; seria interessante dialogar com eles, pois tm a experincia da marginali-zao provocada pelo sistema penal. Mas, cada um dos presentes tomava a palavra sem levar em conta as ob-servaes do vizinho.

    Um mdico fez sua prpria leitura. De seu ponto de vista, as pessoas que usam herona eram doentes que precisavam ser curados da dependncia. E se no era possvel colocar em prtica a mudana ou enquanto ela no se desse, se deveria persuadir os interessados a substituir a substncia ilegal da qual so dependentes por uma substncia legal pela qual no seriam incomo-dados. Este mdico propunha que se organizasse um programa de ajuda para fornecer uma substncia subs-titutiva a metadona para aqueles que hoje so perseguidos pelo consumo da herona. Tal posio, preciso ressaltar, no resolve a situao, pois implicita-mente aceita a criminalizao da herona e, alm disso, cria novos problemas. A metadona s legal quando ministrada sob receita mdica. Substituir a herona por este produto s levaria a novas fraudes e novos trfi cos.

    Quando chegou sua vez de falar, um juiz de instruo, colocando-se sob sua prpria perspectiva, afi rmou a seu turno: Poderamos evitar a deteno, se eles realmente aceitassem se tratar, mas eles jamais respeitam as con-dies e, assim, no h outro jeito seno coloc-los na priso.

    Tentei retomar o ponto de vista dos consumidores: Os problemas de que vocs falam se devem crimi-nalizao da herona. Se esta droga no fosse crimina-lizada, tais problemas no existiriam. evidente que, numa sociedade onde se produzem substncias psico-trpicas, determinadas pessoas tero problemas com elas, como outras tm com o lcool ou com cigarros.

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    A deciso de tornar tal comportamento punvel que agrava a situao.

    Um psiquiatra amigo meu fazia a mesma anlise. Ele observava que no convinha tratar os casos indi-vidualmente e que tampouco se deveria marginalizar os junkies. Como mdico e psiquiatra, ele via que os problemas dos junkies derivam de picadas com agulhas no esterilizadas e da ignorncia da quantidade de do-ses assimilveis pelo organismo. Para ele tambm, a melhor poltica seria a da descriminalizao, ressaltando que, no sendo a herona, em si mesma, mais perigosa que outras substncias que no so legais, a descrimi-nalizao permitiria que se garantisse a distribuio de agulhas esterilizadas, bem como uma maior difuso de informaes sobre todas essas substncias.

    Mas, cada um fi cou preso sua estreita viso profi s-sionalizada do problema. E, como de costume, no saiu deste encontro qualquer deciso conjunta, qualquer prtica diferente: os servios interessados continuariam a desenvolver o mesmo trabalho compartimentalizado. assim que o sistema sempre se refaz.

    A reinterpretao

    Jamais conseguimos apreender o pensamento alheio. O sentido pleno do que dito nos escapa. Como, portan-to, transmitir fi elmente uma mensagem, sem ao menos respeitar a materialidade das palavras ouvidas?

    Em 14 de maio de 1981, o Papa Joo Paulo II foi atingido no ventre por trs tiros de revlver. No domin-go seguinte, 17 de maio dia de seu 61 aniversrio da clnica onde se recuperava da operao, dirigiu aos fi is, que tinham ido rezar na Praa de So Pedro em Roma, uma curta mensagem onde dizia: Rezo pelo irmo que me feriu e quem sinceramente perdoei. Nem a im-prensa escrita, nem as rdios reproduziram esses termos. Podia-se ler e ouvir: o Santo-Padre perdoou seu agressor;

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    Joo Paulo II perdoou o assassino... a palavra irmo era muito estranha; chegava mesmo a ser inconveniente. No se emprega esta palavra em tal situao. Para classifi car o acontecimento, era preciso reencontrar o etiquetamento que se formou habitual: foi uma tentativa de homicdio e no se chama de irmo o criminoso que atirou em voc.

    Entretanto, foi esta a palavra escolhida pelo interes-sado, evitando exatamente de se defi nir como uma vtima diante de seu agressor, situando-se em um universo distinto daquele da justia criminal.

    Os ltros

    No sistema penal, no se escutam realmente as pessoas envolvidas. No se registra o que elas dizem com suas prprias palavras. Neste sentido, a leitura dos inquritos policiais reveladora.

    Estes documentos recolhem declaraes e testemu-nhos de pessoas extremamente diferentes: operrios, estudantes, jovens e adultos, estrangeiros, militares, ho-mens e mulheres. Mas, ali se encontram sempre as mes-mas palavras, frases feitas do gnero X declarou que francs, casado, com dois fi lhos, que tem instruo, que prestou o servio militar, que no foi condenado, que no recebe penso nem aposentadoria..., X reconhece os fa-tos..., X foi objeto das verifi caes usuais e das medidas de segurana previstas no Regulamento... Na realidade, so formulrios que a polcia preenche. Tais formulrios, num tom invarivel, montono, impessoal, refl etem os critrios, a ideologia, os valores sociolgicos deste corpo que constitui uma das subculturas do sistema penal.

    O mesmo se poderia dizer dos exames psicossociais e das percias psiquitricas. Tais documentos que, evi-dentemente, utilizam toda uma outra linguagem tam-bm tm sua rigidez, refl etindo decodifi caes igualmente redutoras da realidade, profi ssionalizadas.

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    Tome-se ao acaso, nos autos, estas palavras peritos. Ali se encontraro, constantemente repetidas, conclu-ses assim formuladas: X no se encontrava em estado de demncia no momento dos fatos; X no perigoso e sua internao num hospital psiquitrico no se mostra indispensvel nem para seu prprio benefcio, nem no interesse da coletividade, pode se considerar que X tem uma responsabilidade penal em parte atenuada; X nor-malmente sensvel a uma sano penal...

    Nos autos que chegam s mos dos que vo proferir a sentena h outros documentos semelhantes. So outros tantos fi ltros que estereotipam o indivduo, seu meio e o ato que lhe reprovado; e as vises assim manifestadas as vises mopes e rgidas do sistema so outros tan-tos etiquetamentos estabelecidos margem do homem, do que ele verdadeiramente , do que vive, dos problemas que apresenta.

    O foco

    Quando o sistema penal se interessa por um aconte-cimento, o v atravs de um espelho deformante que o reduz a um momento, a um ato. De um ponto a outro do procedimento, o sistema vai considerar o acontecimento de que se apropriou sob o ngulo extremamente estreito e totalmente artifi cial de um nico gesto executado num dado momento por um dos protagonistas.

    Esta forma de focalizar o acontecimento torna-se ain-da mais absurda quando os protagonistas se conhecem e tinham um relacionamento anterior. Por exemplo, um casal que j no se entende e que chega s vias de fato. A mulher agredida denuncia o marido. O sistema registra como leses corporais. Ora, ao falar de leses corporais que a qualifi cao penal do fato o sistema coloca o acontecimento sob o ngulo extremamente limitado do desforo fsico, vendo apenas uma parte dele. Mas, para o casal que viveu o fato, o que verdadeiramente importa

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    este desforo fsico ou tudo aquilo que houve na sua vida em comum?

    margem do assunto

    O sistema penal rouba o confl ito das pessoas di-retamente envolvidas nele. Quando o problema cai no aparelho judicial, deixa de pertencer queles que o protagonizaram, etiquetados de uma vez por todas como o delinquente e a vtima.

    Tanto quanto o autor do fato punvel, que, no desen-rolar do processo, no encontra mais o sentido do gesto que praticou, a pessoa atingida por este gesto tampouco conserva o domnio do acontecimento que viveu.

    A vtima no pode mais fazer parar a ao pblica, uma vez que esta se ps em movimento; no lhe per-mitido oferecer ou aceitar um procedimento de concilia-o que poderia lhe assegurar uma reparao aceitvel, ou o que, muitas vezes, mais importante lhe dar a oportunidade de compreender e assimilar o que real-mente se passou; ela no participa de nenhuma forma da busca da medida que ser tomada a respeito do au-tor; ela no sabe em que condies a famlia dele estar sobrevivendo; ela no faz nenhuma idia das consequn-cias reais que a experincia negativa da priso trar para a vida deste homem; ela ignora as rejeies que ele ter que enfrentar ao sair da priso.

    Mas, foi seu assunto o que esteve na origem da engrenagem do processo penal; e talvez ela no tivesse desejado todo este mal. Talvez ainda, com o tempo, ela pudesse passar a considerar o problema inicialmente vi-vido de outra forma. Quem de ns no sentiu isso, ven-do acontecimentos perderem importncia e mudarem de sentido, medida que os revivemos no contexto sempre renovado de nossa histria?

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    Quando o sistema penal se apropria de um assunto, ele o congela, de modo que jamais seja interpretado de forma diferente da que foi no incio. O sistema penal ignora totalmente o carter evolutivo das experincias interiores. Assim, o que se apresenta perante o tribunal, no fundo, nada tem a ver com o que vivem e pensam os protagonistas no dia do julgamento. Nesse sentido, pode-se dizer que o sistema penal trata de problemas que no existem.

    Esteretipos

    Frequentemente, a vtima desejaria ter um encontro cara-a-cara com seu agressor, que poderia signifi car uma libertao. Mesmo vtimas de violncias, muitas vezes, gos-tariam de ter oportunidades de falar com seus agressores, compreender seus motivos, saber porque foram atacadas. Mas, o agressor est na priso e o encontro cara-a-cara impossvel. De tanto se colocar a questo de por que isto me aconteceu?, a vtima acaba por tambm se sentir culpada; e, como jamais obtm uma resposta, se isola, entrando, pouco a pouco, num processo de regresso...

    A interveno estereotipada do sistema penal age tanto sobre a vtima, como sobre o delinquente. Todos so tratados da mesma maneira. Supe-se que todas as vti-mas tm as mesmas reaes, as mesmas necessidades. O sistema no leva em conta as pessoas em sua singu-laridade. Operando em abstrato, causa danos inclusive queles que diz querer proteger.

    Fices

    O sistema penal impe um nico tipo de reao aos acontecimentos que entram em sua competncia for-mal: a reao punitiva. Entretanto, muito mais raro do que se pensa que a pessoa atingida realmente queira punir algum pelo acontecimento que sofreu.

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    Num primeiro momento, podemos lembrar alguns exemplos bastante simples para demonstrar como so diversas as reaes de cada um diante de um aconteci-mento vitimizador. Quando algum morre numa mesa de operaes, ouvimos algumas pessoas dizerem: foi um acidente, ou Deus o chamou, enquanto outras denunciam a falta de responsabilidade profi ssional. Se algum morre por uma dose excessiva de medica-mentos, assistimos ao mesmo festival de interpretaes divergentes: alguns aceitam o que chamam de fatalida-de tinha chegado sua hora; outros lamentam que o doente tivesse, segundo pensam, tomado por erro a dose fatal; outros suspeitam que o interessado tenha voluntariamente se matado, aprovando ou condenando tal iniciativa. E, se se imagina que um parente ou amigo ajudou o doente a acabar com sua vida, encontramos algumas pessoas que iro acusar este parente ou amigo de auxlio ao suicdio, de omisso de socorro pessoa em perigo, enquanto outras valorizaro o ato corajoso, o supremo servio prestado em nome da amizade.

    Para tentar sistematizar este leque de interpretaes possveis, integrando-o a uma refl exo sobre o sistema penal, vamos pegar um exemplo extrado de um contex-to de enfrentamento poltico-religioso, que poder dar uma viso panormica de todas estas interpretaes e das reaes que a elas se seguem. Suponhamos que uma bomba exploda em Belfast e que haja um ferido. Ele pode atribuir seus ferimentos a uma infelicidade, a que h que se conformar (primeira hiptese). Ele defi ne o que aconteceu como um acidente, construindo o fato a partir de um marco de referncia natural. Ele atribui o que se passou prpria exploso, no se pergunta-do como esta se produziu. Para ele, no faz nenhuma diferena ser atingido por uma bomba ou por um raio. O ferido pode, porm, ligar o acontecido a uma causa sobrenatural (segunda hiptese): no ia missa e Deus o castigou. Finalmente, possvel que o interessado, pro-curando o porque da bomba, no encontre a resposta nem na ordem natural nem na sobrenatural, mas sim

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    a partir de um marco de referncia social. Nesta terceira hiptese, restam ainda diversas vias interpretativas: o ferido pode atribuir o que lhe aconteceu quer a uma estrutura social, quer a uma pessoa (ou um grupo de pessoas). Assim, pode considerar que o fato se deveu situao da Irlanda do Norte e luta gerada por tal si-tuao. Pode, por outro lado, responsabilizar pelo acon-tecimento um determinado grupo social engajado nesta luta, ou pretender atribu-lo especifi camente pessoa que colocou a bomba ou que organizou o atentado.

    Vamos voltar ao sistema penal. Se o sistema penal pegar a pessoa que colocou a bomba, vai conden-la a muitos anos de priso. Isto corresponde viso que o ferido tem do acontecimento por ele vivido? A anlise que acabou de ser feita mostra que a inteno puni-tiva s iria eventualmente surgir no esprito do ferido em um nico tipo de interpretao: a hiptese em que ele considera como pessoalmente responsvel por seus ferimentos aquele que colocou a bomba. A reao pu-nitiva impensvel nas duas primeiras interpretaes (marcos de referncia natural e sobrenatural).

    Mas, mesmo na terceira hiptese (marco de refern-cia social), preciso fazer uma distino. No contexto poltico-religioso em que nos situamos, difcil imaginar que a pessoa vitimizada quisesse cobrar o que sofreu de um indivduo em particular. Este contexto de enfrenta-mento vivido como uma situao de guerra, em que cada um sente mais ou menos engajado de um lado ou de outro das foras em ao. Assim, o sentimento do ferido em relao pessoa que colocou a bomba, prova-velmente no seria diferente do que se experimenta em relao ao soldado que descarrega a metralhadora num campo de batalha. Suponhamos, porm, que o ferido ponha a culpa num indivduo em particular. Ser que vai querer pun-lo? Mesmo numa chave interpretativa em que algum responsabilizado pelo acontecimento vitimizador, o ferido pode sentir uma pulso comple-tamente diferente do desejo de punir. Ele pode querer

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    tentar compreender. Pode perdoar. Eventualmente, verdade, sua reao, dentro deste quadro que acaba de ser descrito, poder se fi xar em sentimentos retributi-vos. Mas a, o que ele vai querer que seja infl igido que-le que v como o responsvel por sua dor uma pena real, uma pena relacionada com a emoo e o dano que ele pessoalmente sofreu, e no uma pena burocrtica, a pena estereotipada do sistema penal!

    Verifi ca-se, assim, tambm sob este aspecto, o quan-to a justia penal estatal opera fora da realidade, conde-nando seres concretos a enormes sofrimentos por razes impessoais fi ctcias.

    A pena legtima

    Falei algumas vezes em abolir a pena. Quero me re-ferir pena tal qual concebida e aplicada pelo sistema penal, ou seja, por uma organizao estatal investida do poder de produzir um mal sem que sejam ouvidas as pessoas interessadas. Questionar o direito de punir dado ao Estado no signifi ca necessariamente rejeitar qualquer medida coercitiva, nem tampouco suprimir to-talmente a noo de responsabilidade pessoal. preciso pesquisar em que condies determinados constrangi-mentos como a internao, a residncia obrigatria, a obrigao de reparar e restituir, etc. tm alguma possibilidade de desempenhar um papel de reativao pacfi ca do tecido social, fora do que constituem uma intolervel violncia na vida das pessoas.

    A pena, tal como entendida em nossa civilizao, parece conter dois elementos: 1- uma relao de po-der entre aquele que pune e o que responsvel, etc. e o outro aceitando que seu comportamento seja assim condenado, porque reconhece a autoridade do primeiro; 2- em determinados casos, a condenao reforada por elemento de penitncia e de sofrimento impostos e aceitos em virtude daquela mesma relao de poder.

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    Esta a anlise e a linguagem que estamos habi-tuados a ouvir e que parece legitimar nosso direito de punir. Em nosso contexto cultural, a verdadeira pena pressupe a concordncia das duas partes.

    Da que, no havendo uma relao entre aquele que pune e aquele que punido, ou ausente o reconheci-mento de autoridade, estaremos diante de situaes em que se torna extremamente difcil falar de legitimidade da pena. Se a autoridade for plenamente aceita, pode-remos falar de uma pena justa. Se, ao contrrio, houver uma total contestao da autoridade, no teremos mais uma pena verdadeira, mas pura violncia. Entre estes dois extremos, podemos imaginar toda sorte de situa-es intermedirias.

    O funcionamento burocrtico do sistema penal no permite um acordo satisfatrio entre as partes. Nes-te contexto, os riscos de uma punio desmedida so extraordinariamente elevados. Um sistema que coloca frente-a-frente, se que se pode falar assim, a organiza-o estatal e um indivduo, certamente, no ir produzir uma pena humana. Para se convencer disso, basta prestar ateno ao estilo de determinadas declaraes ofi ciais. O discurso estatal pode falar de quarenta mil presos, como fala de milhes de mortos numa guerra: sem qualquer problema.

    Ao nvel macro, estatal, as noes de pena e de res-ponsabilidade individual resultam fi ctcias, infecun-das, traumatizantes. Uma refl exo sobre o direito ou a necessidade de punir, que pretenda se situar neste nvel, , portanto, aberrante. Somente nos contextos prximos, onde se podem atribuir signifi cados concre-tos s noes de responsabilidade individual e de pu-nio, que eventualmente ser possvel retomar tal refl exo, seja ao nvel mezzo das relaes entre indiv-duos e grupos ou instituies que lhes so prximos, seja ao nvel micro das relaes interpessoais l, onde possvel reencontrar o vivido pelas pessoas.

    (...)

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    Notas

    1 Trecho extrado da segunda parte do livro Penas Perdidas: o sistema penal em questo. Traduo de Maria Lcia Karam. Niteri, LUAM, 1993. Seleo de Salete Oliveira. A primeira parte, composta de duas entrevista de Louk Hulsman Jacqueline Bernat de Celis foram publicadas, respectivamente, na Verve 1 e na Verve 2, em 2002.2 Christian Hennion, Chronique ds fl agrants dlits, Paris, Stock, 1976. (N. A.)3 O instituto da probation muitas vezes igualado ao sursis (quando o acusado responde o processo em liberdade), ou ainda suspenso do processo. Contudo, a probation procedendente da common law, ainda que se aproxime de uma suspenso condicional do processo, tem as seguintes caractersticas particulares: a prova produzida, o julgamento suspenso e a sentena no chega a ser decretada, aproximando-se, assim, da advertncia combinada a um espao e tempo de vigilncia comunitria que pode estar associado reparao ou prestao de servio comunidade, colocando o acusado em perodo probatrio que deve responder a um plano de conduta em liberdade, supervisionado pelos offi cers probation. (N.E.)

    Indicado para publicao em 2 de fevereiro de 2009.

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    o maior de todos os cronpios1

    vera malaguti*

    Para quem no sabe, Julio Cortzar dividia os homens entre cronpios, famas e esperanas. Cronpios seriam doces, divertidos, rebeldes, resistentes, singulares, des-toados do coro dos contentes, anjos cados, alegrias da casa. Os famas: sisudos, caretas, racionalizadores, objeti-vos, covardes, ressentidos, de uniforme gris, cartesianos, assim seriam. claro que os esperanas transitam entre os dois mundos com f no futuro, da o nome.

    Louk Houlsman: o maior de todos os cronpios. Para a criminologia no mundo ele era um raio de sol, quase folclrico de to solar. O anti-terico: no somos s o que pensamos, somos jardineiros, cozinheiros e engraados. Louk estava sempre mais que rindo, gargalhoso. Era com estilo, beleza, leveza que se desenvolvia pelos cenrios do mundo, sem levar-se a srio.

    Mas no pensar que essa aura no era luta, potncia. dele a mais genial descrio do direito penal: a mesma coisa que o direito cannico, sem paraso. Sua gargalhosa peleja contra a pena e a cultura do castigo vinha de uma longa estrada da vida. Iaki Anitua narra sua priso pe-

    * Doutora em Sade Coletiva; Pesquisadora do Grupo Epos Genealogia, Subjetivaes e Violncia (IMS/UERJ); Professora no curso de Ps-Gradua-o em Criminologia e Direito Penal (Ministrio Pblico/RJ); Secretria-Geral do Instituto Carioca de Criminologia (ICC).

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    los colaboracionistas em 1944, sua fuga do trem em que seguia para a Alemanha e seu encontro com a resistn-cia. Um pacifi sta como Louk, em sua militncia contra o poder da dor, forja um horror a tudo o que lembra o nazismo, seus minsculos detalhes, seus massacres do dia-a-dia. Ele gostava de desconstruir tudo isso, o tempo todo. Gestual anti-nazista, espalhafatoso, awkwardness, o grande abolicionista das holandas gostava de tempe-ros, e de outras fs, outras utopias. Louk viajou muito no grande circo criminolgico. O Nilo2 conta de uma tarde em que Ral3, Baratta4 e Lola del Zulia andavam pelas ruas de Salvador, organizando esse grande circo mstico. Pois Louk era sua estrela mxima. Atravessou tempos ruins nas nossas Amricas, mas esteve sempre l projetando sua luz contra todos os desvos da normatizao do de-lito. No ontologizao, ao universalismo da lei: situ-aes-problema. Ele conseguia propagar o seu discurso rascante sendo leve, doce, bonito e alegre.

    Dos anos setenta em diante no Brasil, quando tnha-mos desejos de liberdade e horror de tudo o que nos lembrasse o fascismo, este grande circo criminolgico andou por aqui. Naquele momento era imprescindvel desmontar os dispositivos do autoritarismo, estvamos todos cativos da tortura, da execuo, do extermnio, do estado de polcia. No sabamos que a construo do paradigma da segurana iria se espraiar depois como rastilho de plvora, em todas as direes do cotidiano. Creio que vivemos anos terrveis, de luta contra o crime, campanhas de paz, nunca o caguete foi to homenagea-do. Hoje o campo do pensamento poltico brasileiro est quase todo tomado pelo discurso da governamentabili-dade, dos do bem, da lei e da ordem, pasteurizaes, higienes, bom mocismo e vigilncia total.

    Louk fulgurou neste mundo careta e covarde; seguiu impvido sem recuar, enquanto assistamos a toda hora algum cair na esquerda punitiva que Malu5 to bem de-cifrou. Marcar esta fortaleza de Huslman importante: alegria no bobeira, estilo. esttica. luta poltica.

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    bonito tambm ver como em nossos ltimos anos a ju-ventude do direito requisitava-o cada dia mais. Saudar esse fulguroso cronpio, esse amigo gostoso em casa de Edson Passetti renova as foras. Estamos aqui na mais bela trincheira abolicionista. Salve o Nu-Sol. Salve Louk Hulsman. Od-YA!

    Vou s contar dois jantares com Louk (ele adorava co-mer e cozinhar). Um com Caridad Navarrete de Cuba, ve-lha e herona militante da Revoluo Cubana, com forma-o na URSS. Foi um jantar memorvel, a conversa sobre crime que fl utuava ali, entre o Partido Comunista Cubano e o doce abolicionismo de Louk. At Caridad me puxar de lado e perguntar: De onde Nilo conoce este hombre?...

    O outro foi no 1 Encontro Regional de Estudantes de Direito (ERED) na PUC, h uns 2 ou 3 anos. Os moleques organizaram em encontro majestoso, smells like teen, de-sejos de fazer e de saber, trouxeram todo o Grande Circo Mstico da Criminologia Crtica. Samos para jantar e Lola6 sofria com o que lhe arrepiava em seu pas. Louk era o maior abrao, o maior consolo, a boa palavra. Sempre gar-galhoso. O maior de todos os cronpios.

    Notas

    1 Texto apresentado na sesso pblica Louk Hulsman, um instaurador. Conversao sobre abolicionismo penal e a vida de um pensador libertrio. Com Edson Passetti, Nilo Batista e Salete Oliveira realizado pelo Nu-Sol no Ptio do Museu da Cultura da PUC-SP, em 05 de maro de 2009. (N. E)2 Nilo Batista (N. E.)3 Raul Zaffaroni (N. E.)4 Alessandro Baratta (N. E.)3 Maria Lcia Karam (N. E.)4 Lola Del Zulia (N. E.)

    Recebido para publicao em 5 de maro de 2009. Confi rmado em 9 de maro de 2009.

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    maria lcia karam*

    Louk Hulsman, professor emrito de Direito Penal e Criminologia na Universidade Erasmus de Rotterdam, autor do profundo e ao mesmo tempo simples e deli-cioso Peines Perdues le systme penal en question, que tive a honra e o enorme prazer de traduzir para o portugus,1 morreu recentemente de um ataque do corao, em 28 de janeiro de 2009, em Dordrecht, a cidade holandesa onde morava.

    Nascido em Kerkrade, sempre na Holanda, em 8 de maro de 1923, Louk participou ativamente da resis-tncia holandesa contra a ocupao nazista, durante a Segunda Guerra Mundial. Capturado, esteve preso em um campo de concentrao em 1944, de onde conse-guiu fugir, saltando de um trem que levava prisioneiros em transferncia para outro campo. Como ele narrou, em suas conversas com Jacqueline Bernat de Celis, re-produzidas na primeira parte de Peines Perdues, sua anterior experincia de fuga do colgio interno ajudou-o a escapar tambm dessa vez...

    Concluindo o curso de Direito na Universidade de Leiden, em 1948, trabalhou no Ministrio da Defesa e,

    * Juza de Direito aposentada, membro do Intituto Brasileiro de Cincias Cri-minais e do Instituto Carioca de Criminologia (ICC).

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    em seguida, no Ministrio da Justia dos Pases Baixos. Em 1964, tornou-se o primeiro professor de Direito Penal e Criminologia na Universidade Erasmus de Rotterdam, mais tarde vindo a ser seu professor emrito. Represen-tou a Holanda, durante muitos anos, no Comit Europeu para Problemas Criminais do Conselho da Europa.

    Um dos fundadores do pensamento abolicionista em matria penal, ativo at o fi m de sua intensa e lumino-sa vida, foi incansvel na transmisso de sua crtica ao sistema penal e na defesa de sua proposta de lidar com situaes problemticas, confl ituosas ou indesejadas de forma mais humana. Viajando por diversas partes do mundo, fazia pensar, convencendo, infl uenciando, ou, no mnimo, estimulando o nascimento de dvidas e questionamentos entre todos os que tiveram a gran-de oportunidade de v-lo, ouvi-lo, ou ler seus tantos escritos.

    Conheci-o no comeo dos anos 80 do sculo que j passado. Naquele e no novo sculo, Louk veio com certa frequncia ao Brasil menos do que gostara-mos, claro, mas, de todo modo, aparecendo quando a saudade j apertava demais. Trazia seu otimismo, sua energia, sua luminosidade, sua alegria, suas fecundas idias sobre a abolio do sistema penal, e uma doura que j, por si, demonstrava a absoluta incompatibili-dade de seu modo de ser com um sistema que, elimi-nando a liberdade, s produz violncia, danos, dores e enganos.

    No vero europeu de 2001, estive em sua casa em Dordrecht, onde ele vivia com sua Marianne, tendo bem prximos a fi lha Jehanne e os netos e, logo ali, em Amsterdam, o fi lho Lodewyk. Pude, ento, usufruir de sua amvel hospitalidade, dos vinhos e dos pratos deli-ciosos que ele fazia questo de preparar. Pude ver, com muito orgulho, nas estantes cheias de livros, a edio brasileira do Peines Perdues. E, naturalmente, pude conhecer o jardim que tanto o encantava, as plantas, as fl ores que ele cultivava com a mesma ternura com

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    que se relacionava com os humanos. Naquela ocasio, j com quase 80 anos, Louk fi cou horrorizado quando eu disse que minhas malas eram muito pesadas e se-ria difcil ir de trem do aeroporto de Amsterdam para chegar a Dordrecht. Eu queria ir de txi, mas ele no permitiu. Disse que iria me buscar e me levaria no trem. E assim fez. Colocou as malas no trem com uma facilidade espantosa. Vi-o, com igual energia, a pedalar sua bicicleta pelas ruas de Dordrecht. E a dirigir seu carro, pelas estradas holandesas, levando-me para co-nhecer os campos, os moinhos, o parque nacional de Hoge Veluwe. Dirigia de forma um tanto atabalhoada, certo, mas sempre tranquilo e confi ante. O susto ini-cial, ao acompanh-lo, logo se dissipava.

    Vi-o pela ltima vez em Londres, em julho de 2008. Sempre ativo, foi uma das presenas mais festejadas na XII ICOPA International Conference on Penal Abolitionism. Sempre jovial e cheio de energia, terminada a conferncia, fez questo de me levar, com Jehanne, para um passeio a p pelas margens do Tamisa, at a Tate Modern, l aumentando o prazer proporcionado pela viso da arte, com suas ricas observaes sobre as obras que revia com entusiasmo e admirao renovados.

    Mas, para recordar e celebrar a vida de Louk Hulsman, nada melhor do que ler (ou reler) e refl etir sobre sua experincia transformada em seus profcuos pensa-mentos e ensinamentos, nada melhor do que fi rmar (ou renovar) o compromisso de transmitir e levar adiante sua proposta de um mundo que, libertado do sistema penal, ser um lugar onde a dignidade de cada um dos indivduos se reconhecer igualmente, onde ningum ser privado da liberdade, onde, efetivamente realiza-dos seus direitos fundamentais, todos os indivduos podero viver de forma mais tolerante, mais solidria, mais humana, mais amena, mais feliz um mundo inquestionavelmente muito melhor.

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    Assim, para recordar e celebrar a vida de Louk Hulsman, seleciono e comento algumas passagens de Peines Perdues, aquelas que mais me tocam, que mais me infl uenciaram, que no canso de reproduzir, em suma, as minhas preferidas, embora seja extremamente difcil tal seleo, at porque o prazer maior certamente o de ler (ou reler) cada pgina, cada frase, cada palavra dessa pequena e ao mesmo tempo imensa obra-prima do pensamento humanitrio, libertrio, inovador.

    Comecemos com a conhecida parbola dos cinco estudantes: Cinco estudantes moram juntos. Num determinado momento, um deles se arremessa con-tra a televiso e a danifi ca, quebrando tambm alguns pratos. Como reagem seus companheiros? evidente que nenhum deles vai fi car contente. Mas, cada um, analisando o acontecido sua maneira, poder adotar uma atitude diferente. O estudante nmero 2, furioso, diz que no quer mais morar com o primeiro e fala em expuls-lo de casa; o estudante nmero 3 declara: o que se tem que fazer comprar uma nova televiso e outros pratos e ele que pague. O estudante nmero 4, traumatizado com o que acabou de presenciar, grita: ele est evidentemente doente; preciso procurar um mdico, lev-lo a um psiquiatra, etc.... O ltimo, enfi m, sussurra: a gente achava que se entendia bem, mas alguma coisa deve estar errada em nossa comunidade, para permitir um gesto como esse ... vamos juntos fazer um exame de conscincia.2

    Quando se aciona o poder punitivo, quando entra em cena o sistema penal, selecionando-se determina-das condutas para qualifi c-las como crimes e puni-las com uma pena, simplesmente so afastados esses dife-rentes estilos, esquecidas as vrias reaes que podem surgir diante de tais condutas negativas, confl ituosas, problemticas e/ou indesejveis. Quando se d con-duta a qualifi cao legal de crime, toda tentativa de me-lhor compreenso do fato ocorrido, toda aquela busca de solues efetivas, todas as outras reaes possveis

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    so afastadas pela monopolizadora, violenta, dolorosa e enganosamente satisfatria reao punitiva.

    Crimes no existem naturalmente. Crimes no pas-sam de meras criaes da lei penal, no existindo um conceito natural que os possa genericamente defi nir. As condutas criminalizadas no so naturalmente dife-rentes de outros fatos socialmente negativos ou de si-tuaes confl ituosas ou desagradveis no alcanadas pelas leis penais. A enganosa publicidade do sistema penal oculta a realidade do carter puramente poltico e historicamente eventual da seleo de condutas cha-madas de crimes. O que crime em um determinado lugar pode no ser em outro; o que ontem foi crime, hoje pode no ser; o que hoje crime, amanh poder deixar de ser.

    Como Louk assinalava, conforme voc tenha nasci-do num lugar ao invs de outro, ou numa determinada poca e no em outra, voc passvel ou no de ser encarcerado pelo que fez, ou pelo que .3

    Pense-se no aborto: enquanto a maioria das habi-tantes do planeta vive em pases onde abortos podem ser realizados legalmente, idntica conduta de mulheres que vivem sob legislaes proibicionistas qualifi cada como criminosa. Pense-se nas relaes homossexuais, que, ainda em meados do sculo XX, eram criminali-zadas mesmo em pases europeus, enquanto, hoje, ao contrrio, em grande parte do mundo, advoga-se a crimi-nalizao de condutas de quem pratique discriminao motivada pela rejeio a tal orientao sexual. Pense-se, ainda, em algum que vendia usque nos EUA, durante a vigncia da chamada Lei Seca, de 1920 a 1932: era um criminoso, da mesma forma que, atualmente, as-sim etiquetado quem vende outras drogas, anlogas ao lcool, agora globalmente proibidas, como maconha ou cocana.

    Mas, voltemos s palavras de Louk: O que h em comum entre uma conduta agressiva no interior da fa-

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    mlia, um ato violento cometido no contexto annimo das ruas, o arrombamento de uma residncia, a fabri-cao de moeda falsa, o favorecimento pessoal, a recep-tao, uma tentativa de golpe de Estado, etc? Voc no descobrir qualquer denominador comum na defi nio de tais situaes, nas motivaes dos que nelas esto envolvidos, nas possibilidades de aes visualizveis no que diz respeito sua preveno ou tentativa de acabar com elas. A nica coisa que tais situaes tm em comum uma ligao completamente artifi cial, ou seja, a competncia formal do sistema de justia cri-minal para examin-las. O fato delas serem defi nidas como crimes resulta de uma deciso humana modifi -cvel (...). Um belo dia, o poder poltico para de caar as bruxas e a no existem mais bruxas. (...). a lei que diz onde est o crime; a lei que cria o criminoso.4

    A enganosa publicidade que nos faz ignorar essa artifi cialidade e essa relatividade temporal e espacial, levando-nos a pensar e falar em crimes e criminosos como algo natural e perene, vale-se de uma linguagem igualmente artifi cial. As falsas crenas e os muitos enga-nos que alimentam o sistema penal so frequentemente transmitidos atravs de uma linguagem impregnada por uma forte carga emocional, uma linguagem assustado-ra, demonizadora, que funciona como um instrumento particularmente importante para o exerccio do poder punitivo.

    Essa linguagem caracterstica do sistema penal, esse discurso da represso, esse dialeto penal dramati-za, demoniza, isola pessoas e acontecimentos, ocultam suas reais caractersticas. Vejam-se as observaes de Louk: As palavras crime, criminoso, criminalidade, pol-tica criminal, etc. pertencem ao dialeto penal, refl etindo os a priori do sistema punitivo estatal. O acontecimen-to qualifi cado como crime, desde o incio separado de seu contexto, retirado da rede real de interaes indi-viduais e coletivas, pressupe um autor culpvel; o ho-mem presumidamente criminoso, considerado como

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    pertencente ao mundo dos maus, j est antecipada-mente proscrito...5

    Palavras ocas, de signifi cado desvirtuado ou inde-fi nido, que acentuam a dramatizao e a demonizao j presentes na prpria idia generalizadora de crime, vo sendo periodicamente criadas, vo se interiorizan-do, vo se consolidando, de modo a associar a idia de crime a algo ainda mais misterioso e poderoso e que por isso seria incontrolvel por meios regulares.

    Com isso se propicia a aceitao de leis penais e processuais penais, que, editadas sob o pretexto de va-riadas emergncias que acabam por se tornar perenes, sistematicamente violam princpios garantidores de direitos fundamentais, positivados em normas inscri-tas nas declaraes internacionais de direitos e cons-tituies democrticas. Pense-se na sempre indefi nida e efetivamente indefi nvel expresso criminalidade or-ganizada, sem nenhum signifi cado particular, aplic-vel, ao sabor das criadas emergncias, ao que quer que se queira convencionar como suposta manifestao de um tal imaginrio fenmeno. Pense-se na expresso narcotrfi co, cujo claro descompromisso com a re-alidade e com a cincia, no inibe seus usurios, que, para criar o til e exacerbado clima emocional, passam tranquilamente por cima do fato de que quem vende, por exemplo, cocana, no est trafi cando um narctico, mas est vendendo, ao contrrio, um estimulante.

    Indiferentes infi nita dor daqueles que sofrem a pena, dispostos a aceitar os totalitrios apelos que pro-pem a troca da liberdade por uma ilusria segurana, seduzidos pelas nocivas idias que privilegiam a ordem ou a defesa de uma abstrata sociedade em detrimento das vidas de seres humanos concretos, dominados por autodestrutivos desejos de vingana, muitos aplaudem o encarceramento de indivduos rotulados como crimi-nosos, insistindo em no perceber os danos causados,

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    inclusive a si prprios, pela intil e desumana privao da liberdade.

    A opo pelo encarceramento no esconde um cer-to sado-masoquismo. O lado sdico parece evidente. Do outro lado, basta considerar que, isolando, estig-matizando e ainda submetendo aqueles que seleciona ao intil e desumano sofrimento da priso, o sistema penal faz com que esses indivduos selecionados para cumprir o papel de criminosos se tornem mais desa-daptados ao convvio social e, consequentemente, mais aptos a praticar agresses e outras condutas negativas, confl ituosas ou indesejveis.

    Voltemos s palavras de Louk: Gostaramos que quem causou um dano ou um prejuzo sentisse remor-sos, pesar, compaixo por aquele a quem fez mal. Mas, como esperar que tais sentimentos possam nascer no corao de um homem esmagado por um castigo des-medido, que no compreende, que no aceita e no pode assimilar? Como este homem incompreendido, despre-zado, massacrado, poder refl etir sobre as consequn-cias de seu ato na vida da pessoa que atingiu? (...) Para o encarcerado, o sofrimento da priso o preo a ser pago por um ato que uma justia fria colocou numa balana desumana. E, quando sair da priso, ter pago um preo to alto que, mais do que se sentir quites, muitas vezes acabar por abrigar novos sentimentos de dio e agressividade. (...) O sistema penal endurece o condenado, jogando-o contra a ordem social na qual pretende reintroduzi-lo.6

    Somando-se a esses sentimentos e aos obstculos objetivos reintegrao social, h ainda o fato de que a estigmatizao opera no somente como um etiqueta-mento externo. Quando algum visto e tratado como um criminoso ou, ainda pior, como o inimigo, aca-bar por efetivamente assumir esse papel, tendendo a viver marginalmente e a se comportar de acordo com a imagem que lhe foi atribuda e que fi nalmente interna-lizou.

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    A subsistncia e, pior, o crescimento do poder puniti-vo mostra o quanto ainda longo o caminho a percorrer para se construir um mundo onde a liberdade e todos os demais direitos fundamentais sejam efetivamente re-alizados e usufruidos por todos os indivduos.

    As dores da privao da liberdade revelam a irracio-nalidade da punio. O sistema penal absolutamente irracional. Qual a racionalidade de se retribuir um so-frimento causado pela conduta criminalizada com um outro sofrimento provocado pela pena? Se se pretende evitar ou, ao menos reduzir, as condutas negativas, os acontecimentos desagradveis e causadores de sofri-mentos, por que insistir na produo de mais sofrimen-to com a imposio da pena?

    As leis penais no protegem nada nem ningum; no evitam a realizao das condutas que por elas crimina-lizadas so etiquetadas como crimes. Servem apenas para assegurar a atuao do enganoso, violento, dano-so e doloroso poder punitivo.

    O sistema penal no alivia as dores de quem sofre perdas causadas por condutas danosas e violentas, ou mesmo cruis, praticadas por indivduos que eventu-almente desrespeitam e agridem seus semelhantes. Ao contrrio. O sistema penal manipula essas dores, in-centivando o sentimento de vingana, para viabilizar e buscar a legitimao do exerccio do violento, danoso e doloroso poder punitivo. Desejos de vingana no tra-zem paz de esprito. Desejos de vingana acabam sendo autodestrutivos. O sistema penal manipula sofrimentos para perpetu-los e para criar novos sofrimentos.

    A pena, qualquer que seja ela, defi nitivamente, serve apenas para somar mais danos e dores aos danos e dores causados pelas condutas etiquetadas como crimes e para fortalecer o poder estatal em detrimento da liberdade dos indivduos.

    O encarceramento afeta o direito liberdade em tal extenso que implica em sua prpria eliminao. A eli-

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    minao de um direito fundamental no se compatibiliza com a idia de democracia. Um direito fundamental pode ser restringido para permitir o exerccio de outros direi-tos fundamentais, mas no pode ser totalmente elimina-do, como acontece quando algum condenado a uma pena privativa de liberdade.

    Uma agenda poltica destinada a aprofundar a de-mocracia e construir um mundo onde os direitos fun-damentais de todos os indivduos sejam efetivamente respeitados h de incluir a abolio das prises e, mais ainda, a abolio do prprio sistema penal, o fi m do poder punitivo como um de seus principais obje-tivos. Como a escravido hoje nos escandaliza, a pena privativa de liberdade tambm h de ser vista como um escandaloso fenmeno que, paradoxalmente, ainda subsiste no interior de Estados democrticos.

    A comparao com a escravido no exagerada. A luta pela abolio das prises tambm uma luta pela liberdade; uma luta contra um sistema que estigmatiza, discrimina, produz violncia e causa dores; uma luta para pr fi m a desigualdades; uma luta para reafi rmar a dignidade inerente a cada um dos seres humanos.

    A abolio das prises e, mais ainda, a abolio do prprio sistema penal, o fi m do poder punitivo pode parecer, para os mais cticos, uma utopia, espe-cialmente nesses tempos em que um agigantado poder punitivo prevalece em todo o mundo. Mesmo que fosse apenas uma utopia, j valeria a pena cultivar tal ideal. No entanto, a abolio das prises e, mais ainda, a abolio do prprio sistema penal, o fi m do poder puni-tivo no so efetivamente uma utopia. A abolio das prises e, mais ainda, a abolio do prprio sistema penal, o fi m do poder punitivo so uma consequn-cia lgica da trajetria que foi e deve permanentemente ser seguida pela humanidade em sua evoluo, uma consequncia lgica da trajetria que ainda precisa ser

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    seguida em direo ao aprofundamento da democracia e efetiva concretizao dos direitos fundamentais.

    No futuro, certamente ser difcil imaginar que, al-gum dia, um poder voltado para a eliminao da liberda-de tenha podido conviver com a idia de democracia.

    A abolio do sistema penal apenas uma questo de tempo.

    Tentemos aprender com a experincia de Louk Hulsman e seguir suas idias-chave estar aberto; viver solidariamente; estar apto a uma permanente converso.

    Esforcemo-nos para fazer frutifi car, interiormente e externamente, o desejo de mudana. Assim, estaremos mais aptos a contribuir para a construo de um mundo em que todos os indivduos e seus direitos fundamen-tais sero efetivamente respeitados; um mundo em que no haver prises; um mundo em que nenhum Estado ter o violento, danoso e doloroso poder de punir; um mundo em que ningum mais ser estigmatizado como o criminoso ou o inimigo.

    Notas

    1 Penas Perdidas: o sistema penal em questo. Traduo de Maria Lcia Karam. Niteri, Ed. Luam, 1993.2 Idem, p. 100.3 Ibidem, p. 63.4 Ibidem, p. 64.5 Ibidem, pp. 95-96.6 Ibidem, pp. 71-72.

    Recebido para publicao em 16 de fevereiro de 2009. Confi r-mado em 9 de maro de 2009.

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    relembrana de louk hulsman1

    nilo batista*

    Ao comparar as obras poticas de Toms Antnio Gonzaga e Cludio Manuel da Costa, observou Antonio Candido que, no primeiro, a poesia parece fenmeno mais vivo e autntico, menos literrio do que no segun-do, talvez por terem os versos de Dirceu brotado de ex-perincias humanas palpitantes.2 Essa passagem, na qual tropecei quando tentava conhecer melhor nosso jusnaturalista pombalino, veio-me mente no prprio momento em que, notifi cado do falecimento de Louk Hulsman, tentava calcular o prejuzo incomensurvel da baixa. De fato, nenhum pensamento abolicionista e os h admiravelmente elaborados, como por exemplo os de Thomas Mathiesen, de Nils Christie e de Edson Passetti teve ressonncia e infl uncia maiores que o de Louk Hulsman. Louk no era apenas o professor carismtico, uma espcie de popstar que fascinava todos os estudantes e deixava engasgada metade de seus cole-gas. Sua biografi a agitada e militante, da resistncia ao magistrio, e seu engajamento radical na desconstruo dos mitos punitivos explicam no s seu prestgio aca-dmico, mas tambm porque seu abolicionismo sempre parecia mais vivo e autntico, menos literrio, como diria Antonio Candido.

    * Professor titular de direito penal da UFRJ e da UERJ.

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    No estamos aqui para uma exposio sintetizadora da obra de Louk Hulsman,3 mas sim para record-lo e chorar por sua partida. Ocorre que, no caso de Louk, vida e obra foram uma coisa s. Sobre suas rotas me-todolgicas, Juan Bustos Ramirez disse tudo: parte de la vivencia personal y termina siempre en la experiencia individual; su objetivo y medio es el hombre en su quehacer cotidiano.4 Tendo constado, pelo privilgio da primeira leitura, que a Prof. Verinha Malaguti puxou pela vida e fez uma fotografi a justa e linda da obra, resolvi fazer o caminho inverso, para chegar ao mesmo resultado; porque, neste penalista que esteve preso, puxando-se pela obra tambm se chega vida.

    Gostaria de me deter aleatoriamente sobre trs dos topoi da tpica abolicionista de Louk, sem a menor convico de que sejam os mais importantes. Comeo pelo nonsense do sistema penal. Nas mos de Louk Hulsman, o automatismo da burocracia dos sistemas penais, a seletividade imanente a todos eles, a margi-nalizao real da vtima (contraposta, hoje, a um pro-tagonismo puramente simblico, j que a deciso sobre o processo e a soluo jurdica no esto, regra geral, em seu poder), a cifra oculta, as mentiras da ressociali-zao, tudo isso foi implacavelmente desmontado, des-sacralizado, reduzido imagem chapliniana da linha de montagem industrial. Ouamos nosso homenageado: como se estivssemos numa linha de montagem, onde o acusado vai avanando: cada um dos encarregados aperta seu parafuso e, ao fi nal da linha de montagem, sai o produto fi nal do sistema de cada quatro pes-soas, um prisioneiro.5 O sistema penal um nonsense, porque o seu produto, o sofrimento punitivo, tambm um nonsense, por ser um sofrimento estril.6 Ao argu-mento do monoplio da fora legtima, respondeu com palavras cuja atualidade dispensa qualquer comentrio: o renascimento das milcias e justias privadas, agindo sob a forma de autodefesa punitiva, se d precisamen-te em contextos onde o sistema penal funciona a todo vapor.7 Estimulada pela violncia do Estado, aquela da

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    fora legtima, os negcios da violncia privada aquela outra mais ou menos legtima vicejam como nunca, encontrando nas parcerias pblico-privadas que cons-troem e exploram prises uma demonstrao expressiva de sua estrutural unidade.

    Em segundo lugar, quero recordar a radicalidade com a qual Louk Hulsman recusava todo conceito de crime que ostentasse a mais tnue pretenso ontolgica. Para ele, a nica coisa que distintos delitos alis, distin-tas situaes problemticas8 tm em comum uma ligao completamente artifi cial, ou seja, a competncia formal do sistema de justia criminal para examin-las.9 Entre uma falsidade documental, uma apropriao indbita, um homicdio e um assdio sexual, o nico ponto comum constituirem infraes penais, crimes. Mas, voltemos a Louk, chamar um fato de crime sig-nifi ca limitar extraordinariamente as possibilidades de compreender o que aconteceu e providenciar uma resposta.10 A se refl ete um ponto de partida poltico de Louk, que antepe decididamente o indivduo ao Estado, embora preserve algumas esferas de deciso (...) sob a direo do Estado.11 Referi-me, certa oca-sio, a um abolicionista utpico, mas ele no gostou: utpico o discurso convencional, respondeu.12 Poderia ser, e talvez tenha sido em algum momento, um libera-lismo radical que perpassa o direito fundamental de viver segundo sua prpria viso das coisas,13 e viria a assumir feies de um anarco-abolicionismo tempe-rado por um pragmatismo processual que no recusa avanos pontuais, como o fi m dos castigos fsicos na escola.14 Em nenhum desses momentos de seu percurso Louk Hulsman vacilou: ele no foi seduzido, como tan-tos professores importantes do campo progressista, pelo canto de sereia do uso alternativo do poder punitivo15 ou de uma poltica criminal alternativa.16

    Por fi m, fi xemo-nos num ponto central de seu pen-samento, as afi nidades entre a cultura punitiva ociden-tal e a tradio judaico-crist, particularmente em sua

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    institucionalizao eclesistica. H campos em que essas afi nidades so muito visveis, como por exem-plo na fantstica apropriao jurdico-penal da sexu-alidade, realizada pelo direito cannico, cujas marcas esto por toda parte na criminalizao do sexo ilcito. Desenvolvendo suas refl exes sobre aquelas afi nida-des, numa conferncia proferida em Buenos Aires, em 1996, Louk vai procurando correspondncias entre a teraputica das almas e a expiao dos corpos infrato-res, at perguntar: Qual o purgatrio neste sistema? E responder-se: o crcere. Esta a organizao do sistema de justia. Ao purgatrio ao lugar no qual o sujeito pode queimar-se um pouco (...) de acordo com os pecados que cometeu17 corresponderia o crce-re. A primeira reao estranharia que ao purgatrio, seguramente inventado aproximadamente entre 1150 e 1250,18 correspondesse um dispositivo punitivo s disponvel trs centrias depois, o crcere moderno, a penitenciria comum que seria a rainha das penas no capitalismo industrial. Quem, no entanto, se der ao tra-balho de, na companhia agradvel de Jacques Le Goff, observar os textos cannicos que instalam a crena no Purgatrio, encontrar uma srie de correspondncias, como, para fi car num exemplo caricatural, a classifi ca-o cannica das almas dos defuntos segundo sua con-duta terrena19 em relao s classifi caes disciplinares de internos. fora de dvida que a inveno do Purga-trio se d naquele momento histrico estratgico, no qual est tambm sendo inventada a pena pblica, e um mercantilismo seminal e terrestre inicia at com um ius mercatorum a eroso do mundo feudal, que no entanto s explodir mais tarde. Mas possvel que o paradigma do ignis purgatorius tenha representado no Ocidente a defi nitiva fuso crist da pena expiat-ria retributiva e da pena medicinal preventiva, porque o fogo punitivo, mesmo brando, tem a extraordinria propriedade de a um s tempo fazer sofrer o padecente e recuper-lo para a vida celestial. Atribuir ao sofrimen-to uma utilidade no s o monstruoso e inabalvel

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    fundamento das legitimaes preventivas da pena, que lhes confere dutibilidade terica para articularem-se legitimao retributivista, sem qualquer m conscin-cia dos juristas e dos juzes quanto s contradies irresolveis de tal articulao. J comparei essa arti-culao teoria legitimante do Lobo: condene-se em nome da ressocializao do ru; mas se ele no precisar de ressocializao, condene-se para advertir os demais cidados; e se porventura o ru for o solitrio supervi-sor do farol na ilha martima, sem concidados a serem advertidos, condene-se em nome da retribuio, ou j esquecemos Kant? Atribuir ao sofrimento uma utilidade tambm o princpio legitimante da tortura, essa prtica processual tenebrosa da qual a angustiada alma pena-lstica ocidental no consegue libertar-se, que retorna e se expande sem cessar, desafi ando nos pores da clan-destinidade ou no conforto refrigerado da exceo, entre Paraispolis e Guantnamo, os outdoors discursivos de sua criminalizao. O que Louk Hulsman profetizou so-bre a infl uncia do Purgatrio em mentalidades puniti-vas crists ainda ser melhor decifrado por todos ns.

    Muito longe da homenagem que ele merece, e que toda a academia latinoamericana, qual foi ele to li-gado, j lhe est prestando, essa relembrana de Louk Hulsman quer apenas realar a imensa falta que suas lies, suas vises e intuies nos faro nesses tem-pos sinistros, que pretendem entregar pena a gesto da sociabilidade. Sentiremos muita falta daquele abo-licionismo vivo e autntico, brotado de experincias humanas, como da poesia de Gonzaga disse Antonio Candido. Sentiremos muita falta de Louk Hulsman. Mas sua vida e sua obra, coerente e inseparavelmente construdas, nos orientaro nas duras batalhas que nos aguardam.

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    Notas

    1 Texto apresentado na sesso pblica Louk Hulsman, um instaurador. Conversao sobre abolicionismo penal e a vida de um pensador libertrio. Com Edson Passetti, Vera Malaguti e Salete Oliveira, realizado pelo Nu-Sol no Ptio do Museu da Cultura da PUC-SP, em 05 de maro de 2009. (N. E)2 Antonio Candido. Formao da Literatura Brasileira. Belo Horizonte, ed. Itatiaia, 1997, v. 1, p. 109.3 Sobre ela, AA.VV., Mlanges en lhonneur de Louk Hulsman in Cahiers de Defense Sociale, Milo, ed. SIDS, 2003; para a bibliografi a do homenageado, pp. 273 ss. A interlocuo marginalizante que com ele manteve Ral Zaffaroni (En Busca de las Penas Perdidas. Buenos Aires, ed. Ediar, 1989; Em Busca das Penas Perdidas, Traduo de V.R. Pedrosa e A. L. Conceio. Rio de Janeiro, ed. Revan, 1991) imperdvel.4 No prlogo a Louk Hulsman, e Jacqueline Bernat de Celis, Sistema Penal y Seguridad Ciudadana, Barcelona, ed. Ariel, 1984. A traduo brasileira, de Maria Lcia Karam, observa o ttulo original (Penas Perdidas, Niteri, ed. Luam, 1983). Citaremos da traduo brasileira. 5 Idem, p. 61.6 Ibidem, p. 62.7 Ibidem, p. 114.8 No existem crimes, mas apenas situaes problemticas (Ibidem, p. 101).9 Ibidem, p. 64.10 Ibidem, p. 99.11 Ibidem, pp. 42 e 126.12 Louk Hulsman, entrevista, em DS-CDS n 5-6, Rio de Janeiro, ed. F. Bastos, 1998, p. 10.13 Louk Hulsman, e Jacqueline Bernat de Celis, 1983, op. cit., p. 46.14 Idem, p. 49.15 Coloquemos na priso dizem eles os que enganam o fi sco ou os consumidores, remetem seu capital para o exterior, poluem o ambiente, recusam-se a instalar em suas empresas dispositivos de segurana que reduziriam os acidentes de trabalho. Esse no meu modo de ver. (...) Nos campos ainda no criminalizados, dever-se-ia evitar a qualquer preo a criminalizao.

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    16 a expresso do notvel Alessandro Baratta. Criminologia Crtica e Crtica do Direito Penal. Traduo de J. C. Santos. Rio de Janeiro, ed. Revan, 1999, p. 208.17 Louk Hulsman. Pensar en Clave Abolicionista. Traduo de A. Vallespir. Buenos Aires, ed. Cinap, 1997, p. 22. 18 Cf. Jacques Le Goff. La Naissance du Purgatoire. ed. Gallimard col. Folio-Histoire, 1981, p. 14.19 Jacques Le Goff, 1981, op. cit., pp. 200 ss.

    Recebido para publicao em 5 de maro de 2009. Confi rmado em 9 de maro de 2009.

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    louk hulsman, abolicionismo penal e percursos surpreendentes1

    salete oliveira*

    Dizer que Louk Hulsman um dos mais importan-tes autores do abolicionismo penal pouco. Ou melhor, para dizer de sua tamanha importncia preciso ini-ciar por algo menor. Hulsman era um homem atento s possibilidades histricas daquilo que parece impos-svel de acontecer: abolir o sistema penal. Do mesmo modo que o surgimento da priso moderna vingou na simultnea impossibilidade de seu acontecimento, como mostrou Michel Foucault em Vigiar e punir. Em maio de 68, jovens transgressores costumavam dizer que s o impossvel acontece, pois o possvel apenas se repete. Hulsman foi um homem de diferena, no de repeties e sua atuao abolicionista forjada, de forma mais defi nitiva, na contestadora dcada de 1970 veio afi rmar sua existncia singular para o abolicionismo penal atravessada pela atmosfera das lutas anti-pri-sionais e anti-manicomiais daquela poca. Mas no s, o impossvel se fez possvel, no presente, no aconteci-mento, na brutal fora do minsculo da luta: a palavra. A palavra abolicionismo. Abolicionismo, dizia Hulsman,

    * Doutora em Cincias Sociais e pesquisadora no Nu-Sol, professora no De-partamento de Poltica da PUC/SP.

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    um termo inexistente para um holands. Costumava chamar a ateno para este fato, pois diferente de ns nas Amricas e de tantos outros no continente Africano, seu idioma, sua lngua, no so afeitos experincia da abolio da escravido. Hulsman apropriou-se da pala-vra impossvel e a fez arma de luta, mesmo porque no desconhecia que uma escravido, seja ela qual for, no se abole por decreto ou por qualquer expediente legal. Talvez da viesse sua expresso rara e recorrente de que preciso abolir o sistema penal, antes de mais nada, em si mesmo.

    Procedncias abolicionistas penais

    O Direito Contemporneo, edifi cado nas mesmas ba-ses de promoo da seguridade do Estado de Bem-Estar Moderno, propaga a afi rmao de que a racionalidade jurdica do Direito est norteada por um novo paradig-ma , preconizado pelos direitos e garantias fundamen-tais e direitos sociais no mais subjugado s noes universais e transcendentais da justia, mas balanceado por interesses sociais irredutveis, sob a nomenclatura de direitos difusos e coletivos.

    Na diviso tradicional do Direito, remetida ao refe-rencial da soberania, encontra-se uma linha contnua de seu prprio desenvolvimento evolutivo. Nesta pers-pectiva, as mudanas ocorridas no seu interior so dispostas em escala ascendente que subjaz confor-mao e desenvolvimento da poltica moderna e con-tempornea. O Direito Clssico, o Direito Moderno, e o Direito Contemporneo perfi lam-se em uma passagem de substituio consecutiva imprescindvel justifi ca-tiva de seu inerente progresso.

    A anlise genealgica coloca para este equaciona-mento estvel um problema, uma vez que do ponto de vista analtico preciso atravessar a representao de prticas discursivas, mais do que isso, a representao

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    que elas fazem de si mesmas. Deste ponto de vista, possvel estabelecer algumas descontinuidades naquilo que a lgica do Direito constri como sua evoluo har-mnica. Trata-se de interrogar a tranquilidade daquilo que a Filosofi a do Direito prefere designar por herme-nutica jurdica.

    O Direito tomado em linhas mais amplas est vin-culado a uma subdiviso interna que faz comunicar saberes hierrquicos entre as esferas que ele distingue em seu poder de extenso e apreenso: Direito Consti-tucional, Direito Civil, Direito Penal, Direito Comercial, Direito Internacional, Direito do Trabalho, Direito das Relaes de Consumo, Direito Ambiental, Direito de Famlia, Direito da Criana e do Adolescente, Direitos Humanos. Esta proliferao de direitos no Direito, que comporta tantos outros no citados, pode ser estanca-da de vrias maneiras. Estancar esta lgica exige uma pergunta inicial: como diante da proliferao de direitos sociais e direitos difusos e coletivos, cuja procedncia signifi cativa encontra-se no Direito Civil, o Direito Penal no se tornou suprfl uo no interior de um Direito mais amplo? Esta questo que interpela e, ao mesmo tempo, estanca a pretensa estabilidade do Direito, aponta para possveis desdobramentos de uma breve anlise.

    Nessa atividade, que se pode, pois, dizer genea-lgica, vocs vem que, na verdade, no se trata de forma alguma de opor unidade abstrata da teoria a multiplicidade concreta dos fatos; no se trata de forma alguma de desqualifi car o especulativo para lhe opor na forma de um cientifi cismo qualquer, o rigor dos conhecimentos bem estabelecidos. Portanto, no um empirismo que perpassa o projeto genealgico; no tampouco um positivismo, no sentido comum do termo, que o segue. Trata-se, na verdade, de fazer que intervenham saberes locais, descontnuos, desqualifi ca-dos, no legitimados, contra a instncia terica unitria que pretenderia fi ltr-los, hierarquiz-los, orden-los em

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    nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos di-reitos de uma cincia que seria possuda por alguns.2

    Incidir no espao de combate, no qual reside o aco-plamento do saber histrico das lutas, como sugere Foucault, exige esgarar o conforto do Direito e dos di-reitos. Requer perturbar a ordem tranquila das coisas, que dispe nomes apaziguados na juno soberana que o Direito reivindica para si, no que tange sua verdade terica e sua soberana verdade. A questo colocada retorna: como o Direito Penal no se torna suprfl uo? E, esta colocao afi rmada fora do quadro jurdico da soberania implica em problematizar a emergncia do Direito Contemporneo, proveniente da medicalizao do controle, cuja erupo se d na metade do sculo XX, simultaneamente aos efeitos da Segunda Guerra Mundial, que coincidem com a edifi cao de uma nova moral, a somatocracia.

    Esta gesto de poder especfi ca corrobora a efi ccia articuladora das prticas de normalizao acopladas ao discurso da promoo de seguridade, cujo combate ao mal disposto em sofi sticadas conexes. Ao mesmo tempo que enuncia o que lhe insuportvel, sinalizan-do para aquilo que apressadamente poderia ser tomado como mecanismo de excluso, constri em seu entorno dispositivos de segurana para incluir o que lhe inc-modo. Fomenta uma poltica destinada a fazer valer a construo do medo indispensvel. provvel que este seja um dos novos arranjos da defesa social na articu-lao do direito penal e direitos sociais, como um bem democrtico no Direito.

    A poltica continua sendo a guerra prolongada por outros meios, e seus efeitos atuais explicitam que se a sociedade de controle em sua emergncia precisou investir primeiro na medicalizao do prprio contro-le mostrou-se, posteriormente, uma estratgia efi caz de controle difuso norteada por parmetros precisos, intrincados na disputa do controle da segurana. Trata-se de um reacomodamento da poltica que gesta

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    a medicalizao do controle em nome da reforma da moral da preveno geral, ao reiterar a continuidade da priso em nome da defesa da sociedade, perpetu-ando, preferencialmente, a incrementao do Direito Penal, com a universalizao do julgamento, equiva-lente propcio lgica ininterrupta da atualizao do grande tribunal do mundo.

    A normalizao da vida, consoante preveno geral moderna, exigiu que a infrao se convertes-se em crime e que a interpretao da vida pregressa dos considerados perigosos se convertesse no suporte tcnico-cientfi co para justifi car tanto atos ainda no cometidos quanto para legitimar seu risco projetado na certeza da atitude futura, a punio no recair mais sobre o ato cometido mas na ameaa potencial. A defesa da vida e da sociedade no sculo XIX, sob a primazia da fi gura do criminoso e do conceito de pe-riculosidade virou defesa da humanidade a partir da metade do sculo XX, com o Direito acessvel a todos, e hoje passa pela proliferao das esferas de controle nos atos mais nfi mos, reinventando a sintaxe da su-jeio sob a justifi cativa da defesa dos direitos inalie-nveis, que pretendem afi rmar a utopia da cidadania mundial e explicitando, ao mesmo tempo, as fronteiras intransponveis de cada um.

    O discurso da incluso confi nado na produo da sua prpria moral, remetido eternamente centralidade do poder, no produz outra coisa seno a indispensvel terceira perna, muleta manca e corcunda para todos aqueles que primam pela covardia de se manter em p sem rogar por uma base alheia. Este suposto religio-so a servio da razo, das constituies, tratados, leis e cdigos difunde um estilo de vida aprisionada como forma preferencial de se corresponder com o traado de seu destino prescrito: a liberdade almejada. Liberdade abstrata, divina e racional, onde no cabe o presente pois ela no passa de nostalgia do iderio do passado enquanto valores que devem se concretizar num futuro ideal quando a categoria homem atingir a plenitude de sua humanidade.

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    Nesse sentido, possvel apontar duas sries prove-nientes do interior da prpria criminologia do ps guerra. Se houve aquela que incrementou um importante brao auxiliar do direito penal na contra corrente da pr-pria proposta do surgimento da criminologia no sculo XIX, quando pretendia ser uma disciplina independente, e desde l ela nunca o foi houve tambm aquela que comportaria o aceno da possibilidade de sua corroso e runa. Desta ltima srie provm o abolicionismo, cuja emergncia foi acentuada na dcada de setenta do scu-lo XX.

    O abolicionismo penal ao contestar a inevitabilidade da priso e do julgamento, torna possvel o investimento na demolio das certezas de estabilidade e centralida-de, privilegiando interseces de anlise com os desdo-bramentos advindos do campo da genealogia que, longe de neutralizar confrontos com incio e fi m, interessa-se em uma dimenso na qual as tenses, e somente elas, mostram-se como meio capaz de gerar potencialidades de expresso que o saber especializado incapaz de prever, responder e, no limite, suportar.

    possvel abolir o sistema penal? Ser o abolicionismo libertrio a peste no Estado de Direito?

    Hulsman e o abolicionismo

    O abolicionismo penal no um bloco homogneo, e tampouco suas diferenas internas esto na disputa de que uma se revele como a mais verdadeira, almejan-do atingir um alto grau de hegemonia para, a ento, sobrepor-se s outras.

    O abolicionismo penal um pensamento que opera no campo da polivalncia ttica dos discursos. Congre-ga no seu interior pensadores de perspectivas libertrias como Hulsman, mas tambm marxistas do calibre de Nils Christie e Thomas Mathiesen. Afi rma o esgotamento das reformas penais levando ao limite as constataes

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    desde Beccaria, que apontavam para a inefi cincia da recluso, at Foucault, ao desvendar a intricada conexo entre saberes delinquenciais e policiais.3

    Louk Hulsman uma dessas pessoas que suscitam uma inquietude saborosa e alegre. Costumava dizer que o abolicionismo faz bem sade. Atravessou tenses exasperando-as distante do lamento que refaz a sujei-o. Cultivou a vida exposto as suas intempries sem perder a leveza. Entornou no presente de quem o cer-cou ou nele esbarrou um sorriso contagiante. Hulsman presentifi ca as possibilidades do surpreendente.

    Se afasto do meu jardim os obstculos que impe-dem o sol e a gua de fertilizar a terra, logo surgiro plantas de cuja existncia eu sequer suspeitava.4

    Gostava de fotografi a e a praticava com talento, pre-senteando generosamente seus fotografados com cpias ampliadas. Cada uma carregando sempre alguma pala-vra pessoal afetiva.5 Foi professor emrito da Universi-dade de Roterd e membro constante de diversos foros internacionais das Naes Unidas, do Conselho da Europa, das Sociedades de Direito Penal e Criminologia. Divulgou o abolicionismo em ambientes mltiplos, aca-dmicos e no-acadmicos, em vrias partes do planeta. Residia em Dordrecht, na Holanda, em uma casa antiga e espaosa, na qual a perspectiva abolicionista habitou imiscuda em seu jardim e desdobrou-se em cursos, seminrios e estudos sobre abolicionismo penal.

    Seu abolicionismo provm de espaos diversos, im-bricados nas situaes concretas de sua vida. De seus problemas concretos. E as respostas diretas a eles foram fazendo Hulsman deslizar rumo ao abolicionismo. No como ponto de chegada remetido a uma origem idea-lizada. O abolicionismo um acontecimento que foi se tecendo em sua prpria superfcie, simultneo a sua inveno. Talvez o que Hulsman desperta em quem se interessa e escolhe o abolicionismo seja mais ou me-nos isto: o abolicionismo existe e ao mesmo tempo

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    est sempre por ser inventado de diferentes maneiras. Hulsman um convite inquietude do abolicionismo. Distante, muito distante, das utopias que convivem to bem com as prticas consoladoras.

    O meu abolicionismo no utpico. Eu tento fazer um discurso realista sobre criminalizao, enquanto o discurso convencional utpico, referido ao paraso e ao inferno. interessante observar como a organizao cultural da justia criminal baseada na organizao cultural da teologia moral escolstica. Eu estou cada dia mais convencido disso. (...) Eu acho uma vergonha que nas universidades voc tenha duas faces: uma que reproduz a ordem existente, repetida, imutavelmente, e uma outra que crtica, no superfi cial. uma ver-gonha que as universidades de direito continuem com essas estrias escolsticas sobre livros sagrados. Nem as faculdades de teologia fazem isso atualmente! O pior lugar na universidade, onde trabalhei por mais de 25 anos, so as faculdades de direito. Como os estudantes aceitam que estas pessoas continuem despejando ma-trias baseadas em livros sagrados! Tudo sem nenhuma anlise sobre a origem desses livros sagrados, e sobre o que so esses textos e o que signifi cam nos dias de hoje. (...) No meu abolicionismo acadmico eu no digo o que vai acontecer. Eu concordo com o que Foucault diz sobre o intelectual especfi co (...) As pessoas tm que entender que os processos no so naturais, exis-tem opes para criar liberdade, pensando e sentindo. a primeira questo do abolicionismo, o indivduo que pode fazer escolhas. Como mudar a segunda ques-to. Ningum pode, do ponto de vista acadmico, dizer o que as pessoas devem fazer. A justia criminal no legitimadora, no entanto, a justia criminal est em toda parte, nos jornais, na televiso. Eu acredito que os indivduos mudam as prticas a partir do momento em que descobrem que no querem fazer parte de um sis-tema. (...) So indivduos mudando prticas. Como isso acontece, diferente para cada pessoa (...).6

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    Quando Hulsman faz tais afi rmaes, seu posicio-namento parte de situaes que experimentou e que o atravessam. A educao recebida em uma regio dos Pases-Baixos, na qual preponderava a doutrina catlica atmosfera reforada por ele como aquela pr-Vaticano II na qual respirava-se os ares de que havia pessoas eleitas e outras no, foi acirrada pelos perodos que passou confi nado em colgios internos, submetido rigidez da moral escolstica. A escola lhe foi insuportvel, at o momento em que decidiu saltar o muro e fugir. Saltaria outros muros mais tarde. Um deles foi o de um campo de concentrao, durante a Segunda Guerra Mundial, onde se encontrava sob a condio de preso poltico. Em relao s duas fugas faz questo de ressaltar que a primeira foi de vital im-portncia para a consecuo da segunda, sublinhando que a priso da escola pior do que a de um campo de concentrao. Em uma entrevista a Jacqueline de Celis, com quem manteve uma parceria intensa lidan-do com abolicionismo, quando perguntado acerca das experincias marcantes em sua vida Hulsman discorre e escorre:

    J mencionei algumas de passagem. Mas, para efe-tivamente fazer compreender melhor o que me mobiliza interiormente, ser preciso retornar a elas. A experin-cia do internato, sem dvida, foi uma das que mais me marcou. (...) Fui posto vrias vezes no colgio interno. A ltima foi numa escola secundria mantida por padres, de onde fugi aos 15 anos. (...) Fui muito infeliz naqueles anos. Eu no conseguia suportar a disciplina, a atmos-fera repressiva reinante no internato. E, como os outros se acomodavam, eu acabava sem amigos. Ficava isolado, numa espcie de marginalizao que duplicava o senti-mento de rejeio j experimentado em relao minha famlia. Eu era uma criana que no correspondia ao que dela se esperava. (...) J mencionei que fui captu-rado, preso e jogado num campo de concentrao, mas agora que me refi ro s experincias interiores, devo dizer que, na realidade, suportei muito melhor esse perodo

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    de deteno que alis, foi curto do que os anos de internato. (...) Parece espantoso. Mas o preso poltico no perde a auto-estima nem a estima dos outros. Ele sofre em todas as dimenses de sua vida, mas permanece um homem que pode olhar de frente. No est diminudo. (...) Consegui fugir do campo de concentrao como fugira do colgio interno esta primeira experincia tendo, sem dvida, facilitado a segunda!7

    A Revoluo Espanhola outro dos acontecimen-tos que Hulsman destaca, entre os tantos que narra, como tendo um signifi cado sutil e decisivo para ele e que mostra que a prtica abolicionista se gesta e se tece na experimentao da vida, num curso descontnuo re-pleto de disparates. No desconcerto que sacode o ciclo da conformidade.

    Escapar do conformismo permite o acesso a um universo de liberdade mas, nem sempre fcil largar o establishment, embora, s vezes, isso d prazer. Alguns acontecimentos me ajudaram. A Revoluo Espanhola, por exemplo, foi uma etapa importante. Na regio onde eu vivia, os jornais eram todos franquistas. Com uma tal imprensa, eu tambm acabava fi cando interiormen-te contente quando Franco tomava mais uma cidade, quando seu exrcito avanava. Mas, em 1938, comecei a ter acesso a outras fontes de informao e, de repen-te, me vi muito pouco orgulhoso de meus sentimentos. Percebi que tinha sido totalmente enganado pelo sistema on