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19 Comunicação&política, v.28, nº2, p.019-038 Introdução E mbora tenha feito trinta anos, a anistia política no Brasil ainda continua despertando polêmicas intensas apaixonadas, a exemplo do lançamento do Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos pelo governo Lula, no início de 2010. As reações por parte de militares e políticos, da mídia conservadora, e da igreja, demarcam claramente que os conflitos do pas- sado ainda não foram totalmente superados. E isso fi- cou nítido com a proposta da revisão da Lei da Anistia pelo PNDH-3. O meu objetivo neste artigo é afirmar que a luta pela anistia política constituída no final dos anos 1970, por meio das reivindicações da sociedade civil organizada, foi o elemento central na construção das políticas públicas de direitos humanos que começou a emergir na década de 1980, e culminou enquanto expressão legal na Constituição de 1988, particular- mente em seu artigo 5°. Para demonstrar essa afirmativa, este trabalho di- vide-se em três partes: na primeira reconstituirei as Anistia política trinta anos depois e os Direitos Humanos no Brasil de hoje * Luiz Eduardo Motta Doutor em Sociologia pelo IUPERJ; professor adjunto de Ciência Política do IFCS-UFRJ. * Este artigo é uma versão am- pliada de palestra proferida em agosto de 2009 na UERJ no Sim- pósio Apesar de Você - 30 Anos de Anistia no Brasil. A Luta pela Anistia e os Direitos Humanos no Brasil, or- ganizado pelo NIBRHC (Núcleo de Identidade Brasileira e Histó- ria Contemporânea), coordenado pelo professor Oswaldo Munteal.

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19Comunicação&política, v.28, nº2, p.019-038

Introdução

Embora tenha feito trinta anos, a anistia política no Brasil ainda continua despertando polêmicas

intensas apaixonadas, a exemplo do lançamento do Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos pelo governo Lula, no início de 2010. As reações por parte de militares e políticos, da mídia conservadora, e da igreja, demarcam claramente que os conflitos do pas-sado ainda não foram totalmente superados. E isso fi-cou nítido com a proposta da revisão da Lei da Anistia pelo PNDH-3.

O meu objetivo neste artigo é afirmar que a luta pela anistia política constituída no final dos anos 1970, por meio das reivindicações da sociedade civil organizada, foi o elemento central na construção das políticas públicas de direitos humanos que começou a emergir na década de 1980, e culminou enquanto expressão legal na Constituição de 1988, particular-mente em seu artigo 5°.

Para demonstrar essa afirmativa, este trabalho di-vide-se em três partes: na primeira reconstituirei as

Anistia política trinta anos depois e os Direitos Humanos no Brasil de hoje*

Luiz Eduardo Motta

Doutor em Sociologia pelo IUPERJ; professor adjunto de Ciência Política do IFCS-UFRJ.

* Este artigo é uma versão am-pliada de palestra proferida em agosto de 2009 na UERJ no Sim-pósio Apesar de Você - 30 Anos de Anistia no Brasil. A Luta pela Anistia e os Direitos Humanos no Brasil, or-ganizado pelo NIBRHC (Núcleo de Identidade Brasileira e Histó-ria Contemporânea), coordenado pelo professor Oswaldo Munteal.

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lutas da sociedade civil brasileira pelo fim do Estado de exceção e pela forma-ção de uma cidadania participativa, e teve como uma de suas principais ban-deiras a anistia ampla aos perseguidos políticos pelo regime autoritário; na segunda parte abordarei a construção dos direitos humanos como programa de governo, cuja primeira experiência em nosso país foi o primeiro governo de Leonel Brizola no estado do Rio de Janeiro entre os anos de 1983-1986. Além disso, tratarei da incorporação e do destaque do princípio dos direitos humanos na Carta Constitucional de 1988, e a resistência por parte de diver-sos setores (particularmente a corpora-ção policial) à introdução dos direitos humanos como política de governo. Por fim, analisarei de modo crítico as reações recentes de alguns intelectuais conservadores (ou ‘neolacerdistas’) à revisão da Lei de Anistia no Programa Nacional de Direitos Humanos, e a defor-mação que fizeram da obra literária e política de George Orwell, citado por alguns desses articulistas como fonte inspiradora de suas críticas.

A sociedade civil brasileira na luta pela construção da cidadania democrática

Embora o regime autocrático constituí-do entre os anos de 1964 e 1969 tenha tolhido as liberdades civis e políticas como o emprego da censura, do bi-partidarismo forçado, das cassações de mandatos de representantes do poderes legislativo e executivo, da falta de auto-

nomia do judiciário, do julgamento de civis pela justiça militar, do controle dos sindicatos, além do terrorismo de Estado, viveu-se nos anos 1970 uma for-te resistência e uma intensa mobilização por parte da sociedade civil brasileira em oposição a esse modelo de Estado autoritário, e na defesa da construção de uma cidadania participativa. Isso significa afirmar que a Lei da Anistia foi edificada por um movimento de mobili-zação popular no contexto da ditadura.

É necessário relembrar que o contex-to dos anos 1970 da América Latina foi marcado por diversas ditaduras apoia-das pelos EUA, sem mencionar as ou-tras ditaduras que estavam presentes na África, na Ásia e na própria Europa Ocidental, a exemplo da Espanha, Por-tugal e Grécia. Essas ditaduras caracte-rizaram-se pelo caráter de dependência econômica, política e militar à principal potência imperialista, os EUA, apesar de algumas dessas ditaduras represen-tarem um subimperialismo1 em suas regiões de influência, como Brasil, Ar-gentina e México, a Grécia no Chipre e Portugal em suas colônias na África. Para Poulantzas (1978a), esses estados autoritários diferenciam-se das ditadu-ras fascistas pela ausência de uma efe-tiva mobilização ideológico-política da classe operária e das massas populares por meio de um partido político, o que os impossibilitava de tornarem-se ver-dadeiros movimentos estruturados de massa. Nesse tipo de ditadura onde há ausência de partidos de massas, é o exér-cito que se torna o aparelho privilegia-do de organização do bloco no poder. É sobretudo na cúpula do exército que se

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desloca o papel dos partidos políticos da burguesia, tornando-se esta cúpula o partido político de toda a burguesia sob a direção da fração hegemônica.

A cultura política do ‘golpe de Esta-do’ como solução à crise do poder he-gemônico, ou de legitimidade política, não era incomum pois já estava presen-te desde a primeira metade do século XX. Contudo, a década de 1970 foi o apogeu dos regimes ditatoriais que se apoiavam nas Leis de Segurança Nacio-nal sob respaldo da chamada ‘Guerra Fria’, e o emprego da tortura e da elimi-nação física dos opositores (sobretudo os que militavam nos movimentos de esquerda), tornaram-se práticas legiti-madas pelos aparatos repressivos. Além do caso brasileiro, pode-se citar a dita-dura de Pinochet (1973) no Chile; a da junta militar (1973) do Uruguai, que veio a acentuar as práticas repressoras já presentes no Estado de Emergência du-rante governo de Pacheco Areco desde 1968; a de Stroessner do Paraguai cons-tituída desde 1954; no caso argentino, nem mesmo em seu hiato democrático no governo Péron e Maria Estela Mar-tinez (Isabelita Péron), situado entre os governos militares de Ongania e Lanusse (1966-1973) e a junta militar liderada por Videla e Massera (1976-1983), esteve impermeável às práticas repressivas aos setores de esquerda, já que o próprio Ministério de Bem-Estar Social liderado por José López Rega (El Brujo) financiava e coordenava o grupo paramilitar de extrema direita, a Triple A (Alianza Anticomunista Argentina), res-ponsável pelo sequestro, tortura e mor-te de 1122 militantes, em sua maioria

oriundos das fileiras dos Montoneros e do ERP (Exército Revolucionário do Povo); a Bolívia e o Peru tiveram diversos go-vernos militares conservadores, apesar de algumas experiências de governos militares progressistas, de tendência nacionalista antiimperialista como os de Velasco Alvarado no Peru (1968-1975), e de José Juan Torres na Bolívia (1970-1971). O Equador também viveu esse tipo de experiência política auto-ritária com o golpe que levou a junta militar ao poder em 1973, e que gover-nou até 1979. Apesar de não ter havido um governo militar na Colômbia, a go-vernabilidade nesse país era precária, visto que a guerrilha rural já atuava desde 1958, e nos anos 1970 travou-se um intenso confronto entre os grupos guerrilheiros das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), M-19 (Mo-vimento 19 de Abril), EPL (Exército Popular de Libertação), ELN (Exército de Libertação Nacional) contra o exército, e os grupos paramilitares financiados pelo narco-tráfico, como o MAS (Morte aos Seques-tradores). A mesma situação política de desrespeito aos direitos humanos tam-bém se via na América Central e nas Antilhas, onde também predominava a cultura dos golpes militares e de re-gimes ditatoriais em Honduras, Guate-mala, El Salvador, Nicarágua, Panamá, Haiti e República Dominicana.

Apesar desse predominío dos apa-ratos repressivos e da ideologia de se-gurança nacional, isso não significou ausência de resistência aos estados au-

1. Sobre o subimperialismo, veja MARINI (2008).

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toritários. Como já observaram autores de diferentes perspectivas críticas como Gramsci (2000), Foucault (2003) e Poulantzas (1978b), onde há poder no campo da relações, sempre haverá resis-tência a esse poder. No caso brasileiro dos anos 1970, viveu-se uma rica mobi-lização por parte da sociedade civil em defesa da democracia e dos direitos hu-manos em diversos campos de atuação. Com efeito, nesse contexto formou-se no Brasil uma sociedade civil democrá-tica-radical, de conotação gramsciana, na qual os diversos espaços institucio-nais articularam-se com os movimen-tos sociais politizados. Como observa Marco Aurélio Nogueira (2003), essa sociedade civil democrática-radical por enfatizar a transformação política a par-tir de uma nova hegemonia que objeti-va formar um novo Estado, distingue-se de outros tipos de sociedade civil como a liberal ou a social, a primeira sob co-mando do mercado e da vida privada; a segunda sem o foco das instituições po-líticas, nem de um projeto hegemônico que vise à formação de uma vontade ge-ral, mas da autonomia do mundo e da vida em relação às instituições estatais.

Segundo as palavras de Carlos Nelson Coutinho, as transformações econômi-cas empreendidas pelo regime militar ampliaram a sociedade civil que já vi-nha num momento crescente desde o pré-1964 através das Ligas Camponesas, do Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE, do Comando Geral dos Trabalha-dores (CGT), do Cinema Novo etc.:

“Há um fato que me parece ainda mais sig-nificativo, já que está na raiz dessa resistên-

cia: é que o regime, modernizando o país, promovendo um intenso desenvolvimento das forças produtivas, ainda que a serviço das multinacionais, ainda que conservando traços essenciais do atraso no campo, o re-gime deu impulso aos fatores objetivos que levam a uma diferenciação social, e, como tal, à construção de uma autêntica socieda-de civil entre nós. A intensa sede de orga-nização que, nos últimos anos, atravessou o país, envolvendo operários, mulheres, jo-vens, setores médios, intelectuais, até mes-mo setores das classes dominantes, atesta a presença já efetiva dessa sociedade civil (COUTINHO, 1990: p.29)”.

A resistência ao Estado autoritário es-tava presente na mídia impressa - bem mais pluralista se comparada aos nos-sos dias - onde as bancas expunham a venda jornais em sua maioria semanais como o Pasquim, O Movimento, Em Tem-po, Opinião, O Repórter, A Hora do Povo, A Voz da Unidade, Tribuna Operária, Con-vergência Socialista. Além dos jornais, re-vistas como Ensaios de Opinião, Versus e Encontros com a Civilização Brasileira, e outras de teor mais acadêmico, como Estudos CEBRAP e Dados. Essa plurali-dade de jornais de oposição acabaram por levar a reações violentas de grupos paramilitares como a Falange Pátria Nova, organização terrorista que reali-zou atentados a bomba nas bancas de jornais entre 1979 e 1981.

Também transparecia essa resistência à ditadura nas manisfestações artísticas e culturais, como na música popular de Chico Buarque e Gonzaguinha, e tam-bém na música de vanguarda de Jorge Antunes e Willy Corrêa de Oliveira;

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nas peças de Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes e Dias Gomes; no cinema nas obras Leon Hirszmann, Joaquim Pedro de Andrade, Nelson Pereira dos Santos, Sylvio Back, Hector Babenco e Roberto Farias2. Nos quadrinhos a crí-tica também não passou despercebida nos trabalhos de Henfil, Ziraldo e Ja-guar no Pasquim e nas revistas de terror, policial e de ficção científica publicadas pelas editoras Vecchi e Graphipar,3 que apresentaram os trabalhos de Nelson Padrella, Jorge Fisher, Carlos Magno, Julio Shimamoto, Flávio Collin, Octáci-lio d’Assumpção Barros (Ota), Cláudio Seto, Basílio de Almeida (pseudônimo do chargista Luscar), Mano e Vilachã. Na própria Rede Globo, que expressa-va à época, mais do que qualquer canal de televisão (inclusive a rede estatal, a TV Educativa), o conceito criado por Louis Althusser (1976) de “aparelho ideológico de Estado”, encontravam-se focos de resistência como as novelas escritas por Dias Gomes, sobretudo O Bem-Amado, de 1973.

O conflito com o regime autoritário – para além do campo cultural – esteve presente e crescente no campo político e social, como a vitória nas eleições ao senado pelo MDB em 1974, acabando por resultar no chamado “Pacote de Abril” em 1977 pelo governo Geisel, que num conjunto de leis outorgadas criou a figura do ‘senador biônico’ eleito indiretamente pelas assembléias legislativas dos estados onde o parti-do de sustentação ao poder autoritá-rio, a ARENA, detinha a maioria da representação política. O movimento sindical renasceu por meio das greves

organizadas pelo sindicato dos meta-lurgicos do ABC sob liderança de Lula, reunindo numa assembleia 150.000 operários (CARVALHO, 1995). Outros movimentos sociais em defesa da cida-dania e da democracia também marca-ram presença nesse contexto como os de associações de moradores (FAPERJ e FAFERJ), Movimento Feminino Pela Anis-tia, Comitê Brasileiro Pela Anistia, Movi-mento Negro Unificado, Centro da Mulher Brasileira, Movimento Contra a Carestia, Grupo Somos voltado para a defesa dos homossexuais, movimentos ecológi-cos, movimentos de defesa dos índios. Somando-se a esses novos movimentos sociais, antigas organizações corporati-vas como a OAB, a ABI, a SBPC, além da principal organização religiosa, a CNBB, afirmaram-se também como focos de resistência ao regime militar (CARVA-LHO, 1995; COUTINHO, 1990).

Essa mobilização da sociedade civil pelo fim da ditadura e da construção de uma democracia participativa tor-nou-se, na virada da década de 1970 a 1980, a principal pauta de reflexão por parte dos intelectuais acadêmicos nos campos da ciência política, sociologia e filosofia. O artigo de Carlos Nelson Coutinho “A democracia como valor uni-

2. Em relação aos dois últimos diretores, veja suas denúncias sobre a tortura no Brasil nos filmes Lúcio Flávio - Passageiro da Agonia e Pixote - a Lei do Mais Fraco, de Babenco, e Pra Frente Brasil de Farias, ambos finan-ciados pela Embrafilme, empresa estatal produtora de filmes criada durante a ditadura militar em 1969.

3. Assim como no cinema, as histórias em quadrinhos produzidas por essas duas editoras tinham como alvo principal nas suas críticas à ditadura as práticas de tor-turas pelos aparelhos repressivos de Estado.

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versal”, publicado em 1979 no número 9 da revista Encontros com a Civilização Brasileira, foi o ponto de partida para esse debate e tornou-se um verdadei-ro divisor de águas nas correntes de esquerda, sobretudo no marxismo. O argumento central do ensaio de Couti-nho era a defesa da construção do so-cialismo pela via democrática, indo ao encontro das posições defendidas pela corrente do socialismo democrático eu-ropeu, sobretudo pelos eurocomunistas italianos como Enrico Berlinguer e Pie-tro Ingrao, e, rompia com a estratégia jacobina da derrubada do Estado capi-talista pela via insurrecional. Seu artigo gerou diversos trabalhos que polemiza-ram diretamente com ele, uns críticos, como os artigos de Adelmo Genro Fi-lho, “A democracia como valor operário-popular”, publicado na revista Encontros da Civilização Brasileira nº 17, e o de José Guilherme Merquior, “Marxismo e de-mocracia” no livro As idéias e as formas, de 1981, outros próximos a sua posição, como os de Marilena Chauí, “Democra-cia e socialismo: participando do debate”, publicado no livro Cultura e democracia, de 1980, e o livro de Francisco Weffort Por que democracia? publicado em 1984. Além deles, outros intelectuais vieram a participar do debate sobre a questão da democracia, como Fernando Hen-rique Cardoso, Luiz Werneck Vianna, Theotônio dos Santos, Marco Aurélio Nogueira, Jacob Gorender, Décio Saes, Pedro Celso Uchôa Cavalcanti, Bolívar Lamounier, Wanderley Guilherme dos Santos, Emir Sader e Leandro Konder.

Também dentro do próprio Estado, em particular em seu aparato militar,

começaram a emergir claramente as contradições e os conflitos dentro do exército, tanto pela ala da ‘linha dura’, representada pelos generais Silvio Fro-ta e Hugo de Abreu, como pela corren-te democrática, a exemplo dos generais Euler Bentes e Pery Bevilacqua. Esses conflitos internos refletiam dentro dos aparatos estatais as lutas que vinham sendo travadas na sociedade civil. O Es-tado, como observa Nicos Poulantzas, não está impermeável às contradições e às lutas sociais se for entendido pela perspectiva relacional, visto que o Es-tado não é uma entidade totalmente autônoma, mas sim de autonomia rela-tiva. Segundo Poulantzas, em sua análi-se sobre as ditaduras militares,

“[...] as contradições internas do exército refletem e reproduzem as contradições de classe, mas não se reduzem a estas – não mais, aliás, do que as dos outros aparelhos. A reprodução das contradições de classe den-tro do exército e destes aparelhos se faz de forma específica e mediatizada, adotan-do caracteres próprios de cada aparelho e suas funções. É neste contexto que se situam alguns outros fatores de complexidade na reprodução das contradições de classe den-tro dos aparelhos e, em particular, no exér-cito. [...] Ora, se é falso acreditar, como o fazem alguns autores, que nestes regimes o exército governa em função de seus ‘próprios interesses’, submetendo a eles as classes do-minantes, não é menos verdade que a repro-dução das contradições de classe no exército se articule, nas diversas facções e clãs, com atritos e lutas secundárias causadas por es-tes interesses corporativos. Isto contribui, de um lado, para a complexidade desta repro-

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dução e atua, de outro lado, como fator de intensificação das contradições internas no exército (POULANTZAS, 1978a, p.87, grifos do texto original)”.

Como observa Renato Lemos (2002), a anistia de 1979 acabou sendo resul-tado de uma grande transação entre setores moderados do regime militar e da oposição, por iniciativa e controle dos primeiros. A Lei da Anistia soma-da ao fim do bipartidarismo forçado e do abrandamento da Lei de Segurança Nacional (LSN), preparava a transição do regime, não necessariamente para outro qualitativamente diferente, mas para outra forma, que incorporasse novas forças políticas, sem descartar a tutela militar. Os limites das reformas foram dados, desde logo, pelo caráter estritamente burguês da direção do processo político. O sentido básico da transição foi preservar as condições da dominação política de uma classe social absolutamente desprovida de vocação transformadora. Além disso, a chamada ‘anistia recíproca’ foi adotada porque o governo não estava apenas preocupado como os torturadores. Como observa Carlos Fico, ao anistiar os “crimes polí-ticos ou praticados por motivação polí-tica”, o projeto garantia que, no futuro, nenhum militar seria punido em fun-ção das ilegalidades praticadas durante a ditadura (FICO, 2008).

Não obstante Lemos e Fico tenham razão em suas análises sobre o caráter conciliador da Lei de Anistia – lembran-do que a versão dessa lei pelo MDB era mais conservadora e menos abrangente em relação à que foi promulgada –, e

na manutenção das estruturas de poder político, econômico e social pelas fra-ções burguesas que dominavam o bloco no poder, a mobilização da sociedade civil que emergiu no contexto da dita-dura foi decisiva para o afastamento da tutela política dos militares no aparato estatal. Embora o afastamento dos mili-tares e de seus tecnocratas não foi ime-diato, acabou se concretizando nos dois momentos seguintes – a eleição indireta de Tancredo Neves em 1985 e na cria-ção da Constituição de 1988 – e acabou por instalar o modelo do ‘Estado De-mocrático de Direito’, numa transição sem ruptura com o modelo precedente, e tampouco com mudanças em face ao bloco no poder.

Entretanto, como observa Poulant-zas em sua análise sobre a crise das ditaduras da Europa mediterrânea nos anos 1970, as lutas populares foram de-terminantes para a derrubada, ou fim, dos regimes militares. Embora não te-nha havido um ataque frontal de massa contra os regimes, do tipo sublevação geral, as lutas populares tiveram, em última análise, um papel determinante na derrubada deles, pois intervieram nas próprias contradições internas des-tes regimes quando desencadearam o processo de proscrição dos mesmos. Em relação às contradições internas dos apa-ratos estatais, Poulantzas afirma que

“o aguçamento das contradições internas nunca é mais intenso do que quando as massas populares mantêm sempre uma luta à distância dos aparelhos de Estado e tentam atrair os elementos ‘hesitantes’ destes aparelhos. É exatamente neste caso

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que os efeitos da luta das massas popula-res melhor se interiorizam no próprio seio do regime. (...) De um lado, as mas-sas populares e a resistência podem tirar partido das contradições internas dos apa-relhos sem integrá-los fisicamente; de ou-tro, dadas as contradições internas destes regimes – que estão longe de constituir blo-cos monolíticos sem fissuras –, a presença paralela das massas e dos militantes da resistência em seus aparelhos pode ser um meio de reforçar a luta e de influir sobre as contradições (POULANTZAS, 1978a, p. 68, grifos do texto original).

O fim das ditaduras de Portugal, Gré-cia e Espanha (e um pouco depois, a da Turquia) não conduziu a uma ruptura de seus sistemas, mesmo com a vitória eleitoral dos partidos socialistas (PSP, PASOK e PSOE, respectivamente) que adotaram medidas social-democráticas mescladas ao liberalismo econômico (sobretudo no caso espanhol). O fi-nal das ditaduras latino-americanas também não resultou noutro modelo socioeconômico na região. Mas as mo-bilizações populares no Brasil4, como também no Chile e na Argentina, aca-baram enfraquecendo-as, e, no caso brasileiro, as cisões da base de susten-tação do regime militar, sobretudo as lideranças políticas do PDS, refletiam essas contradições internas do regime e a interiorização das lutas populares dentro dos aparelhos de Estado.

Com o fim do regime militar e a efe-tivação da Constituição de 1988, os di-reitos humanos conseguiram ter uma expressão significativa no aspecto legal. Na seção seguinte abordarei a inclusão

dos direitos humanos na agenda políti-ca e a resistência a ela pelos aparelhos repressivos de Estado e pelo senso co-mum, e a polêmica em torno da revisão da Lei de Anistia de 1979.

Os Direitos Humanos no Brasil de hoje

De fato, a construção dos direitos hu-manos no Brasil na década de 1970 esta-va internalizada nas lutas travadas pelos movimentos políticos e sociais na defe-sa do retorno do sistema democrático em oposição à ditadura militar. Eviden-temente que o desrespeito aos direitos humanos na formação social brasileira não se restringiu ao período autoritário entre 1964 e 1985, nem tampouco à di-tadura do Estado Novo. Como chama atenção Paulo Sérgio Pinheiro, também os governos republicanos não ditato-riais recusaram implementar o ‘Estado de direito’ para a maioria da população. Nenhum regime pode ser efetivamen-te democrático se as camadas menos favorecidas não têm acesso a direitos, nem a instrumentos para um efetivo controle social das elites. A criminali-zação da dissidência e dos movimentos populares em períodos não tradicionais tem sido constante: a perseguição aos anarco-sindicalistas entre 1900-1920, aos comunistas nos anos 1930, 1945 e 1950, aos sindicatos e movimentos sociais urbanos e rurais na década de 1960, e aos trabalhadores sem-terra nos anos 1990. Nenhuma das inovações nas práticas arbitrárias das ditaduras parece ter cessado nos períodos democráticos,

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a exemplo das prisões ilegais, das tortu-ras, das execuções sumárias que conti-nuaram a ser aplicadas contra as classes populares (PINHEIRO, 2001).

Durante o processo de mobilização pela retomada do regime democrático, os movimentos sociais não colocaram em pauta o fortalecimento e a autono-mia das instituições estatais do direito, como o Ministério Público, a Defen-soria Pública, e mesmo o Judiciário, já que essas instituições por serem do Estado acabavam sendo identificadas com o autoritarismo, ou pela sua impo-tência diante da ditadura. Ademais, o próprio Ministério Público à época era o braço legal do regime autoritário, e atuava nas cassações dos deputados de oposição. Os movimentos políticos de esquerda naquele contexto apostavam mais nos canais paralegais, como as as-sociações de moradores, para a solução de seus conflitos, em vez de recorrerem aos canais estatais (MOTTA, 2007).

O governo Brizola, no Rio de Janeiro, no período de 1983 e 1986, foi um mar-co na questão dos direitos humanos no Brasil, já que foi o primeiro a imple-mentar o tema como programa de po-líticas públicas. Na campanha de 1982, Brizola demarcava em seus discursos e nos debates promovidos pelas redes de televisão SBT, Bandeirantes e Globo a defesa dos direitos humanos e uma in-tensa crítica às práticas autoritárias das polícias civil e militar do governo Cha-gas Freitas. Os direitos humanos deixa-vam de ser estritamente associados aos presos políticos, em geral de origem social da classe média urbana, para se expandirem às classes trabalhadoras e

excluídas da sociedade. Logo no início de seu governo, uma de suas primei-ras medidas foi o desbaratamento dos esquadrões da morte que atuavam na Baixada Fluminense.

Como observa Cristina Buarque de Hollanda, na sua pesquisa sobre esse tema:

“Num momento ainda fortemente marca-do pelo autoritarismo político, Brizola, por meio da criação do Conselho de Justiça, Segurança Pública e Direitos Humanos, conferiu tratamento institucionalizado ao tema, deslocando fundamentalmen-te a inscrição política que até então lhe caracterizara. As vítimas do fechamen-to político dos governos militares foram passadas para um segundo plano diante da precedência estabelecida em favor dos direitos humanos das classes desfavoreci-das economicamente. Diferentemente do que acontecia até então, a polícia huma-nitária do governo Brizola nitidamente privilegiava os setores marginalizados da sociedade. [...] O qualificativo ‘humanos’ alargava as suas fronteiras, incluindo no conjunto de designados também aqueles indivíduos já tradicionalmente excluídos de reconhecimento do Estado. Não só os filhos da classe média, como era o caso do Tortura Nunca Mais, mas também os in-tegrantes das classes pobres e até miserá-

4. Vide as passeatas pela anistia em 1979 e contra os atentados terroristas de 1980, a reconstrução das organizações e das lutas sindicais, a vitória nos prin-cipais estados da federação pela oposição em 1982 e os comícios pelas Diretas Já em 1984, além da mobi-lização da sociedade civil durante a constituinte nos anos de 1987 e 1988.

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veis deveriam compor o alvo da nova linha de conduta do governo (BUARQUE DE HOLLANDA, 2005, pp. 31 e 99)”.

A resistência à política como também à incorporação da cultura dos direitos humanos foi ampla por parte das insti-tuições policiais. Os policiais alegavam que os direitos humanos acabavam por beneficiar o crime organizado nas fave-las, e estas teriam se tornado um refú-gio intocável pela polícia, ao impedir suas ações de caráter repressivo. Com o aumento da taxa de criminalidade, a mídia conservadora, encabeçada pelas Organizações Globo, começou a desferir violentas críticas ao governo Brizola pela adoção da política de direitos hu-manos com o respaldo de dirigentes da polícia carioca, e acabou por influen-ciar parte da ‘opinião pública’ que se opunha a essas medidas reformistas.

Segundo Cristina Buarque de Hollan-da,

“no primeiro governo Brizola, a rivalida-de com a grande imprensa representou um dos canais de produção do descrédito elei-toral e desconfiança generalizada com re-lação a procedimentos e resultados de sua gestão da polícia. O incremento das taxas de criminalidade ou o simples sentimento de insegurança aumenta a disposição do público para apoiar ações policiais repres-sivas, ou mesmo arbitrárias, contra indiví-duos ou grupos sociais que se assemelham ao estereótipo do criminoso. Neste sentido, a contrapartida da opinião pública aos direitos humanos como referência ideo-lógica de governo – com ênfase clara no privilégio dos setores populacionais mar-

ginalizados – foi a rejeição e estigmatiza-ção do discurso oficial (BUARQUE DE HOLLANDA, 2005, p.37)”.

Com efeito, as instituições policiais não conseguiram internalizar o discurso e as práticas dos direitos humanos devi-do à ideologia militar de corte autori-tário reproduzida por essas instituições há decênios. O Estado não é meramen-te normativo, no qual a criação de uma norma seria totalmente absorvida e reproduzida por seus agentes. Como já observara Poulantzas (1978b), o Es-tado não é um bloco monolítico, mas sim uma arena de conflitos permeada por contradições e marcada por uma heterogeneidade de práticas e políticas, i.e., um conjunto de micropolíticas nas quais se encontram resistências a de-terminadas normas estabelecidas pelo discurso oficial.

A Polícia Militar começou a ser con-trolada pelo Exército a partir dos anos 1930, e a Constituição democrática de 1946 manteve esse controle e conside-rou que as polícias dos estados atuavam como forças auxiliares e de reserva do exército. Durante o governo militar, as polícias militares estavam diretamente sob as ordens dos oficiais do Exército que ocupavam os cargos de secretários de segurança e dos comandos da PM. As polícias tinham seus órgãos de inte-ligência e de repressão política, os quais atuavam juntamente com seus homólo-gos das forças armadas nacionais. A re-produção da ideologia militar nas PMs molda o policial em conformidade com os métodos militares. O policial é trei-nado para combater e destruir inimi-

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gos, não para proteger cidadãos. Vive no quartel e é responsável ante os seus superiores hierárquicos, não convive com os cidadãos a quem deve prote-ger e não garante os direitos civis deles (CARVALHO, 1995).

Apesar das resistências ao programa dos direitos humanos por parte dos setores conservadores da mídia, dos militares, do empresariado, a Consti-tuição de 1988 incorporou plenamente os direitos humanos, especialmente no seu artigo 5° nos seus 77 incisos, garan-tindo ao indivíduo a inviolabilidade do seu corpo (a condenação das práticas de tortura), a efetividade do habeas cor-pus, o direito ao contraditório, o habe-as data no qual o cidadão pode exigir ao governo que lhe permita o acesso a toda informação sobre o próprio gover-no, inclusive as de caráter confidencial. Foi criado o mandato de injunção, que permite recorrer aos tribunais para que se obrigue ao governo a cumprir dispo-sições constitucionais ainda não regula-mentadas. Além disso, instituições do direito estatal como o Ministério Públi-co e a Defensoria Pública são definidas como protetoras dos direitos humanos, tanto os individuais como os coletivos. A Carta de 1988, com efeito, garantia, mais do que qualquer constituição an-terior, os direitos humanos em seu sen-tido mais amplo, abrangendo tanto os de caráter civil como os direitos sociais, e o Estado se responsabilizando pela ga-rantia dos mesmos.

Mas o advento da democracia, como também a assunção da nova constitui-ção, não impediu a continuidade da violência ilegal por parte dos agentes

dos aparelhos repressivos do Estado (muitas vezes por meio de grupos de extermínio ou de milícias), como as chacinas da Candelária e de Acari no Rio de Janeiro em 1993, ou mesmo quando legitimados por alguns gover-nos estaduais, a exemplo do massacre de Carandiru em São Paulo em 1992 e, recentemente, no ano de 2009, quando a polícia de Brasília empregou força desmedida aos manifestantes que pro-testavam contra a corrupção praticada pelo governo Arruda.

De acordo com Paulo Sergio Pinheiro,

“os policiais tendem a ver o Estado de direito mais como obstáculo do que como um garantia da segurança pública e atu-am como guarda de fronteira, protegendo as classes dominantes dos pobres, alvos preferenciais da criminalização e da re-pressão. Apesar de o Brasil ter sido um dos primeiros a assinar a convenção contra a tortura em 1985, a tortura sistemática nas delegacias policiais ainda existe, e as exe-cuções sumárias de suspeitos pela polícia é uma epidemia. Não se desterram mais os ‘indesejáveis’ como na Primeira Repú-blica: matam-se. Em 1999, na cidade de São Paulo, policiais militares mataram 330 civis (muitos desses incidentes como pesquisa recente da Ouvidoria da São Pau-lo indicou, são execuções sumárias) e mais 187 quando estavam fora de serviço. Hou-ve um número similar de vítimas na cidade do Rio no mesmo ano. Entre janeiro e julho de 2000, a Polícia Militar de São Paulo matou 449 cidadãos, o que permite uma projeção de mil mortes até o final desse ano. Se nós compararmos o Brasil com ou-tros países democráticos (excluindo aqueles

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onde há guerra insurrecional), a mais alta taxa de violência policial letal no mundo está aqui” (PINHEIRO, 2001, p.295).5

A criação de um Estado de direito, ao contrário da crença da vertente jurídi-co-liberal que o define como a antíte-se às práticas repressivas e arbitrárias (SILVA, 2009), reproduz também em seu bojo coações de ordem física na ma-nutenção da ordem, aplicando na so-ciedade medidas de caráter repressivo. Segundo Poulantzas (1978b), o Estado de direito não pode ser definido como o limite ao autoritarismo estatal, pois foi por intermédio do Estado moderno que as ações repressoras dos aparelhos de Estado obtiveram maior precisão e eficácia devido a sua ação racional ser instituída em lei. A concepção liberal do Estado de direito nada mais é do que um efeito ilusório do discurso político/jurí-dico. Toda forma estatal, mesmo a mais totalitária como o nazismo, e mesmo o stalinismo, edificou-se por intermédio da lei e da racionalidade jurídica.

Logo, esta suposta cisão entre lei e vio-lência é falsa, principalmente no Estado moderno. A lei é o código da violência pública organizada, ou seja, a lei é par-te integrante da ordem repressiva e da organização da violência por todo o Es-tado. Portanto, “o Estado edita a regra, pronuncia a lei, e por aí instaura um pri-meiro campo de injunções, de interdi-tos, de censura, assim criando o terreno para a aplicação e o objeto da violência (POULANTZAS,1978b: p.84)”.

Poulantzas considera, então, que o Estado e a sociedade moderna longe de serem antagônicos ao exercício da força,

estão completamente associados a ela, tanto do ponto de vista material como simbólico. A violência física monopoli-zada pelo Estado tem um lugar determi-nante, mas isso não se deve ao fato dela somente ser utilizada em última instân-cia quando as instituições (ou aparelhos ideológicos) que formam a hegemonia das classes e grupos dirigentes entram em ‘curto circuito’ e não conseguem mais controlar os setores subalternos. Para Poulantzas, a violência legal assu-me outro papel porque ela: “sustenta permanentemente as técnicas do poder e os mecanismos do consentimento, está inscrita na trama dos dispositivos disciplinares e ideológicos, e molda a materialidade do corpo social sobre o qual age a dominação, mesmo quando a violência não se exerce diretamente (POULANTZAS, 1978b: p. 88)”.

A legitimidade das práticas coativas do Estado está bem explicita na Consti-tuição em seus artigos 136 a 139. Esses artigos definem o papel dos dispositi-vos repressores por meio do Estado de Defesa ou de Sítio em situações de crise. Os chamados Estados de direito sempre empregaram meios de coerção física a seus opositores, mesmo nas ditas “democracias maduras” como na Ingla-terra nos anos 1970 e 1980, usando mé-todos de tortura aos militantes do IRA, ou mesmo daqueles que eram suspeitos de integrar aquela organização como foi retratado no filme Em nome do pai, que enfoca a prisão arbitrária de Gerry Conlon e de seus familiares. O mesmo poderia ser dito em relação à execução sumária pela polícia inglesa do brasilei-ro Jean Charles de Meneses, em 2005.

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Ações arbitrárias também aconteceram na Alemanha Ocidental nos anos 1970, em relação ao julgamento e ‘suicídio’ no presídio de segurança máxima dos membros do grupo Baader-Meinhof. O mesmo pode ser dito nos EUA sobre a prisão e a condenação à pena de mor-te, provocada por preconceitos políti-cos e étnicos, de Sacco e Vanzetti nos anos 1920 nos EUA, e, posteriormente, nos anos 1970, na perseguição dos mi-litantes negros ligados aos Black Panther Party, e, mais recentemente, depois dos atentados ocorridos no 11 de setembro de 2001, em que os direitos humanos da comunidade muçulmana foram ameaçadas.

A história nos mostra, portanto, que nem mesmo no Estado de direito as ins-tituições repressoras estariam sob total controle. Pelo contrário, tem-se perce-bido no caso brasileiro, como destaca José Murilo Carvalho (1995), que os direitos civis, a despeito de todo pro-gresso histórico-legal alcançado, ainda são os menos difundidos e garantidos. Há a permanência de uma diferença de castas em nossa formação social, onde distingue-se os direitos do chamado ‘cidadão doutor’ em relação aos chama-dos cidadãos ‘simples’ ou ‘elementos’.

Todavia, apesar de todos esses limites que estão presentes no Estado Demo-crático de Direito constituído em 1988, e da resistência aos direitos humanos por parte de alguns agentes, não se pode negar avanços em nível legal, e da internalização do discurso dos direitos humanos por parte do Estado. Apesar da permanência dos privilégios de clas-ses e corporativos no Brasil, determina-

dos ‘cidadãos doutores’ têm encontrado resistência a suas atitudes ilegais por parte do Ministério Público, e mes-mo pela Polícia Federal, com a prisão de banqueiros, empresários, políticos, magistrados, policiais e procuradores nessa primeira década do século XXI. Um dos fatos mais significativos no pós-1988 foi a incorporação do discurso e programa dos direitos humanos pelo Estado, especialmente nas instituições do direito estatal como o Ministério Público e a Defensoria Pública, criando núcleos temáticos de direitos humanos e atuando em parceria com organiza-ções da sociedade civil voltadas para essa questão. Assim sendo, os direitos humanos difundidos na sociedade bra-sileira inicialmente na lutas políticas durante a ditadura, ampliaram o seu escopo nos anos 1980 atingindo os seg-mentos subalternos e explorados da sociedade, exatamente aqueles que têm tido os seus direitos mais violados.

Considerações finais: a reação conservadora ao PNDH-3

Apesar de os direitos humanos terem começado a se firmar nos últimos 30 anos, tendo como a luta pela anistia em 1979 o seu momento inicial e a Cons-tituição de 1988 como sua afirmação legal, a proposta da revisão da Lei da Anistia mostrou que os direitos huma-nos ainda não formaram um consenso

5. Em 2007, registrou-se no Rio de Janeiro 1330 mortos por policiais. Fonte UCAM-CESeC.

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em nossa sociedade. Isso foi plenamen-te percebido pela forte reação por parte de setores conservadores que invoca-ram o esquecimento e a sua superação devido ao ‘contrato firmado’ na socie-dade brasileira em 1979.

Em linhas gerais, a diretriz que cria a comissão do Direito à Memória e à Verdade trata: 1) da publicização dos arquivos dos centros de informação e de repressão das forças armadas (CIEX, CISA e CENIMAR); 2) da localização e identificação de corpos de presos po-líticos dados como ‘desaparecidos’; 3) da preservação da memória nacional sobre a repressão política e a resistên-cia daqueles que se confrontaram com a ditadura; 4) do acompanhamento e monitoramento da tramitação judicial dos processos de responsabilização civil ou criminal sobre casos que envolvam atos relativos ao regime de 1964-1985. Certamente, desde o lançamento do Plano de Reformas de Base do gover-no João Goulart nos anos 1960, não se via uma reação política tão violenta por parte dos representantes da direi-ta. Essa reação se apoiou, sobretudo, nos principais grupos de comunicação, que denunciaram em seus editoriais o ‘radicalismo esquerdista’ do PNDH-3. Mas essa reação articulada pelos seto-res conservadores tem a sua razão de ser: de fato, o PNDH-3 foi o programa de governo mais ousado e progressista desde o Plano de Reformas de Base de Goulart, e seu efeito imediato foi pro-vocar uma intensa ira por parte da inte-lectualidade conservadora.

O jornal O Globo tem dado destaque ao tema desde o dia 7 de janeiro, e até

o fim daquele mês publicou vários arti-gos, a maioria de intelectuais e políticos de cunho notoriamente conservador, expressando veladamente (ou explicita-mente) seus grupos de interesse, sejam militares, religiosos, agronegócio ou co-municação. Foram publicados artigos de Demétrio Magnoli, Arthur Virgílio, Dennis Rosenfield, Ives Gandra, Rodri-go Constantino, Kátia Abreu, e Alfredo Syrkis.6 Do lado favorável ao PNDH-3 foram publicados textos de Daniel Aa-rão Reis, Silvio Tendler, Edélcio Vigna e Wadih Damous. O teor político do discurso dos intelectuais críticos ao PNDH-3 em geral é o mesmo: as críti-cas demarcaram uma violenta posição anticomunista com forte teor dos tem-pos da Guerra Fria, em que relembra o discurso lacerdista, rejeitando qual-quer revisão da Lei constituída trinta anos atrás, durante o período final da ditadura. Segundo esses críticos, tratar-se-ia de revanchismo por parte dos ‘ex-terroristas’, de um estratagema do ‘totalitarismo stalinista’, de tentarem transformar rebeldes assassinos em mártires, de estigmatizarem os milita-res, de ‘recriarem’ a verdade, e evocam a necessidade de punir também aqueles que foram acusados de atos terroristas, caso haja punição aos agentes de Estado acusados de empregar tortura aos pre-sos políticos.

Um dos argumentos empregados por essa intelectualidade neolacerdista7 é o fato de que a revisão da Lei da Anistia romperia com o ‘contrato’ realizado na sociedade civil em 1979. Mas como encarar a Lei da Anistia de 1979 como um ‘contrato’, um ‘pacto’, se não havia

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igualdade entre as partes, e mesmo se-gurança política e jurídica do lado do-minado se a parte dominante detinha por completo o monopólio da força e do arbítrio, e sem a presença de uma justiça autônoma?

O mais gritante dessa crítica neola-cerdista tem sido a distorção dos fatos históricos na tentativa de se formar um senso comum adverso ao PNDH-3. Um exemplo paradigmático disso é a afirmação torpe de Ives Gandra, quan-do emprega de modo deturpado a má-xima escrita por George Orwell em sua obra A revolução dos bichos, de que “todos os animais são iguais, mas uns são mais iguais do que outros”, e, des-se modo, alega que os “terroristas” de esquerda estariam sendo mais benefi-ciados em relação àqueles que comete-ram torturas, sevícias e assassinatos nos aparelhos repressivos de Estado. Na verdade, essa máxima orwelliana deve-ria ser aplicada aos que, em nome do Estado e da defesa da ‘liberdade’, pra-ticaram atrocidades legitimadas pelo poder e não foram julgados e sentencia-dos pela prática da tortura, prática essa que sempre vigorou em nossa socieda-de desde o período colonial, passando pelo contexto do Estado Novo, e ainda permanece ativa nas delegacias e presí-dios brasileiros. Enquanto os militantes de esquerda foram presos, torturados, desaparecidos, banidos ou executados, nada aconteceu àqueles que serviram aos aparatos repressivos de Estado, ou participaram de grupos paramilitares ou parapoliciais, como o CCC (Coman-do de Caça aos Comunistas), MAC (Mo-vimento Anticomunista), AAB (Aliança

Anticomunista Brasileira) e a Falange Pá-tria Nova. Nenhum dos torturadores ou terroristas de direita foi preso, tortura-do, desaparecido, banido ou executado. Por que então punir de novo àqueles que já foram punidos?

Os críticos conservadores do PN-DH-3 teriam de explicar à opinião pú-blica porque os agentes da repressão e do terrorismo de Estado nunca foram julgados pelos seus crimes, distinta-mente daqueles que cometeram os mesmos tipos de crime na Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai. Por que em relação ao caso PARASAR, que tinha como objetivo a explosão do Gasôme-tro do Rio de Janeiro, e o assassinato de lideranças políticas de oposição, somen-te quem fez a denúncia de tal tentativa, o capitão Sergio Macaco (com o aval do brigadeiro Eduardo Gomes), foi punido enquanto o mentor daquela possível ação terrorista, o brigadeiro Burnier, não foi? Por que o coronel Ulstra nun-ca respondeu judicialmente por seus crimes por tortura no DOI-CODI de São Paulo? Por que o coronel (à época capitão) Wilson Dias Machado nunca respondeu sobre o seu crime de tentar explodir o Riocentro em 1981, e, ao

6. Embora se oponha à revisão da Lei da Anistia, Syrkis diferencia-se dos demais críticos por ter par-ticipado da luta armada, e por não reproduzir um discurso de teor anticomunista ou condenatório ao PNDH-3.

7. Entende-se por ideologia lacerdista um discurso conservador calcado no anticomunismo típico da Guerra Fria, o qual mescla ‘moralismo’ político, de-fesa do livre mercado, teoria conspiratória e a detur-pação de fatos históricos, usados instrumentalmente para denegrir os opositores políticos.

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contrário, foi promovido de patente e continua a atuar no exército? Para uns a punição desmedida, para outros a pro-moção e o benefício da aposentadoria. Afinal, quem é mais igual em relação a outro na História recente do Brasil?

Outro argumento dos opositores à re-visão da Lei de Anistia é que as vítimas da repressão travaram uma ‘guerra suja’ em confronto direto com os aparelhos repressores. Contudo, o que poderiam alegar sobre os assassinatos do depu-tado Rubens Paiva e da estilista Zuzu Angel? E em relação aos militantes do PCB (como é notório e sabido, O PCB foi a organização marxista que mais se opôs ao recurso da luta armada durante a ditadura) Wladimir Herzog e Manuel Fiel Filho? E o fuzilamento dos dirigen-tes do PCdoB Pedro Pomar e Angelo Arroyo? Nenhuma das vítimas citadas acima participaram da guerrilha, ou es-tavam em confronto armado contra os aparatos repressores. Mas nem por isso sofreram menos, ou tiveram um trata-mento distinto, daqueles que participa-ram da luta armada.

Ademais, a distorção dos fatos histó-ricos por parte de alguns desses articu-listas demonstram que não é somente os ditos ‘comunistas totalitários’ que deturpam ou omitem os fatos da his-tória. Recorrem mais uma vez a outro elemento extraído da obra de George Orwell, desta vez do livro 1984, sobre o ‘Ministério da Verdade’ (numa clara alusão à Comissão Nacional da Verda-de do PNDH-3): na visão orwelliana, a “verdade” é construída pelo Estado/Partido, pois a História é reescrita e os fatos históricos são alterados de acordo

com os interesses do ‘Grande Irmão’. No entanto, esses críticos neolacerdis-tas seguem à risca essa prática denun-ciada por Orwell: a alteração dos fatos históricos

Um dos exemplos mais absurdos é a acusação de que os militantes das or-ganizações revoluciónarias seguiam as ‘diretrizes de Moscou’, que seria uma estratégia da URSS na tentativa de exportar seu ‘regime opressor’; outra é que Marighella estaria sob coman-do das ordens do Kremlin. Qualquer recém-iniciado em História ou em Ci-ência Política sabe que a URSS renun-ciou à estratégia da luta armada desde os anos 1950, e isso ficou explícito pelo PCB em seu famoso Manifesto de Agos-to de 1958 no qual passou a defender a via pacífica da construção do socialis-mo. E essa posição do PCB foi decisiva para a formação de várias organizações que passaram a defender a derrubada do regime autoritário pela via arma-da. O próprio Marighella rompeu com essa diretriz do PCB em 1966, quando participou da OLAS em Cuba, e, como é de conhecimento histórico por todos aqueles que não se prendam a nenhum tipo de dogmatismo, Cuba não se atre-lou à posição soviética, já que defendia a estratégia da guerrilha foquista. Além disso, várias organizações de esquerda se opunham ao socialismo soviético, como o PCdoB, o PCBR, Ala Vermelha, AP-ML, POR-T, entre outras. A própria ALN de Marighella não se definia en-quanto uma organização estritamente comunista, e sim como uma frente de resistência composta por nacionalistas, cristãos e todos aqueles opositores ao

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Estado autoritário e dispostos a partici-par da luta armada8.

O que os articulistas neolacerdistas omitem é a existência de uma plurali-dade de tendências, tanto no marxismo como na esquerda em geral, nem sem-pre convergentes. Aliás, isso não seria exclusivo do socialismo ou do marxis-mo. O próprio liberalismo é marcado por uma pluralidade de posições. Afi-nal, não há diferenças entre Tocque-ville e Stuart Mill? E o que dizer sobre Keynes, Aron, Dahrendorf e Galbraith em relação à Hayek, Friedmann, Von Mises, Popper e Buchanan? Todos são liberais, mas defendem o mesmo libe-ralismo? E Carlos Lacerda seria igual a Tancredo Neves? Ademais, omitem que a crítica ao stalinismo, ou modelo sovi-ético, começou pela própria esquerda, vide a crítica de Rosa de Luxemburgo aos anos iniciais da Revolução Russa, a de Trotsky ao período stalinista, e a polí-tica soviética pós-Stalin por Berlinguer, Ingrao, Bahro, Bettelheim e Poulantzas. Além disso, o socialismo abrange tanto as diversas tendências marxistas como também as não marxistas, a exemplo dos fabianos, socialistas utópicos, anar-quistas, sociais-democratas etc.

Antes de terminar é necessário fazer justiça ao legado de George Orwell (pseudônimo de Eric Arthur Blair 1903-1950), que tem a sua obra desde a guer-ra fria instrumentalizada pela direita conservadora, pela qual ele não tinha a menor simpatia ou identidade. Geor-ge Orwell foi um militante socialista e se identificava politicamente com a ala esquerda do Partido Trabalhista Britâ-nico colaborando, inclusive, no jornal

Tribune, que representava essa tendên-cia. Sua crítica ao socialismo soviético, i.e, ao stalinismo, está expressa nas suas obras A revolução dos bichos (1945) e 1984 (1948) e é fudamentada numa posição de esquerda, como já vinha sendo feita pelos anarquistas, socialis-tas reformistas e por Trostky (e seus se-guidores) em seu livro A revolução traída de 1936. A relação com os anarquistas e trotskistas fizeram parte da experiência polítaca de Orwell durante a guerra ci-vil da Espanha nos anos 19309, pois ele fez parte das brigadas do POUM, parti-do socialista de linha trotskista que so-fria uma intensa perseguição por parte não apenas da Falange de Franco, mas também pelas milícias pró-soviéticas, e essa experiência deu início à crítica de Orwell ao stalinismo.

Sua simpatia ao socialismo, e sua crí-tica aos sistemas totalitários, foi expli-citamente declarada em seu artigo Por que escrevo?, de 1946,10 no qual afirmou que, depois dos eventos da Espanha, a sua obra se voltou, diretamente ou indiretamente,“contra o totalitarismo e em defesa do socialismo democráti-co”. No seu prefácio à edição ucraniana da Revolução dos bichos, direcionada aos dissidentes socialistas anti-stalinistas,11

8. Sobre a formação das organizações revolucioná-rias e suas divergências com o PCB, veja GOREN-DER (1987) e REis FiLho E sá (1985).

9. Vide sua obra Lutando na Espanha.

10. Disponível em http://translate.google.com.br/translate?hl=pt-

11. George Orwell fez questão de não receber direitos autorais por essa edição, nem por outras traduções voltadas para pessoas pobres demais para comprar o livro (por exemplo, as edições em persa e telugu).

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Orwell afirmou depois de sua volta da Espanha que o seu objetivo era de-nunciar o mito soviético, porque esse mito incorria num grande prejuízo ao movimento socialista. Como o próprio Orwell escreveu: “De fato, a meu ver, nada contribuiu tanto para a corrupção da ideia original de socialismo quanto a crença de que a Rússia é um país socia-lista e cada gesto de seus governantes deve ser desculpado, quando não imi-tado (ORWELL, 2009, p.145)”. Daí ser absurda e falsa a associação da crítica de Orwell ao socialismo soviético com a crítica neoliberal conservadora indivi-dualista, como a de Hayek.

Para Orwell, a posição do liberalismo conservador de Hayek era tão nociva quanto o totalitarismo stalinista, como frisou em sua resenha escrita em 1944 sobre o livro de Hayek O Caminho da Servidão: “He [Hayek] does not see, or will not admit, that a return to ‘free’ competition means for the great mass of people a tyranny probably worse, because more irresponsible, than that of the State.”12 O fato de ser um críti-co a experiência soviética não o tornou um intelectual conservador, pois, dis-tintamente do pensamento liberal-con-servador pró-capitalista onde inexiste autocríticas, seja no campo teórico, seja nas experiências históricas, muitas ve-zes marcadas pelo emprego da violência física e do autoritarismo (vide a coloni-zação da Índia e o domínio da China pelos ingleses, a colonização francesa na Argélia e no Vietnã, a exploração e o quase extermínio dos aborígenes na Austrália, sem falar da colonização espanhola, portuguesa e inglesa, que

massacrou boa parte das nações indige-nas da América, além das intervenções dos EUA na América Latina, África e Ásia, do emprego de torturas em Guan-támano etc.), a esquerda, por intermé-dio de seus intelectuais, tem marcado presença constante na História pelas autocríticas das experiências socialistas que datam desde 1917.

Por isso incomodava a Orwell (e cer-tamente ele previa isso no futuro) a instrumentalização de sua obra pelas correntes conservadoras. Sua preocu-pação é bem nítida numa carta dirigi-da a Francis A. Henson, membro do sindicato estadunidense United Auto Workers, datada de 16 de junho de 1949 (sete meses antes de sua morte), repro-duzida na revista Life (edição de 25 de julho de 1949) e no The New York Ti-mes Book Review (31 de julho de 1949), na qual Orwell declarou o seguinte: “Meu romance recente [1984] não foi concebido como um ataque ao socialis-mo ou ao Partido Trabalhista Britânico (do qual sou um entusiasta), mas como uma mostra das perversões... que já foram parcialmente realizadas pelo co-munismo e fascismo”13.

Para finalizar, diria que se Orwell les-se o PNDH-3 não se inquietaria sobre a formação da Comissão Nacional da Verdade, cuja criação tanto incomodou os intelectuais conservadores, e identi-

12. Artigo disponível em http://thomasgwyndunbar.wordpress.com/2008/10/09/george-orwell-review/ BR&langpair=en%7Cpt&u=http://www.orwell.ru/li-brary/essays/wiw/english/e_wiw

13. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/1984_(livro).

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ficaram nela um reflexo do “Ministério da Verdade” da obra 1984; ao contrá-rio, Orwell não era contra a busca da verdade, pois a sua militância política e a sua crítica aos autoritarismos sempre expressaram essa busca, pois a verdade emerge a partir das contradições dos fa-tos e das ideias em conflito; além disso, o silêncio e a omissão não faziam parte

da visão de mundo (e das práticas) de George Orwell, bem ao contrário dos intelectuais opositores à revisão da Lei da Anistia, marcados pelo conformismo e pelo temor de que a verdade históri-ca do passado recente seja de conheci-mento de todos os cidadãos brasileiros, principalmente daqueles que não te-mem a verdade.

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Anistia política trinta anos depois e os Direitos Humanos no Brasil de hojeLuiz Eduardo Motta

ResumoEste artigo analisa o impacto do PN-DH-3 nos setores conservadores da política e da intelectualidade brasilei-ra, particularmente a respeito da revi-são da lei de anistia política. O texto divide-se em três partes: a primeira analisa o contexto da abertura polí-tica no final dos anos 1970, durante o governo militar, no qual a Lei da Anistia foi criada; na segunda parte aborda-se a implementação pioneira da política de direitos humanos no primeiro governo de Leonel Brizola, implicitamente associada à luta pela anistia política e à resistência ao regi-me militar; por fim, na terceira parte, propõe-se a desconstrução da crítica ao PNDH-3 dos intelectuais conserva-dores, assim como uma discussão da biografia política de George Orwell, cuja obra literária tem sido distorcida e instrumentalizada por esses críticos conservadores.

Palavras-chaveAnistia política – política de direitos humanos – Estado

AbstractThis article analyzes the impact of PN-DH-3 in political and intellectual con-servative sectors in Brazil, particularly regarding the revision of the Political Am-nesty Law. The paper is divided into three parts: the first one analyzes the context of the political openness in the late 1970s, during the military government, when Amnesty Law was created; the second part discusses the pioneering implementation of human rights policy during the first go-vernment of Leonel Brizola, associated to the struggle for political amnesty and to the resistance against the military regime; finally, the third part proposes the decons-truction of the critics to the PNDH-3 from the conservative intellectuals and discusses the political biography of George Orwell, which literary work has been distorted and exploited by those conservative critics.

Key wordsPolitical amnesty – human rights policy – State

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