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    Em um povoado distante, a vida do interior segue tranquila, at

    que um anncio chega para modificar a vida de todos: o prncipeest buscando uma moa para ser sua noiva, e todas as meninas do

    reino devero ser levadas para uma academia de princesas, de

    modo a aprender os modos da corte. Entre elas, h uma que no

    deseja este futuro, mas infelizmente, o desejo real uma ordem.

    Best seller do New York Times e da Publishers Weekly.

    Vencedor da Newbery Honor de 2006, um dos mais importantes

    prmios de literatura dos Estados Unidos.

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    Para bons amigos

    Em especial para Rosi, uma verdadeira garota da montanha

    Captulo Um

    Ao leste desponta o solE em minha boca um bocejoA cama me agarra e implora para eu ficar hora de ir trabalharO inverno longo e no tardaEu me visto e saio a cantar

    Miri acordou com o balido sonolento de uma cabra. De to escuro que

    estava l fora, era como se os olhos ainda permanecessem fechados, mastalvez as cabras j percebessem o aroma da manh entrando pelas frestasentre as pedras nas paredes da casa. Meio acordada, meio dormindo, sentiaa friagem do outono enregelando-lhe as cobertas e teve vontade de seaconchegar ainda mais para dormir como um urso de dia ou de noite sobfrio intenso.De repente, lembrou-se dos mercadores, chutou para longe as cobertas esentou-se na cama. Seu pai acreditava que aquele era o dia em que ascarroas passariam pela quebrada da montanha e chegariam aldeia.Nessa poca do ano, os aldees se empertigavam para as ltimas permutasda temporada, apressando-se em dar acabamento a mais alguns blocos decantaria, que seriam trocados por igual quantidade de alimento para os

    meses em que a neve no os deixaria trabalhar. Miri queria ajudar.Cuidando para evitar o barulho do colcho de palha, Miri se levantou epassou delicadamente por cima do pai e da irm mais velha, Marda,adormecidos em suas esteiras. Passara a semana inteira ansiosa, queria jestar na pedreira trabalhando quando o pai l chegasse. Talvez assim eleno a mandasse embora.Vestiu as ceroulas de l por cima do pijama, mas ainda no tinha amarradoa primeira bota quando o farfalhar da palha revelou que algum haviaacordado.Papai agitou as brasas e acrescentou um pouco mais de esterco de cabra. Aluz alaranjada se intensificou, projetando uma imensa sombra dele contra aparede. J amanheceu? Marda se apoiou num dos cotovelos e esticou os olhosna direo da lareira. S para mim disse o pai.Ele olhou para Miri ali no canto, parada como uma esttua, com um p debota calado e os cadaros nas mos. No foi tudo o que ele disse. Papai. Miri calou o outro p e foi at ele, arrastando os cadaros pelocho de terra batida. Manteve o tom de voz natural, como se o pensamentotivesse acabado de surgir. Achei que seria bom eu ajudar um pouco porcausa dos acidentes e do mau tempo, s at os mercadores chegarem.

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    O pai no tornou a dizer no, mas ela percebeu pela concentrao ao calaras botas que ele no mudara de ideia. L fora, escutara-se uma das

    cantigas que os trabalhadores costumavam entoar a caminho da pedreira. hora de ir trabalhar, o inverno longo e no tarda, eu me visto e saio acantar. O som da cantiga cada vez mais prximo, acompanhado de umchamado insistente, vamos logo, vamos logo, antes que eles passem, antesque a neve do inverno cubra toda a montanha. A cantoria fez Miri sentircomo se seu corao estivesse espremido entre duas pedras. Um convite unio, mas ela no estava includa.Encabulada por ter mostrado vontade de ir, Miri deu de ombros e disse: Ora, bolas! Pegou a ltima cebola de uma tigela, cortou uma fatia dequeijo de cabra curtido e entregou o alimento para o pai quando ele abriu aporta. Obrigado, minha flor. Se os mercadores vierem hoje, quero ficarorgulhoso de voc. Deu um beijo no alto da cabea da filha e logoengrenou na cantoria dos demais, antes mesmo de alcan-los.Miri sentiu a garganta arder. Iria deix-lo orgulhoso, sim.Marda a ajudou com os afazeres de casa, juntando as cinzas e varrendo alareira, colocando o esterco das cabras para secar ao sol e mais gua nacarne para o jantar. Enquanto a irm cantarolava, Miri tagarelava sobrequalquer assunto, sem, no entanto, mencionar a recusa do pai em deix-latrabalhar. Mas o pesar lhe caa sobre o semblante qual roupa molhada sobreo corpo, e sua vontade era de rir o mais que pudesse at conseguir se livrardaquilo. Semana passada, fui casa da Bena e o av dela estava sentado l fora

    pegando sol. Fiquei olhando, intrigada, porque ele nem se incomodava comuma mosca que no parava de esvoaar ali por perto. De repente,pimba.Esmagou-a com um tapa certeiro em cima da prpria boca contou Miri.Marda se arrepiou toda. E o que pior, Marda, ele deixou a mosca l disse. O bicho morto,grudado bem ali, embaixo do nariz do velho. E, quando ele me viu, disse:"Boa-tarde, senhorita", e a mosca... Seu estmago deu uma reviravoltaquando ela tentou conter o riso para continuar falando. A moscabalanava enquanto ele mexia a boca... e a... levantou a asinhaamassada... como se estivesse acenando para mim!Marda costumava dizer que no conseguia resistir risada baixinha egutural de Miri, e desafiava a prpria montanha a se conter. Mas Miri

    gostava mais da risada da irm do que de um prato cheio de sopa. S deouvi-la, seu corao ficava mais leve. Elas tocavam as cabras e ordenhavamas leiteiras nas primeiras horas da manh. O frio que fazia agora no alto damontanha era prenncio do inverno, mas a temperatura arrefecia um poucocom a brisa que soprava do vale. O cu passou do rosa para o amarelo edepois para o azul medida que o sol foi subindo, mas Miri ficou o tempotodo desviando a ateno para o oeste e para a estrada que subia do p daserra. Resolvi permutar com o Enrik de novo Miri falou e estou determinada a arrancar mais alguma coisa dele. No seria um

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    feito e tanto?Marda sorriu, cantarolando. Miri reconheceu a melodia: era uma daquelas

    que os trabalhadores da pedreira cantavam enquanto arrastavam as pedraspara fora do buraco. A cantoria os ajudava a manter o ritmo enquantopuxavam. Talvez um pouco mais de cevada ou de peixe salgado Miri falou. Ou de mel disse Marda. Melhor ainda. Sua boca ficou aguando s de pensar em comer bolinhosquentes e nozes com mel no feriado, guardando um pouco para embeberbiscoitos numa das ridas noites de inverno.Por solicitao do pai, Miri assumira as permutas nos ltimos trs anos.Agora estava determinada a fazer com que aquele po-duro mercador do pda montanha entregasse mais do que pretendia. E ficou imaginando osorriso silencioso no rosto do papai quando lhe contasse o que haviaconseguido. No consigo parar de pensar disse Marda, segurando a cabea de umacabra particularmente resmungona enquanto Miri a ordenhava depoisque voc saiu, por quanto tempo a mosca ainda ficou l pendurada nele?Ao meio-dia, Marda no saiu para ajudar na pedreira. Miri nunca falavadesse momento cotidiano quando Marda ia embora e ela ficava. Nodeixaria ningum saber que se sentia muito pequena e feia. Pois fiquemachando que no ligo, pensava. Porque no ligo. No ligo mesmo.Quando tinha 8 anos, as outras crianas da sua idade j comeavam atrabalhar na pedreira: carregando gua, buscando ferramentas e

    executando outras tarefas bsicas. Um dia foi perguntar ao pai por que nopodia. Ele a abraou, beijou-a na testa e a embalou com tanto carinho queMiri teve a sensao de que bastaria ele pedir para que ela sasse pulandode uma montanha outra. Ento ele falou, em sua voz baixa e tranquila: Nunca vai precisar pr os ps na pedreira, minha flor. Ela no tornou aperguntar a ele por qu. Miri sempre foipequenina, desde que nasceu, e aos 14 anos era menor que meninas muitomais novas. Dizia-se pela aldeia que algo considerado intil era "mais fracoque o brao de um homem da plancie". Quando ouvia esse ditado, Miritinha vontade de cavar um buraco na rocha e se esconder l nasprofundezas. Intil! dizia, rindo. Ainda sentia mgoa, mas preferia fingir, at para si

    mesma, que no ligava.Miri subiu a rampa atrs da casa tangendo as cabras at onde seencontravam os ltimos trechos de pasto. No inverno, elas arrancavam ostufos de capim pela raiz. Na aldeia, todo verde desaparecia. Os fragmentosda cantaria se acumulavam tanto que Miri no conseguia escavar osuficiente e as encostas beirando as trilhas da aldeia ficavam cobertas decascalho. Ela ouvia os mercadores da plancie reclamando, mas estavaacostumada a andar o tempo todo pisando em cima das lascas de pedra,assim como poeira no ar e ao som das marretadas que marcavam apulsao da montanha.

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    Cantaria. A nica lavra da montanha, o nico meio de sustento de suaaldeia. Ao longo dos sculos, sempre que se esgotava uma jazida, os

    aldees abriam uma nova, mudando a aldeia do Monte Eskel para apedreira antiga. Cada escavao produzia pequenas variaes de brilho ebrancura. J haviam extrado pedra mosqueada por suaves tons de rosa,azul, verde e, agora, prateado.Miri amarrou as cabras a um arbusto retorcido, sentou-se no cho de relva earrancou uma das minsculas florezinhas cor-de-rosa que cresciam nasfrestas do rochedo. Uma flor de miri.O veio que estava sendo agora explorado fora descoberto no dia em queMiri nasceu e o pai quis dar a ela o nome da pedra. Este filo o mais lindo que j surgiu disse ele me dela , brancopuro com raias prateadas.Mas, na histria que ela tantas vezes j arrancara do pai, sua me serecusava: "No quero filha com nome de pedra", dizia, preferindo dar a elao nome da flor que conquistava os rochedos e despontava para o sol.O pai dizia que, apesar da dor e da fraqueza aps o parto, a me nolargava o minsculo beb. Uma semana depois, ela morreu. Embora no serecordasse de nada alm do que criara na prpria imaginao, Miriconsiderava aquela semana nos braos da me a coisa mais preciosa que jtivera e acolhia esse pensamento bem no fundo do corao.Girou a florzinha entre os dedos, fazendo soltarem-se as finssimas ptalas,que foram levadas pela brisa. Dizia a sabedoria popular que ela poderiafazer um desejo caso todas cassem em um nico giro.Que desejo poderia fazer?

    Olhou para o leste, onde as encostas e os plats amarelo-esverdeados doMonte Eskel se erguiam at o pico azul-acinzentado. Ao norte, descortinava-se uma cadeia de montanhas em tons que se esvaneciam do roxo para oazul e deixavam-na perder-se de vista no cinza.Apesar do amplo horizonte, ela no enxergava nada ao sul, onde, em algumponto, seria possvel encontrar o mar, misterioso. A oeste, ficava a estradados mercadores que ia dar no desfiladeiro, levando plancie e ao restantedo reino. Ela no conseguia imaginar como seria a vida l embaixo, assimcomo no conseguia visualizar um oceano.L embaixo, a pedreira parecia um alvoroo de formas retangularesincertas, blocos semiexpostos, homens e mulheres trabalhando com cunhase marretas para soltar pedras da montanha, alavancas para soergu-las e

    talhadeiras para aparelh-las. Mesmo l do alto da colina em que seencontrava, Miri podia ouvir a cantoria que dava ritmo aos trabalhos, comtodos os sons se sobrepondo uns aos outros e as vibraes se propagandoat onde ela se havia sentado.Vieram-lhe mente um incmodo e a imagem de Doter, uma das operrias,com o comando abafado que moderou a batida. O jeito de falar na pedreira.Miri se inclinou para a frente, querendo ouvir mais.Os operrios falavam assim sem emitir voz alta para poderem ser ouvidosapesar dos protetores de argila que usavam nos ouvidos e do estrondoensurdecedor das marretadas. A voz emitida daquele jeito s funcionava

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    mesmo na pedreira, mas Miri conseguia perceber o eco quando se sentavaali pelas redondezas. No compreendia o funcionamento com exatido, mas

    j ouvira um operrio dizer que todas as marretadas e a cantoriaimpregnavam a montanha de ritmo. Assim era que, quando precisavamfalar uns com os outros, a montanha usava o ritmo para transportar amensagem por eles. E agora Doter deveria estar avisando para um colegabater mais de leve na cunha.Miri achava que seria uma maravilha cantar em conjunto com os demais echamar, ao jeito da pedreira, um colega trabalhando noutro veio.Compartilhar o trabalho.O caule da miri comeou a amolecer entre seus dedos. Que desejo faria?Ser alta como uma rvore? Ter braos iguais aos do pai? Conseguir escutara rocha pronta para ser extrada e tir-la da montanha? Mas desejar coisasimpossveis parecia ser um insulto para a flor de miri e um desrespeito aodeus que a fizera. Ela se entretinha com desejos impossveis a me vivanovamente, botinas que no se rasgassem com as lascas de pedra, mel emvez de neve. Para poder ser, de alguma forma, to til para a aldeia quantoseu pai.Balidos frenticos chamaram sua ateno de volta para a rampa em que seencontrava. Um garoto de seus 15 anos corria pelo riacho com gua pelos

    joelhos atrs de uma cabra desgarrada. Era alto, de corpo esguio e cabeloscastanhos encaracolados, com a pele ainda bronzeada pelo sol do vero.Seu nome era Peder. Normalmente, Miri o teria cumprimentado com umgrito a distncia, mas nos ltimos meses uma comicho esquisita seapoderava de seu ser e ela estava mais disposta a se esconder dele do que

    atirar-lhe pedrinhas pelas costas para importun-lo.Vinha comeando a perceber algumas coisas nele, como o cabelo claro emcontraste com a pele bronzeada e a linha entre as sobrancelhas que seaprofundava quando a perplexidade o dominava. E estava gostando dessascoisas.Ficou curiosa para saber se ele tambm a percebera.Desviou o olhar da flor de miri despetalada para a cabeleira alourada dePeder e sentiu um desejo do qual teve receio de falar. Eu queria... sussurrou. Ela iria mesmo ter coragem? Queria que Peder e eu...Um toque de cometa ecoou to subitamente entre os penhascos que Mirichegou a deixar cair o caule da flor. No havia cometa na aldeia, de modo

    que s poderia ser gente da plancie. Ela detestava responder ao chamadodeles como um animal a um apito, mas a curiosidade sobrepujou o orgulho.Agarrou os cabrestos e tocou os bichos ladeira abaixo. Miri! Peder veio correndo para perto dela, puxando suas cabras areboque. Miri ficou torcendo para que seu rosto no estivesse sujo de terra. Ol, Peder! Por que voc no est na pedreira? Em quase todas asfamlias, cuidar das cabras e dos coelhos era atividade reservada apenasqueles jovens ou velhos demais para trabalhar na pedreira. Minha irm queria aprender a trabalhar com as cunhas e minha avestava com dor nos ossos, ento minha me me pediu para tanger as

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    cabras hoje. Voc sabe por que o toque de cometa? Mercadores, acho eu. Mas para que tanta fanfarra?

    Voc sabe como o povo da plancie disse Peder. Eles se achammuito importantes. Talvez um deles tenha gs e todos saiam tocando as trombetas para queo mundo inteiro saiba da novidade.Ele abriu um sorriso bem sua maneira, com a boca mais puxada para adireita que para a esquerda. As cabras soltavam balidos como crianasbrigando entre si. mesmo? Miri perguntou para a lder do rebanho, como se entendessea conversa delas. O que foi? disse Peder. Aquelazinha ali disse que o riacho est to frio que d para secar o leite.Peder riu, deixando-a com vontade de dizer mais alguma coisa, cheia deesperteza e esplendor, mas o desejo impediu os pensamentos, de modo queela tratou de calar a boca antes de dizer uma besteira.Os dois pararam na casa dela para prender as cabras. Peder tentou ajudarrecolhendo as amarras, mas os bichos comearam a se empurrar uns aosoutros e foi ele quem acabou com os tornozelos presos num emaranhado decordas. Ei, parem com isso! disse, acabando por se desequilibrar e cair nocho.Miri se aproximou correndo para ajudar e tambm se estatelou ao lado dele,s gargalhadas. Estamos fritos como as costeletas delas numa frigideira. No h o que

    nos salve agora!Quando, por fim, se desvencilharam das cordas e tornaram a se levantar,Miri teve um impulso de se aproximar dele e dar-lhe um beijo no rosto.Chocou-se com o mpeto e ficou ali parada, muda e encabulada. Que confuso! ele exclamou. Pois . Miri baixou o rosto, batendo das roupas a terra e o cascalho.Achou melhor fazer logo uma piadinha para o caso de ele ter lido seuspensamentos. Se h uma coisa em que voc bom, Peder Doterson, em arranjar confuso. o que minha me sempre diz, e todo mundo sabe que ela nunca esterrada.Miri se deu conta de que a pedreira estava em silncio e o nico barulho

    que escutava era o do prprio corao batendo em seus ouvidos. Ficoutorcendo para que Peder no conseguisse ouvir. As trombetas soaramnovamente, alertando-os, fazendo-os correr.As carroas dos mercadores estavam enfileiradas no centro da aldeia,aguardando o incio das trocas, mas todos os olhos se voltavam para umacarruagem pintada de azul que surgia entre as demais. Miri j ouvira falarde carruagens, mas nunca tinha visto uma. Deveria ser algum importanteque chegava com os mercadores. Peder, vamos olhar l de... Miri comeou a dizer, mas nesse exatomomento Bena e Liana gritaram o nome de Peder e acenaram para que se

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    aproximasse. Bena era da mesma altura que Peder, seu cabelo era maiscastanho que o de Miri e batia na cintura quando solto, e Liana com seus

    olhos enormes, era considerada a menina mais bonita da aldeia. Tinhamdois anos a mais que Peder, mas, nos ltimos tempos, ele era o meninopara o qual preferiam sorrir. Vamos ficar com elas para olhar de l disse Peder, correspondendo aoaceno, com um sorriso subitamente tmido.Miri deu de ombros. Pode ir. Saiu correndo na direo oposta, embrenhando-se na multidode operrios da pedreira at encontrar Marda, sem olhar para trs. Quem voc acha que ? perguntou Marda, aproximando-se de Miriassim que ela chegou. Mesmo no meio de um grupo grande, Marda ficavaansiosa por estar sozinha. No sei disse Esa , mas minha me disse que qualquer surpresa dopessoal da plancie como uma serpente dentro de uma caixa.Esa era mida, embora no fosse to pequena quanto Miri, e tinha o cabelodo mesmo tom castanho-claro que o irmo Peder. Ela observava acarruagem, com o olhar intrigado. Marda assentiu. Doter, me de Esa ePeder, era conhecida pelos ditados sbios que costumava proferir. Uma surpresa disse Frid. Seu cabelo negro caa pelos ombros e elatrazia no rosto uma expresso quase sempre maravilhada. Embora tivesseapenas 16 anos, os ombros eram quase to largos e os braos quase togrossos quanto os de qualquer de seus seis irmos grandalhes. Quempoderia ser? Algum mercador rico?Um dos mercadores virou-se para elas com um olhar condescendente.

    Est claro que um mensageiro do rei. Do rei? Miri ficou embasbacada como uma das deselegantes meninasdas montanhas, mas no conseguiu evitar. At aquele momento de suavida, nenhum emissrio do rei viera s montanhas. Talvez tenham vindo declarar o Monte Eskel a nova capital de Danland disse um mercador. O palcio real vai se encaixar direitinho na pedreira disse um segundo mercador. mesmo? Frid perguntou, e os dois mercadores tentaram conter osorriso. Miri lanou a eles um olhar feroz, mas no disse nada, com receiode tambm parecer ignorante.Mais um toque de trombeta. Um homem de roupas vistosas subiu ao banco

    do cocheiro e gritou em voz alta e estridente: Convoco seus ouvidos adarem ateno ao mandatrio-mor de Danland.Um homem delicado de barba afiada e curta surgiu de dentro dacarruagem, ofuscado pela luz do sol que se refletia nas paredesesbranquiadas da pedreira. Ao tentar enxergar a multido, foi apertando osolhos at franzir totalmente a testa. Lordes e damas de... Ele parou e riu, regozijando-se com alguma piadaparticular. Povo do Monte Eskel. Como seu territrio no temrepresentante na corte para se reportar a vocs, Sua Majestade, o rei, meenviou para lhes dar esta notcia.

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    Uma suave lufada de vento envergou a comprida pena amarela nochapu do homem sobre seu rosto. Ele a afastou para o lado da testa.

    Alguns dos rapazes da aldeia soltaram risadas. No vero passado, os padres do deus criador formaram um conclavesobre o aniversrio do prncipe. Leram os augrios e divisaram o lar de suafutura noiva. Todos os sinais indicaram o Monte Eskel.O mandatrio-mor fez uma pausa, aparentemente espera de algumaresposta, mas Miri no fez ideia do que seria. Uma torcida? Vaias? Ele soltouum suspiro e sua voz soou ainda mais alta. Vocs vivem to afastados que no conhecem sequer os costumes deseu prprio povo?Miri sentiu vontade de poder gritar a resposta certa, mas, a exemplo deseus vizinhos, permaneceu calada. Alguns mercadores soltaram risadinhas. J costume do povo de Danland disse o mandatrio, afastandonovamente a pena que o vento cismava em soprar para cima de seu rosto. Aps alguns dias de jejum e splicas, os padres realizam um rito paraadivinhar de qual cidade ou aldeia vir a futura princesa. Em seguida, oprncipe conhece todas as nobres filhas desse lugar e escolhe a noiva.Podem estar certos de que o pronunciamento do Monte Eskel deixouchocada muita gente de Danland, mas quem somos ns para discutir comos padres do deus criador?Pelo apuro no tom da voz do mandatrio, Miri sups que ele de fato teriatentado argumentar com os padres do deus criador, sem nada conseguir. Conforme reza a tradio, o rei mandou criar uma academia para opreparo das jovens com esse potencial. Embora a lei mande formar essa

    academia na escola escolhida, esta aldeia ele apertou os olhos e olhou volta de fato no tem edificaes de porte apropriado para talempreitada. Dadas as circunstncias, os padres acharam por bem que aacademia seja instalada na velha casa de pedra do pastor perto daquebrada da montanha. Agora mesmo, os criados do rei esto preparando acasa. O vento soprou a pena para cima de seu rosto. Ele a afastou comoquem afasta uma abelha impertinente. Doravante, todas as moas da aldeia, dos 12 aos 17 anos, devero sepreparar na academia para o encontro com o prncipe. Daqui a um ano, oprncipe subir a montanha para vir ao baile da academia. Ele prprioescolher sua noiva dentre as frequentadoras. Pois ento, preparem-se.Uma lufada de vento jogou a pena em seu olho. Ele a arrancou do chapu e

    a jogou no cho, mas o vento arrebatou-a de sua mo e arremessou-aencosta abaixo, levando-a para longe da aldeia. O mandatrio-mor j estavade volta em sua carruagem antes que ela sumisse de vista. Serpente numa caixa disse Miri.

    Captulo Dois

    gua na papaE mais sal no mingauNo enche a barriga

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    Nem d para o gasto

    Vamos fazer o que temos de fazer disse um dos mercadores. Sua vozfoi um convite para que se rompesse o silncio. Nem mesmo uma notciaestranha assim conseguiria retardar os negcios mais importantes do ano. Enrik! Miri foi correndo at o mercador, com quem vinha negociandonos ltimos dois anos. Ele era magro e plido, de nariz afilado, e seu jeito deesticar os olhos para ela dava-lhe a impresso de um passarinho h muitosem comer.Enrik direcionou sua carroa para a pilha de pedras acabadas querepresentavam o quinho de trabalho da famlia dela nos ltimos trsmeses. Miri destacou o tamanho incomum de um dos blocos e a qualidadedos veios prateados noutros, o tempo todo de olho no contedo da carroado homem, calculando a quantidade de alimentos que sua famlia iriaprecisar para passar o inverno. Essas pedras valem bem o esforo de carreg-las disse Miri,esforando-se ao mximo para imitar o tom de voz clido e firme de Doter.Ningum discutia com a me de Esa e Peder. Mas, para ser gentil,trocarei nossas pedras por tudo em sua carroa, exceto um barril de trigo,uma saca de lentilhas e um engradado de peixe salgado, contanto que vocinclua aquele pote de mel.Enrik soltou um estalido com a lngua. Mirizinha, uma sorte para suaaldeia os mercadores virem to longe atrs de pedras. Dou-lhe metade doque voc est pedindo. Metade? Est brincando.

    D uma espiada por a ele disse. Voc no percebeu que h menoscarroas este ano? Nossos mercadores levaram mantimentos para aacademia, e no para sua aldeia. Alm disso, seu pai no vai precisar detanto com voc e sua irm fora de casa.Miri cruzou os braos. Esse negcio de academia apenas um truque para nos enganar, no ?S pode ser fingimento, porque nunca algum da plancie levaria umamenina de Monte Eskel para a realeza. Depois da notcia da academia, nenhuma famlia com possveiscandidatas vai ter chance igual na vida, de modo que melhor aceitaremminha oferta antes que eu me v.Um burburinho de frustraes ecoou por todo o centro da aldeia. A me de

    Peder ficou com o rosto vermelho e se ps aos berros, e a me de Fridestava prestes a bater em algum. Mas eu... eu queria... Ela j estava prevendo chegar em casa triunfantecom suprimentos suficientes para alimentar duas famlias. Mas eu queria... Enrik a imitou com a voz esganiada. Ora, noprecisa ficar com o queixo tremendo. Vou lhe dar o mel, mas s porque umdia voc pode ser minha rainha.Diante disso, ele soltou uma risada. Contanto que conseguisse levar algummel para casa, Miri no se importava que ele risse. No muito, na verdade.Enrik a acompanhou at a casa dela e, pelo menos, ajudou a descarregar os

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    mantimentos. Assim ela teve uma chance de se divertir um pouco ao v-loandar cambaleante, tropeando pelo cho pedregoso.

    A casa havia sido construda de cascalho, lascas de pedra cinzenta que osoperrios tiravam da terra para descobrir aquela que dava boa cantaria. Osfundos davam para a parede lisa de um filo abandonado, que, na infnciade seu pai, oferecera matria-prima com delicados veios azulados. Eracercada de montes de pedra boa e de cascalho, em pilhas que chegavamat o parapeito das janelas.Miri passou a tarde em casa, ocupando-se com a tarefa de separar eguardar os mantimentos e encabulando-se ao pensar que no bastariampara os trs passarem o inverno. Poderiam comer muitos dos coelhos etalvez matar uma cabra, mas um prejuzo desses os deixaria mais apertadosno prximo inverno, e ainda no seguinte. Povo trapaceiro esse da plancie.Quando os raios do sol que atravessavam as persianas j perdiam o brilho,ficando alaranjados, o barulho das marretadas comeou a diminuir. Quandoo pai e Marda abriram a porta, j era noite. Miri havia preparado carne deporco, aveia e ensopado de cebola, com repolho fresco para comemorar osnegcios do dia. Boa-noite, Miri disse o pai, dando-lhe um beijo no alto da cabea. Consegui que Enrik nos desse um pote de mel disse Miri.Marda e o pai ficaram impressionados com o pequeno triunfo, mas osnegcios alquebrados e a estranha notcia da academia no saram de seuspensamentos, e ningum conseguiu fingir alegria, nem mesmo com o mel. Eu no vou disse Miri enquanto remexia o ensopado que esfriava noprato. Voc vai, Marda?

    Marda deu de ombros. Ento eles acham que a aldeia pode ficar sem metade das meninas? perguntou Miri. Quem o ajudaria na pedreira sem a Marda por aqui? E,sem mim, quem daria conta de todo o trabalho de casa e cuidaria doscoelhos e das cabras e faria tudo que eu fao? Ela mordeu metade dolbio e olhou para o fogo. O que voc acha, papai?O pai passou um calejado dedo sobre a superfcie bruta da mesa. Miri ficouatenta, esttica como um coelho na escuta. Sentiria muita falta de minhas meninas ele disse.Miri soltou um suspiro. Ele estava do seu lado, e no deixaria o povo daplancie tir-la de casa. Mesmo assim, sentiu dificuldade em terminar o

    jantar. Murmurou em seu ntimo uma cantiga sobre o porvir.

    Captulo Trs

    O porvir um rubor no poente a mata escura no meio da noiteProclama a verdade do agora, jNo anelo sombrio da luz da manh.

    Antes do alvorecer, Miri acordou ao som das trombetas. O mesmo somcurioso durante o dia, cmico at, era agora perturbador. Antes que ela se

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    levantasse, seu pai surgiu porta, e o que ele viu o deixou apreensivo.O primeiro pensamento de Miri foi o de que seriam bandidos, mas por que

    atacariam o Monte Eskel? Todos os aldees conheciam a histria do ltimoataque bandoleiro, antes de seu nascimento, quando os exauridossalteadores finalmente chegaram ao topo da montanha, deparando-se commuito pouco que valesse a pena roubar e apenas uma horda de homens emulheres fortalecidos por anos de labuta na pedreira. Acabaram saindo demos vazias, levando somente algumas feridas, e jamais retornaram. O que isso, papai? Miri perguntou. Soldados.Miri parou atrs dele e espiou por baixo do brao que ele mantinha erguido.Enxergou parelhas de soldados empunhando tochas por toda a aldeia. Doisdeles vieram ter sua porta e seus rostos foram iluminados pelos archotes.Um era mais velho que seu pai, de traos rudes, e o outro parecia poucomais que um menino vestido a rigor. Viemos recolher suas meninas disse o soldado mais idoso. Checou ainformao numa fina prancheta de madeira queimada com algumasmarcas que Miri no compreendia o que eram. Marda e Miri.Marda j se aproximara, parando do outro lado do pai. Ele colocou os braossobre os ombros das duas.O soldado fitou Miri curiosamente durante alguns instantes. Quantos anos voc tem, menina? Quatorze disse ela, com o olhar penetrante. Tem certeza? Parece que tem... Tenho 14 anos.

    O soldado mais jovem lanou um olhar pretensioso para o companheiro. Deve ser o ar rarefeito da montanha. E voc? O soldado mais velho desviou o olhar de dvida para Marda. Fao 18 no terceiro ms.Ele apertou os lbios um contra o outro. Por pouco, ento. O prncipe faz 18 no quinto ms deste ano e no seropermitidas meninas mais velhas que ele. Levaremos somente a Miri.Os soldados se alvoroaram, os ps farfalhando sobre o cascalho do cho.Miri buscou o olhar do pai. No disse o pai, afinal.O mais jovem bufou e ento olhou para o companheiro. Achei que voc estivesse brincando quando disse que poderia haver

    resistncia. Ele diz "no" como se tivesse alguma escolha. Inclinou-separa a frente e soltou uma risada.Miri tambm soltou uma risada alta na cara do soldado mais moo, que,surpreso, voltou ao silncio. No toleraria que algum da plancie fizessepouco-caso de seu pai. Que piada, um garoto se fingir de soldado Miri falou. Ora se no cedo demais para voc se afastar de sua me! Tenho 17 anos e... disse fitando-a com firmeza. Tem mesmo? O ar sufocante da plancie consegue tolher um monte decoisas, no verdade?

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    O rosto dele se contorceu e surgiu ali um sorriso malicioso. Voc quer que eu diga que vou sentir saudade.

    Eu vou sentir. Existe alguma pessoa que consiga estar sempre arranjandoconfuso?Ao se afastar, Miri sentiu vontade de poder desfazer suas palavras paradizer algo gentil, algo sincero. J se virara para voltar quando viu que eleestava conversando com Bena e Liana.Marda acabara de chegar de casa com uma trouxa de roupas e uma sacolade comida para Miri quando o pai abraou as duas. Miri deixou-se afundarcontra o peito dele, ocultando-se de toda a luz dos archotes e das vozes emdespedidas. Decerto aquele abrao significava que ele a amava, emboraisso ele no tenha dito. Decerto sentiria saudade dela. Mas Miri noconseguiu deixar de pensar em como ele reagiria se Marda, a filha quetrabalhava a seu lado, estivesse indo para a academia. Teria protestadomais? Teria recusado a proposta?Diga que vai sentir muita saudade de mim, pensou. Faa com que eu fique.Ele s a abraou com fora.Miri se sentiu partida ao meio, como uma camisa velha transformada emfrangalhos. Como seria possvel deixar a famlia para trs e caminhar rumoao desconhecido l na plancie? E como seria possvel admitir que seu paino fazia questo que ela ficasse?O abrao afrouxou e ela se desvencilhou dele. O farfalhar do cascalhoindicava que quase todas as meninas j haviam tomado a estrada. Acho que melhor eu ir ela disse.Recebeu um ltimo abrao de Marda. O pai limitou-se a fazer um aceno com

    a cabea. Miri saiu andando devagar para o caso de ele cham-la de volta.Pouco antes de deixar a aldeia, Miri parou e olhou para trs. Quatro dziasde casas alinhadas contra a parede da pedreira abandonada! Nos limites daaldeia, ficava a capela de pedra, cuja porta antiga de madeira continhaentalhada a histria do deus criador falando pela primeira vez com o povo.O sol estava avermelhado, j amarelecido, iluminando a aldeia como a luzde uma fogueira.Avistou o topo da colina, onde passava tardes inteiras com as cabras, e sesurpreendeu ao sentir um lampejo de alvio por no ir se sentar l naqueledia, a observar os operrios trabalhando na pedreira abaixo. Os rudos docascalho esmagado pelos ps das meninas caminhando a atraam com apromessa de algo diferente, um lugar para onde ir, uma chance de seguir

    adiante. Ande logo disse um soldado cuidando da retaguarda, e Miri atendeu.As meninas haviam formado pequenos grupos enquanto caminhavam e Mirificou sem saber qual delas se juntar. Nos ltimos anos, todas as suasamigas de infncia comearam a trabalhar na pedreira e Miri se acostumara solido em casa e na colina junto das cabras. Perto de outras pessoas,Marda estava em geral a seu lado. frente, iam Esa e Frid, e Miri correu um pouco para alcan-las. Emborano conseguisse usar o brao esquerdo desde um acidente na infncia, Esaainda trabalhava na pedreira quando a necessidade era grande, enquanto

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    Frid realizava at as tarefas mais difceis. Miri as achava maravilhosas. Se aachavam um fardo para o restante da aldeia, conforme seus temores mais

    costumeiros, jamais deixaria notarem que se importava com isso.Apesar de suas incertezas, Miri pegou a mo de Esa. As meninas da aldeiasempre davam as mos enquanto caminhavam. Doter, me de Esa, umavez disse tratar-se de um costume antigo cujo propsito era evitar quecassem nos despenhadeiros, embora Miri sentisse a segurana das cabrassaltitando a ss pelos arrabaldes do Monte Eskel desde os 5 anos. Voc faz ideia do que isso realmente vai ser? Miri perguntou.Esa e Frid balanaram a cabea. Miri fixou-se nelas, tentando ler em seusrostos se queriam que se afastasse delas. Posso apostar que essa besteira de princesa um truque que osmercadores arranjaram disse. Minha me no me deixaria ir se achasse que me fariam algum mal disse Esa. Mas ela tambm no sabe dizer do que se trata.Frid estava com o olhar fixo frente, como se mirasse a prpria morte. Como que um prncipe vai decidir com quem se casar? Ser que vaihaver um concurso para princesa conforme os que fazemos nos feriados,

    jogando bola ou correndo ou fazendo arremesso de pedra a distncia?Miri soltou uma risada, percebendo, tarde demais, pela expresso no rostode Frid, que ela no tivera inteno de fazer uma piada. Miri limpou agarganta para falar: No sei, mas acho difcil acreditar que o povo daplancie se case por amor. Ser que eles sentem amor por alguma coisa que seja? disse Frid. Pelo prprio cheiro, acho disse Miri.

    Pelo menos ser uma barriga a menos para comer l em casa disseEsa, olhando de relance para trs, como se estivesse pensando em suacasa. Sua voz se abrandou. Olhem l a Britta. No acredito que tambmesteja indo. Ela da plancie disse Frid. Mas parece que passou o vero inteiro na montanha; por isso talvezqueira ficar disse Esa.Miri olhou por cima do ombro at avistar Britta, andando sozinha entre doisgrupos. A menina da plancie tinha 15 anos e era delicada, como se nuncativesse arrebanhado uma cabra ou compactado uma rodela de queijo. Seurosto era corado como o lado da ma voltado para o sol, trao que lheconferia uma aparncia alegre e bonita quando esboava um raro sorriso.

    Nunca falei com ela disse Miri. Ela nunca falou com quase ningum disse Esa. Parece ignorar todosque falam com ela. Era assim l na pedreira disse Frid. Carregou gua este vero, mas,quando os operrios pediam um gole, agia como se fosse surda. Depois dealgumas semanas, Oz disse: "Para que serve isso?" E mandou-a para casa.Corria uma histria de que, quando seus pais, que eram gente da plancie,morreram num acidente, os nicos parentes que restaram eram do MonteEskel. Ento, numa bela manh de primavera, Britta chegou na carroa deum mercador com uma sacola de roupas e mantimentos comprados com a

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    venda das ltimas posses de seus pais. Pelo menos agora vestia blusa ecala, como os demais, em vez de vestidos estampados.

    No acredito que o Peder a ache bonita disse Esa. Miri tossiu. Acha, ? Eu no acho. Quero dizer, a menina age como se ningum fossebom o suficiente para dirigir a palavra a ela. O povo da plancie se considera acima de ns disse Frid. E somos ns que estamos no alto da montanha disse Miri , ento noseramos ns que estaramos acima deles?Esa lanou um sorriso afetado para um dos soldados e Frid ergueu ospunhos cerrados. Miri sorriu, satisfeita por estarem compartilhando osmesmos sentimentos.Passaram trs horas contornando poas d'gua, buracos e pedaos de rochasoltos das pedreiras h muito abandonadas, at que afinal avistaram otelhado da academia. Miri esteve ali seis anos antes, quando a aldeia aindacostumava comemorar o feriado da primavera no interior de suas paredesde pedra. Depois daquilo, passaram a considerar a caminhada longa demaispara repetir.Era chamada de casa de pedra do pastor e os aldees assumiram queaquela estrutura um dia abrigara um ministro da corte que supervisionava apedreira. Na montanha, no vivia mais ningum assim, mas a casa dava emMiri a vontade de ver que outras maravilhas haveria no reino da plancie,alm do ponto que ela conseguia enxergar.Mesmo a distncia, Miri conseguiu detectar um claro esbranquiado:pedras de cantaria foram usadas como fundao, a nica cantaria acabadaque ela j tinha visto. Embora o resto da casa tenha sido construdo de

    cascalho cinza, as pedras eram aparelhadas, lisas, e se encaixavam perfeio. Havia trs degraus para se chegar porta principal e umacolunata que sustentava um fronto entalhado. Havia operrios da plancieno telhado, consertando os estragos causados pelas intempries. Outroscolocavam vidraas nos vos das janelas abertas, catavam a grama quenascia entre as lajotas do piso e dos degraus e varriam anos de sujeiraacumulada.As meninas iam chegando e circulando pelo lugar, espiando dentro dascarroas ou apreciando o movimento. Eram vinte, desde Gerti, que malcompletara 12 anos, at Bena, com 17 e meio.Apareceu uma mulher na entrada do prdio. Era alta e esbelta, com asmas do rosto afundadas e o cabelo reto nas pontas como um cinzel. Ela

    aguardou, e Miri ficou envergonhada pelas meninas da montanhaespalhadas por todo canto, paradas, olhando, sem saber o que fazer. Aproximem-se disse a mulher.Miri tentou fazer fila com as demais, mas parece que nenhuma outra teve amesma ideia e acabaram todas se aglomerando por ali sem formar umalinha reta. Percebo que no subestimei o grau de polimento que as meninas damontanha iriam precisar. A mulher crispou os lbios um contra o outro. Eu me chamo Olana Mansdaughter. Vocs devero me chamar de TutoraOlana. J ouvi falar dos territrios longnquos de Danland, onde no h

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    cidades, mercados ou famlias nobres. Bom, vamos l! Ao ultrapassaremestas pilastras e entrarem neste prdio, vocs esto concordando em

    obedecer a todas as minhas ordens. Preciso de ordem absoluta nestaacademia para conseguir transformar meninas mal-educadas em damas. Fuiclara?Frid lanou um olhar desconfiado para Olana: Ento, voc est dizendoque no precisamos ir para a academia se no quisermos?Olana deu um estalido com a lngua. ainda pior do que eu esperava. Talvez fosse melhor montar a academianum celeiro.A expresso de Frid se conturbou e ela deu uma espiada sua volta,tentando vislumbrar o que teria feito de errado. Queira desculpar nossa grosseria, Tutora Olana. Katar deu um passo frente. Seu cabelo encaracolado era vermelho como o leito barrento doriacho da aldeia. Era a menina mais alta depois de Bena e se portava comose fosse mais alta que qualquer homem e duas vezes mais valente. Devemos parecer mesmo rudes para a senhora continuou Katar , masestamos prontas para entrar na academia, aprender as regras e nosesforar ao mximo.Algumas das meninas no se mostravam to dispostas, olhando de revs eno paravam quietas, mas Oz fora bem claro. Quase todas acenaram com acabea ou murmuraram qualquer coisa em sinal de aprovao.Outras expressaram dvida, mas disseram: Ento vamos deixar de besteira e entrar logo.Assim que Olana saiu do raio de alcance de sua voz, Katar lanou um olhar

    para as meninas e falou entre os dentes: E tentem no se passar por ignorantes.Miri entrou no prdio olhando para o cho, deixando a ponta da botaescorregar pelas lajotas do piso, brancas como o leite com veios cor-de-rosa. Fato notvel era que, sem que ningum cuidasse, a pedra haviamantido o brilho durante tantas dcadas. Os aldees tinham de limpar elustrar as portas de madeira da capela regularmente, para evitar odesgaste.Olana dirigiu as meninas pelo interior da habitao cavernosa, advertindo-as para ficarem em silncio. No havia nada nas paredes nem no piso, demodo que a voz de Olana e o estalido das solas de suas botas contra aslajotas ecoavam por cima da cabea e por baixo dos ps de Miri, trazendo-

    lhe a sensao de estar cercada. A casa grande demais para atender s nossas necessidades disseOlana, indicando que a maioria dos 12 aposentos permaneceria fechada,sem uso, de modo que no precisassem de aquecimento durante o inverno.A academia se resumiria a trs cmodos principais.Elas entraram atrs de Olana num cmodo comprido que serviria dedormitrio. Havia algumas fileiras de estrados sobre o cho. Na paredeoposta, havia uma lareira, para manter o calor, e uma janela que dava paradentro da casa. Miri achou que as meninas nas camas que ficassem maisdistantes passariam muito frio.

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    Meu dormitrio separado, no fim do corredor, e se ouvir barulho noite,eu... Olana parou, com uma expresso de desgosto aproximando o rosto

    delas. Que mau cheiro! Vocs moram com as cabras? claro que moravam com as cabras. Ningum tinha tempo para construirum abrigo separado para as cabras, e t-las dentro de casa ajudava amanter mais aquecidas tanto as cabras quanto as pessoas no inverno. Serque estou mesmo cheirando mal? Miri afastou o olhar e rezou para queningum respondesse. Ora essa, mas alguns dias aqui podem dissipar o cheiro. Vamos torcer.Em seguida, elas visitaram o cmodo imenso que havia no centro daedificao e serviria como sala de jantar. Uma lareira grande com chaminde cantaria entalhada era a nica indicao de que j teria um dia havidoalguma grandiosidade naquele cmodo. Agora estava vazio, exceto porsimplrias mesas e cadeiras de madeira. Este o Knut, o faz-tudo da academia disse Olana. Um homem entrouna sala pela porta da cozinha e logodirecionou o olhar para o cho, como se no tivesse certeza se deveriaencontrar os olhares delas. Comeava a ficar grisalho nas tmporas e nabarba, e segurava na mo direita uma colher de pau de um jeito que fez Mirise lembrar do pai segurando a marreta. Ele vai estar muito ocupado disse Olana , como todas ns tambmestaremos, de modo que vocs no devem gastar tempo se dirigindo a ele.Miri teve a impresso de que a apresentao fora um tanto grosseira, deforma que sorriu para Knut ao sair e ele correspondeu com um esboo desorriso.

    Olana conduziu as meninas de volta pelo corredor principal at um salocom trs janelas de vidro e duas lareiras. Queimar lenha era um luxo naaldeia e a fumaa estava fresca e convidativa. A maior parte do espao eraocupada por seis fileiras de cadeiras com pranchetas de madeira presas aobrao. Na extremidade principal do cmodo, acima de uma escrivaninha,havia uma prateleira cheia de livros encadernados em couro.Olana mandou que ocupassem as carteiras conforme as faixas etrias. Miriescolheu lugar numa fileira junto com Esa e as outras duas de 14 anos,colocou as mos no colo e tentou dar a impresso de que estava prestandoateno. Vou comear com as regras disse Olana. Ningum vai falar quandono for sua vez. Se vocs tiverem perguntas, aguardem caladas at que eu

    lhes pea para faz-las. Qualquer besteira, qualquer travessura ou qualquerdesobedincia resultar em castigo."Esta vaga de professora me foi dada como honraria. Informo a vocs quedeixei para trs um cargo no palcio real como tutora das primas daprincesa para vir at aqui em cima pajear imundas pastorinhas de cabras,embora eu ache que vocs nem saibam o que um palcio real."Miri se empertigou na carteira. Ela sabia o que era um palcio: uma casamuito grande com muitos cmodos onde morava o rei. Pois bem, queiram ou no, vocs agora fazem parte de uma empreitadahistrica. Nos ltimos dois sculos, a academia de princesas tem sido

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    apenas uma formalidade, onde as meninas nobres da cidade escolhida serenem apenas para alguns dias de vida em sociedade antes do baile da

    princesa."Como o Monte Eskel meramente um territrio, no uma provncia deDanland, e vocs no podem dizer que vm de famlias nobres, omandatrio-mor acredita que a academia deva ser levada muito a srionesta gerao. Os padres nunca haviam indicado um territrio como aregio escolhida. Devo dizer-lhes que o rei e seus ministros esto pouco vontade quanto a casar o prncipe com uma menina deselegante de umterritrio longnquo. Portanto, deu-me a solene responsabilidade de fazercom que cada menina mandada ao baile esteja apta a se tornar a princesa.Se uma de vocs no conseguir aprender as lies bsicas que lhesensinarei este ano, no ir; nem sequer conhecer o prncipe e aindavoltar para a aldeia em desgraa."Bem, eu entendo que existe, entre ns aqui, uma verdadeira Danlander,no mesmo? Olana soltou um suspiro diante do silncio que se seguiu. Estou querendo uma resposta. Se alguma de vocs no nasceu nessamontanha, tem minha permisso para falar agora.Quase todas j tinham se virado para Britta, sentada na fileira das meninasde 15 anos, antes que ela levantasse a mo. Eu nasci na cidade de Lonway, Tutora Olana. Olana sorriu. Isso, voc tem mesmo um jeito mais educado. Seu nome? Britta. S isso? Qual o nome de seu pai? de se esperar que as meninas daaldeia ignorem essa formalidade, mas no algum que venha de Lonway.

    Miri se ajeitou na carteira. No eram ignorantes: as meninas ficavam com onome do pai e os meninos com o da me para ajudar a distingui-los dealgum que tivesse o primeiro nome igual. Pelo jeito, o Monte Eskelpartilhava algumas tradies em comum com Danland. Fiquei rf este ano, Tutora Olana Britta falou. Ora, essa! disse Olana, mostrando-se sem jeito para responder. Bem, essas coisas acontecem. Tenho a impresso de que ser a primeira daturma nos estudos, claro.Os olhares cravados em Britta comearam a se intensificar. Sim, Tutora Olana. Britta ficou olhando para as prprias mos o tempotodo. Miri suspeitou que ela estivesse se regozijando.Ento comearam os estudos. Olana pegou uma caixa rasa cheia de argila

    amarela e macia. Com uma vareta curta chamada estilete, ela marcou trslinhas na argila. Alguma de vocs sabe o que isso?Miri franziu o cenho. Sabia que era uma letra, que tinha algo a ver comleitura, mas no sabia o que significava. Seu acanhamento foi um poucoaplacado pelo silncio generalizado que se seguiu. Britta Olana falou , diga turma o que isso. Miri esperou que elapronunciasse a resposta brilhante ese regozijasse do conhecimento, mas Britta hesitou e acabou balanando acabea.

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    claro que voc sabe, Britta, ento diga logo antes que eu perca apacincia.

    Sinto muito, Tutora Olana, mas no sei. Olana franziu o cenho. Bem, Britta no ser um exemplo para a turma, afinal. Estou curiosa paraver quem vai se destacar e assumir seu lugar.Katar se endireitou na carteira.Enquanto Olana explicava os fundamentos da leitura, os pensamentos deMiri se desviaram para Britta. Num dia de negcios no meio do vero, Miriouviu Britta ler palavras impressas a fogo na tampa de um barril. Estariafingindo ignorncia agora para conseguir impressionar Olana mais tarde,dando a impresso de ser capaz de aprender muito rapidamente? O povoda plancie to esperto quanto mau, Miri pensou.Sua ateno foi subitamente desviada de Britta quando Gerti, a meninamais nova de todas, levantou a mo e interrompeu a palestra de Olana edisse: No estou entendendo. O que foi isso? disse Olana.Gerti engoliu em seco, dando-se conta de que acabara de descumprir aregra de falar quando no era sua vez. Olhou sua volta em busca deajuda. O que foi isso? Olana repetiu, esticando as vogais. Eu falei, eu s... Sinto muito. Eu sinto muito. Qual seu nome? Gerti disse ela, num suspiro. Levante-se, Gerti.

    Gerti saiu de sua carteira devagar, como se quisesse retornar seguranaque ela proporcionava. Esta menininha est me dando a oportunidade de ilustrar asconsequncias de se deixar de cumprir uma regra. At as primas daprincesa sofrem punio quando no sabem se comportar, embora eu acheque v aplicar mtodos ligeiramente diferentes com vocs. Siga-me, Gerti.A tutora saiu da sala com Gerti. As demais ficaram ali sentadas sem semexer at que Olana voltou com dois soldados. Gerti est dentro de um quartinho fechado, pensando se deve falarquando no for sua vez. Estes bons soldados ficaro conosco neste inverno.Caso alguma de vocs pense em questionar minha autoridade, estaro aquipara esclarecer a questo. Toda semana em que vocs demonstrarem uma

    melhoria marcante, tero permisso para voltar para casa no dia dedescanso; portanto, vamos voltar aos nossos estudos sem maisinterrupes.Ao pr do sol, os operrios que trabalhavam no telhado pararam demartelar e Miri notou o barulho pela primeira vez a partir do silncio que sefez. Papai e Marda j estariam em casa agora, com as roupas cobertas depoeira esbranquiada. Marda falaria da falta que sentiu de Miri, de suaconversa, talvez at mesmo de sua sopa de repolho. O que papai diria?No salo de jantar, as meninas comeram arenque frito recheado com papade cevada, cebola e uns temperos desconhecidos. Miri imaginou tratar-se

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    de uma refeio sofisticada, com o propsito de marcar uma ocasioespecial, mas os temperos esquisitos causaram estranhamento e

    desagrado, um lembrete de que haviam sido tiradas de casa.Ningum falou nada e ecoavam pelas paredes lisas de pedra os sons dasbocas sorvendo e mastigando alimentos. Olana jantou em seus prpriosaposentos, mas ningum tinha como saber se ela estaria escutando esurgiria, com os soldados a tiracolo, ante o mnimo rudo.Mais tarde, no quarto de dormir, a tenso chegara a tal ponto que irromperanuma saraivada de conversas sussurradas. Gerti falou do quartinho fechadoe dos barulhos de arranhes que ouviu na escurido. Duas das meninasmais novinhas choraram porque queriam ir para casa. No acho justa a maneira como Olana nos trata Miri sussurrou paraEsa e Frid. Minha me teria umas boas coisas para dizer a ela disse Esa. No seria o caso de irmos para casa? disse Miri. Se soubessemdisso, nossos pais talvez mudassem de ideia quanto a ficarmos aqui. No fale esse tipo de coisa, Miri disse Katar. Se Olana ouvir, podemandar os soldados nos darem uma boa surra.A conversa foi diminuindo e acabou cessando, mas Miri estava cansada eansiosa demais para dormir. Ficou olhando as sombras da noite sedeslocando, percorrendo o teto e prestando ateno respirao pesadadas outras meninas. Seu pulso batia no pescoo e ela se ateve quelessons, tentando se consolar com eles, como se a pedreira e a casaestivessem to perto quanto seu corao.

    Captulo Quatro

    Diga minha famlia para ir comendoPara chegar em casa, eu teria de ir andandoMas a montanha fez pedras onde meus ps s so doisE eu engoli mais poeira do que sou capaz.

    No dia seguinte, os operrios concluram o conserto do telhado e foramembora, deixando Olana, Knut, dois soldados e um silncio incomum. Mirisentiu falta das marteladas e batidas, sons que significavam que o trabalhona pedreira continuava como sempre e que ningum estava machucado. Osilncio a incomodou durante a semana inteira.

    De manh, antes de comearem as aulas, as meninas passavam uma horaexecutando as tarefas de lavar e varrer, pegar lenha e gua, e ajudar Knutna cozinha. Miri observava as outras meninas roubando minutinhos deconversa perto do monte de lenha ou nos fundos da academia. Talvez nofosse sua inteno exclu-la, pensava; talvez estivessem simplesmenteacostumadas umas s outras por causa do trabalho na pedreira. Ela se viudesesperadamente desejosa da presena de Marda a seu lado, ou de Peder,que, de uma forma ou de outra, continuara seu amigo ao longo dos anos,sem mudar nada.Olhou de relance para Britta, que carregava um balde de gua para a

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    E agora, senhorita, vamos cuidar de voc disse Olana, voltando-separa a menina mais moa.

    Gerti no pediu ajuda. Miri engoliu em seco e tentou acalmar a vozestremecida. Foi culpa minha. Foi, sim. Agora todas aprenderam que aquela que falar fora de sua vezarranja castigo para si e para aquela com quem falar. E se eu falar com a senhora, Tutora Olana, a senhora recebe aschibatadas?Miri estava tentando arrancar uma gargalhada e diminuir o atrito, mas asmeninas ficaram quietinhas como presas sendo caadas. Os lbios de Olanaestremeceram de raiva. Por causa disso voc vai ganhar mais trs chibatadas na mo esquerdatambm.Gerti levou suas trs chibatadas e Miri, as mesmas tantas na outra mo.Quando a lio foi retomada, Miri teve dificuldade para segurar o estilete.Ficou de cabea baixa e se concentrou em fazer cada caractere bemdireitinho na argila. s vezes escutava a respirao de Gerti prendendo nagarganta. Olana. Um soldado entrou na sala. Chegou aqui algum da aldeia.Olana saiu com ele e Miri ouviu o eco de sua voz no corredor: O que voc quer? O pessoal da aldeia me mandou perguntar quando as meninas vm paracasa disse a voz de um menino.O rosto de Esa se encheu de expectativa, e Bena e Liana cochicharamalgumas coisas entre si e soltaram risadinhas. Miri teve na barriga uma

    sensao de leveza e nusea ao mesmo tempo. Peder estava ali fora. Diga ao seu pessoal que est tudo bem. Sei que os soldados explicaramaos pais que, para cumprir minha misso com xito, preciso de liberdadeabsoluta para ensinar e treinar as meninas. Elas visitaro suas casasquando fizerem por merecer, e interromper minhas aulas com perguntasno vai fazer com que voltem para casa mais cedo.Olana voltou e retomou sua palestra. Pela janela, Miri avistou Peder paradodiante do prdio da academia, tentando enxergar alm dos reflexos do solna vidraa. Ele deu um chute no cho, pegou uma lasca de pedra decantaria maior que seu punho e saiu correndo de volta para a aldeia.Ao meio-dia, quando Olana as dispensou para o almoo, as palmas dasmos de Miri ainda estavam vermelhas. Os pensamentos e as emoes

    brincavam de cabo de guerra dentro dela. Ser punida por ajudar Gerti. Serignorada e humilhada. Peder vir at l e ser dispensado, sem que ela sequerconseguisse lhe dar um aceno a distncia. Acima de tudo, a vergonha de serintil que no a abandonava nunca. Isso uma idiotice Miri falou assim que elas saram da sala de aula.Katar, que andava a seu lado, falou: Silncio! e olhou para trs para ver se Olana tinha ouvido. Vamos para casa Miri falou um pouco mais alto. Ainda sentia um vaziona barriga desde que avistara Peder e as mos dodas lhe deram aimpresso de ser maiores que sua precauo. Podemos ir embora daqui

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    antes que os soldados percebam e, se corrermos todas juntas, eles nuncanos pegaro.

    Parem. A voz autoritria fez com que Miri parasse onde estava.Nenhuma delas se virou para ver. O estalido das botas de Olana seaproximou. Era Miri que estava falando?Miri no respondeu. Achou que, se falasse, poderia chorar. Ento, Katarconfirmou com um aceno de cabea. Ora disse Olana , mais uma infrao. Eu disse antes que falar fora dehora significava castigo no s para a infratora como para quem escuta, nofoi mesmo?Algumas das meninas concordaram. Katar se inflamou. Nenhuma de vocs vai voltar para casa amanh disse Olana. Passaro o dia de descanso estudando individualmente.Miri sentiu como se tivesse levado uma bofetada. Ouviram-se gritos deprotesto. Silncio! Olana brandiu no ar a bengala. No h o que discutir. J hora de vocs aprenderem que fazem parte de um pas com leis e regras, eh consequncias para a desobedincia. Agora, voltem sala de aula.Ficaro sem a refeio do meio-dia hoje.As meninas fizeram mais barulho do que o normal ao tomarem seusassentos, como se dessem vazo sua raiva, arrastando os ps dascadeiras contra o piso de pedra, deixando as pranchetas baterem sobre asmesas. No silncio que se seguiu, Miri ouviu a barriga de Frid ranger defome. Normalmente, teria soltado uma risada. Apertou o estilete com tanta

    fora contra a argila que ele se partiu ao meio.Naquela tarde, Olana deixou as meninas sarem para se exercitar. Elasvestiram capas e gorros, mas assim que saram Miri tirou os seus. O friosbito a fez sentir-se renovada, trazendo uma sensao de liberdade depoisde um dia inteiro na sala de aula com o aquecimento da lareira. Estava comvontade de sair correndo como um coelho, numa leveza tal que nem sequerdeixaria pegadas a serem seguidas.Ento ela percebeu que estava s e as demais meninas formavam umgrupo, paradas diante dela. As mais velhas estavam frente, de braoscruzados. Miri teve a impresso de compreender como uma cabra perdidase sentiria ao se deparar com uma matilha de lobos. No foi minha culpa disse ela, receosa de que admitir estar sentida

    implicaria tolerncia pelas aes de Olana. As regras dela so injustas.Frid e Esa olharam para trs para ver se Olana estava por perto, mas estavaacertado que, do lado de fora, as meninas podiam conversar. No v logo se desculpando disse Katar, jogando a cabeleiraalaranjada para fora do capuz.O queixo de Miri comeou a tremer e ela o cobriu com a mo, tentando agircomo se no estivesse perturbada. Se todos a achavam fraca demais paratrabalhar na pedreira, pelo menos poderia mostrar-se forte o suficiente parano chorar. Eu estava tentando me levantar por todas ns. Isto mais um caso de o

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    povo da plancie tratar o povo da montanha como se fossem botas velhas.Bena se inflamou:

    Voc foi avisada, Miri. Por que no pode simplesmente seguir as regras? Ningum deveria ter de seguir regras injustas. Poderamos todas ir paracasa correndo agora. No temos que continuar aqui e aceitar ficar trancadasem quartinhos fechados nem receber palmatrias e insultos. Nossos paisdeveriam saber o que est acontecendo. Miri queria encontrar aspalavras certas para expressar sua raiva, seus receios, suas saudades, masat para si prpria seu argumento pareceu forado. Nem ouse Katar falou, cruzando os braos. Se voc fizer uma coisadessas, eles podem fechar a academia e pedir aos padres que anunciemoutro lugar como lar da futura princesa. E a todas ns perderemos nossaschances por sua causa.Miri ficou olhando atentamente. Ningum estava rindo. Vocs acham mesmo que vo deixar uma de ns ser princesa? perguntou, com a voz seca e tranquila. claro, agindo do jeito que a Miri est, ela mesma nunca ser escolhida,mas no h razo para que as demais no tentem. A voz normalmenteconfiante de Katar comeou a soar aguda e tensionada, como se, poralguma razo que Miri no teve como adivinhar, ela estivesse desesperadapara convencer o restante da turma. Tornar-se princesa seria mais doque simplesmente casar com o prncipe: voc poder ver o restante doreino, morar num palcio, encher a barriga em todas as refeies, manter afogueira crepitando o inverno inteiro. E vai fazer coisas importantes, do tipoque afeta todo o reino.

    Vai ser especial, importante, vai haver conforto e felicidade. Era o que Katarestava oferecendo com o pedido para ficar. Algumas das meninas seaproximaram, aconchegando-se mais perto dela, como se estivessematradas pela histria que contava. Miri estava encabulada a ponto de sentircalafrios por todo o corpo. O que seu pai acharia dela se fosse escolhidadentre todas as outras meninas para ser princesa?A ideia era deliciosa, uma histria belssima, e por um instante ela desejoupoder acreditar, mas sabia que ningum da plancie deixaria a coroa sercolocada na cabea de uma menina da montanha. No vai acontecer... Miri sussurrou. Ah, cale a boca disse Katar. Voc nos fez perder uma refeio. Noouse estragar nossa chance de nos tornarmos uma princesa.

    Olana chamou e todas as meninas, inclusive Gerti, voltaram as costas paraMiri e entraram. Miri ficou olhando fixamente para o cho, na esperana deque ningum visse como seu rosto ardia. E seguiu-as, no fim da fila.Britta ia logo sua frente no corredor. Antes de entrarem, a moa daplancie se virou e sorriu para ela. Miri quase correspondeu ao sorriso antesde se dar conta de que Britta deveria estar se regozijando com suadesgraa. Franziu o cenho, ento, e afastou o olhar.O dia seguinte foi insuportvel. Embora Olana insistisse em que voltar paraa aldeia nos dias de descanso deveria ser um privilgio eventual, elatambm declarou que precisava tirar folga das meninas de vez em quando

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    para no enlouquecer. Assim, as meninas passaram o dia na sala de aulasem superviso. Miri ficou sentada sozinha num canto, ciente de que,

    mesmo quando aumentasse o barulho da descontrao do grupo, ela noestava convidada a participar. Quando uma das conversas pairou sobre oassunto Olana, chegou a oferecer o que considerou uma notvel imitaodos lbios contritos da tutora. Ningum riu e Miri se resignou a continuarpraticando sua caligrafia em silncio.Passou a semana seguinte contando as horas que faltavam at o dia dedescanso. Depois que todas as meninas conseguissem dormir uma noite aolado de suas prprias lareiras, a tenso certamente abrandaria. Talvezquando Miri contasse ao pai sobre as regras e a palmatria, ele admitisseque cometera um erro, que precisava dela tanto quanto de Marda em casa.S mais trs dias at a liberdade, depois dois, um.Ento, naquela noite, nevou.A escola despertou com as lufadas brancas que pareciam as nuvens de pde pedra na aldeia cobrindo tudo e ameaando se acumular at a altura doparapeito das janelas. As meninas ficaram caladas, olhando para fora,imaginando a distncia que as separava da aldeia, os buracos epedregulhos escondidos pela nevasca, ponderando entre o perigo e o desejode irem para casa. Vamos para a sala de aula, ento disse Olana, encaminhando-as paralonge da janela do quarto. Ningum vai sair andando por a com essetempo. E se est correta a historinha que ouo contar sobre essa montanha,vamos ter de nos aconchegar por aqui mesmo at o degelo da primavera.Olana se postou diante da classe, com as mos dadas s costas. Miri se

    sentiu destacada diante daquele olhar. Katar me informou que h quem duvide da legitimidade desta academia.No vou me arriscar a apresentar meninas de miolo mole para Sua Altezano ano que vem, de modo que vou lhes dizer uma coisa aqui com toda afranqueza: o prncipe vai escolher uma de vocs com quem se casar, e aescolhida vai morar no palcio, ser chamada de princesa e "usar umacoroa".Olana convocou Knut naquele instante, e ele entrou na sala com algoprateado nos braos. Olana pegou o objeto e o chacoalhou. Era um vestido,talvez a coisa mais bonita em que Miri j tivesse posto os olhos alm davista da montanha. O tecido no se parecia com nada do que ela j tivessevisto, leve e macio, e lhe trouxe lembrana as guas de um crrego. Era

    cinza nas dobras e rebrilhava prateado onde batiam as luzes que entravampela janela. Fitas cor-de-rosa claro reuniam os panos em volta do ombro eda cintura, e havia minsculos brotos de rosa espalhados pela saiacomprida. So vestidos assim disse Olana que as princesas usam. Umacostureira real fez este daqui para a menina que terminar o ano em primeirolugar na academia.As meninas engoliram em seco e soltaram suspiros e exclamaes, e pelaprimeira vez Olana no as mandou calar. Vamos ver quem mais quer este presente. A vitoriosa ser apresentada

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    ao prncipe como princesa da academia e usar este vestido na primeiradana. A escolha da noiva ainda ser dele, mas a princesa da academia

    certamente causar uma primeira impresso bastante significativa.Enquanto Olana falava, seus olhos fitaram Frid de relance, e Miri imaginouque ela estivesse torcendo para que aquela no fosse a vitoriosa, pois seucorpo avantajado no caberia no vestido. Mas o rosto de Frid no reveloupreocupao alguma com o tamanho da pea. Seus olhos se cravaram nacoisa prateada, estarrecidos. Miri se esforou para no dar na vista quetambm estava impressionada. Como deve ser usar um vestido assim? Estejam avisadas de que no ser fcil vocs atenderem s minhasexpectativas Olana falou. Tenho muitas dvidas de que as meninas damontanha sejam capazes de atingir os mesmos patamares de outrasmeninas de Danland. J ouvi dizer que seus crebros so naturalmentemenores. Talvez por causa do ar mais rarefeito da montanha...Miri se inflamou. Mesmo que as promessas de Olana fossem verdadeiras,Miri no quereria se casar com algum da plancie, uma pessoa que adesprezasse e sua montanha. Prncipe ou no, seria qual Olana, qual Enrike os mercadores, qual o mandatrio-mor franzindo o cenho ante a viso dopovo da montanha e ansioso por voltar sua carruagem e ir embora.Ela esfregou os olhos e o barro em seus dedos entrou por baixo dasplpebras, fazendo-as arder. Estava cansada do povo da plancieapequenando-a e cansada de achar que poderiam estar certos. Mostrariapara Olana que era to esperta quanto qualquer Danlander. Seria a princesada academia.

    Captulo Cinco

    Todos sabem que as melhores coisas vm no fimPor isso minha me diz que sou a ltima em tudoSempre uso roupas e calados usados,Raspo o que sobra na panela e tomo banho rio abaixo.

    Um dia as palavras haviam sido invisveis para Miri, desconhecidas edesinteressantes, como os movimentos de uma aranha numa fresta darocha. Agora, surgiam por toda sua volta, mostravam-se, exigiam ateno na lombada dos livros em sala, decifrando tonis de comida na despensae na cozinha, esculpidas em marcos de pedra: No dcimo terceiro ano do

    reinado de Jorgan.Um dia, Olana jogou fora um pergaminho e Miri o pegou no lixo, guardou-oembaixo do estrado e desenvolveu o hbito de l-lo luz de vela ao som deroncos e assobios. Era uma lista das meninas da academia e suasrespectivas idades. Miri sentiu um tremor no corao ao ler o prprio nomeescrito tinta. "Marda Larendaughter" tambm estava ali, embora riscado.O de Britta aparecia sem o nome do pai.Entregar-se a aprender ajudou Miri a ignorar o doloroso frio da solido suavolta. medida que a segunda, terceira, quarta semana de inverno sepassavam, Miri foi se sentindo cada vez mais congelada dentro da mancada

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    que dera. Pensou em tentar reparar o erro, mas o silncio das demaissignificava que elas no haviam esquecido que Miri lhes custara a ltima

    visita que poderiam fazer s suas casas antes de a neve comear a cair.Nem Esa reservara um lugar na sala de jantar para Miri; nem Fridconseguira lhe dar um sorriso despretensioso. Miri deu de ombros para amgoa e passou a dizer a si mesma que elas nunca haviam sido suasamigas de verdade.Sentia falta de Peder. Sentia falta da facilidade de sempre saberexatamente o que ele estava tentando dizer e da agitao em seu peitosimplesmente por estar perto dele, quando tinha a sensao de que seusdedos engrossavam, perdiam o tato, e sua boca secava. V-lo brandir amarreta ou arremessar uma pedra, escutar o som spero de sua voz e desua risada sempre que a ouvia rir, sentir-se inclinando para perto dele comofaria para se aquecer junto a uma lareira!L fora da janela da sala de aula, a neve continuava caindo. De repente, Miriparou de olhar, assustada com a sbita palpitao no peito. Percebeu queestava ansiosa pela chegada da primavera e a volta sua casa, e foi ceifadapela verdade nua e crua: sentia saudade de Marda, do pai e de Peder, maseles teriam saudade dela? Concentrou-se na prancheta e passou a dedicar-se duas vezes mais ao estudo.Num certo fim de tarde, Olana soltou as meninas vontade no ptio. Elashaviam passado o dia em suas carteiras com apenas dois intervalos paradescanso ao ar livre e uma das refeies cada vez mais tristes de Knut:peixe seco desfazendo-se de to cozido e batatas sem um pingo de banhaou sal para aguar o paladar. Frid recebera umas lanhadas de palmatria

    por ter cado no sono durante o estudo individual e Gerti passara uma horano quartinho escuro por reclamar de sua incapacidade para desenhar altima letra do alfabeto.Miri viu as meninas fazendo fila para ir l fora e pensou em juntar-se a elas.Ela queria esquecer o fato de que lhes custara uma ida casa e assim sairsorridente para brincar, ou apenas correr pela neve sozinha e sentir o ar friofustigando o seu rosto.Mas, se ficasse do lado de dentro, teria a sala de aula toda para si. Vinhatorcendo por uma chance como essa a semana inteira.Ao escutar os ltimos passos sumindo no corredor, levantou-se eespreguiou-se. Havia 13 livros numa prateleira alta acima da mesa deOlana. Miri j os contara, lera as lombadas e previra o possvel contedo.

    Esticou-se na ponta dos ps e retirou um deles.As palavras Histria de Danland estavam gravadas em branco sobre alombada de couro escuro. O livro cheirava a p, a velharia, mas tambmtrazia em si uma pitada de doce, um toque de algo convidativo. Ela o abriuna primeira pgina e comeou a ler, pronunciando as palavras num sussurroreverente.No entendeu coisa alguma.Leu a primeira frase trs vezes e, embora pudesse pronunciar cada palavraseparadamente, no conseguiu entender o que significavam juntas. Fechouo livro e abriu outro, Comrcio de Danland. O que era Comrcio, afinal? Ela

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    esticar.Quando Olana mais uma vez dispensou as meninas, deixando-as sair ao

    ptio, Esa virou-se para Miri antes de sair da sala e fez um gesto indicandoque ela a seguisse. Miri soltou um suspiro por antecipao. Se Esa aperdoasse, talvez as demais tambm a perdoassem. Sua determinao deficar em paz sozinha se esvaneceu diante da possibilidade luminosa de quetudo voltasse s boas.Miri tinha, entretanto, uma pequena tarefa a cumprir antes. Depois deesperar que todas as meninas sassem da sala de aula, aproximou-sefurtivamente da prateleira para devolver o livro de contos. Estava na pontados ps, ajeitando o livro no lugar, quando um barulho na porta a assustou.Ela deu um pulo e largou o livro. O que est fazendo? Olana perguntou. Desculpe disse Miri, pegando o livro no cho e esfregando-o para tiraro p. Estava s... S deixando meus livros carem no cho? No estava pensando emroubar um deles, estava? claro que estava. Eu teria permitido que vocpegasse um livro emprestado, Miri, mas no vou tolerar um roubo. Para oquartinho, j. O quartinho? disse Miri. Mas eu no estava... V logo disse Olana, ordenando Miri dali como quem tange uma ovelharecalcitrante.Miri conhecia o lugar, embora nunca tivesse estado ali. Olhou para trsantes de entrar. Durante quanto tempo?

    Olana fechou a porta em cima de Miri e passou o trinco.A sbita falta de luz foi aterrorizante. Miri jamais estivera num lugar toescuro. No inverno, Marda, o pai e ela dormiam na cozinha perto do fogo, eno vero, sob as estrelas. Deitou-se no cho e, por baixo da porta, ficouespiando a faixa de luz acinzentada. S conseguia enxergar os ressaltos daslajotas do piso. De longe, ela ouvia o vozerio alegre e os gritinhos de alegriadas meninas brincando na neve. Esa acharia que Miri havia ignorado oconvite, que no fazia questo de ser sua amiga. Miri tomou flego,ofegante, e tossiu com a poeira.Um rudo de passos apressados a deixou em estado de alerta. Tornou aouvir o barulho, como se fossem unhas arranhando uma superfcie lisa. Mirise encostou bem parede. Novamente. Algum animalzinho deveria estar ali

    com ela na escurido. Talvez apenas um camundongo, mas, por no saberao certo, Miri achou aquilo estranho e enervante. Tentou enxergar em meios trevas. Seus olhos foram se acostumando, trazendo alguma definiopara as formas mais escuras, mas a luz no era suficiente.Depois que os passos pararam, Miri continuou em p, encostada parede,at sentir dor nas costas e a cabea pesada. Ficou cansada de fitar aescurido, imaginando rostos que tambm a fitavam ou vultos minsculoscorrendo pelos cantos. O enfado, enfim, trouxe o sono. Afinal, deitou-se,apoiando a cabea nos braos, e ficou olhando a fresta embaixo da porta naesperana de ver algum sinal de Olana vindo liber-la do castigo. O frio das

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    lajotas se entranhou em sua blusa de l e arrepiou-lhe a pele, fazendo-aestremecer e soltar um suspiro ao mesmo tempo. Caiu no sono sem

    descansar.

    Miri acordou com um puxo e uma sensao horrorosa. Haveria algumdentro do cmodo com ela, tentando acord-la? A luz que vazava pelafresta inferior da porta estava ainda mais fraca e a sensao pulsante emseu corpo todo sinalizava que se haviam passado horas.

    Tornou a sentir um puxo no couro cabeludo. Algo se prendera em suatrana. Teve vontade de gritar, mas o terror chegou a paraliz-la. Cadapedacinho de sua pele se ressentiu com o pavor do que poderia estartocando nela. O toque foi algo forte demais para ser um camundongo.A ponta de um rabo roou o rosto dela. Uma ratazana.Miri soltou um soluo mudo, recordando-se de uma mordida de ratazanaque matara um beb na aldeia anos antes. No ousou gritar, com receio deassustar o bicho. Os puxes pararam e ela ficou parada, esperando algumacoisa acontecer. Ser que se soltou? Ser que foi embora?De repente, a coisa se agitou. Perto de seu ouvido, Miri escutou um guinchosurdo.No conseguiu se mexer, no conseguiu falar. Quanto tempo teria de ficarali at que algum viesse resgat-la? Seus pensamentos iam e vinham,buscando uma sada, um consolo. O fio do prumo balana, o falco cria asas, o Monte Eskel canta. Elasussurrou baixinho como as guas lentas de um crrego. Era uma canopara comemorar, na primavera, o uso dos prumos de corda para aparelhar a

    cantaria, enquanto se observa o falco alando voo, com a sensao de queo trabalho bom e est tudo bem no mundo. Enquanto cantarolava, elatamborilou com as pontas dos dedos sobre uma lajota do piso, como seestivesse trabalhando na pedreira e usando o linguajar dos operrios entreseus colegas. O Monte Eskel est cantando sussurrou e comeou a mudar a letra eMiri est chorando, lutando com uma ratazana. E quase riu disso, mas orudo de outro rosnado cerrou-lhe no peito a risada. Receando sequer umsussurro, continuou cantando na cabea apenas, ainda tamborilando com osdedos em silncio no ritmo da msica e pedindo na escurido que algumse lembrasse dela.A porta se abriu e a luz de uma vela feriu seus olhos.

    Uma ratazana! Olana estava com a bengala na mo e usou-a paracutucar o cabelo de Miri. Depressa, depressa Miri falou, fechando os olhos.Ouviu um guincho, pequenos passos se afastando rapidamente, e selevantou de imediato, indo abraar Olana. Tremia demais para conseguirficar em p sozinha. Ora, tudo bem, j chega disse Olana, desenroscando de si os braos deMiri.O frio e o susto deixaram Miri se sentindo meio morta. Abraou a si mesmacontra um arrepio que ameaava estremec-la tanto quanto vara verde ao

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    vento. Fiquei trancada horas a fio disse, com um grasnido de voz. Voc se

    esqueceu de mim. Acho que sim disse Olana sem se desculpar, embora traos maisprofundos em seu cenho mostrassem que ela ficara perturbada ao ver aratazana. Ainda bem que Gerti se lembrou de voc, caso contrrio eu steria vindo pela manh. Agora, vamos: j para a cama.Miri avistou Gerti agora, com os olhos arregalados como os do visonenquanto fitava, estarrecida, a escurido do quartinho. Olana pegou a velae deixou as meninas no escuro, de forma que Miri e Gerti voltaram correndopara o quarto de dormir. Era uma ratazana disse Gerti, assustada. Era, sim. Miri ainda tremia como se estivesse congelando de frio. Obrigada por se lembrar de mim, Gerti. Meu corao teria parado de baterse eu ficasse l mais um instante sequer. Estranho foi como eu me lembrei de voc, na verdade disse Gerti. Quando voltamos do recreio tarde, voc havia simplesmente sumido.Olana no falou nada e eu tive receio de perguntar. E, quando estvamosnos preparando para dormir, me veio uma lembrana aterradora de quandoestive trancada no quartinho e escutei uns barulhos sinistros, e tive certezade que voc estava trancada l tambm e... no sei, mas achei que haviauma ratazana. Foi quase como... ah, esquea. Como o qu? Com certeza adivinhei que voc estava no quartinho porque, ora, ondemais estaria? E achei ter ouvido uma ratazana quando estive l, tambm, e

    foi por isso que soube que voc estaria l. Mas o jeito de minha visoestremecer quando pensei nisso, a maneira como voc e a ratazana mevieram mente, acabei me lembrando da linguagem da pedreira. Linguagem da pedreira? Mas... Miri tornou a sentir calafrios. Sei que besteira. No poderia ter sido linguagem da pedreira, porqueno estamos na pedreira. Ainda bem que no houve encrenca. Quando fuipara o quarto da Tutora Olana e implorei para que viesse tirar voc de l,ela ameaou com todo tipo de castigo.Miri no falou mais nada. Novas possibilidades se configuravam para ela naescurido.

    Captulo Sete

    Tenho uma alavanca para um bandidoE uma talhadeira para uma ratazanaTenho uma marreta para um loboE um martelo para um gato.

    Uma tarde, dois ou trs anos antes, Miri e Peder haviam se sentado numapastagem na encosta de um morro na aldeia. Eram to jovens que Miriainda no havia comeado a se preocupar que suas unhas estivessem sujase quebradas ou que Peder pudesse ficar entediado com sua conversa. Na

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    ocasio, ele trabalhava na pedreira seis dias por semana e Miri insistia paraconhecer os detalhes.

    No como acender uma lareira ou curtir couro de cabra, Miri; no como uma tarefa qualquer. Quando estou trabalhando, como se escutassea pedra. No me olhe desse jeito. No consigo explicar melhor. Pois tente.Peder estava olhando fixamente para a lasca de cantaria que trazia na mo.Ele estava usando um canivete para esculpi-la na forma de uma cabra. Quando tudo vai bem, temos a sensao das msicas que cantamos nosferiados, os homens uma parte, as mulheres a outra. Sabe como aharmonia? a mesma sensao de trabalhar a cantaria. Pode parecerbesteira, mas imagino que a pedra canta o tempo todo, e quando enfio bema cunha na fresta e baixo a marreta direitinho, tenho a sensao de queestou cantando com ela. Os operrios cantam aquelas msicas em voz altana pedreira para marcar o tempo. A cantoria de verdade acontece l dentro. L dentro, como? Miri perguntou. Tranava caules de miri para no dara entender que estava muito interessada. Que som tem? No tem som de nada, na verdade. No se ouve a linguagem da pedreiracom os ouvidos. Quando alguma coisa est errada, d uma sensao deerro, assim como sei quando a pessoa a meu lado est fazendo forademais com a alavanca e pode rachar a pedra. Quando isso acontece e fazbarulho demais na pedreira para que a gente possa simplesmente dizer: "Vdevagar com essa alavanca", eu digo isso em linguagem da pedreira. Nosei por que se chama linguagem da pedreira, j que mais canto do quefala, s que a gente cantapor dentro. E mais alto, se que d para

    descrever desse jeito quando algum fala diretamente com voc, mas todospor perto conseguem ouvir. Ento, voc canta de um jeito e todo mundo consegue ouvir ela falou,sem entender direito.Peder deu de ombros. Eu falo com uma pessoa, mas estou cantando, s que no em voz alta...No sei descrever, Miri. como tentar explicar como correr ou engolir.Ento, pare de me encher a pacincia; se no parar, vou atrs do Jans e doAlmond para jogarmos um jogo s de meninos. Faa isso e ser o ltimo jogo da sua vida.Peder no entendia por que era to importante para Miri compreender otrabalho na pedreira, de modo que ela parou de insistir. Achou bom que ele

    no se desse conta de sua frustrao e isolamento, que admitisse que elacontinuasse a mesma Miri tranquila e despreocupada de sempre.Miri deixou que as recordaes dessa conversa voltassem sua mente,acrescentando agora tudo que achava saber sobre a linguagem da pedreira.Sempre fora uma parte da pedreira e, como tal, algo que ela no podiafazer.Acaso Gerti teria ouvido linguagem da pedreira?, pensou. Ser quefunciona fora da pedreira? A mera possibilidade era to atraente quanto ocheiro dos bolinhos de mel sendo cozinhados no cmodo ao lado.No dia seguinte ao da ratazana, Miri estava cumprindo tarefas matinais,varrendo os corredores da academia. Esperou at que no houvesse mais

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    ningum por perto e entrou furtivamente num cmodo frio, fora de uso, eexperimentou a linguagem da pedreira. Tamborilou com o cabo da vassoura

    a lajota de pedra do piso, tentando imitar uma ferramenta da pedreira, eentoou uma cantiga em voz alta. Em seguida, mudou a msica de modo atransmitir a mensagem que queria. Tenho uma alavanca para um bandido e uma talhadeira para umaratazana. O bicho estava no quartinho at que a tutora o espantou.Sabia, de observar a pedreira, que os operrios cantarolavam etamborilavam sempre que usavam a linguagem da pedreira, mas s mudara letra da msica no bastava.

    A cantoria de verdade acontece do lado de dentro, dissera. Talvez da mesma forma que cantar diferente de falar ela murmurou,tentando racionalizar , a linguagem da pedreira diferente de s pensar.Com uma msica, as palavras fluam em conjunto de uma forma diferenteda conversa normal. Havia um ritmo e os sons das palavras se encaixavamcomo se elas tivessem sido feitas para ser cantadas lado a lado. Como

    poderei fazer a mesma coisa com meus pensamentos?, pensou.Miri passou o resto de sua hora de cumprir tarefas aperfeioando seumtodo. Criou msicas, como costumava fazer, no s cantando em vozalta, como tambm concentrando-se no som delas, tentando fazer com queseus pensamentos retumbassem e flussem de maneira diferente,concentrando-se nos minsculos tremores que os ns de seus dedosproduziam na pedra de cantaria. Ser que a fala penetrava pelo solo? Elafechou os olhos e imaginou-se cantando seus pensamentos para dentro dapedra, falando da ratazana e de sua necessidade desesperada naquela

    noite no quartinho, expandindo sua msica interna com o desejo vibrantede ser ouvida.Durante um brevssimo instante, sentiu uma mudana. Parece que o mundoestremeceu, e seus pensamentos se enquadraram todos. Soltou um gritosufocado, mas a sensao se foi to rpido quanto veio.Olana bateu com a bengala no cho do corredor para anunciar o trminodas tarefas do dia e Miri terminou de varrer sua cota e foi correndo para asala de aula. Viu quando Gerti se aproximou de sua carteira, tentandodetectar qualquer sinal de que a menina mais nova tivesse ouvido. Miriarriscou uma perguntinha rpido antes de Olana entrar. Como voc est se sentindo, Gerti? Bem. Gerti se sentou, coou o pescoo e, ento, olhando de relance

    para a porta de modo a se assegurar de que a tutora no estivesse porperto, falou num sussurro: No estou conseguindo tirar aquela ratazanada cabea. Estava me lembrando novamente de quando estive noquartinho...Olana entrou e Gerti, de um estalo, voltou para a posio correta em suacarteira. Miri esfregou o brao para aliviar os calafrios. Acreditou que tivessefuncionado, mas seu semblante ainda demonstrava questionamentos. Detodas as meninas, por que Gerti teria ouvido sua linguagem da pedreiranaquela noite? E por que novamente?

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    Hale

    Quando as meninas deixaram a sala de aula no recreio seguinte, Katar foipegar um livro na prateleira e voltou a se sentar sua carteira com certo

    estardalhao. No precisa ficar to chocada, Miri disse ela, sem tirar os olhos dolivro. Voc no a nica que pode estudar durante o recreio. Acho quevoc est pensando que o ttulo de princesa da academia seu, semconcorrentes. No disse Miri, querendo que surgisse em sua mente uma boaresposta, bem afiada. Mas s conseguiu pensar em dizer: Mas talvez vocesteja.Katar sorriu, talvez pensando que a rplica havia sido fraca demais paramerecer uma contrapartida. Miri concordou em silncio. Conseguiu se forara permanecer na sala de aula durante mais alguns minutos antes deescapulir.Nos dias que se seguiram, a presena de Katar na sala de aula durante orecreio forou Miri a procurar outros lugares para testar sua linguagem dapedreira: num cantinho, do quarto de dormir, atrs do prdio da escola e,uma vez, at no quartinho, embora mal tivesse entrado e sua pele seenrijeceu toda, como se estivesse coberta por aranhas. A cada novaexperincia, quando tamborilava alguma coisa no cho e entoava uma dascantigas da pedreira, uma sensao curiosa tomava conta dela. Tudo suavolta parecia vibrar como os galhos das rvores ao sabor do vento e umasensao clida e contundente se pronunciava no fundo de seus olhos. Anoo do quartinho e da ratazana voltava sempre, real, como se elaestivesse revivendo aquele momento. Sentia sua msica pulsando dentro

    de si e a imaginava percorrendo o interior da pedra, chegando montanha,at encontrar algum capaz de ouvi-la.Mas, em geral, no acontecia nada. E ela no conseguia entender o porqu.

    A linguagem da pedreira deveria servir para falar com outras pessoas,pensava. Talvez eu deva experimentar com algum.Miri no ousaria abordar qualquer uma das outras meninas que trabalhavamna pedreira. Ser que a tomariam por bo