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Caderno pedagógico, Lajeado, v. 7, n. 2, p. 62-73 , 2010 62 ALGUMAS VÍRGULAS PARA PENSAR O CURRÍCULO ESCOLAR Francine Nara de Freitas 1 Resumo: No texto proponho-me a pensar as relações de poder estabelecidas nas instituições escolares, analisando o encontro institucional entre currículo e educando. Os mecanismos de exercício de poder são experimentados ao longo do ano letivo, enquanto as grades curriculares são seguidas fielmente por mestres e educandários. Alguns questionamentos são lançados com o intuito de perturbar os saberes- poderes constituintes do ambiente escolar, especialmente sobre aqueles relativos ao disciplinamento do corpo do educando que produz resistências e submissões constantes. Assim, pensar sobre currículo- educando-corpo é pensar também sobre o futuro da escola. Palavras-chave: Currículo escolar. Sujeito-educando. Poder. Corpo. Abstract: My proposal in this text is to think about the power relations established in school institutions, analyzing the institutional meeting between curriculum and student. e mechanisms of power use are experienced throughout the school year, while the curriculum is faithfully followed by teachers and schools. Some questionings are made in order to disrupt the knowledges-powers constituents of the school environment, especially about those related to the disciplining of the body of the student that constantly produces resistances and submissions. So, thinking about curriculum- student-body is also thinking about the future of school. Key Words: School Curriculum. Student-subject. Power. Body. Neste texto, penso sobre uma importante questão: o poder de controle das instituições escolares sobre os sujeitos. O poder de controlar não está ligado somente aos educandos, mas também a outros sujeitos como diretores, professores e funcionários, entre outros. As relações de poder podem tornar-se amplas dependendo do ponto de vista em que se observa. Para este texto, restringirei a leitura das relações de poder de escola- currículo e educandos-corpos. Na visão de Deleuze, a escola pode ser percebida como um mecanismo de controle: “No regime das escolas: as formas de controle contínuo, avaliação contínua e a ação da formação permanente sobre a escola, o abandono correspondente de qualquer pesquisa na Universidade, a introdução da “empresa” em todos os níveis da escolaridade” (DELEUZE, 1992, p. 225) 1 Formada em Pedagogia pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC) e Pós-Graduada em Educação e Psicopedagogia: Poder, Diferenças e Rupturas pela UNIVATES, atualmente atua em Educação Infantil e Anos Iniciais.

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    AlgumAs vrgulAs pArA pensAr o currculo escolArFrancine Nara de Freitas1

    Resumo: No texto proponho-me a pensar as relaes de poder estabelecidas nas instituies escolares, analisando o encontro institucional entre currculo e educando. Os mecanismos de exerccio de poder so experimentados ao longo do ano letivo, enquanto as grades curriculares so seguidas fielmente por mestres e educandrios. Alguns questionamentos so lanados com o intuito de perturbar os saberes-poderes constituintes do ambiente escolar, especialmente sobre aqueles relativos ao disciplinamento do corpo do educando que produz resistncias e submisses constantes. Assim, pensar sobre currculo-educando-corpo pensar tambm sobre o futuro da escola.

    Palavras-chave: Currculo escolar. Sujeito-educando. Poder. Corpo.

    Abstract: My proposal in this text is to think about the power relations established in school institutions, analyzing the institutional meeting between curriculum and student. The mechanisms of power use are experienced throughout the school year, while the curriculum is faithfully followed by teachers and schools. Some questionings are made in order to disrupt the knowledges-powers constituents of the school environment, especially about those related to the disciplining of the body of the student that constantly produces resistances and submissions. So, thinking about curriculum-student-body is also thinking about the future of school.

    Key Words: School Curriculum. Student-subject. Power. Body.

    Neste texto, penso sobre uma importante questo: o poder de controle das instituies escolares sobre os sujeitos. O poder de controlar no est ligado somente aos educandos, mas tambm a outros sujeitos como diretores, professores e funcionrios, entre outros.

    As relaes de poder podem tornar-se amplas dependendo do ponto de vista em que se observa. Para este texto, restringirei a leitura das relaes de poder de escola-currculo e educandos-corpos.

    Na viso de Deleuze, a escola pode ser percebida como um mecanismo de controle: No regime das escolas: as formas de controle contnuo, avaliao contnua e a ao da formao permanente sobre a escola, o abandono correspondente de qualquer pesquisa na Universidade, a introduo da empresa em todos os nveis da escolaridade (DELEUZE, 1992, p. 225)

    1 Formada em Pedagogia pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC) e Ps-Graduada em Educao e Psicopedagogia: Poder, Diferenas e Rupturas pela UNIVATES, atualmente atua em Educao Infantil e Anos Iniciais.

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    FRANCINE NARA DE FREITAS

    A escola como introduo da empresa est citada implicitamente na maioria das Propostas Poltico-Pedaggicas (PPPs) que cada escola produziu ou deveria ter produzido. Pois na maior parte dessas propostas possvel ler que um dos objetivos da instituio de ensino formar cidados crticos, analticos.... Certamente este item est ligado com a poltica estatal vigente, que se preocupa com o futuro funcionrio, ou seja, os atuais educandos. Assim, o educandrio por meio do currculo precisa tambm (como a poltica estatal) preocupar-se com o futuro dos educandos, da sociedade e do mercado. E seu papel social est na formao destes sujeitos.

    Talvez, quando os educandos se tornarem adultos e forem para a empresa estaro prontos como cidados pois, at ento, a escola os est formando, ou seja, ainda no o so; no esto preparados, prontos. A PPP que direciona o currculo a ser realizado implantando? na escola. Eis uma grande preocupao: o que mais ela diz ou quer?

    A colaborao do currculo sempre esteve envolvida com os acontecimentos sociais, e esse tornou-se mais presente no mbito escolar a partir da modernidade, quando o saber tornou-se organizado de forma a abranger todo o contexto nacional de educao.

    A escola que experimentamos atualmente fruto da modernidade. E o que estamos fazendo h anos: plantando e colhendo frutos modernos. Nossos currculos esto centrados na transmisso do conhecimento cientfico; em formao de cidadania, entre outros. Tudo isto uma perspectiva do ideal moderno, racional, emancipatrio.

    O autor ainda relata que:

    No quadro epistemolgico traado pelo pensamento moderno, o sujeito est soberanamente no controle de suas aes: ele um agente livre e autnomo. O sujeito moderno guiado unicamente por sua razo e por sua racionalidade [...] o sujeito da Modernidade unitrio: sua conscincia no admite divises ou contradies (DELEUZE, 1992, p. 113).

    uma situao paradoxal: por um lado a escola quer formar o sujeito livre, autnomo, capaz de decidir se quer ou no ser guiado pelo currculo. Mas, por outro lado, em cada prova ou exame que realiza, por exemplo, o aluno escolhe sozinho uma nica resposta possvel, sem poder levantar diferentes hipteses sobre o mesmo assunto.

    Na minha conscincia e na conscincia de outro professor, pode haver apenas uma resposta. Uma resposta quem sabe, para os seguintes questionamentos: Quem descobriu o Brasil? Qual a raiz quadrada de 16? Qual a capital do Canad?

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    Muita gente diz que a capital do Canad Montreal por sua diversidade cultural, seu desenvolvimento poltico e econmico, flexibilidade de expresso oral (francs, ingls, japons...). Mas segundo os livros, a capital do Canad outra. Uma cidade que para muitos representa frieza, feira e poderio supremo quando se est diante daquele parlamento. Qual mesmo a capital do Canad? Qual a necessidade da existncia de capitais nacionais?

    Seria possvel discutir, em aula, as diferenas entre as cidades acima citadas, ou a importncia que tm para os canadenses? Ou mesmo por que algumas cidades so consideradas mais importantes que outras? No! Seria possvel responder apenas que a capital do Canad Otawa. Nada mais deve ser questionado ou citado diante dessa resposta em um exame escolar.

    A escola, como outras instituies, percebe os educandos em massa, ou seja, em conjunto sem diferenci-los no modo de relao (indivduo instituio). O educando, como indivduo, s passa a existir no momento da avaliao; quando cada professor for escrever algum relatrio ou conceder nota ao aluno; a sim, pensa nele em sala de aula e vai recorrer aos seus trabalhos e provas individuais.

    Comprovao disso est na produo do currculo escolar que pensado em mbito nacional. Os objetivos para alunos da zona rural so os mesmos objetivos para alunos do centro de uma cidade. Mesmo que haja alguma possibilidade de reformulao das metas como retrata a prpria Lei de Diretrizes e Bases (BRASIL, 1996), o objetivo principal a ser alcanado refere-se a todo educandrio. Assim, a organizao nacional da educao dever:

    IV - estabelecer, em colaborao com os Estados, o Distrito Federal e os Municpios, competncias e diretrizes para a Educao Infantil, o Ensino Fundamental e o Ensino Mdio, que nortearo os currculos e seus contedos mnimos, de modo a assegurar formao bsica comum.

    Clara est a ressalva que se faz educao nacional: seguir as normas gerais da educao nacional implica, sobretudo, ter uma proposta de ensino e aprendizagem que tenha como centro o currculo pensado para todos.

    Criar no Brasil uma escola que fuja totalmente aos padres daquelas que conhecemos diramos que impossvel, afinal, no estaria seguindo as normas gerais a que se est acostumado a vivenciar. Talvez seria difcil ou at mesmo impossvel para alguns professores trabalhar em sala de aula sem quadro e giz; para alunos irem para a escola sem uma pilha de livros e cadernos; para pais ou responsveis pelos educandos, entenderem como a aprendizagem pode acontecer fora deste contexto de materialidade (quadro, lpis, borracha...).

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    O que incomoda em maior grau no como os educandrios agem diante deste currculo nacional mas, sim, o quanto so aprisionados pelo sistema educacional.

    Dessa forma, h oportunidade da criao da identidade moderna (no caso o aluno) que s passa a existir a partir de um padro estipulado no currculo, pois todos devero dar a mesma resposta para a mesma pergunta feita. As instituies como escolas, prises, hospitais, passam a existir para tornar o homem uno; escondendo a diferena, normatizando todos aqueles e aquelas que fogem do padro de identidade.

    Para construir uma identidade preciso domesticar os corpos para que os moldes criados pela sociedade possam estar nos padres exigidos. Como domesticar os corpos? Que produes e frustraes existem neste relacionar-se com os corpos?

    Cada instituio tem sua organizao para o ato de domesticar. A escola fala em disciplina, em controle sobre a turma, controle sobre o saber e o pensar. O que seria isto seno domesticar corpos que espalham-se pela escola ou correm pelo gramado? O controle encontra-se tambm na forma como o professor direciona suas aulas, na listagem de contedos distribuda no incio do ano letivo, entre outros meios.

    Segundo Veiga-Neto, (2001, p. 11-12)Pode-se dizer que o corpo se constitui no objeto microscpico do poder

    disciplinar. Entender o poder disciplinar como um poder microscpico sobre o corpo - o que, certamente, no significa fraco, invisvel ou pouco importante -, bem como distribudo por toda a rede social, nos permite enxergar as inmeras prticas que acontecem no ambiente escolar como tcnicas que se combinam e do origem a uma verdadeira tecnologia, cujo fim tanto alcanar os corpos em suas nfimas materialidades quanto imprimir-lhes o mais permanentemente possvel determinadas disposies sociais.

    Esse processo de disciplinar no pode ser percebido como algo natural, afinal, os corpos no nascem disciplinados e tampouco a disciplina atinge esse espao (natural). Ambos, corpo e disciplina, foram inventados para produzir e/ou manter a ordem social.

    Organizao do espao escolar remete a uma posio de controle sobre os corpos, pois quando as classes e cadeiras esto alinhadas possvel com mais facilidade controlar os movimentos realizados pelos alunos. A organizao do espao fsico e dos corpos so intencionais para gerar a possibilidade de se ter um bom funcionamento na execuo do currculo escolar.

    Deleuze (1992, p. 219), diz que:

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    O indivduo no cessa de passar de um espao fechado a outro, cada um com suas leis: primeiro a famlia, depois a escola (voc no est mais na sua famlia), depois a caserna (voc no est mais na escola), depois a fbrica, de vez em quando o hospital, eventualmente a priso, que o meio de confinamento por excelncia.

    Com essa citao podemos notar quo adaptvel a criana enquanto cresce, pois de um espao a outro vai recebendo novos saberes, tornando-se produto. Afinal, suas aes referentes s exigncias de cada local contribuem com o bem-estar ou no na sociedade.

    Essa organizao, no suficiente para aprisionar um corpo. O que o cerca a posio que ocupa em relao aos demais corpos no mesmo espao. Estar atrs do outro em uma sala de aula, ou at mesmo bem ao lado, dificultando a visualizao uns dos outros, estabelece uma relao de poder com quem est frente. Normalmente so essas posies que ocupam os educandos em seus cotidianos escolares.

    Veiga-Neto (2001, p. 15), nos diz que o espao no se reduz a um simples cenrio onde se inscreve e atua um corpo. Muito mais do que isso, o prprio corpo que institui e organiza o espao, enquanto o espao d um sentido ao corpo.

    Que tipo de poder tm aqueles que esto frente? Que discursos surgem dessa organizao dos corpos? Afinal, o que leva um corpo a ocupar tal posio diante dos outros corpos? A ocupao de determinados lugares pode surgir por iniciativa dos prprios alunos; por indicao dos colegas; por determinao do professorado, enfim, a demanda para esse item grande.

    Como se tornaria diferente a disposio dos corpos e suas respectivas relaes com o currculo escolar? Seriam permitidas modificaes? Implicariam na organizao escolar existente? Certamente, pensar e agir acerca dessas questes conferir escola desafios de aventurar-se, de arriscar-se. J dizia Deleuze (1992, p. 128): que, no momento em que algum d um passo fora do que j foi pensado, quando se aventura para fora do reconhecvel e do tranquilizador, quando precisa inventar novos conceitos para terras desconhecidas, caem os mtodos e as morais...

    Existiria escola sem seus mtodos e suas morais? Sem seu currculo? isto que movimenta esse espao; que a faz ser o que e da forma que . Sem estes mecanismos de controle, no teria essa identidade de instituio de ensino, agncia educativa.

    Foucault (1997, p. 13), por sua vez, sugeriu afirmou? que a administrao das prises, na Frana, por muito tempo ficou sob proteo da justia que dizia: o essencial da pena que ns, juzes infligimos, no creais que consista em punir; o essencial procurar corrigir, reeducar, curar; uma tcnica de aperfeioamento recalcada, na pena, a estrita expiao do mal e liberta os magistrados do vil ofcio de castigadores.

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    Creio que o discurso das direes escolares, dos tericos da educao que produzem o currculo e de todo sistema educacional brasileiro diante da indisciplina seria semelhante, ao menos um pouco, quando se procura corrigir os alunos, libertando os professores e professoras do vil ofcio de castigar. Porm, pensar na criana e no adolescente deve estar alm da ideia da correo, ou seja, seus direitos precisam ser respeitados, afinal, antes de serem alunos, todos so humanos.

    A inteno da escola , sem via de dvidas, curar o mal que aflige o aluno recolocando-o como membro de massa, sem correr o risco de que ele possa perturbar o andar dos trabalhos de disciplinamento que j esto sendo realizados com o restante do corpo escolar. A coao da direo pode ser comparada com a coao que os juzes fazem aos rus antes de executar alguma sentena. Seria o aluno culpado ou inocente?

    A relao castigo-corpo no idntica ao que ela era nos suplcios. O corpo encontra-se a em posio de instrumento ou de intermedirio; qualquer interveno sobre ele por enclausuramento, pelo trabalho obrigatrio visa a privar o indivduo de sua liberdade considerada ao mesmo tempo como um direito e como um bem. Segundo esta penalidade o corpo colocado num sistema de coao e de privao, de obrigaes e de interdies (FOUCAULT, 1997 p. 14).

    A privao aos corpos sempre esteve presente nos educandrios em diferentes pocas e de diferentes formas. Seja pelos castigos fsicos, como ficar de joelhos em cima de gros de milho ou ser vtima da palmatria, seja por ter de escrever cem vezes em um caderno de caligrafia a mesma frase ou at mesmo ter de ficar sentado durante os intervalos apenas a observar os colegas brincando, por ter transgredido alguma regra.

    O corpo do aluno, muitas vezes, vitimado pela m atitude, ao menos assim que so nomeadas as aes que no condizem com o ideal de quem estabelece as regras. O educando passa a ser dito mal criado, mal educado, indisciplinado, entre outros.

    A hierarquia do sistema educacional submete o educando ao currculo escolar evitando, sempre que possvel, que este elo educando-currculo seja quebrado. O quanto mais se aproxima dos objetivos traados no currculo, mais respeitado o aluno na escola, pois passa a ser identificado como bom aluno, disciplinado, bem educado, de boa famlia...

    Silva (2005, p. 115) diz que h um modo de organizar o currculo prprio da cultura moderna. Este (currculo) o atual modo de existncia, regendo as instituies educacionais do pas:

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    Ele linear, sequencial, esttico [...] Ele segue fielmente um script das grandes narrativas da cincia, do trabalho capitalista e do Estado-nao. No centro do currculo existente est o sujeito racional, centrado e autnomo da Modernidade.

    Realmente, assim que encontramos os currculos educacionais, independente de qual escola se analisa, todas tm sua grade curricular. s vezes, h diferenas na sua organizao podendo ser nomeados contedos de linguagens, contedos pragmticos ou outro nome qualquer. O importante percebermos que no deixam de existir.

    O currculo, nessa perspectiva, pode ser pensado como fetiche com vrias definies como algo que fascina e encanta ou algo provindo da superstio, da rejeio ao estranho. Silva (2003, p. 80) diz ainda que:

    O currculo um guia. O currculo est num livro, o currculo um livro. O currculo, , enfim, uma coisa. Na cultura nativa, o currculo matria inerte, inanimada, paralisada, a que se atribui, entretanto, poderes extraordinrios, transcendentais, mgicos. Os poderes do fetiche currculo vm do sobrenatural, do incgnito, do sobre-humano, do alm. E operam maravilhas, milagres, prodgios.

    Desa forma, ter posse de um currculo escolar ter segurana, certezas sobre o que pode ou no pode ser experimentado no educandrio. um meio de no abrir margem para as dvidas: afinal, tem alguma dvida sobre o que trabalhar na prxima aula com a turma? Simples de resolver: veja na grade curricular o que ainda no foi trabalhado e escolha algum contedo.

    Por isso que o currculo percebido como fetiche, pois, supersticialmente algo em que se acredita cegamente e encanta aqueles que dele se utilizam. O currculo seria um instrumento de encantamento a todos?

    Posso levantar suspeitas sobre isso. Por que os educandos, em geral, levam ao educandrio interesses que no esto nas grades curriculares? Por exemplo: quanto custou a ltima viagem do presidente aos cofres pblicos? Qual foi a ltima inveno criada pela informtica? Por que no consigo ter um MP9? possvel preservar a Amaznia? O que fez a seleo brasileira de futebol perder a Copa do Mundo? Em que a Bolsa Famlia favorece os educandos? Realmente auxiliam em seus estudos? Por que a alimentao de algumas escolas pblicas to defasada? O que leva muitas famlias brasileiras a no terem como adquirir po diariamente? A fome atrapalha o aprendizado?

    O currculo pode tambm ser percebido neste contexto como dispositivo de saber-poder. O currculo sendo algo que fala, logo, falando quer dizer alguma coisa. Ento o que quer dizer um currculo? Mesmo o currculo querendo dizer alguma coisa, no se sabe ao certo o que quer.

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    Assim, o que quer o currculo apenas efeito de suas falaes, no sendo nunca, o amo e senhor do que diz, nem do que faz. Afinal, quais as relaes de poder existentes entre o currculo e o educando? E as condies de verdade sobre o sujeito?

    Corazza (2000, p. 11-12) no confere diz que um currculo levado alm de si prprio, pois o sentido do que diz, encontra-se na linguagem de sua poca e lugar, na qual est enredado. Tambm ao agir, um currculo sempre significa algo diferente do que faz e faz algo diferente do que significa.

    Posso perceber que um currculo no deve ser tomado ao p da letra, pois ele no existe. O que existe o equvoco de querer dizer alguma coisa cercado de significaes que se diferenciam entre si.

    Silva (2003, p. 12) coloca de forma simplificada algumas maneiras de ver o currculo e a teoria do currculo:

    1) A tradicional, humanista baseada numa concepo conservadora da cultura (fixa, estvel, herdada) e do conhecimento (como fato, como informao), uma viso que, por sua vez, se baseia numa perspectiva conservadora da funo social e cultural da escola e da educao; 2) a tecnicista, em muitos aspectos similar tradicional, mas enfatizando as dimenses instrumentais, utilitrias e econmicas da educao; 3) a crtica de orientao neomarxista, baseada numa anlise da escola e da educao como instituies voltadas para a reproduo das estruturas da sociedade capitalista: o currculo reflete e reproduz esta estrutura; 4) a ps estruturalista, que retoma e reformula algumas das anlises da tradio crtica neomarxista, enfatizando o currculo como prtica de significao.

    Perceber como o currculo pode apresentar-se no meio escolar, nos possibilita tambm pensar em que sociedade estivera ou est inserido. Todo currculo demanda ideias e ideais prprios de seus perodos de existncia, embora as razes de uns sempre estejam entrelaadas nas estruturas dos outros.

    Cada modelo da existncia do currculo e suas teorias produziram/produzem um aluno diferente. Por vezes, foi formado pelo currculo em que esteve inserido a receber e a reproduzir o conhecimento, tendo viso fixa sobre o ato ou fato em questo naquele momento. Outros porm, tiveram a oportunidade de poderem significar e ressignificar o conhecimento com o qual tiveram contato, questionando e analisando criticamente o que lhes foi apresentado.

    Assim, a produo do sujeito tradicional, humanista, tecnicista, neomarxista, ps-estruturalista est amplamente ligada s instituies de educao que proporcionam diferentes currculos escolares.

    A preocupao est tambm em como so formados esses currculos e que transformaes sofrem os educandos nesse contexto. Deleuze (1992, p. 213 ), deixa

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    claro que as transformaes requerem cuidados. A vergonha no termos nenhum meio seguro para preservar e principalmente para alcanar os devires, inclusive em ns mesmos. Como um grupo se transformar, como recair na histria, eis o que nos impe um perptuo cuidado.

    Embora as avaliaes propostas aos educandos sejam para perceber um desenvolvimento individual, o currculo abre possibilidades para um planejamento de aula nico, que atinja a todos, por vezes apenas abrindo brechas para aqueles alunos que tm maior dificuldade de aprendizado.

    H aqui uma transformao no currculo quando se atende necessidade do educando que est fora do padro de aprendizagem. Teriam (quem, quais) outros meios de propor acontecimentos diferentes no currculo a respeito deste tema? Sim! Muitas ideias existem! Provindas tanto do professorado e direo das escolas quanto de alunos e tericos da educao. No entanto, fazer acontecer tais modificaes implica investimento.

    Infelizmente quando falo de investimento, neste caso, cito uma palavra que assusta o sistema educacional brasileiro pois se trata de investir financeiramente em salas, recursos, professores extras, entre outros. A pergunta : existe possibilidade de acontecer esse tipo de investimento? Para quando? De que forma? ... modificar o currculo custa caro no para quem pensa, mas sobretudo, para quem o vivencia.

    Controlar o educando, cuidar para que no fuja deste padro, faz da escola um instrumento de coero segundo Foucault (1997, p. 118):

    A escola, em primeiro lugar, do controle: no se trata de cuidar do corpo, em massa, grosso modo, como se fosse uma unidade indissocivel mas de trabalh-la detalhadamente; de exercer sobre ele uma coero sem folga, de mant-lo ao nvel mesmo da mecnica movimentos, gestos, atitude, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo.

    Realmente, se formos perceber os mecanismos de coero produzidos na escola, poderemos identificar a forma individual como o currculo atinge cada educando, pois somente o educando poder passar nas provas e ser autorizado a cursar a srie seguinte. Assim, todas as ameaas, sempre que necessrias, estaro se referindo diretamente ao sujeito.

    Ameaas essas que estaro amplamente representadas em diferentes e diversas aes que convencero os educandos em seu cotidiano escolar. Tudo isso em virtude de apenas um mecanismo: o currculo que precisa ser cumprido ao longo do ano nos duzentos dias letivos.

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    O cumprimento desses dias letivos, pode estar presente em diferentes tempos e espaos: quando um educando fica no intervalo da escola sem brincar por ter transgredido alguma norma, ou quando precisa realizar vrios exerccios e aulas de reforo para poder alcanar os objetivos determinados no currculo, passa no mais a existir como simples aluno, se tornando aluno-problema ou aluno-incapaz. Em todos os casos, no se toca no corpo do aluno, porm, a multa que tira o prazer de estar junto dos demais colegas, de brincar, de se movimentar certa. um outro tocar no corpo!

    cerceada a liberdade do educando e automaticamente erguida a alto mastro a bandeira do esteretipo: incapaz de ser disciplinado; incapaz de ser aprovado nas provas em primeira instncia; incapaz de acompanhar o rendimento dos colegas.

    Assim, no apenas o corpo punido nas escolas ao ter de ficar parado em alguma fila, mas tambm a mente dos educandos, por no poderem expressar o que pensam, mas este no um acontecimento recente... Por volta de 1780 no mais o corpo foco das punies nas prises, mas sim a mente:

    Dir-se-ia que no so eles que so julgados; se so invocados, para explicar os fatos a serem julgados e determinar at que ponto a verdade do ru estava envolvida no crime. Resposta insuficiente, pois so as sombras que se escondem por trs dos elementos da causa, que so, na realidade, julgadas e punidas. (FOUCAULT, 1997, pg. 19)

    Analogamente ao criminoso, o educando quando reprova na prova, normalmente chamado pela professora, diretora ou responsveis (pais ou outros) para explicar o que aconteceu; mas intencionalmente, durante a exposio do aluno, as autoridades que lhe interrogam analisaro minuciosamente seus dizeres para poderem reconhecer o que o levou a tal resultado.

    Seria falta de estudo? Dificuldades com o entendimento da matria? Problemas pessoais? Desateno? Descaso durante a realizao do teste? O aluno realmente importa-se e deseja ser aprovado em todas as provas que realiza?

    Os questionamentos so muitos. Contudo, como possvel perceber nenhum deles destina-se diretamente privao do corpo, ao contrrio, destina-se intencionalidade da mente e aos efeitos da emoo durante a execuo da tarefa. Isso nos leva a perceber que o currculo aprisiona o homem por inteiro. Aprisiona em si mesmo e no em outros mecanismos ou sistemas. Seria essa a inteno do currculo escolar para com o educando?

    Algumas escolas espalhadas pelo mundo procuram compreender o currculo de forma diferente, abrindo portas e janelas; quebrando espelhos que possam refletir a imagem de si mesmas para aceitarem as imagens dos outros. O outro que o

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    educando. Como tem funcionado esta prtica na sociedade atual? Estaria o Brasil disposto a enfrentar tal risco? E se o currculo no existisse? O que seria da escola?

    Continuo ento, a vislumbrar a imagem da escola refletida e sempre que possvel, crio outros espelhos que fiquem espalhados pela escola refletindo as imagens dos outros; os outros que so nomeados como educandos, bibliotecrios, diretores, professores... Que constantemente esto instigados a produzir devires em si mesmo. Quem sabe um outro currculo?

    Zourabichvili (2004, p. 48), diz que o Devir nunca imitar, nem fazer como, nem se conformar a um modelo, seja de justia ou de verdade. No h um termo do qual se parta, nem um ao qual se chegue ou ao qual se deva chegar.

    O currculo atual tem um objetivo maior de chegar em algum lugar que o aprendizado do educando. Pensando como possibilidade de devir, pouco provvel que o mesmo acontea neste formato que conhecemos, com contedos ou linguagens geradoras (pr) estabelecidas. Tm-se no pas um modelo de como pode ser gerado e gerenciado e para ampar-lo nestes moldes, h leis que justifiquem suas prprias aes.

    Com caractersticas de inflexbilizao, rgidez; no malevel, trabalha diariamente para que haja um aprendizado, posterior claro, ao ensino (diga-se de passagem que depois do ensino surge o aprendizado), ao menos este um dos discursos do currculo.

    Proponho um novo currculo, sem objetivos a serem alcanados ou contedos a serem seguidos. Um currculo construdo no instante em que acontece, permeado por pesquisas de diferentes contextos e culturas, sem ter diante de si uma verdade, mas diferentes verdades no mesmo espao e tempo.

    Com isso, a escola deixaria de ser uma das instituies de disciplinamento (mesmo que parcialmente), pois no mais conseguiria ter o controle total dos acontecimentos e os educandos no seriam percebidos como massa de manipulao. Um grupo identificado como aptico e pouco participativo (o que participar?), poderia ser quebrado na imagem de indivduos nicos e complexos, abrindo fissuras para que devires pudessem ser produzidos constantemente.

    Talvez, esta instituio que chamamos escola no mais seria assim denominada, afinal, sua atuao histrica e social incontestvel. Digam quem? o que desejarem, desde que abram possibilidade para outro, desde que no seja elaborado apenas por intelectuais, mas acima de tudo por aqueles e aquelas que diariamente o produzem: os outros.

  • Caderno pedaggico, Lajeado, v. 7, n. 2 , p. 62-73, 2010 73

    FRANCINE NARA DE FREITAS

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