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  • DEBORAH FERNANDES NILSON

    GNEROS BRASILEIROS A QUATRO MOS PARA O INICIANTE DE PIANO:

    Um estudo de aspectos motivacionais, tcnicos e estilsticos

    em oito peas de Ricardo Nakamura Dissertao apresentada ao curso de Mestrado em Msica da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial obteno de grau de Mestre em Msica. Linha de Pesquisa: Educao Musical Orientadora: Prof. Dr. Maria Ceclia Cavalieri Frana

    Belo Horizonte Escola de Msica da UFMG

    2005

  • Ao meu marido Ricardo, responsvel pela essncia deste trabalho.

  • AGRADECIMENTOS

    Maria Ceclia Cavalieri Frana, por todo o envolvimento com este trabalho e pela orientao pertinente, carinhosa e incentivadora em todos os momentos. Ao meu marido Ricardo Nakamura, pela composio das obras que deram sentido a este trabalho e pelo apoio e amor incondicionais. Maria Betnia Parizzi, pela ateno e colaborao sempre especiais que permitiram a realizao desta pesquisa no Ncleo Villa-Lobos. Carla Reis, pela superviso das atividades e organizao das gravaes e entrevistas. Aos professores Joo Paulo, Carla, Alice, Lvia, Carolina, Mirna, Milene e Brbara por toda a disponibilidade, interesse e engajamento na preparao dos alunos. Aos alunos do Ncleo Villa-Lobos, pela participao e contribuio que engrandeceram este trabalho. Aos meus alunos de Braslia, pela participao, prestatividade e por me proporcionarem um constante aprendizado. Salomea Gandelman, Patrcia Santiago e Fausto Borm, pela disponibilidade e gentileza com que aceitaram compor a banca examinadora. Dbora Baio, pela colaborao, amizade e palavras de apoio. Raquel Nunes da Cunha e Grson Janczura, pela orientao e discusses na rea de Psicologia. Ao meu irmo Eduardo, pela traduo e pelo carinho. Maria Isabel Montandon, Alexandre Dias, Antoigne Espagno e Fernanda Rocha, pela disponibilizao de material bibliogrfico. Zuleika Rosa Guedes, Cristina Capparelli Gerling e Olinda Alessandrini, pela colaborao no levantamento de repertrio a quatro mos. Ao professor Maurcio Veloso, pela dedicao e amizade durante todo o curso. professora Elza Kazuko Gushikem, pela amizade e pelos ensinamentos em toda a minha formao musical. tia Liana, vov Lel (in memorian), tia Binoca e Ana Cristina, pela hospitalidade e carinho.

  • minha me e meu pai, pela compreenso e por terem me dado o suporte para trilhar o caminho que escolhi. Domingas, Daniela, Eduardo e Tain, pelo apoio e carinho. querida tia Iolanda (in memoriam), responsvel pelo meu ingresso no mundo musical. Edilene, pela prestatividade nas informaes e encaminhamentos acadmicos. Ktia, pela colaborao prestada na Biblioteca da Escola de Msica da UFMG. Aos familiares, amigos e funcionrios que direta ou indiretamente colaboraram para a realizao deste trabalho. A Deus, por me conceder o privilgio de fazer aquilo que gosto.

  • SUMRIO

    RESUMO .. 09

    ABSTRACT ...10

    INTRODUO ..... 11

    CAPTULO I O ENSINO DE PIANO PARA O INICIANTE:

    PRESSUPOSTOS IMPORTANTES ..... 13

    1.1. O nvel elementar ................................................... 14

    1.2. O modelo C(L)A(S)P .......................... 16

    1.2.1. Composio ................................................................ 16

    1.2.2. Estudos de Literatura .... 17

    1.2.3. Apreciao .............................. 18

    1.2.4. Tcnica ............................................. 20

    1.2.5. Performance ............................................................... 21

    1.3. Imitao .................................................................................... 23

    1.3.1. O ensino por imitao ................................................. 23

    1.3.2. Implicaes do conceito de Zona de

    Desenvolvimento Proximal para o ensino

    por imitao .......................................................................... 26

    1.4. Quatro mos..................................................... 28

    1.4.1. A importncia do repertrio a quatro mos para

    o iniciante ................................................................................ 28

    1.4.2. Consideraes sobre o levantamento de

    repertrio a quatro mos brasileiro ......................................... 30

    1.5. O papel da motivao no desenvolvimento.............................. 34

    CAPTULO II ASPECTOS HISTRICOS E ESTILSTICOS ... 38

    2.1. Choro ....................................................................................... 41

    2.1.1. Contexto histrico .................................................................. 41

    2.1.2. Influncias: polca e lundu............................................ 42

    2.1.3. O termo choro ............................................................. 43

  • 2.1.4. Os pioneiros ................................................................ 45

    2.1.5. Caractersticas musicais ............................................. 46

    2.2. Samba .52

    2.2.1. Contexto histrico ....................................................... 52

    2.2.2. O termo samba ........................................................... 53

    2.2.3. Influncias: lundu e maxixe ......................................... 55

    2.2.4. A polmica de Pelo Telefone....................................... 56

    2.2.5. Samba Tradicional ...................................................... 57

    2.2.6. Samba Carioca: a turma do Estcio ........................... 60

    2.2.7. Formas particulares de samba ................................... 61

    2.2.8. Caractersticas musicais ............................................. 64

    2.3. Baio .. 69

    2.3.1. Contexto histrico ....................................................... 69

    2.3.2. O termo baio ............................................................. 70

    2.3.3. O lanamento .............................................................. 71

    2.3.4. Caractersticas musicais ............................................. 73

    2.3.5. Perodo de ostracismo ................................................ 78

    2.4. Bossa Nova ......... 80

    2.4.1. Contexto histrico .................................................................. 80

    2.4.2. O termo bossa nova .................................................... 81

    2.4.5. O movimento ............................................................... 83

    2.4.6. Caractersticas musicais ............................................. 84

    2.4.7. A crise ......................................................................... 90

    CAPTULO III - ANLISE DAS PEAS ..................................................... 91

    3.1. O menino toca choro ................................................................ 92

    3.2. A menina tambm .................................................................... 95

    3.3. Ti-Dum-D ................................................................................ 98

    3.4. Bossa pra no chorar ............................................................... 102

    3.5. Rond em Caruaru ................................................................... 104

    3.6. Baio do Bode .......................................................................... 107

    3.7. Sambinha do Sapo ................................................................... 111

    3.8. Samba da Despedida ............................................................... 113

  • CAPTULO IV METODOLOGIA E RESULTADOS.................................. 117

    1 PARTE METODOLOGIA .......................................................... 118

    4.1. Objeto de estudo .. 118

    4.2. Delineamento da pesquisa ..... 119

    4.3. Problema ................................ 119

    4.4. Tcnica de coleta de dados ......................... 120

    4.5. Amostra .................................................................................... 120

    4.5.1. A escola e os professores ........................................... 120

    4.5.2. Os alunos .................................................................... 121

    4.6. Estudo Piloto ............ 121

    4.7. Apreciao ................................................................................ 122

    4.8. Estudo Principal ....... 123

    4.8.1. Distribuio das peas ................................................ 123

    4.8.2. Coleta de dados ........... 124

    4.9. Anlise de dados .. 124

    2 PARTE - RESULTADOS ............................................................. 125

    4.10. Entrevistas ...... 125

    4.10.1. Aspectos tcnico-musicais e processo de

    aprendizagem .......................................................................... 126

    4.10.2. Motivao........ 136

    4.10.3.O tocar a quatro mos. 139

    4.10.4. Apreciao musical ...... 141

    4.11.Gravaes ........... 145

    O menino toca choro ............................................................. 146

    A menina tambm ................................................................. 146

    Ti-Dum-D ............................................................................ 147

    Bossa pra no chorar ............................................................ 148

    Rond em Caruaru ............................................................... 149

    Baio do Bode ...................................................................... 149

    Sambinha do Sapo ............................................................... 150

    Samba da Despedida ........................................................... 150

  • CONCLUSES 153

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS. 156

    REFERNCIAS MUSICOGRFICAS ............ 162

    ANEXOS ... 163

    Anexo 1 - Levantamento de repertrio brasileiro

    a quatro mos .............................................................................. 164

    Anexo 2 - Roteiro de entrevista semi-estruturada/ alunos ... 175

    Anexo 3 - Roteiro de entrevista semi-estruturada/ professores ................. 176

    Anexo 4 - CD com gravaes dos alunos

  • RESUMO

    O presente estudo investiga a aplicabilidade de oito peas inditas para piano a

    quatro mos, escritas nos seguintes gneros: choro, samba, baio e bossa

    nova. Os preceitos do modelo C(L)A(S)P nortearam a pesquisa, que

    contemplou as modalidades de comportamento musical propostas por Keith

    Swanwick (1979), com exceo da composio, que fugia ao escopo deste

    estudo. Os resultados obtidos atestam o valor didtico, esttico e estilstico do

    material, discutem a validade do ensino por imitao e ouvido, as vantagens do

    tocar a quatro mos e a acessibilidade das peas. Alm disso, os resultados

    confirmam o valor dos gneros brasileiros, a importncia da apreciao, do

    conhecimento estilstico e o papel da motivao no processo de aprendizagem.

    A partir destes resultados acreditamos estar colaborando no s para o

    refinamento deste repertrio especfico, mas para a ampliao do universo

    musical de alunos e professores. Alm disso, a partir da constatao da

    carncia de material com uma proposta musicalmente rica e interessante que

    aproxime a criana da msica brasileira, esperamos que este estudo possa

    influenciar profissionais, compositores e educadores na criao e seleo de

    repertrio dessa natureza para iniciao ao instrumento.

    9

  • ABSTRACT This study investigates the applicability of an unreleased repertoire for four-

    hand piano composed according to four Brazilian music genres: choro, samba,

    baio and bossa nova. This applicability was observed based on the motivation,

    the validity of the four hands practice and the teaching and learning processes.

    This research had been guided by the C(L)A(S)P model and has contemplated

    the modalities of musical behaviour proposed by Swanwick (1979), except for

    composition, which was not the focus of the study. Results confirm the didactic,

    esthetic and stylistic value of the material, as well as the validity of teaching by

    imitation and by ear, the advantages of playing four hands, the accessibility of

    the pieces, the value of Brazilian musical styles, the importance of stylistic

    appreciation and knowledge and the role of motivation in the learning process.

    We aim at collaborating not only for the refinement of this specific repertoire, but

    also for expanding the musical universe of both students and teachers. Besides,

    from the finding that there is a lack musically rich and interesting materials that

    can approximate children to Brazilian music, we hope that this study may

    encourage professionals, composers and educators in creation and selection a

    repertoire of this nature for early instrumental teaching.

    10

  • INTRODUO

    A experincia com alunos iniciantes tem mostrado que a iniciao musical

    constitui um perodo crtico no qual devem ser construdos os pilares de sua

    formao musical. O direcionamento dado ao aluno nos primeiros anos

    determinante para seu desenvolvimento musical, o que torna ainda maior a

    responsabilidade do professor nessa fase. Como corresponder s expectativas

    do aluno em fazer msica de uma maneira plena? O que trabalhar nas

    primeiras aulas e que repertrio adotar?

    Um importante pressuposto da educao musical contempornea aponta para

    a necessidade de se promover um fazer musical ativo, rico e significativo

    atravs de um repertrio tecnicamente acessvel para fomentar o

    desenvolvimento musical do aluno. Observamos tendncia atual do repertrio

    de cunho didtico para iniciao ao piano em trazer acompanhamentos

    elaborados escritos para o professor - ou ainda playbacks para dar suporte

    rtmico, harmnico e estilstico ao aluno. A maioria dos materiais disponveis

    so estrangeiros ou em linguagem que segue a tradio da msica europia.

    Essa constatao nos encorajou a investir na pesquisa de um repertrio escrito

    em gneros brasileiros para iniciao ao piano, que propicie o conhecimento e,

    por conseguinte, a valorizao do nosso vocabulrio musical.

    Tomando tais premissas como ponto de partida, o presente estudo procurou

    investigar a aplicao de um repertrio de natureza didtica, escrito pelo

    compositor Ricardo Nakamura, em gneros brasileiros - choro, samba, baio e

    bossa nova - para a iniciao ao piano a quatro mos.

    O Captulo I aborda questes da iniciao musical delimitadas pelo modelo

    C(L)A(S)P: a composio (C), os estudos de literatura (L), a apreciao musical

    (A), a questo da tcnica (S) e a performance (P). Alm disso, este captulo

    aborda alguns aspectos da aprendizagem como o processo de ensino por

    imitao e ouvido e o papel da motivao no desenvolvimento musical. Por fim,

    discorremos sobre a importncia de tocar a quatro mos e tecemos algumas

    11

  • consideraes com base no levantamento de repertrio brasileiro a quatro

    mos.

    O Captulo II enfoca quatro gneros brasileiros - choro, samba, baio e bossa

    nova - pouco explorados no repertrio e no ensino pianstico. Aspectos

    histricos e estilsticos de cada um destes gneros so apresentados com base

    em uma ampla pesquisa bibliogrfica.

    O Captulo III traz a anlise do repertrio que foi objeto desta investigao

    composto pelo msico e professor Ricardo Nakamura, residente em Braslia.

    Tal anlise baseou-se em aspectos musicais, piansticos e estilsticos das

    peas, cuidadosamente elaborados para permitir uma experimentao prtica

    bastante abrangente.

    No Captulo IV apresentada a metodologia da pesquisa emprica do estudo,

    contemplando informaes acerca dos alunos e professores envolvidos, do

    material principal e de apoio e dos instrumentos de coleta e anlise de dados.

    Em seguida so apresentados os resultados das entrevistas e gravaes,

    analisados segundo os referenciais tericos do primeiro captulo.

    Por fim, so apresentadas as concluses e recomendaes para estudos

    futuros a partir das informaes levantadas na pesquisa empreendida. Como

    anexos so apresentados: um levantamento de repertrio brasileiro a quatro

    mos; os roteiros das entrevistas realizadas com professores e alunos, e um

    CD com as gravaes das quais estes participaram.

    Esperamos, com este estudo, no apenas levantar dados para refinar este

    repertrio especfico, mas tambm contribuir para ampliar o universo musical

    de alunos e professores, promovendo a prtica da msica brasileira.

    12

  • CAPTULO I

    O ENSINO DE PIANO PARA O INICIANTE:

    PRESSUPOSTOS IMPORTANTES

  • CAPTULO I

    O ENSINO DE PIANO PARA O INICIANTE:

    PRESSUPOSTOS IMPORTANTES

    1.1. O nvel elementar

    A delimitao de nveis para avaliar o grau de desenvolvimento do aluno de

    msica assunto controverso que tem sido abordado por vrios autores. Em

    relao ao estudo de piano, USZLER (1991, p. 214-215 e p. 227) considera

    que os primeiros dois anos de estudo compreendem o perodo em que a

    criana ir desenvolver noes bsicas de leitura - como ler primeira vista um

    repertrio simples contendo conceitos estudados nos mtodos - e desenvolver

    habilidades tcnicas preliminares, como postura correta do corpo, da posio

    dos braos, mos e dedos. Alm disso, a autora acrescenta que neste perodo

    o aluno deve ter desenvolvido habilidades funcionais bsicas como improvisar

    e harmonizar melodias simples e ter manipulado recursos expressivos

    elementares como dinmica forte e piano, crescendos, decrescendos e

    rallentando. Contudo, a autora faz a ressalva de que tais marcos no devem

    ser adotados com rigidez, devendo servir apenas como uma referncia para o

    professor.

    Por outro lado, para BASTIEN (apud HOLLERBACH, 2003, p. 45-46) o nvel

    elementar abrange os trs primeiros anos de estudo, em que tambm devem

    ser alcanados objetivos bem definidos. No primeiro ano, por exemplo, deve-se

    adquirir: posio arcada da mo, postura correta, braos soltos e grandes

    movimentos de msculos; toque legato e toque staccato; equilbrio entre a

    melodia e acompanhamento; movimento de pulso para frasear e teras em

    legato. Somente no segundo ano introduzida a noo de fraseado e

    dinmica e apenas no terceiro ano o aluno comea a usar o pedal, o que

    parece-nos equivocado, j que tais noes podem ser introduzidas desde o

    incio do ensino de piano. Alm disso, essa delimitao rgida subentende que

    14

  • os alunos tenham comportamentos e atitudes padronizados, tanto no domnio

    motor quanto no domnio cognitivo (HOLLERBACH, 2003, p. 45-46).

    Ao invs de delimitar o nvel elementar com base em anos de estudo,

    GANDELMAN (1997, p. 29) adota como referncia o livro Mikrokosmos v. I - de

    Bla Brtok - e subdivide este nvel em outros trs subnveis. No entanto, a

    autora ressalta, assim como Uszler, o alto grau de subjetividade desse tipo de

    avaliao, uma vez que h muitas variveis envolvidas no processo de ensino-

    aprendizagem, sobretudo no que diz respeito s particularidades de cada

    aluno. Tal ponto de vista compartilhado por REIS (apud HOLLERBACH,

    2003, p. 47): Considerando as diferenas e variaes individuais, a jornada

    pedaggica ocorrer em ritmo e forma diversos para cada aluno, dotado de

    capacidade e tendncias prprias. Sendo assim, o professor deve atender a

    cada aluno de maneira individualizada, conforme os talentos e dificuldades

    especficas de cada um (ibidem).

    Dessa maneira, consideramos que nenhum marco pode ser adotado com

    rigidez para a delimitao do nvel elementar. Apesar de que a amostragem

    desta pesquisa contempla alunos de sete a dez anos cuja mdia de estudo do

    instrumento de dois anos e meio, cabe ressaltar que, em funo das diversas

    variveis envolvidas, esta no uma demarcao rgida para o nvel

    elementar.

    15

  • 1.2. O modelo C(L)A(S)P

    As propostas pedaggicas modernas esto aliceradas numa formao

    musical abrangente do aluno e no apenas instrumental, o que traz implicaes

    importantes para o ensino de piano (REIS, 2000, p. 1). Ao contrrio da

    educao de natureza especialista, a orientao abrangente busca o

    desenvolvimento da compreenso musical do aluno atravs de atividades que

    lhe sejam acessveis e que devem estar integradas (FRANA, 2001).

    Em convergncia com as propostas de educao musical abrangente se insere

    o modelo C(L)A(S)P1, idealizado por Keith Swanwick, que prope a abordagem

    integrada das modalidades de composio, apreciao e performance,

    simbolizadas por CAP. Essas trs atividades - do ingls Composition, Audition e Performance - representam os parmetros centrais do modelo, j que esto relacionadas diretamente ao fazer musical ativo. Os estudos de literatura

    (Literature Studies) e as habilidades tcnicas (Skill Habilities) interagem com tais modalidades, servindo como suporte para tornar a relao das atividades

    anteriores com a msica mais consistente, o que justifica a colocao das

    mesmas entre parnteses na sigla (FRANA e SWANWICK, 2002).

    Segundo SWANWICK (1992, p. 46), cabe ao professor promover experincias

    que perpassem os cinco parmetros do modelo, ou pelo menos alguns deles

    para uma formao musical abrangente e consistente do aluno. A seguir

    abordaremos as especificidades de cada uma das modalidades.

    1.2.1. Composio

    Para SWANWICK (1992, p. 43), composio o ato de organizar idias

    musicais a partir de materiais sonoros de uma maneira expressiva. Nesse

    sentido, a composio no se limita a criaes que foram notadas em alguma

    forma de escrita musical, mas abrange todas as formas de inveno musical,

    incluindo a improvisao (ibidem). 1 Este modelo foi traduzido para o portugus como (T)EC(L)A, cujas letras representam respectivamente tcnica, execuo, estudos acadmicos e apreciao. No entanto, segundo FRANA e SWANWICK (2002), essa traduo distorce o princpio da hierarquia entre as atividades propostas por Swanwick.

    16

  • Esta modalidade o principal pilar do modelo C(L)A(S)P, o que explica sua

    colocao em primeiro lugar na sigla. Uma das vantagens de tal prtica o

    contato direto do aluno com o material sonoro, que de incio se manifestar

    pela experimentao dos sons, de modo a permitir que a criana descubra

    possibilidades expressivas dos sons e perceba como os elementos musicais

    podem ser organizados (FRANA e SWANWICK, 2002). Nesse sentido, a

    composio ser um importante indicador da compreenso musical do aluno.

    Alm disso, quando o aluno compe, a demanda tcnica da atividade

    controlada pelo prprio, j que a manipulao do instrumento ser realizada

    dentro das suas possibilidades tcnicas. A esse respeito FRANA (ibidem)

    observa:

    Ao tocarem suas peas, os alunos tm que descobrir a maneira mais eficaz de abordar o instrumento para expressar sua concepo musical. Portanto, ela proporciona um desenvolvimento tcnico com um propsito musical direto, oferecendo uma contribuio preciosa para o desenvolvimento musical das crianas.

    Dessa maneira, a criana poder dar vazo sua prpria voz, podendo tomar

    decises expressivas, o que representa uma das maiores contribuies da

    composio para o desenvolvimento musical do aluno (ibidem). Contudo, vale

    salientar que a pesquisa empreendida no ir contemplar esta modalidade, que

    foge proposta central deste estudo. No entanto, entendemos que o contato

    com a linguagem de gneros brasileiros promovido pela pesquisa emprica

    realizada possa apontar para possibilidades de criao sobre esse material

    sonoro to pouco explorado no ensino do piano.

    1.2.2. Estudos de literatura

    No modelo C(L)A(S)P, Swanwick aponta para a importncia dos estudos de

    literatura como atividade de suporte s modalidades centrais. Segundo este

    autor (1992, p. 45), os estudos de literatura abarcam o conhecimento de

    partituras, performances, literatura histrica, musicolgica e crtica a respeito

    de msica. A importncia desta atividade dar respaldo interpretao atravs

    do conhecimento e anlise do contexto que envolve a obra, ou seja, aspectos

    histricos, estilsticos e analticos que podero contribuir para a compreenso

    do discurso musical do compositor e do estilo estudado. A importncia dos

    17

  • estudos de literatura tambm reforada por GANDELMAN (apud

    HOLLERBACH, 2003, p. 29): a interpretao de uma partitura, e mesmo sua

    performance, depende de vivncias prvias informadas e conhecimentos

    analticos e histrico-estilsticos.

    Em nota explicativa introdutria de seus 12 Exerccios Brasileiros, escritos em

    1928, GALLET (p. 1) j ressaltava a importncia do professor conhecer os

    estilos a serem tocados, ou seja, os estudos de literatura: indispensvel que

    o professor tenha antes [de tocar] conhecimento exato do estilo de cada

    dana ou cano [...], o que justifica as explicaes que ele coloca como

    indicaes ilustrativas para cada gnero abordado. O compositor acrescenta

    que a execuo que se restrinja aos valores escritos, com desconhecimento

    do estilo de cada um dos exerccios, deixa de ser brasileira (ibidem).

    Portanto, como esta pesquisa aborda gneros brasileiros pouco explorados no

    ensino de piano, entendemos que uma abordagem mais aprofundada dos

    mesmos faz-se necessria. Em funo disso, reservamos o segundo captulo

    especialmente para a abordagem dos gneros envolvidos neste estudo.

    1.2.3. Apreciao

    Outra modalidade do modelo C(L)A(S)P a apreciao, considerada um dos

    parmetros centrais da experincia musical, uma vez que ouvir uma premissa

    fundamental para a percepo do fenmeno sonoro, ou seja, da msica

    (FRANA e SWANWICK, 2002). O ouvir est presente em qualquer

    experincia musical ativa e pode ser um meio de monitorao dos resultados

    finais das outras atividades ou um objetivo em si mesmo, o que representa a

    apreciao musical.

    No entanto, a considerao de que a apreciao uma experincia musical

    ativa alvo de questionamentos, j que aparentemente ela a mais passiva

    das atividades (ibidem). Nesse sentido, SWANWICK (1992, p. 43) esclarece

    que mais do que uma simples escuta, a apreciao uma forma de percepo

    em que o ouvinte deve estar empenhado na escuta. Em outras palavras,

    18

  • quando h um comprometimento do ouvinte este processo se torna ativo, uma

    vez que sua mente e esprito so mobilizados (FRANA e SWANWICK, 2002).

    Estes autores defendem que a apreciao deve conduzir os alunos a

    focalizarem os materiais sonoros, efeitos, gestos expressivos e estrutura da

    pea, permitindo, dessa forma, a compreenso de como esses elementos so

    combinados. Dessa maneira, a apreciao torna-se uma importante

    ferramenta para o desenvolvimento musical do aluno (ibidem).

    FREIRE (2001, p. 70) compartilha a idia de que a atividade de escuta deve

    conferir sentido ao material sonoro, mas observa que a orientao adequada

    desta atividade no tem sido observada com constncia no ensino da msica.

    A autora coloca:

    [...] na maioria das situaes, a apreciao musical ocupa pouco espao [no ensino], utiliza repertrio restrito e discriminatrio e no utilizada como efetiva atividade de construo de conhecimento musical, mas como atividade ilustrativa, superficial e perifrica s demais atividades de educao musical (ibidem).

    A autora (ibidem, p. 71) considera que, como atividade orientada, a apreciao

    deve contemplar repertrios que apresentem materiais musicais contrastantes

    que permitam ao aluno a elaborao de conceitos; a compreenso dos

    procedimentos estruturais das obras; a utilizao da escuta como parmetro

    para a interpretao e criao de outras obras e a compreenso das

    diversidades culturais e musicais. Dessa maneira, a autora acredita estar

    contribuindo tambm para a formao de uma viso crtica dos alunos, para a

    abordagem integrada das atividades musicais e para a ampliao do universo

    musical dos mesmos.

    No que diz respeito a esta pesquisa, alm do enriquecimento do vocabulrio

    musical do aluno, consideramos que a apreciao de obras nos gneros

    brasileiros escolhidos possa contribuir para a apreenso de sutilezas e

    nuances que caracterizam as peas estilisticamente2, uma vez que a grafia

    2 A percepo do senso estilstico mais uma contribuies da apreciao apontada por SWANWICK, (1992, p. 43).

    19

  • musical no comporta todas as nuances da msica. Como observa SVE

    (1999, p. 11):

    Na msica popular, principalmente [...] permite-se grande liberdade de interpretao. Com relao s suas partituras, podemos dizer que o que se escreve nem sempre se toca - a notao muitas vezes corresponde apenas a um esboo ou proposta.

    1.2.4. Tcnica As habilidades tcnicas (S) so representadas no modelo C(L)A(S)P entre parnteses como indicativo de uma atividade perifrica, que serve de suporte

    s outras modalidades e que a elas deve estar integrada. Segundo

    SWANWICK (1992, p. 45), o termo habilidades tcnicas envolve controle

    tcnico, tocar em conjunto, manipulao do som com aparelhos eletrnicos e

    outros aparatos, desenvolvimento da percepo auditiva, leitura primeira vista

    e fluncia na notao. FRANA (2000, p. 52) define as habilidades tcnicas

    relacionando-as diretamente com a compreenso musical: as habilidades

    tcnicas se referem competncia funcional para realizar atividades

    especficas, isto , ela implica em procedimentos prticos pelos quais a

    concepo musical pode ser realizada, demonstrada e avaliada. Portanto, a

    tcnica seria um instrumento da musicalidade.

    A partir dessas concepes, notamos que atualmente este termo abrangente,

    em contraposio com a viso que restringia a tcnica ao aspecto motor - que

    perdurou por muito tempo. Tal viso pode ser ilustrada pela definio de

    GIESEKING e LEIMER (1938, p. 14): tcnica o domnio dos dedos no

    sentido de agilidade, execuo rpida de passagens difceis e segurana de

    ataque. USZLER (1991, p. 214) observa, no entanto, que a tcnica deve ser

    adquirida com o propsito de se fazer msica: deve ser um meio para um fim,

    e no um fim em si mesmo. Nesse sentido, a excelncia nas habilidades

    motoras no corresponde necessariamente a um indicativo de desenvolvimento

    musical, mas se a tcnica no for acessvel a compreenso musical pode ficar

    comprometida (FRANA, 2000, p. 57).

    Portanto, na abordagem do fazer musical a tcnica deve ser controlada para

    que no sobreponha o desenvolvimento da musicalidade: tcnica pode ser

    20

  • fazer o que voc pode com o que voc tem (PAYNE, apud FRANA, 2001, p.

    40). Segundo FRANA (ibidem), possvel desenvolver musicalmente o aluno

    mesmo em peas tecnicamente simples, mas musicalmente ricas. Tocando

    peas acessveis, o aluno pode operar no seu nvel timo de desenvolvimento

    (ou perto dele) e pode exercer seu julgamento, tomar decises e demonstrar

    uma qualidade de pensamento musical mais sofisticado. Dessa forma, a

    criana desenvolve melhor sua compreenso musical, que pode ser transferida

    depois para peas mais avanadas (ibidem).

    1.2.5. Performance A ltima modalidade central do modelo C(L)A(S)P a performance, entendida

    como a comunicao da msica atravs de uma presena real (SWANWICK,

    19992, p. 44), em que o intrprete molda e recria a obra conforme suas

    decises (FRANA, 1995, p. 18). Tradicionalmente o ensino do instrumento -

    educao especialista - tende a priorizar esta atividade com nfase no

    desenvolvimento tcnico, mas a educao musical abrangente procura dosar

    essa tendncia equilibrando o peso da performance com as outras

    modalidades de uma maneira interativa (FRANA e SWANWICK, 2002). As

    duas correntes tm diferentes objetivos: a primeira busca um alto nvel de

    destreza tcnica, enquanto a segunda busca promover um fazer musical ativo

    e criativo (REIMER, apud FRANA e SWANWICK, 2002).

    Segundo FRANA e SWANWICK (ibidem), esse enfoque demasiadamente

    tcnico do ensino tradicional traz algumas implicaes para a performance:

    muitas vezes ela soa mecnica, sem sentido musical, sem caracterizao

    estilstica, refinamento expressivo e coerncia. Em seguida os autores

    esclarecem que tambm importante que o repertrio apresente desafios

    tcnicos para que os alunos se desenvolvam nesse sentido, mas

    concomitantemente necessrio trabalhar peas acessveis que permitam ao

    aluno interpret-las com expresso, toques imaginativos e estilo (ibidem).

    Portanto, para que a performance seja uma experincia musical significativa,

    deve-se promover o engajamento e envolvimento da criana com a msica a

    21

  • partir de atividades que lhe sejam acessveis, sem perder de vista que o

    principal objetivo alcanar o nvel de qualidade artstica mais alto possvel

    (ibidem). Por fim, devemos ressaltar que a integrao entre as modalidades

    propostas por Swanwick iro enriquecer umas s outras, promovendo um

    desenvolvimento musical mais rico e efetivo dos alunos.

    22

  • 1.3. Imitao

    1.3.1. O ensino por imitao

    Um tema de discusso freqente, sobretudo quando se fala em iniciao

    musical, a questo da leitura. Por muito tempo o ensino da msica teve como

    foco a leitura musical, como observa FRANA (2000, p. 59): Observamos que

    existe um fascnio envolvendo a notao musical, e que a iniciao escrita

    representa uma grande aquisio para os alunos. O poder da notao tal que

    esta logo passa a dominar o processo de ensino instrumental. Essa viso se

    refletiu no ensino tradicional do piano e notada em vrios mtodos, que ao

    condicionarem a prtica do instrumento leitura muitas vezes tornavam esse

    processo, alm de pouco musical, rido e desmotivante para o aluno

    (BOTELHO, 2002, p. 8).

    As contribuies metodolgicas de pedagogos do sculo XX, tais como

    Dalcroze, Willems, Orff e posteriormente, Schafer, Paynter e outros,

    demostraram a importncia de experincias musicais ativas, isto , atividades

    em que o aluno deve primeiro vivenciar a msica para depois ser introduzido

    representao grfica dos conceitos musicais. A partir dessa viso, comeam a ser exploradas atividades como improvisar, tocar de ouvido e por imitao, que

    possibilitam a associao dos aspectos ttil, auditivo e visual, primeiramente de

    forma intuitiva e depois racional (BOTELHO, 2002, p. 39). A esse respeito

    MONTANDON comenta:

    A experincia concreta deve preceder a aquisio de conceitos. A aprendizagem viria como consequncia da observao e anlise dos processos e procedimentos utilizados na ao. Isso porque a utilizao dos sentidos - visual, ttil e cinestsico nas experincias musicais ativa a percepo que, por sua vez, imprescindvel formao de conceitos. (MONTANDON, 1995, p. 71-72)

    Dessa maneira, as prticas de improvisar, tocar de ouvido ou por imitao3

    passaram a ter tanta importncia quanto a leitura no ensino contemporneo,

    favorecendo o fazer musical desde o primeiro contato do aluno com o 3 O processo de aprendizado por imitao tambm inclui o ouvido, pois corresponde imitao visual e auditiva.

    23

  • instrumento. FRANA (2000, p. 59) destaca as vantagens de tais atividades

    em relao leitura:

    Embora a leitura musical seja um aspecto imprescindvel do aprendizado musical, levar anos at que os alunos sejam capazes de ler e tocar msica de forma to rica e interessante rtmica e melodicamente, com to ampla tessitura e textura, quanto aquilo que ele pode realizar tocando de ouvido, por imitao e, principalmente, improvisando.

    Acreditamos que essa abordagem vem ao encontro da aspirao principal dos

    alunos ao procurarem uma aula de msica: expressar-se musicalmente desde

    a primeira aula. A partir de pesquisa realizada com professores de iniciantes,

    HOLLERBACH (2003) observou, dentre outros aspectos, que "ao longo do

    trabalho de iniciao ao piano, percebe-se um perodo em que a expresso

    musical, facilmente desenvolvida no repertrio por imitao, parece ficar

    comprometida quando da leitura musical", o que nossa experincia docente

    tambm demonstra. A autora acrescenta que, em funo disso, os professores

    tm se utilizado do ensino por imitao para proporcionar a prtica da

    performance desde o princpio do aprendizado:

    O fazer msica desde o incio do aprendizado uma preocupao constante entre os professores. Os professores reconhecem que tocar msica por imitao facilita a aprendizagem, quando a vivncia se mostra mais eficiente para a fluncia na interpretao do que apenas o intelecto, isto , aprender atravs de conceitos. (HOLLERBACH, 2003, p. 87)

    A idia de que experincias prticas como o ensino por imitao devem

    preceder a leitura musical pode ser ilustrada, por exemplo, pelo Mtodo Suzuki.

    De acordo com SUZUKI (1983), assim como uma criana aprende primeiro a

    falar e depois a ler e escrever, primeiro escutando e depois imitando, ela

    tambm pode aprender a tocar um instrumento por imitao, o que a base de

    seu mtodo. Essa tendncia tambm tem sido observada em alguns mtodos

    brasileiros de iniciao ao piano, como os livros Iniciao ao piano e teclado,

    de Antnio Adolfo (1994) e Piano 1: arranjos e atividades - de Ramos e Marino

    (2001) que, alm de outras atividades, incluem a prtica de tocar por imitao.

    Nas consideraes iniciais deste ltimo livro, as autoras destacam algumas

    vantagens do ensino por imitao, como o conhecimento e o contato do aluno

    com o instrumento e o desenvolvimento da capacidade de concentrao e da

    coordenao motora (RAMOS e MARINO, 2001, p. xv).

    24

  • Alm dos aspectos observados, tocar por imitao tambm contribui para a

    apreenso de certos detalhes interpretativos que a partitura no comporta, pois

    a notao musical limitada, como confirmam vrios autores. MAGNANI

    (1989, p. 63), por exemplo, observa que o sistema grfico no capaz de

    expressar todas as nuances de interpretao, como o rubato, a dinmica e o

    diferentes tipos de toque, que variam conforme o estilo ou o contexto.

    BOTELHO (2000, p. 51) cita outros exemplos de personalidades que se

    pronunciaram quanto inconsistncia da grafia musical em relao

    interpretao: Liszt afirmava que certas coisas, alis, o essencial, no se pode

    colocar no papel, Schnabel confirmava que regras no escritas governam

    nuances de dinmica e ritmo e Horowitz, por fim, ressaltava que se deve olhar

    para as notas no papel para saber onde devem ser tocadas, mas para

    encontrar o seu significado, deve-se olhar atrs delas (ibidem).

    No que diz respeito msica brasileira, tais consideraes tambm so

    vlidas: a partitura no consegue traduzir todas as sutilezas que conferem

    msica brasileira seu "sotaque" e "gingado" caractersticos. Como SVE (1999,

    p.11) colocou, na msica popular "o que se escreve nem sempre se toca". Em

    outras palavras, a msica brasileira pode perder suas caractersticas mais

    tpicas se a execuo for feita exatamente como indica a grafia. Como conclui

    GALLET (1928, p. 1), "a execuo que se restrinja aos valores escritos, com

    desconhecimento do estilo [...] deixa de ser brasileira".

    Outro aspecto a ser considerado a favor do ensino por imitao que a escrita

    dos ritmos brasileiros bastante complexa se comparada ao nvel de leitura

    dos iniciantes. Portanto, o ensino por imitao torna-se uma importante opo

    medida que coloca ao alcance do aluno um repertrio que ele capaz de

    tocar, mas cuja leitura seria complexa, como confirma REIS (2000, p. 29):

    Do ponto de vista da leitura musical, o repertrio elementar se caracteriza por sua simplicidade rtmica que envolve princpios imprescindveis para futuras elaboraes rtmicas. Porm, a criana capaz de realizar ritmos mais complexos em peas aprendidas por imitao ou de ouvido. timos exemplos de peas que proporcionam este tipo de experincia se encontram na msica popular brasileira.

    25

  • Finalmente, vale salientar que o desejo de emulao, ou seja, de copiar o

    desempenho dos mais experientes, atesta a importncia do papel do professor

    como referncia musical para os alunos (SWANWICK, 1994, p. 151). Em

    funo disso, fundamental que o professor seja um bom modelo para o aluno

    (USZLER, 1991, p. 69), o que nos conduz ao prximo assunto.

    1.3.2. Implicaes da Zona de Desenvolvimento Proximal para o ensino por imitao O psiclogo bielo-russo Lev Vygotsky (1896-1934) acreditava que o

    desenvolvimento humano uma construo cultural (OLIVEIRA, 1992, p. 24) e

    defendia a importncia da interao social para o desenvolvimento da criana.

    Segundo a concepo deste autor a aprendizagem um processo social, ou

    seja, que ocorre por influncia de outras pessoas. Para Vygotsky, os estmulos

    do ambiente, da cultura e de uma educao apropriada elevaro o padro de

    aprendizagem do aluno. Portanto, para este autor, o sujeito do conhecimento

    no apenas passivo, regulando foras externas que o vo moldando; no

    somente ativo, regulando foras internas; ele interativo.4 Desta forma,

    verificamos o quanto a aprendizagem interativa permite que o desenvolvimento

    avance.

    Vygotsky teorizou os seguintes conceitos: nvel de desenvolvimento real, nvel de desenvolvimento potencial e nvel de desenvolvimento proximal. O nvel de desenvolvimento real refere-se capacidade do sujeito realizar

    tarefas de forma independente, resultado de um processo de desenvolvimento

    j completado e consolidado. O segundo, denominado nvel de

    desenvolvimento potencial determinado atravs da soluo de problemas

    sob a orientao de um adulto ou em colaborao de pessoas mais

    experientes, onde se enquadra a figura do professor. Alguns autores

    consideram o conceito de desenvolvimento proximal sinnimo de

    desenvolvimento potencial. No entanto, em outras fontes a distncia entre o

    nvel de desenvolvimento real e o nvel de desenvolvimento potencial que

    4 www.rio.rj.gov.br/multirio/cime

    26

  • define a zona de desenvolvimento proximal. A zona de desenvolvimento proximal a discrepncia entre a performance da criana por si s e o seu

    nvel de performance quando ela recebe instruo apropriada (HARGREAVES

    e ZIMMERMAN, 1992, p. 379).

    Este conceito demonstra a importncia das trocas interpessoais na construo

    do conhecimento, que traz vrias implicaes para o processo de

    aprendizagem. Uma delas a considerao de que o que a criana realiza com

    auxlio de algum mais experiente hoje, no futuro realizar com autonomia

    (NEGRINE, 1994, p. 25). Em outras palavras, atravs de experincias de

    aprendizagem compartilhadas atua-se nessa zona de desenvolvimento

    proximal, de modo que funes ainda no consolidadas venham a

    amadurecer. Outra implicao a de que o professor desempenha o papel de

    mediador entre o aluno e o conhecimento, e no apenas o de mero transmissor

    de conhecimentos. A aprendizagem no seria, ento, um ato solitrio, mas de

    interao com o outro.

    O conceito de zona de desenvolvimento proximal aplica-se, naturalmente,

    tambm educao musical. Acreditamos que o professor deve procurar

    fomentar o desenvolvimento musical do aluno para que ele possa ter um

    desempenho mais prximo do seu nvel timo. Segundo Vygotsky, o primeiro

    contato da criana com novas atividades, habilidades ou informaes deve ter

    a participao de um adulto. Ao internalizar um procedimento, a criana se

    apropria dele, tornando-o voluntrio e independente (REVISTA NOVA

    ESCOLA, 2004, p. 59). Nesse contexto se insere a relevncia da explorao do

    repertrio a quatro mos com o iniciante de piano, pois o professor pode optar

    por peas tecnicamente acessveis ao aluno com o suporte rtmico e harmnico

    do acompanhamento realizado pelo professor ou de um colega,

    proporcionando um resultado sonoro musicalmente mais rico e elaborado do

    que o repertrio solo. As peas a quatro mos so, nesse sentido, apropriadas

    para desenvolver a compreenso musical dos alunos numa fase de iniciao

    musical ao piano. A esse respeito falaremos na prxima seo.

    27

  • 1. 4. Quatro Mos 1.4.1. A importncia do repertrio a quatro mos para o iniciante Tocar a quatro mos altamente enriquecedor enquanto experincia musical,

    sobretudo para o aluno iniciante. A principal implicao positiva desse tipo de

    repertrio para a criana poder fazer msica de uma maneira plena desde o

    princpio do aprendizado, o que no repertrio solo no seria possvel devido s

    limitaes do aluno nessa fase. Em funo disso, a tendncia dos novos

    materiais didticos tem sido trazer acompanhamentos para o professor de

    modo a facilitar a aprendizagem pianstica sem desconsiderar os aspectos

    cognitivos, psicomotores e afetivos especficos que a envolvem (REIS, 2000,

    p. 23). Alm dos acompanhamentos para o professor, muitas vezes estes

    materiais tambm trazem playbacks para o aluno tocar em casa.

    USZLER (1991, p. 66) afirma que tal tipo de experincia pode colaborar

    substancialmente para a motivao, o que confirmado por CAMP (s.d., p. 91).

    No entanto, este autor observa que o interesse e o engajamento do aluno na

    execuo do repertrio a quatro mos, quando feito por leitura, s so

    mantidos quando esta lhe acessvel. Segundo ele, se houver qualquer

    empecilho a atividade deixa de ser prazerosa para o aluno, impedindo o seu

    envolvimento e uma performance musicalmente rica. Entendemos que tal

    observao pode ser estendida igualmente tcnica que, assim como no

    repertrio solo, pode ser um entrave para uma performance musicalmente rica

    e consistente.

    Alm da motivao, vrios autores apontam para a vantagem do

    desenvolvimento rtmico e de pulsao (ibidem), pois o aluno aprende a sentir

    a pulsao dada e reforada pelo acompanhamento do professor (SAMPAIO,

    2001, p. 80). Outra contribuio de tocar a quatro mos o suporte harmnico

    que ir elevar a performance do aluno, alm de enriquecer a escuta

    harmnica (ibidem, p. 82). Este autor (ibidem, p. 88) destaca que

    principalmente na iniciao musical o papel desempenhado pelo professor de

    extrema relevncia pois ele quem d apoio a prtica musical do aluno,

    28

  • incentiva-o a tomar parte nas atividades em conjunto e evita as inibies

    comuns aos que esto aprendendo o instrumento.

    As vantagens de se trabalhar o repertrio a quatro mos especialmente com o

    aluno iniciante tambm so destacadas nos prefcios ou notas iniciais de

    alguns livros que contm esse tipo de msica. DRUMOND (1981, Prefcio de

    Brinquedos de Roda) ressalta:

    A prtica a quatro mos permite maior interesse e participao do aluno em aula; respeito ao trabalho do outro; desenvolvimento do senso crtico e conscincia da atividade em grupo, alm de evitar dificuldades camersticas que quase sempre constituem um choque pela falta anterior de trabalho coletivo.

    AQUINO (2002, p. 2) tambm enfatiza a importncia da prtica de msica de

    cmara na iniciao musical: Ao professor foi destinado o secondo, estruturado com bastante desenvoltura tanto em seu aspecto rtimico, quanto harmnico. O primo foi concebido de forma a apresentar-se bastante simples quanto abordagem tcnica, porm desafiador quanto ao aspecto interpretativo. Esperamos, com esse trabalho, estimular o cultivo da msica de cmera desde o incio do aprendizado musical.

    SUZIGAN (1982, Msicas Folclricas brasileiras para dois pianos, p. 2)

    acrescenta outros benefcios relacionados msica de cmara: A parte do professor foi escrita para que o aluno desde o incio: aprenda a tocar em grupo; desenvolva a condio de tocar sem se atrapalhar, quando outra pessoa toca junto; saiba exatamente, quando deve tocar ou esperar; aprenda a ouvir, tambm, o que a outra pessoa est tocando e oua sons, que, nesta fase inicial, ainda no tem condies de reproduzir sozinha no instrumento.

    No entanto, apesar de todas as vantagens do tocar a quatro mos, podemos

    considerar que em se tratando de repertrio brasileiro h uma carncia de

    material para o iniciante, tambm observada por SAMPAIO (2001, p. 123), o

    que nos leva ao prximo tpico.

    29

  • 1.4.2. Consideraes sobre o levantamento de repertrio brasileiro a quatro mos Para o levantamento5, em questo o repertrio pesquisado foi agrupado em

    folclrico, diverso e erudito, em forma de lbuns ou de partituras avulsas.

    O agrupamento diverso refere-se a lbuns ou obras isoladas de estilos

    variados que foram propostos para o iniciante e cujos autores so pouco

    conhecidos. O agrupamento erudito diz respeito a obras de compositores de

    relativa representatividade e de compositores reconhecidos, sendo que a

    maioria teve suas obras catalogadas.

    Como uma primeira etapa deste apanhado geral foram consultados catlogos e

    Guias Temticos de editoras de msica, como a Ricordi e a Irmos Vitale e

    catlogos especficos de compositores brasileiros, como o catlogo geral

    intitulado 36 Compositores Brasileiros: obras para piano (1950/1988), de

    Salomea Gandelman. Alm destes, foram consultados os catlogos individuais

    da srie Compositores Brasileiros, do Ministrio das Relaes Exteriores

    (edies datadas de 1975 a 1979).

    Um estudo inicial revelou que estes catlogos no abarcam todo o repertrio

    brasileiro existente e que h dados incompletos ou desatualizados. Da Editora

    Ricordi, por exemplo, foi pesquisado o GuiaTemtico n.1 (1978) e o catlogo

    geral de obras mais recente desta editora (s/d) e foram observadas que nem

    todas as obras brasileiras que constavam no guia estavam descritas no

    catlogo, provavelmente pelo fato destas peas no serem mais editadas.

    Em relao aos catlogos do Ministrio das Relaes Exteriores, apesar de

    constituir a nica catalogao de obras de alguns compositores, os dados so

    muito antigos (1975-1979), podendo provavelmente, haver muitas obras

    posteriores destes compositores das quais no temos conhecimento. Outro

    dado relevante o fato de haver um grande nmero de obras manuscritas

    listadas neste catlogo que podem ter sido editadas posteriormente. Por fim,

    em relao a esse material, tambm no h como identificar o nvel de 5 O levantamento completo apresentado no anexo 1.

    30

  • dificuldade das peas catalogadas por no haver nenhuma especificao no

    catlogo e pelo fato de muitas delas no estarem disponveis comercialmente.

    Por outro lado, o livro 36 Compositores Brasileiros: obras para piano

    (1950/1988) (GANDELMAN, 1997) mostrou-se completo e detalhado na

    descrio dos nveis de dificuldade das peas, o que no acontece com os

    outros catlogos. Entretanto, no h um catlogo similar a esse no que diz

    respeito s obras de compositores brasileiros anteriores a 1950. Nesta rea foi

    encontrado o livro O piano na msica brasileira: seus compositores dos

    primrdios at 1950, de Zuleika Rosa Guedes e Maria Abreu, que infelizmente

    no cataloga as peas a 4 mos - somente piano-solo.

    Portanto, para complementar esses dados fez-se necessria a procura em

    outras fontes, como: lojas de msica (principalmente a Livraria Musimed/

    Braslia); bibliotecas (Biblioteca da UnB e da Escola de Msica da UFMG);

    escolas de msica , internet, professores e colegas.

    Alguns aspectos levantados a partir desta pesquisa foram: a acessibilidade das

    msicas para o iniciante, se o repertrio foi escrito em gneros ou estilos da

    msica brasileira e a qualidade musical e esttica do material.

    Sobre o primeiro aspecto - a acessibilidade das peas - a pesquisa apontou

    que grande parte do repertrio a quatro mos observado no apropriado para

    o iniciante, mesmo alguns materiais que possuem indicao de pea fcil ou

    para o iniciante. Como exemplo, podemos citar o livro Msica Brasileira para

    o Iniciante, de Francisca Aquino, a pea Ciranda, Cirandinha, de Amlia de

    Mesquita e a pea Faceirice, de Barrozo Neto. Tais partituras exemplificam a

    subjetividade de classificaes como iniciante, elementar ou pea fcil.

    Alm disso, foi encontrado nesta lista um nmero considervel de peas que

    no se caracterizam como brasileiras, ou seja, que no esto escritas em

    gneros brasileiros nem em linguagem estilstica caracterstica da msica

    brasileira. Como exemplos podemos citar os livros Meu Piano Divertido vol. 1

    e 2, de Alice Botelho; Msicas para piano a 2 e a 4 mos, de Aparecida Delay e

    31

  • Bernardo Faulin e peas avulsas como Alegres Frias (Polca), de Zina Coelho

    Jnior, Brincando, Palhacinho Tarantela e Valsinha, de Diva Lyra Coelho e a

    maioria das peas de Salvador Callia. Vale ressaltar que a maioria das obras

    diversas podem se enquadrar nesta categoria.

    Tambm foram encontrados materiais acessveis ao aluno mas musicalmente

    inconsistentes, que ilustram o terceiro aspecto - a qualidade musical e esttica

    do material. Neste grupo podemos inserir os livros Meu Piano Divertido (Alice

    Botelho); Dois Anjinhos ao Piano (Mrio Mascarenhas); Msicas para piano a 2

    e a 4 mos (Aparecida Delay e Bernardo Faulin), dentre vrios outros. Como

    ilustrao do que seria um material inconsistente, tais livros apresentam

    sempre encadeamentos simples e previsveis (I-IV-V-I ou V-I) sempre em

    padres quadrados de acompanhamento.

    Alm disso, h vrios livros listados em anexo que no so exclusivos de

    quatro mos, como Ciranda dos Dez Dedinhos, Carmem Xavier e Maria

    Apparecida Vianna; Piano 1: arranjos e atividades, de Gislene Marino e Ana

    Consuelo Ramos; Iniciao ao piano e teclado, de Antonio Adolfo; Educao

    Musical atravs do teclado, de Maria de Lourdes Junqueira e Cacilda Borges

    Barbosa; e Divertimentos, de Laura Longo.

    Observou-se, tambm, que uma parte representativa dos livros de piano que

    apresentam msicas a quatro mos acessveis criana so de msica

    folclrica. Como exemplo podemos citar os livros Msicas Folclricas

    brasileiras para dois pianos, Maria Lucia Cruz Suzigan; Ciranda dos Dez

    Dedinhos, de Carmem Xavier e Maria Apparecida Vianna e Brinquedos de

    Roda, de Elvira Drumond.

    Com exceo desses lbuns de canes folclricas, descritos no anexo, raro

    encontrar material a quatro mos apropriado para a criana que possa ser

    caracterizado como brasileiro, principalmente contendo gneros populares da

    msica brasileira, como baio, samba, bossa nova e choro.

    32

  • Por fim, a pesquisa apontou para um indce quase nulo de obras compostas

    para o iniciante de piano entre os compositores brasileiros eruditos. Tal fato

    pode ser observado, por exemplo, pela prpria classificao feita por Salomea

    Gandelman em seu catlogo: apenas o secondo da pea Seresta op. 1, de

    Aylton Escobar, foi classificada como nvel elementar I6. Dentre as obras

    consultadas dos compositores eruditos, apenas os 12 Exerccios Brasileiros,

    de Luciano Gallet, possuem uma proposta similar a do material que objeto

    desta pesquisa, tanto na caracterizao dos estilos brasileiros como na

    acessibilidade da parte do aluno.

    6 Como j foi colocado no tpico 1.1, a autora utiliza o livro Mikrokosmos, v. 1, de Bla Bartk como referncia de complexidade para este nvel.

    33

  • 1.5. O papel da motivao no desenvolvimento

    Piaget considerava que a motivao o motor da ao (apud REIS, 2000, p.

    18). Esta viso partilhada tambm por ORMROD (1995, p. 412), segundo a

    qual a motivao a funo que nos leva a continuar o que estamos fazendo

    durante o processo de aprendizagem ou ainda um estado interno que nos

    impulsiona ao, a algumas direes em particular, e nos mantm engajados

    em certas atividades. A autora relaciona o aprendizado com a motivao

    esclarecendo que o primeiro nos permite adquirir novos conhecimentos e

    habilidades enquanto o segundo produz o mpeto para demonstrar as coisas

    que aprendemos (ibidem). Por fim, ela acrescenta que a motivao favorece o

    educando a estudar e aumenta a probabilidade dele prestar ateno na

    atividade e aprender de uma maneira significativa: Certos processos cognitivos prestar ateno, aprender significativamente, elaborar, monitorar a compreenso, identificar inconsistncias entre novas informaes e conhecimento prvio, entre outros devem ocorrer quando o indivduo se engaja em uma atividade de aprendizagem em particular. Em outras palavras, aprendizes devem pensar sobre o que esto vendo, ouvindo e fazendo. Tal envolvimento cognitivo um dos benefcios de um alto grau de motivao (ORMROD, 1995, p. 413, traduo nossa).

    O papel fundamental da motivao na ao humana um consenso na

    Psicologia. No entanto, um ponto de divergncia entre as concepes

    psicolgicas de motivao est relacionado ao tratamento e descrio das

    variveis motivacionais: para alguns a motivao causada por processos

    internos e para outros, por eventos externos (CUNHA e MARINHO, 2005, p.

    27). Para os cognitivistas e humanistas, por exemplo, a motivao intrnseca,

    ou seja, a fonte de motivao reside no prprio indivduo (auto-motivao), ao

    considerar uma atividade divertida, interessante ou importante (ORMROD,

    1995, p. 414). Em contrapartida, os comportamentalistas acreditam que a

    motivao promovida por estmulos externos, ou seja, por variveis

    ambientais. Nesse caso, a motivao pode ser estimulada, por exemplo, por

    elogios, competies, premiaes, recompensas, entre outros fatores. Como

    este debate ultrapassa o mbito deste trabalho, que no tem a pretenso de

    ser uma pesquisa em Psicologia, iremos nos ater s questes motivacionais

    que podem ser relacionadas ao ensino da msica.

    34

  • O interesse pela pesquisa em Psicologia tem sido crescente na rea da Msica

    nas ltimas dcadas. Mais especificamente sobre a importncia da motivao

    no aprendizado, podemos citar alguns autores que discorrem sobre o assunto.

    KAPLAN (1995, p. 61), por exemplo, defende que a aprendizagem no ocorre

    sem uma ligao dinmica entre o aluno e a tarefa que dever desempenhar.

    Mais a frente conclui que sem motivao no existiria, provavelmente,

    aprendizagem. MONTANDON (1995, p. 73) tambm refora o papel decisivo

    da motivao na aprendizagem, enfatizando o engajamento do aluno nas

    atividades propostas: mantendo o aluno interessado nas atividades de aula ele

    estar envolvido no processo de aprendizagem ao mesmo tempo em que

    desenvolver atitudes favorveis em relao msica e execuo pianstica.

    KAPLAN (1985, p. 61) acrescenta que esse engajamento promovido pela

    motivao do aluno acelera o tempo gasto no aprendizado.

    Segundo REIS (2000, p. 18), os princpios pedaggicos atuais, que inserem o

    educando como figura central de todo o processo [de aprendizagem], [sendo

    ele] construtor de seu conhecimento, tambm convergem para a importncia

    da motivao. KAPLAN (1985, p. 61-62), referindo-se a essas novas

    concepes de ensino, afirma que a mudana de viso em relao ao processo

    de aprendizagem ocorreu quando se constatou que o aprendizado um

    processo de atividade pessoal, reflexiva e sistemtica, que depende do

    envolvimento de todas as potencialidades do educando na consecuo de

    objetivos (ibidem, p. 62). A partir dessa constatao, os motivos pessoais do

    indivduo, ou a motivao interna, passaram a ser considerados

    determinantes para a aprendizagem. Entretanto, o autor lamenta o fato de

    serem raros os casos em que os alunos apresentem naturalmente esse alto

    grau de interesse em aprender, chamado de auto-motivao.

    nesse ponto que podemos destacar o papel crucial do professor para

    promover a motivao do aluno no processo de aprendizagem. Tal funo

    pode ser exercida, no caso do ensino de um instrumento musical, atravs da

    observao de algumas caractersticas pessoais dos alunos, como: idade

    cronolgica e psicomotora; experincia prvia e vivncia cultural; traos de

    35

  • personalidade e objetivos do aluno ao estudar o instrumento (KAPLAN, 1985,

    p. 62), alm de outros aspectos que sero discutidos posteriormente.

    Quanto ao primeiro aspecto observado por Kaplan, vale ressaltar que cada

    indivduo possui caractersticas e habilidades diferentes, portanto no se pode

    padronizar a escolha do repertrio para todos os alunos. A escolha do

    repertrio deve ser individualizada levando-se em considerao vrios

    aspectos, como o motor, o afetivo e o estilstico. Com relao ao aspecto

    motor, particularmente ao lidar com as crianas, importante que o professor

    observe as possibilidades tcnicas do aluno para que este possa se sentir

    seguro e capaz de executar uma msica. Nesse ponto, a tcnica pode ser uma

    importante varivel motivacional, pois segundo ORMROD (1995, p. 431) a

    motivao intrnseca mais fcil de emergir quando as pessoas acreditam que

    so capazes de realizar tarefas com sucesso, o que pode ser aplicado uma

    performance bem sucedida. HOLLERBACH (2003, p. 98) sugere que, para

    motivar a criana, o professor escolha uma pea simples que o aluno

    domine com facilidade e possa preparar rapidamente e para fomentar seu

    desenvolvimento escolha uma outra que exija mais da criana.

    Os outros aspectos observados por KAPLAN experincia prvia e vivncia

    cultural, traos de personalidade e objetivos do aluno tambm podem ser

    explorados como variveis motivacionais pelo professor ao escolher o

    repertrio do aluno. Conhecendo a personalidade, a vivncia prvia, as

    preferncias e intenes do aluno, o professor pode optar por um repertrio ou

    por determinados estilos de msica com os quais o aluno se identifique e,

    portanto, se interesse. Ainda segundo KAPLAN (1985, p. 63), se o aluno

    obrigado a estudar uma determinada obra que nada significa para ele [...]

    certamente a falta de motivao com que ir enfrent-la ser a razo principal

    do seu previsvel fracasso. Portanto, a escolha [do repertrio] quando

    significativa para o aluno, de alto valor motivador. Em funo disso,

    importante que se d oportunidade para o prprio aluno escolher, juntamente

    com o professor, as peas que ir tocar. Alm de estimular a motivao do

    aluno, a identificao com o carter da pea favorece o seu envolvimento

    afetivo com a obra. REIS (2000, p. 68) acrescenta que a satisfao de um

    36

  • desejo momentneo da criana, como, por exemplo, [tocar] msicas populares

    ou de um filme, s ir enriquecer a aprendizagem.

    Todos os recursos acima mencionados dizem respeito a estimular a motivao

    interna do aluno. No entanto, o professor pode interferir mais diretamente nas

    variveis externas. Nesse sentido, o material didtico uma varivel

    motivacional importante (KAPLAN, 1985, p. 62): adotar um livro atrativo, tocar

    em grupo, tocar com acompanhamentos ou com playbacks podem colaborar

    substancialmente para a motivao no aprendizado (USZLER, 1991, p. 66).

    Nesse aspecto, ORMROD (1995, p. 469) tambm defende que a maioria dos

    alunos aprende mais quando o material, assim como o contedo,

    interessante. No entanto, tocar em conjunto ou com acompanhamento do

    professor, como no ensino de piano a quatro mos, j constitui outra varivel

    motivacional externa. Nesse caso, vrios aspectos esto envolvidos na

    motivao: a interao entre aluno e professor ou entre colegas, o resultado

    sonoro da execuo a 4 mos que mais rico e elaborado e s vezes at o

    sentimento de segurana por estar tocando com outra pessoa.

    Para finalizar, audies, recitais e gravaes tambm podem ser motivadores

    externos para o aluno de msica. O incentivo dos pais em relao

    performance dos filhos e a platia motivam a criana a se engajar no

    aprendizado de um novo repertrio que poder ser executado em outras

    ocasies. Todos esses fatores em conjunto colaboram para manter a

    motivao da criana em relao msica e promovem um desenvolvimento

    musical mais efetivo, pois em geral, pessoas mais motivadas alcanam nveis

    mais altos (ORMROD, 1995, p. 412), o que pode se aplicar performance.

    37

  • CAPTULO II

    GNEROS BRASILEIROS:

    ASPECTOS HISTRICOS E ESTILSTICOS

  • CAPTULO II

    GNEROS BRASILEIROS:

    ASPECTOS HISTRICOS E ESTILSTICOS

    Consideraes iniciais A observao da prtica docente, respaldada pelo levantamento de repertrio a

    quatro mos realizado neste estudo, revela que a abordagem do repertrio

    brasileiro7 no ensino inicial de piano mostra-se muito restrita. A maior parte do

    material escrito nos gneros escolhidos no foi concebida para o iniciante,

    alm de estar escrita geralmente em cifras - linguagem com a qual vrios

    professores no esto familiarizados. Acrescente-se a isso o fato de que o

    ensino de piano tradicionalmente prioriza o repertrio erudito. Reflexo desse

    problema a prpria formao da maioria dos professores de piano, que

    alicerada na msica erudita, como observa ARROYO (2001, p. 64):

    Tradicionalmente, instituies tais como Conservatrios de Msica

    mantiveram-se como espao voltado para o ensino da msica erudita

    europia. FREIRE (2001, p. 70) confirma essa tendncia: [..] a prpria formao dos professores de msica tem se incumbido de conservar, sem criticar, essas concepes discriminatrias, como a dicotomia msica erudita/msica popular. Um currculo concebido em moldes da pedagogia crtica integraria, necessariamente, toda e qualquer concepo de msica, promoveria a comparao e o confronto dessas concepes e a ampliao do prprio conceito de msica para esses professores em formao.

    MERTZ (apud FREIRE, 2001, p. 71) reconhece que a abordagem de diferentes

    repertrios necessria, mas defende que no se deve abrir mo [...] de um

    envolvimento necessrio com as manifestaes musicais da cultura local.

    Alm disso, a importncia de se trabalhar o repertrio brasileiro na iniciao

    musical pode ser justificada principalmente pelo seu valor esttico e musical,

    que ser considerado no decorrer deste captulo.

    7 Este estudo no ir se deter sobre o complexo debate acerca dos termos popular e erudito, que foge questo central desta pesquisa.

    39

  • Levando esses aspectos em considerao, este estudo tem como propsito

    promover a divulgao e a prtica de gneros brasileiros na iniciao

    instrumental atravs da experimentao de um material indito composto para

    este fim. Para tanto, acreditamos ser necessrio, primeiramente, contribuir para

    o conhecimento histrico e estilstico dos gneros brasileiros escolhidos para

    este estudo choro, samba, baio e bossa nova para que tanto os

    professores quanto os alunos possam conhecer melhor suas caractersticas e o

    contexto em que emergiram. Desse modo, esperamos estar facilitando o

    acesso a essas informaes, que podem contribuir para que as performances

    das peas sejam coerentes com as caractersticas estilsticas de cada gnero

    abordado.

    40

  • 2.1. Choro

    2.1.1 Contexto histrico

    Antes do surgimento do choro, os gneros musicais encontrados no Brasil

    eram o lundu, de origem africana (DINIZ, 2003, p. 17) e a modinha que os

    musiclogos polemizam se nasceu em Portugal ou no Brasil (ALBIN, 2003, p.

    30). Alm desses, os outros gneros cultivados no pas eram europeus, como o

    minueto, a quadrilha, a valsa, o xtis e a polca (DINIZ, 2003, p. 17). Assim, at

    o surgimento do choro no existia ainda no pas um gnero musical que

    pudesse ser considerado brasileiro. Passaremos, ento, a relatar como se

    desenrolou a histria do choro.

    Os primeiros acontecimentos histricos que contriburam para o surgimento do

    choro foram a vinda da famlia real portuguesa para o Brasil e a elevao da

    cidade do Rio de Janeiro sede do Reino Unido do Brasil, Portugal e Algarves,

    em 1808. Tais fatos foram determinantes para a mudana do padro cultural

    desta cidade, j que juntamente com a famlia real tambm foram trazidos os

    hbitos e a cultura europia, conforme descreve ALBIN (apud ESPAGNO,

    2004, p. 2):

    Com a corte portuguesa vieram, alm dos instrumentos como o piano e as danas europias, alguns gneros e hbitos musicais, como o minueto, a quadrilha, a valsa e o xtis, que junto com o lundu, de origem africana e j sedimentado a nossa cultura naquela altura, foram sendo abrasileirados na forma de tocar.

    Outro acontecimento marcante no cenrio brasileiro foi o fim do trfico de

    escravos, que acarretou mudanas no mbito social e econmico. De acordo

    com CAZES (1999, p. 17) a abolio do trfico de escravos em 1850, alm de

    colocar o Brasil no rol das naes civilizadas, liberou capital para grandes

    empreendimentos. A transformao do Rio de Janeiro em sede do governo

    aliada necessidade de investimento em servios pblicos essenciais foi

    responsvel pela ampla reforma urbana na cidade e pelo surgimento de um

    novo segmento social: a classe mdia (ALBIN, apud ESPAGNO, 2004, p. 2).

    41

  • Por volta de 1870 seriam formados os primeiros grupos de msicos

    pertencentes a esta classe social, os futuros chores (VASCONCELOS, apud

    VERZONI, 2000, p. 9). A maioria deles trabalhava nos Correios e Telgrafos,

    na Estrada de Ferro Central do Brasil, na Alfndega, em bandas do exrcito

    (ALBIN, 2003, p. 40 e TINHORO, 1991, p. 106) ou em reparties pblicas

    que permitiam uma boemia regular (DINIZ, 2003, p. 14). Esses msicos se

    reuniam para tocar nos subrbios cariocas ou no seu reduto principal, o Bairro

    Cidade Nova, onde grande parte residia. (ibidem) Outros msicos moravam

    nos bairros do Catete, Rocha, Andara, Tijuca, Estcio e as vilas do centro

    antigo (ALBIN, apud ESPAGNO, 2004, p. 2). Alm das reunies informais nos

    bairros onde residiam, esses msicos tambm eram contratados para tocar nos

    sales e bailes da alta sociedade, cujo repertrio baseava-se em gneros

    europeus de dana como o schottish (xote), a valsa, o minueto e a polca.

    2.1.2. Influncias: polca e lundu A polca, mais representativa influncia europia para o choro, foi trazida para o

    Brasil em 1845 e logo sobreps todas as outras danas europias (DINIZ,

    2003, p. 17). Segundo este autor, um jornal humorstico ilustrava o alcance da

    nova coqueluche ao afirmar que nesta poca danava-se polca, andava-se

    polca, trajava-se polca, enfim, tudo se fazia polca (ibidem). No entanto,

    DINIZ relata que aos poucos a polca comeou a adquirir um sotaque carioca, o

    que pode ser ilustrado pelos ttulos que j antecipavam o esprito ldico dos

    choros e das marchas de carnaval: Salta uma tigela gelada, Durma-se com um

    barulho deste, Como isso desenferruja a gente, Gago no faz discurso,

    Dentua no fecha a boca, Capenga no forma e Corcunda no perfila (ibidem,

    p. 18). Segundo VIANNA (1995, p. 50) a partir de uma interpretao

    diferenciada das polcas surgiria o maxixe, cujos primeiros sinais apareceram

    em 1870 no repertrio dos grupos de choro cariocas.

    Os msicos populares brasileiros imprimiam tambm a outros gneros

    musicais estrangeiros uma maneira particular de frasear, uma interpretao

    abrasileirada que veio, mais tarde, a caracterizar o choro:

    42

  • O choro foi o recurso de que se utilizou o msico popular para executar, a seu modo, a msica importada, que era consumida a partir da primeira metade do sculo XIX nos sales de baile da alta sociedade. A msica gerada sob o impulso criador e improvisatrio dos chores logo perdeu as caractersticas dos pases de origem, adquirindo feio e carter perfeitamente brasileiros, a ponto de se tornar impossvel confundir uma Polka da Bomia, uma Scottish teuto-escoss [sic] ou uma Walsa alem ou francesa com o respectivo similar brasileiro sado desses chores [...] (ALBIN, 2003, p. 39).

    Alm da clara influncia da msica europia para o choro, DINIZ (2003, p. 17)

    destaca a influncia do lundu, principal ritmo africano trazido para o Brasil:

    [...] o lundu, msica base de percusso, palmas e refres, era cultivado pelos negros desde os tempos do trabalho escravo nas lavouras de acar da Colnia. Ao ganhar as reas urbanas no sculo XIX, tornou-se msica cantada e apreciada por diversos setores da sociedade. Nossa bibliografia musical faz referncia a um bandolinista que tocava no incio do sculo XIX, por pontos, o doce lundu chorado, demonstrando a forte ligao do lundu com o choro. (DINIZ, 2003, p. 17)

    Pode-se afirmar, portanto, que o choro foi criado a partir da mistura de elementos da msica europia, mais notadamente da polca, com a msica

    negra, representada principalmente pelo lundu, conforme demonstra SIMAS

    (1997, p. 3): Se considerarmos que o Choro origina-se em uma forma de tocar de msicos cariocas que introduziam esquemas modulatrios na interpretao de polcas a partir dos tons mais graves do violo (a baixaria), e relacionarmos tal fato com as referncias a um jeito dolente de se tocar o lundu e tambm s relaes entre o lundu e a polca, poderemos estar diante de um gnero que est na raiz de uma maneira de fazer msica que desemboca no nosso Choro.

    2.1.3. O termo choro A origem do termo choro assunto controverso entre os pesquisadores. O

    musiclogo Mozart de Arajo acredita que o termo seja derivado da expresso

    dolente, chorosa da msica que aqueles grupos executavam e acrescenta que

    a terminologia musical popular do Brasil registra expresses que reforam

    essa suposio: chorar na prima, chorar no bordo (apud VERZONI, 2000, p.

    5). Tal viso compartilhada por CAZES (1999, p.19), segundo o qual o termo

    se cristalizou em funo da maneira exacerbadamente sentimental com que

    os msicos populares da poca abrasileiravam as danas europias, ento

    43

  • choro era aquele que amolecia as polcas. Outra verso que tambm

    relaciona a origem do choro execuo instrumental a de TINHORO (1991,

    p. 103). No entanto o autor refere-se especificamente melancolia transmitida

    pelas linhas do baixo do violo.

    Por outro lado, de acordo com o folclorista Lus da Cmara Cascudo (apud

    VERZONI, 2000, p. 5) o termo choro surgiu da transformao de grafia da

    palavra xlo, nome dado aos bailes de negros em fazendas, para xoro, no

    portugus. VASCONCELOS (apud VERZONI, 2000, p. 6) encontra outra

    explicao: atribui a origem do nome choro derivao da palavra

    choromeleiros, termo que designava uma corporao de msicos de atuao

    importante no perodo colonial brasileiro. Segundo ele, para o povo,

    naturalmente, qualquer conjunto instrumental deveria ser sempre apontado

    com [sic] os choromeleiros, expresso que, por simplificao, acabou sendo

    encurtada para os choro. (ibidem).

    Por ltimo, o posicionamento defendido por Baptista Siqueira, com a qual

    concordam DINIZ (2003, p. 13) e VERZONI (2000, p. 6), atribui a origem da

    terminologia choro coliso cultural da palavra chorus - que significa

    coro em latim - com choro, do verbo chorar (DINIZ, 2003, p. 13).

    VERZONI esclarece que essa explicao plausvel porque chorus tambm

    era uma expresso usada no incio do sculo XX para referir-se a pequenos

    conjuntos musicais, assim como choro designava o grupo de chores.

    CAZES (1999, p. 19) e DINIZ (2003, p.13) alm de citarem que choro de

    incio era usado para nomear o grupo de chores, acrescentam que o termo

    ainda era utilizado como referncia s festas em que esses conjuntos tocavam.

    H que se ressaltar, no entanto, que qualquer que seja a origem verdadeira da

    palavra, antes do choro tornar-se tambm um gnero musical, ele designava

    uma maneira de tocar (TINHORO, 1991, p. 103), o que pode ser atestado por

    um depoimento de Pixinguinha, em 1966: [...] quando eu fiz Carinhoso (1916 ou 17...), era uma polca. Polca lenta. Naquele tempo, tudo era polca, qualquer que fosse o andamento... Mais tarde, mudei (o andamento) para o chorinho. Outros o classificaram como samba... preciso entender que naquela poca no havia choro, e sim msica de choro, msica que fazia chorar. Nesse aspecto, polca tambm podia ser choro... (ALBIN, 2003, p. 61).

    44

  • Apesar do depoimento de Pixinguinha subentender que o choro no era

    propriamente um gnero musical no incio do sculo XX, CAZES (1999, p.19)

    atribui a ele a fixao do choro como gnero, em 1910: somente na dcada de

    10, pelas mos geniais de Pixinguinha, Choro passou a significar tambm um

    gnero musical de forma definida. DINIZ (2003, p.13) tambm cita a data de

    1910 como o ano de referncia para a consolidao do choro como gnero,

    apesar de no especificar se Pixinguinha teria sido o responsvel por tal fato.

    Talvez essa polmica de classificao do choro como gnero possa ser

    esclarecida se considerarmos que o choro comporta diferentes gneros

    musicais, como SVE ilustra (1999, p. 16) quando coloca que o maxixe, a

    polca, o scottish, o samba, o frevo, o baio e a valsa so alguns dos gneros

    do universo do choro. Essa idia vem de encontro ao ponto de vista de DINIZ

    (2003, p. 13), segundo o qual o termo atualmente tanto pode designar um

    gnero musical como um repertrio de msicas que inclui vrios ritmos ou

    gneros. Portanto, por nos parecer a definio mais adequada para choro,

    esta ser a acepo do termo utilizada neste trabalho.

    2.1.4. Os pioneiros

    As primeiras referncias que se tm dos conjuntos de pau e corda -

    precursores dos tradicionais grupos de choro - so do flautista Joaquim Antnio

    da Silva Calado (ROCHEL, [s.d], p. 1). Segundo Odette Ernest Dias (apud

    CAZES, 1999, p. 25) a linhagem da flauta brasileira veio da fuso da tcnica

    virtuosstica de Reichert com a malcia ritmica de Calado, que DINIZ (2003, p.

    15) considera o principal pioneiro do choro. Outra figura que considerada um

    dos pilares do choro Anacleto de Medeiros, responsvel pela transformao

    da msica importada (principalmente o schottish) em uma msica com sotaque

    brasileiro e pela sua difuso entre as vrias bandas que organizou em fbricas

    e em outras instituies (CAZES, 1999, p. 29-33). frente da orquestra do

    Corpo de Bombeiros, foi ele quem comandou as primeiras gravaes j

    registradas na msica brasileira. Segundo CAZES (ibidem, p. 32) a ponte que

    Anacleto realizou entre a cultura das bandas e das rodas de Choro enriqueceu

    enormemente ambas as manifestaes e atravs de seu trabalho a

    linguagem chorstica se propagou como em nenhum outro momento.

    45

  • Por outro lado, coube Francisca Edwiges Gonzaga - a Chiquinha Gonzaga - e

    a Ernesto Nazareth, a traduo da linguagem chorstica para o piano.

    Chiquinha Gonzaga foi a primeira maestrina e primeira chorona brasileira,

    alm de ter exercido importante papel na histria pela sua atuao vigorosa na

    luta pela abolio da escravatura e pelos direitos autorais (CAZES, 1999, p.

    38). Nesse sentido, sua figura foi de vital importncia para promover a abertura

    de espaos para o choro e para que este gnero fosse respeitado pela msica

    culta (ibidem).

    No entanto, em termos de volume de obras, a figura de Ernesto Nazareth pode

    ser considerada mais representativa para a linguagem chorstica e, segundo

    DINIZ (2003, p. 20), para a linguagem pianstica da msica popular brasileira.

    Comps em todos os gneros de sua poca, mas se destacou como autor de

    tangos brasileiros e valsas (CAZES, 1999, p. 36). Apesar de muitos autores

    considerarem que, na verdade, os tangos brasileiros eram maxixes - gnero

    popular que Nazareth renegava - DINIZ (2003, p. 21) defende o compositor

    afirmando que Nazar [sic] chamava suas composies de tango

    simplesmente por se tratar [sic] de tangos, mesmo sendo este o parente mais

    prximo do choro e acrescenta que era como se o tango brasileiro tivesse aos

    poucos, se transformado em choro, ou seja, medida que a palavra choro

    ganha um significado mais preciso, vai tomando o lugar da palavra tango.

    No entanto, VERZONI (2000, p. 86-88) ressalta o fato curioso de apenas duas

    obras deste compositor - Cavaquinho por que choras (1926) e Janota (1922-

    1926) - terem sido publicadas como choros. Alm disso, Ernesto Nazareth

    nunca participou de uma roda de choro, ao contrrio de Chiquinha Gonzaga.

    Tal diferena deve-se, provavelmente, ao fato de Ernesto Nazareth se

    considerar um msica erudito, embora tenha influenciado to fortemente a

    msica popular.

    2.1.5. Caractersticas musicais O choro um gnero predominantemente instrumental (DINIZ, 2003, p. 53).

    Em relao sua formao instrumental, os primeiros grupos de choro eram

    46

  • conhecidos como conjuntos de pau e corda, pois as flautas eram feitas de

    madeira, normalmente bano (DINIZ, 2003, p. 14). Nesses grupos cabiam s

    flautas os solos; ao violo, as linhas de baixo - chamadas de baixarias - e ao

    cavaquinho, o acompanhamento harmnico (ROSCHEL, [s.d], p. 1). Nesses

    grupos posteriormente foi introduzida a flauta transversal moderna, trazida para

    o Brasil pelo flautista belga Mathieu-Andr Reichert por volta de 1860 (DINIZ,

    2003, p. 73); o violo de sete cordas, introduzido por Tute (CAZES, 1999, p.

    49-50); o bandolim, que de incio era um instrumento de acompanhamento

    (DINIZ, 2003, p. 71); e outros instrumentos na funo de solistas, como o

    flautim e a clarineta.

    A incluso da percusso curiosamente s foi feita meio sculo aps as

    primeiras rodas de choro (CAZES, 1999, p. 12). Segundo este autor, nas gravaes orquestrais dirigidas por Pixinguinha que a percusso aparece pela

    primeira vez com destaque, sendo que os instrumentos usados eram pandeiro,

    caixa clara, caixeta, reco-reco e omel - tambor de som grave (ibidem, 1999, p.

    80).

    A flexibilidade do nmero de msicos e dos tipos de instrumentos na roda pode

    ser explicada, em grande parte, pelo fato dos chores encontrarem-se ao

    acaso (ROSCHEL, s.d, p. 2). Essa informalidade cedeu espao a novos

    instrumentos nos grupos de hoje, como o caso do saxofone e do trombone.

    Nesses grupos, geralmente h um instrumentista solista que faz-se notar pelo

    seu domnio tcnico e capacidade de improvisao: os grupos de choro

    passaram a ser marcados por uma certa competio entre os instrumentistas,

    uma espcie de desafio que testa a capacidade de improviso do outro (DINIZ,

    2003, p. 15). Todavia, CAZES (1999, p. 12) ressalta que no incio do sculo XX

    a improvisao nos grupos de choro no era comum. Hoje, no entanto, a

    improvisao e a virtuosidade instrumental passaram a caracterizar fortemente

    o choro, mas sem sobrepor a musicalidade e as inflexes melanclicas

    prprias do gnero.

    Os choros so tradicionalmente escritos em compasso binrio - assim como a msica brasileira em geral - e geralmente a acentuao feita no 2 tempo,

    47

  • como confirma SVE (1999, p. 11). Essa caracterstica tambm pode ser uma

    herana da polca, pois segundo CAZES (1999, p. 20) as polcas eram escritas

    em compasso binrio. Outra caracterstica comum polca e ao choro a

    maneira de se executar as seqncias de semicolcheias: em andamentos

    ligeiros so executadas com exatido, como mostra a figura 1, e em

    andamentos mais lentos so executadas com flexibilidade, conforme a figura 2

    ou 3 (SVE, 1999, p. 11):

    a) Figura 1 b) Figura 2 c) Figura 3

    Da mesma maneira, SVE (ibidem) aponta para a flexibilidade na execuo

    das sncopes, representadas pela figura 4, que so interpretadas num ritmo

    intermedirio entre os indicados pelas figuras 4 e 5:

    a) Figura 4 b) Figura 5

    A estrutura formal do choro tpico apresenta trs partes em forma rond, obedecendo o padro A-A-B-B-A-C-C-A, sendo que cada parte geralmente

    constituda de dezesseis compassos ou de outros mltiplos de quatro. (SVE,

    1999, p. 19) Apesar da estrutura formal em trs partes ser mais comum, a

    restrio a esta forma vem sendo flexibilizada mais modernamente para duas

    partes (CAZES, 1998, p. 21). Entretanto, este autor relata que na poca em

    que Pixinguinha comps os choros Carinhoso 8 (1916-17) e Lamentos (1928),

    em forma binria, tais peas no foram bem recebidas por fugirem forma

    convencional do choro: A estranheza causada por Lamentos e Carinhoso [grifo nosso] se deve ao fato de eles se diferenciarem muito claramente do formato dos Choros que se faziam at ento. Havia um compromisso muito rgido em se criar Choros em trs partes num esquema originrio

    8 Como podemos ver no depoimento de Pixinguinha transcrito na pgina 4, primeiramente o compositor concebeu Carinhoso como polca, mas depois transformou-a em choro.

    48

  • da polca e conhecido havia muito tempo como forma rond. Essa forma em que se toca cada parte e sempre se volta primeira j estava presente em gneros anteriores polca. Carinhoso e Lamentos no tm essa forma, ambos foram feitos em duas partes, sendo que Lamentos conta ainda com uma introduo, coisa pouco usual na poca. (CAZES, 1998, p. 72)

    Segundo DINIZ (2003, p. 13), os choros em duas partes atualmente tambm

    so chamados de chorinho em funo de seu carter ligeiro, brejeiro e muito

    comunicativo. O Dicionrio Grove de Msica (1994, p. 194) acrescenta que

    alm de ter um carter mais leve, o chorinho caracteriza-se pela predominncia

    da linha meldica sobre o contraponto instrumental.

    No que se refere harmonia, as modulaes costumam ocorrer para tons relativos, vizinhos ou homnimos entre as partes (SVE, 1999, p. 19). Este

    autor acrescenta que os encadeamentos harmnicos indicados pela linha do

    baixo so feitos geralmente por movimentos lineares descendentes ou

    ascendentes, diatnicos ou cromticos e cita a pea Odeon, de Ernesto

    Nazareth, como exemplo para que este aspecto seja observado com clareza

    (ibidem).

    Outro recurso comum na harmonia do choro o uso de acordes diminutos de

    passagem, que podem vir como substitutos de acorde