5789-18506-1-PB

download 5789-18506-1-PB

of 24

description

Literatura feminina

Transcript of 5789-18506-1-PB

  • A CONSTRUO IMAGINRIA DA HISTRIA E DOS GNEROS: O BRASIL NO SCULO XVI

    Tnia Navarro Swain*

    O que a histria, finalmente, seno uma imensa lacuna, uma interrogao sem f im, um silncio sem limites, cujas mar-gens possveis encontram-se no rudo do tempo, alcanado apenas atravs de algumas pginas em rascunho, algumas inscries ve-ladas, inapreensveis traos do humano?

    A busca do real em histria , nos dias atuais e a partir de uma certa perspectiva terica, uma tarefa intil, pois a realidade do passado chega ao presente atravs de uma srie de mediaes, a partir do prprio sujeito que interroga os sentidos nas veredas do tempo.

    O que buscamos aqui no portanto o confronto entre a verdade e a mentira, mas os sentidos que emergem dos discursos emitidos no passado e sobre o passado. Esta tica permite perce-ber, por exemplo, no momento da descoberta do Brasil, as repre-sentaes feitas pelos portugueses a respeito dos indgenas e as da historiografia que as interpreta.1

    Mostrar a presena e a ao das mulheres nas narrativas e nas descries dos cronistas do sculo X V I uma contribuio histria das mulheres; desmascarar o silncio, desvelar o papel social poltico das mulheres portuguesas ou indgenas a tarefa de uma histria no feminino.

    * Professora do Departamento de Histria da Universidade de Braslia. Textos de Histria, v. 4, n''2 (1996): 130-153

    I . Ver, a esse respeito, por exemplo, Michel de Certeau: A escrita da Histria. Rio de Janeiro: Forense, 1982.

  • Construo imaginria da Histria e dos gneros

    Por outro lado, analisar as descries ulteriores de usos e costumes dos indgenas, suas relaes com os conquistadores na historiografia til para compreender as representaes de gnero da poca contempornea e do presente.

    Este presente, a despeito de trs dcadas de feminismo, dos debates tericos e de uma abundante produo acadmica sobre as mulheres e as relaes de gnero, oferece-nos, nas modulaes imaginrias do quotidiano, imagens fixas das mulheres e dos ho-mens que re-constrem as hierarquias e os domnios sociais se-gundo os valores que lhes so atribudos historicamente.

    Entretanto, no silncio e na obscuridade da histria, existe um inesgotvel reservatrio de relaes humanas, de todas as for-mas e cores, escondidas por uma pretensa "natureza" humana imu-tvel, sede quase divina das determinaes sociais de gnero.

    O que nos guia neste trabalho a noo de razo histrica, isto , a historicidade incontornvel de todo caminhar humano, o perptuo movimento das representaes do mundo e igualmente dos gneros que, entretanto, reaparecem continuamente, re-semantizadas, universalizadas pelo discurso histrico, dito cient-fico.

    Se a razo histrica indica-nos uma evoluo, um progres-so da humanidade em sua natureza e em seus costumes, a razo histrica prope-nos um quadro do humano em transformao contnua, diferena sem origem ou referente, um simulacro, se-gundo Deleuze.2

    A histria tambm a memria, o cadinho da identidade dos povos e sua dimenso poltica, fundada sobre a autoridade da tradio, constri certas relaes sociais como sendo inevitveis.

    O esquecimento uma vertente deste pol t ico , fator constitutivo de uma caracterizao do vivido histrico, do qual as relaes entre os gneros fazem parte integrante. Este esquecimen-to, porm, no sempre obra de uma vontade explcita, pode tam-

    2. Sobre esta noo, ver Gillcs Deleuze em, por exemplo, La logique des sens. Paris: Ed. de Minuit, 1969.

  • 132 Tnia Navarro Swain

    bm inserir-se no que Michel Pcheux 1 aponta como "esqueci-mento n 1", atividade dominada pelo inconsciente, nascida das condies de produo/possibilidade do emissor.

    Quem diz o que, em que condies, a quem? Pergunta Foucault e estas questes, dirigidas ao discurso histrico demons-tra a fragilidade dos enunciados que se arvoram definitivos, redu-zidos sua razo histrica, sua produo em circunstncias pre-cisas do espao/tempo.

    Quando se utiliza a categoria gnero na anlise histrica, entretanto, a fragmentao da diacronia permite o desvelar de si-tuaes e de casos precisos onde as relaes entre mulheres e ho-mens se desenvolvem de maneira imprevista. A histria assim percebida desenha um novo horizonte epistemolgico, na medida em que o impossvel no existe, ao contrrio, a histria o locus onde TUDO possvel.

    A aproximao binaria das relaes entre os gneros, a universalizao dos quadros de dominao do feminino pelo mas-culino, a eterna luta dos sexos so assim recolocadas em seu lugar, isto , como simples esquemas datados de representao e de in-terpretao do mundo. Estes esquemas operam como re-criadores do mundo, tal como podemos v-lo, em condies de possibilida-de precisas e sobretudo, tal como gostaramos que fosse; repre-sentar nunca , portanto, uma atividade neutra, pois a emoo e a afetividade impregnam o olhar posto sobre a realidade. As repre-sentaes e seus corolrios, a diviso do mundo, o estabelecimen-to das normas, dos valores, das hierarquias, dos quadros de vida, emergem aos olhos do analista em todos os discursos, em todos os textos, inscritos, iconogrficos, imagens, smbolos. Exprimem igualmente suas condies de produo em redes de sentidos sin-gulares, histricas.

    3. Ver, a este respeito, F.Gadet e T. Hak (org.): Por uma anlise automtica do discurso, uma introduo obra de Michel Pcheux. Campinas: Unicamp, 1990.

  • Construo imaginria da Histria e dos gneros 133

    O imaginrio social, enquanto dinmica das representaes, cria os sentidos do real e o agenciamento dos atores sociais. Neste quadro, assim definido, as representaes aparecem como similares ao que Panofsky4 nomeia habitas, noo que abriga os princpios interiorizados a partir dos quais uma certa poca seria dotada de uma unidade interpretativa/criadora do real e das relaes humanas.

    Alguns esquemas de representao podem ter um carter mais ou menos hegemnico, segundo as pocas e podem mesmo reaparecer alguns sculos depois, dotados de um peso e de uma significao diferentes: definem, entretanto, as fronteiras do pos-svel e do impossvel, do pensvel e do impensvel.

    Este o caso dos discursos que concernem a descoberta do Brasil: os dos cronistas portugueses ou franceses confrontados ao estranho e ao maravilhoso e os dos historiadores contemporneos, que interpretam os discursos e destes produzem outros, dependen-tes igualmente das classificaes e de esquemas mentais.

    Este olhar, portanto, dirigido s ndias e ndios brasileiros e suas relaes no sculo X V I e no sculo X X e sua apreciao consti-tui o objeto deste trabalho, no quadro terico exposto acima.

    Os cronistas do sculo X V I tecem suas narrativas em torno do olhar, descrevem o que vem e o estranho e o maravilhoso que penetram sua viso. O estranho, identificado pela reflexo segun-do Todorov \ e o maravilhoso, urdido pelo sobrenatural, inexpli-cvel para sempre. A aventura na qual embarcam , na busca do re-conhecimento, um locus privilegiado da epifania do maravi-lhoso. Para eles, a natureza selvagem das florestas e dos animais incomuns a mesma que transforma as borboletas em beija-flo-res6. Os indgenas foram igualmente estigmatizados neste dualis-mo, abominveis e atraentes, antropfagos mas livres e nus, de uma nudez perversa e to desejada! O estranho e o maravilhosos

    4. Panofsky. L'architecture gothique et la pense scolastique, apud Roger Chartier: Histria Cultural, entre prticas e representaes, p. 35.

    5. Tzvelan Todorov. La letleratura fantstica. Milo: Garzanti, 1977. 6. Ferno Cardim. Tratado da terra e da gente do Brasil. So Paulo: Ed. Nacional,

    1978, p.36.

  • 134 Tnia Navarro Swain

    penetram seus esquemas de representao do mundo, criam ruptu-ras que desestruturam seus sentidos e os sentidos 1 .

    Entretanto, a mincia das descries revela uma insusten-tvel necessidade de atribuir significaes ao que, de incio, delas est desprovido. Segundo Eni P. Orlandi K , "[...] dar um sentido construir limites, desenvolver domnios , descobrir 'stios de significando,', tornar possvel gestos de interpretao ".

    Em seu imaginrio, as representaes no so mais vlidas para identificar a ordem do mundo que ser assim, substituda pela ordem do discurso. E deste modo que os cronistas descrevem a organizao social dos indgenas, interpretando-a segundo as sig-nificaes que lhes so habituais, atravs do procedimento da "an-coragem" que torna familiar o estranho e aproxima o sentido "dj-l" do sentido a ser dado, segundo Moscovic i 9 .

    "Nem F, nem Lei, nem Rei" a frmula que se encontra muitas vezes para descrever uma sociedade da qual os valores e os laos eram outros, logo, "estranhos". Gabriel Soares de Souza e Pero Magalhes Godinho utilizam uma metfora idntica: j que em sua linguagem, os indgenas no dispunham das letras F, L , R, isto seria certamente sintoma de uma certa anomalia social. " [ . . . ] porque, se no tm F, porque no tm f em Deus Nosso Senhor, nem tem verdade, nem lealdade a nenhuma pessoa que lhes faa bem. E se no tm L na sua pronunciao porque no tm lei alguma que guardar, nem preceitos para se governarem cada um faz lei a seu modo e ao som de sua vontade [...] E se no tm esta letra R na sua pronunciao porque no tm rei que os reja , e a quem obedeam [...]"'

    7. Ver, a este respeito, o captulo V de Michel de Certeau: A escrita da histria. Rio de Janeiro, Forense/Universitria, 1982.

    8. Eni Pulcinelli Orlandi. Discurso Fundador, a formao do pas e a construo da identidade nacional. Campinas: Pontes, 1993, p. 15.

    9. Apud Pedrinho Guareshi, Sandra Jovelovich. Textos cm representaes sociais. Pelrpolis: Vozes, 1994.

    10. Ver, quanto a Gabriel Soares de Souza, Tratado descritivo do Brasil em 1587 (So Paulo: Ed. Nacional, 1971, p. 302) e, quanto a Pero Magalhes Gandavo, Histria da Provncia de Santa Cruz. Tratado da terra do Brasil (So Paulo: Ed. Obelisco, 1964, p. 54), para o desenvolvimento desta mesma idia.

  • Construo imaginria da Histria c dos gneros 135

    Assim, segundo os cronistas, os indgenas no tinham che-fes e viviam segundo a vontade de cada um; existia porm, um ndio chamado "Principal", chefe unicamente em caso de guerras, mas nem por isso dispondo de uma autoridade absoluta. "[.. .]Em cada aldeia dos tupinambs h um principal a que seguem somen-te na guerra onde lhe do alguma obedincia, pela confiana que tem em seu esforo e experincia, que em tempo de paz cada um faz o a que o obriga seu apetite." [ . . . ] " " . Este "Principal" detinha um papel de organizador, mas mesmo descrevendo esta circuns-tncia, os cronistas atribuem-lhe um lugar hierarquicamente supe-rior na sociedade. A partir deste ponto, observa-se uma complica-da trama de explicaes e contradies, que resultam do desco-nhecimento de uma sociedade cujos fundamentos situavam-se fora de seus esquemas imaginrios.

    Afinal, o princpio de inverso das evidncias, proposto por Foucault revela-se muito til para a reviso da histria no fe-minino. Os cronistas deixavam supor uma sociedade regida por homens, mas um olhar atento descobre relaes muito mais mati-zadas. As relaes mulheres/homens so descritas detalhadamente por todos os cronistas e a despeito da nfase dada atividade mas-culina, sobretudo a guerra, no podiam evitar de sublinhar a im-portncia econmica e social das mulheres. V-se assim o esboo de grupos sociais cujo relacionamento era livre e sem hierarquias. Se aquele que era ouvido podia ser considerado o Chefe, eram ento os pajs - mulheres ou homens - os verdadeiros dirigentes.

    Hans Staden, que viveu dois anos entre os indgenas, afir-ma a existncia de mulheres pajs e profetas; Gandavo indica o respeito que os indgenas demonstravam pelas opinies e conse-lhos das mulheres mais velhas l 2 . Entre os indgenas, os homens no tinham autoridade sobre as mulheres, como sublinha Claude d'Abeville, o que representa um ponto muito importante nas defi-

    11. Gabriel Soares de Souza, op.cit., p.303 12. Hans Staden. Duas viagens ao Brasil. So Paulo: Sociedade Hans Staden, 1942,

    p. 175.

  • 136 Tnia Navarro Swain

    nies de gnero l 3 . Mulheres e homens podiam, segundo o mes-mo cronista 1 4 , mudar de parceiro sexual como entendia. Nenhu-ma obsesso em relao virgindade: as mulheres eram livres de seu corpo e de seu desejo. Como sublinha Thvet: " [ . . . ] este povo muito luxurioso, carnal e mais do que brutal, as mulheres especi-almente, pois elas procuram e praticam todos os meios para atrair os homens ao ato." 1 5

    Os europeus, diante desta liberdades de costumes, vem as ndias como prostitutas e estas consideraes so transplantadas no tempo pelos analistas modernos, tal como Gilberto Freyre:

    "[...] Saltando em terra, o europeu caa sobre una ndia nua; os Padres da Companhia, eles mesmos, eram obri-gados a prestar ateno para no encostar com o p nos corpos femininos.(...) As mulheres eram as primeiras a se entregar aos brancos, as mais ardentes se esfregavam at nas pernas daqueles que supunham ser deuses. ""'

    Nesta sua tirada etnocntrica, o autor faz consideraes sobre a atividade sexual dos ndios, sem deixar de explicitar as causas e conseqncias, do alto de sua superioridade:

    "Pois hoje pode-se afirmar a relativa fraqueza da sexualidade do selvagem americano. Pelo menos do homem - a vida mais sedentria e mais regular da mulher dotavam-na de uma sexualidade mais forte que a do macho, o que explica a excitao de muitas dentre elas face aos brancos/...] Sabe-se com efeito que os rgos genitais dos primitivos so em geral menos desenvolvidos que os dos civilizados. ".17

    13. Claude d'Abeville. Histria das Misses das Padres Capuchinhos na Ilha do Maranho e terras circunvizinhas. So Paulo: Livraria Martins Editora, 1945, p.223.

    14. Idem. ihd. 15. Andr Thevet. Les singularits de Ia France Antartique - le Brsil des cannibales

    au XVIeme sicle. Paris: La Dcouverte, 1983, p. 103. 16. Gilberto Freyre. Maitres et esclaves, Ia formation de Ia socit hrsilienne. Paris:

    Gallimard, 1974, p.98. Este autor foi traduzido cm pelo menos 20 lnguas, tal foi seu sucesso.

    17. Idem, p. 108.

  • Construo imaginria da Histria e dos gneros 137

    Quanto vida quotidiana, de acordo com as descries dos cronistas, as mulheres eram extremamente ativas. Os homens dependiam muito delas, tanto para sua sobrevivncia quanto para a prpria integrao social. E assim que , por exemplo, a produo econmica e a coeso social eram asseguradas pelas mulheres: elas plantam , fazem as colheitas e o tratamento dos produtos. Thvet, depois de explicar amplamente em trs pginas e no mas-culino tudo o que era plantado e a maneira de faz-lo, acrescenta uma pequena frase que, de seu ponto de vista, classifica e ao mes-mo tempo desqualifica este trabalho: "Todo este negcio de razes deixado s mulheres, estimando-se que no ocupao adequa-da aos homens."1 8

    A maneira de se expressar dirige a trajetria da compreen-so do receptor, desvalorizando estas atividades, tendo em vista a dignidade do homem. E possvel, entretanto uma outra interpreta-o: os homens no eram dignos, talvez, de exerc-las. As mulhe-res faziam igualmente a bebida que jorrava nos dias de festa, par-ticipavam ativamente de todas as festividades e atividades ldicas da tribo: canto, dana, em grupo ou sozinhas. Segundo Cardim, " [ . . . ] eles imitam os pssaros, serpentes e outros animais, em ver-sos, para incitar luta. Estes versos so improvisados e as mulheres revelam-se poetas emri tas ." 1 9

    O mesmo cronista indica que: " [ . . . ] as mulheres nadam e remam como os homens [...] e sendo grandes nadadoras, no tem nenhum medo de gua, de vagas ou do mar." 2 0 As ndias deti-nham igualmente o saber e a arte da tecelagem, da olaria, da pintu-ra e da inciso sobre os corpos humanos - sinal de honra e de beleza. Segundo Claude d'Abeville, elas faziam " [ . . . ] desenhos admirveis sobre os corpos."2 1 Mas por sua vez, Gilberto Freyre incisivo: "Mesmo a magia e a arte, se no so coisas de mulher,

    18. Andr Thvet, op. cit. p. 149. 19. Ferno Cardim, op. cit. p. 185. 20. Idem. p. 188. 21. Claude d'Abeville, op. cit., p.217.

  • 138 Tnia Navarro Swain

    desenvolvem-se pela via do homem efeminado e bissexual, que prefere, vida de movimento e batalha do macho, a vida regular e domstica da mulher. "21

    Neste caso, o domnio das representaes to forte que o autor prefere colocar a arte e a magia nas mos dos "efeminados", mas homens, apesar de tudo. Para ele, apesar da evidncias, a cria-tividade no pode existir seno na esfera do masculino. As mulhe-res conheciam no s os segredos da preparao das bebidas, mas tambm a frmula de preparao das farinhas e da alimentao especial destinada aos guerreiros que partiam em guerra.. Saber e poder aparecendo conjugados, evidente que as mulheres deti-nham um papel e um lugar determinantes nas relaes sociais, no como objeto de troca ou de valor, mas como sujeitos dotados de importncia e de prestgio em seu papel e sua condio de mulher.

    De acordo com os cronistas, as relaes entre mulheres e homens eram boas, pacf icas 2 1 e os casamentos faziam-se sem imposies; entretanto, a opinio e o consentimento da me eram exigidos para realizar a unio dos jovens. Para sua sobrevivncia, os homens dependiam das mulheres, pois elas asseguravam a pro-duo agrcola e econmica. Abeville afirma que os homens " [ . . . ] no pensam seno em seus discursos e suas distraes." 2 4 . No existia, porm, relaes de dominao que obrigassem as mulhe-res ao trabalho, enquanto os homens permaneceriam ociosos; de um ponto de vista feminista, pode-se detectar uma sociedade de mulheres na qual os homens teriam um papel marginal, entretan-to, no agenciamento das relaes sociais. So obrigados, desta for-ma, a passar por certos ritos iniciticos, entre os quais a guerra, para entrar no mundo das mulheres e receber seu status social na sociedade indgena.

    Nesta sociedade, so as mulheres que do prestgio aos homens: aquele que tem muitas filhas e mais estimado e honra-

    22. Gilberto Freyre, op. cit., p. 126 c 127. 23. Ver Ferno Cardim a esle respeito, op. cit.. p. 1 10. 24. Idem, p. 242.

  • Construo imaginria da Histria c dos gneros 139

    do, " [ . . . ] porque so as filhas mui requestadas dos mancebos que as namoram [...] os quais servem os pais das damas dois a trs anos primeiro que lhas dem por mulheres[...] eles vo se agasa-lhar no lano dos sogros com as mulheres e apartam-se dos pais, mes e irmos e mais parentela com que antes estavam;[...] 2 5 So os homens, portanto, que se transferem e passam a integrar a fam-lia das mulheres. A poligamia dos ndios , que fez correr muita tinta, era praticada sobretudo pelos Principais, os "heris" de guerra. Uma observao mais atenta, entretanto, revela-nos que vrias mulheres escolhiam-no por sua bravura no combate e seu prest-gio na tribo era devido, em parte, este grupo de mulheres que o circundava.2 6 Como indica Hans Staden, que viveu em uma tribo como prisioneiro durante dois anos: "certas mulheres podiam ter um mesmo marido, mas cada uma delas tem seu lugar na casa e sua roa . 1 1

    Guardavam portanto, sua autonomia e independncia. E segundo Abeville, as ndias eram, entre elas, muito solidrias e demonstravam lealdade e amizade em suas relaes. 2 X Quando um ndio matava um inimigo, mudava de nome e podia ento se casar, entrar na sociedade das mulheres, entrar na sociedade propriamente dita, enquanto adulto. Gilberto Freyre, por sua vez," enriquece" nosso conhecimento de suas consideraes pessoais: "A poliga-mia no correspondia entre os selvagens que a praticavam - entre eles os do Brasil- somente ao desejo sexual, to difcil a satisfazer para o homem, com uma s mulher; ela corresponde tambm ao interesse econmico do caador, do pescador, do guerreiro, de se apropriar valores econmicos vivos, criativos, representados jus-tamente pelas mulheres".21'

    25. Gabriel Soares de Souza, op.cil.. p. 304. 26. Ver F. Cardim, op. cit., p. 103. 27. Ver Hans Staden, op. cit.. p. 171. Os ndios no tinha propriedade privada de terra,

    mas segundo os cronistas, dispunham do uso de uma roa. 28. Claude d'Abeville, op. cit., p. 283. 29. Gilberto Freyre, op. cit., p. 126.

  • 140 Tnia Navarro Swain

    Nesta tirada falocrata-dominadora, encontramos uma ima-gem fixa do homem - sujeito social - que se circunda de objetos-valores, as mulheres. Todas as singularidades da sociedade ind-gena brasileira so apagadas de um s gesto, que determina os sentidos e lhes confere um cunho universal. Por outro lado, have-ria na sociedade indgena, uma preocupao em relao ao exerc-cio da sexualidade feminina, no no sentido repressivo, mas ao contrrio, a poligamia supriria a falta eventual de parceiros mas-culinos para as mulheres sem marido, como sublinha Abeville. 3 0

    E interessante notar que o mesmo cronista considera que a poligamia s era possvel ao ndio capaz de sustentar suas mulhe-res, o que evidentemente representa uma inverso de papis. 3 1

    Vemos o processo de ancoragem em ao: o bizarro torna-se fa-miliar por uma simples estratgia verbal, exorcizando assim o pe-rigo de uma sexualidade feminina livre, sustentada socialmente. A guerra era assim de grande importncia para os homens, era a maneira precpua de afirmao de seu status e papel na sociedade. Os prisioneiros feitos nesta ocasio eram guardados pelas mulhe-res , que podiam escolher algum deles como parceiro antes que fosse sacrificado. Eram as nicas a poder libert-los e assim dar-lhes a vida: se uma delas decidia fugir com o prisioneiro , a tribo aceitava o fato e sequer pensava-se em persegui-los.32 As possibi-lidades de escolha e a liberdade das mulheres era assim reafirma-da, em circunstncias to importantes socialmente , como o sacri-fcio de um cativo. As mulheres capturadas t a m b m eram sacrificadas no decurso de grandes festas, mas eram livres de mo-vimentos durante o tempo do cativeiro. 3 3 Isto demonstra, igual-mente, que as representaes simblicas quanto aos prisioneiros no estavam ligadas a uma limitao qualquer de gnero, mais ou menos importante.

    30. Ver, a este respeito, Claude d'Abeville, op. cit., p. 223. 31. Idem, p. 283. 32. Ver Femo Cardim, op. cit., p. 114. 33. A este respeito, consultar Gandavo, op. cit.. p. 65 e Thcvel, op. cit.. p. 87.

  • Construo imaginria da Histria e dos gneros 141

    Vemos, deste modo, que a diviso de papis segundo os gneros no implicava em dominao nem hierarquizao. No temos a pretenso de descrever uma sociedade perfeita, longe dis-to, pois toda sociedade estabelece seu regime de verdade, seu siste-ma de circulao de sentidos , que implica em valores e normas o que implica em possveis excluses. possvel, entretanto, cons-tatar uma ruptura da montona representao binaria polarizada mulher/homem, fragilidade/fora, dominado/dominante, mau/bom, objeto/sujeito. E instrutivo observar a maneira como os cronistas, a partir de suas representaes de mundo descrevem as relaes entre mulheres e homens e as contradies nas quais se enredam.

    Claude d'Abeville explica que as mulheres no podiam abandonar seus maridos, mas na pgina seguinte indica que os casais podiam se separar segundo o desejo de um ou de outro. 1 4

    Nos ritos que acompanham o nascimento, h uma inverso de pa-pis, ocasio para o pai de afirmar simbolicamente sua participa-o ao evento: as mulheres, terminado o parto vo mergulhar no rio enquanto os pais se deitam, queixosos, em suas redes e se fa-zem visitar e acalentar, como se houvessem sofrido grandes do-res.15 O interdiscurso do sculo X V I emerge nas observaes dos cronistas sobre os indgenas quando pretendem mostrar o papel predominante do pai na concepo da criana. A argumentao aristotlica se faz presente no imaginrio cristo, expressa de for-ma exemplar pela concepo de Cristo. 1 6 A autoridade da Grcia antiga constantemente invocada, sobretudo por Thvet, cujas consideraes sero retomadas pela historiografia.

    Como vimos, porm, as regras e as relaes na sociedade indgena eram muito mais matizadas; o rolo compressor das des-cries feitas genericamente no masculino, sob um olhar domesti-

    34. Claude d'Abeville, op.cit., p. 222 e 223. 35. Ver a este respeito, Gabriel Soares de Sou/.a, op.cit., p. 306 e Frei Vicente de Salvador,

    Histria do Brasil 1500-1627. So Paulo: Melhoramentos, 1954, p. 72. 36. Maria, depositria da "semente" divina, recebe a "nova" uma vez grvida e no

    participa ao nascimento de Cristo, seno como receptculo.

  • 142 Tnia Navarro Swain

    cado por sculos de patriarcalismo deixa facilmente escapar as filigranas que compem um quadro onde os valores e normas no impem uma viso binaria e hierarquizada do humano. A ideolo-gia seria a imposio de um sentido e dar sentido ao estranho, como sublinhamos, remeter ordem, tornar familiar o que pa-rece impossvel ou bizarro, como uma sociedade onde as mulhe-res so livres e as relaes de gnero no so determinadas pela natureza dos sexos. Esta forma ideolgica de descrio dos costu-mes dos indgenas torna-se um discurso fundador, aquele que ins-taura e cria uma nova memria e uma outra tradio. Segundo Eni Pulcinelli Orlandi, "O sentido anterior desautorizado.[...] Esse dizer irrompe no processo significativo de tal modo que pelo seu prprio surgir produz sua "memria".[. . .] Cria tradio de senti-dos projetando-se para frente e para traz, trazendo o novo para o efeito do permanente[...] Produz desse modo o efeito do familiar, do evidente, do que s pode ser assim."1 7

    As consideraes sobre o patriarcal ismo da sociedade in-dgena brasileira fazem parte de um discurso fundador cuja me-mria e tradio sobre a relao de gneros so assim inauguradas no Brasil. A histria retoma assim seus discursos e nos recria a imagem de um pas do qual as origens "naturais" indicam uma predominncia do homem sobre a mulher. As afirmaes assim fundadas resultam na eterna "luta dos sexos" e "a universal domi-nao da mulher pelo homem", discurso do qual os historiadores se fazem cmplices ou mentores. E este tipo de "evidncia" que institui no imaginrio social a representao de universalidade hierarquizada na relao entre mulheres e homens, relao esta definida pela marca indelvel do "determinado para sempre" das origens ao fim da humanidade, confirmada pelo presente. E este gnero de evidncias que uma histria ao feminino deve eliminar.

    Com seus discursos ambguos, atravessados de espanto, os cronistas indicam a construo de uma nova ordem que no leva

    37. Eni Pulcinelli Orlandi, op.cit., p. 13 e 1 14.

  • Construo imaginria cia Historia e dos gneros 143

    em conta e que, sobretudo, no v uma organizao social formu-lada por outras representaes do mundo. Ao contrrio, os portu-gueses vo se empenhar na destruio da maneira de viver dos indgenas, do ponto de vista material - com a escravido e os mas-sacre sistemtico - e do ponto de vista social/moral - com a ins-taurao de seu imaginrio e da moral bi-sexuada (uma masculina e outra feminina) enfim, de suas normas e valores onde o masculi-no domina o feminino. O mundo indgena esfacela-se assim sob o olhar do colonizador e desaparece sob os golpes da sei vageria crist.

    A escolha do gnero

    Os ndios do Brasil conheciam poucas restries sexuais, parte algumas interdies entre parentes. Por outro lado, fato no-tvel para os estudos de gnero, as categorias mulher/homem no eram definidas a partir do sexo biolgico. Com efeito, cada qual podia escolher sua ligao um ou outro grupo e exercer sua sexualidade como bem entendia. O homossexualismo era uma pr-tica como qualquer outra e no levava a nenhuma espcie de ex-cluso.

    Gabriel Soares de Sousa mostra-se indignado por estas pr-ticas e fala unicamente de homens "[...]so muito afeioados ao pecado nefando, entre os quais se no tm por afronta; e o que serve de macho, se tem por valente e contam esta bestial idade como proeza; e nas suas aldeias pelo serto, a alguns que tm tenda p-blica a quantos os querem como mulheres pblicas." 3 8 Falar nun-ca neutro e mais uma vez a linguagem vem sublinhar os valores, os pr-juzos, as representaes de gnero do emissor. Os discur-sos, entretanto, desvelam imagens histricas, cuja historicidade mesmo despedaa os moldes dos paradigmas.

    Gilberto Freyre, nosso contemporneo, diz a ltima pala-vra sobre a questo, em seu limitado entender:" impossvel veri-

    38. Gabriel Soares de Souza, op. cit., p. 308.

  • 144 Tnia Navarro Swain

    ficar at que ponto, na Amrica primitiva a prtica provinha ou no da perverso congnita. Com efeito, a pederastia no tinha sua origem na falta ou na raridade de mulheresf...] mas na segre-gao dos jovens nas casas secretas dos homens" Gandavo, no sculo X V I tem um outro tipo de discurso, onde aborda, de forma oblqua, um assunto to "perigoso" que por ele passa sem comen-trios: "Algumas ndias ha que tambm entre elles determinam de ser castas, as quaes nam conhecem homem algum de nenhuma qualidade, nem o consetiro ainda que isso as matem. Estas dei-xam todo exerccio de mulheres e imitam os homem e seguem seus ofcios, como senam fossem fmeas. Trazem os cabelos cor-tados da mesma maneira que os machos, e vo guerra com seus arcos e frechas, e caa perseverando sempre na companhia dos homens e cada uma tem mulher que a serve, com quem diz he casada, e assi se comunicam e conversam como marido e mulher."4 0

    A escolha do ser homem ou mulher aparece aqui de forma evidente: se a mulher decide ser um homem ela ser considerada e aceita como tal. O indivduo escolhe assim seu gnero, seu papel sexuado na sociedade e portanto, seu papel social. No havia de-terminaes "naturais" ou sociais impondo a heterossexualidade. Os discursos positivistas sobre a evoluo ou sobre a selvageria no conseguem reduzir a importncia deste fato. Sua razo hist-rica, sua historicidade, a emergncia na literatura do sculo X V I de uma sociedade cujos membros podiam escolher o gnero ao qual querem pertencer constitui um acontecimento, uma ruptura na ordem do discurso. E uma falha que se cria em nvel de imagi-nrio e que abre os horizontes do possvel em histria.

    Todavia, a historiografia, como veremos adiante, ir rapi-damente fechar estas brechas e trazer o mundo ordem do discur-so. Outra parte de grande interesse da histria feita pelos cronistas refere-se presena das Amazonas, que os intrigam e perturbam. Com efeito, no sculo X V I , as mulheres haviam sido desalojadas,

    39. Gilberto Freyre, op. cit., p. 130. 40. Gandavo, op. cit.. p. 56 e 57.

  • Construo imaginria da Histria e dos gneros 145

    em grande parte, da vida poltica e econmica na Europa. Ao lon-go dos sculos precedentes, como mostra Rgine Pernoud 4 1 , as mulheres detinham um papel considervel nos negcios, na pro-duo e no comrcio, na educao. Entretanto, o imaginrio cris-to tornando-se hegemnico nesta poca, as mulheres passaram a ser representadas como seres mental, moral e fisicamente frgeis 4 2 . Me, santa ou demnio, estas classificaes no suporta-vam a imagem de guerreiras, de mulheres fortes e independentes, capazes de lutar, matar e assegurar sua sobrevivncia na floresta.

    Os cronistas hesitam entre o maravilhoso e a terra firme de suas representaes. O maravilhoso aparece apenas para melhor desaparecer, para melhor assegurar o ordenamento do mundo, seus valores e suas imposies. As Amazonas so seres improvveis, impossveis, pois elas escapam ao "natural", ordem do divino e instituio do humano. Os cronistas notam muitas vezes mulhe-res guerreiras, que participam das lutas contra os europeus. Selva-gens, porm mulheres, que partilhavam a vida dos homens, nor-mais, portanto.

    Gandavo indica que entre os Aymors " [ . . . ] As mulheres trazem huns paos tostados com que pe le jo ." 4 3 Explica em segui-da que este povo um dos mais ferozes e selvagens: " [ . . . ] no tm rosto direito aa ningum, seno a traio fazem a sua [...] Esses ndios no vivem seno pela frecha, seu mantimento eh a caa, bichos e carne humana 4 4. As Amazonas fazem parte de uma outra espcie, indomveis, que espalham o medo e o terror sua volta. Enviadas ao maravilhoso, as Amazonas tornam-se aceitveis aos olhos dos colonizadores, pois o maravilhoso detm um lugar es-sencial no mundo do sculo X I X , nem que fosse apenas para assegurar a ordem do "real". A aproximao feita pelos cronistas

    41. Rgine Pernoud. La femme au temps des calhdrales. Paris: Stoek, 1980. 42. Ver, a este respeito, por exemplo, Jean Delumeau. La peuren Occident. XIV/XVMmc

    sicle. Paris: Fayard, 1978. 43. Aimor era um dos povos indgenas do Brasil, assim como os tamoios, tapuias,

    goitacazes, tupinambs, tupiniquins. 44. Gandavo, op. cit., p. 77.

  • 146 Tnia Navarro Swain

    em seu discurso , entre as guerreira indgenas e as Amazonas gre-gas instaura um contrato veridictrio ambguo com os receptores de pocas posteriores, na medida em que o apresentado como real, imediatamente transportado para a dimenso do mtico, fabulo-so, ilusrio.

    Thvet explica longamente a origem das Amazonas brasi-leiras como sendo descendentes de Pentasilia dispersas pelo mun-do aps a guerra de Tria ou sobreviventes das amazonas africa-nas. Parece, entretanto, crer em sua existncia, e descreve seus costumes, alimentao, habitat, etc: " [ . . . ] elas vivem separadas dos homens , e s raramente esto juntos [...] este povo habita em pequenas cabanas ou cavernas nos rochedos, vivendo de peixe ou de alguns animais selvagens, razes ou de frutos nativos. Matam seus filhos machos assim que nascem [...] se um menina guar-dam-nas com elas exatamente como as primeiras amazonas fazi-am. Normalmente elas guerreiam contra algumas naes [...] Quan-to aos prisioneiros elas os matam com suas flechas e no os co-mem como os outros selvagens, mas os queimam at que sejam reduzidos a cinzas." 4 5 Por outro lado, para atemorizar os inimigos que freqentemente vinham atac-las, as guerreiras "...davam gri-tos maravilhosos e brbaros [ . ] " 4 6 . Gabriel Soares de Souza faz igualmente aluso aos combates destas guerreiras, neste caso com o grupo dos Ubirajaras: " [ . . . ] so muito temidos pelos amoipiras, com os quais tem guerra por uma banda e pela outra, com umas mulheres que dizem ter uma s teta, que pelejam com arco e fle-cha, e se governam e regem sem maridos, como se diz das amazo-nas; dos quais no podemos alcanar mais informaes, nem da vida e costumes destas mulheres 4 7 .

    Thvet tambm relata o encontro dos espanhis com as guerreiras: " [ . . . ] nossos peregrinos no haviam parado seno o necessrio para se repousar e buscar alguns vveres, porque estas

    45. Thvet. op. cit., p. 167. 46. Idem, ibidem. Al. Gabriel Soares de Souza, op. cit.. p. 337.

  • Construo imaginria da Histria e dos gneros 147

    mulheres to admiradas de v-los com aquele equipamento que lhes era to estranho reuniram-se logo de 10 a 12 mil em menos de trs horas, meninas e mulheres nuas, mas com arco e flecha na mo, gritando como se tivessem visto seus prprios inimigos [...] ao que no quiseram resistir e em seguida se retiraram com sua honra preservada."48 Com efeito, se na ordem do discurso do s-culo X V I , as amazonas so atreladas s filiaes da antigidade, isto no se d para por em dvida sua existncia, mas ao contrrio, para confirm-la atravs das comparaes j realizadas. O mara-vilhoso, que atravessa as representaes, cria um espao possvel para a existncia de mulheres cujo modo de vida prescindia da presena e da companhia dos homens. O estranho, (neste caso, o Brasil) poderia perfeitamente abrigar o bizarro (as Amazonas), mas as representaes de gnero so muralhas que resistem aos inva-sores, sobretudo s invasoras, cuja existncia, ela mesma, poderia transtornar a ordem do poder e da dominao no imaginrio soci-al. Por outro lado, no sculo X V I I I , Condamine, que navegou no Amazonas, faz um longo discurso sobre as mulheres guerreiras: " [ . . . ] ao longo de nossa navegao havamos perguntado aos ndi-os de diversas naes [...] se eles tinham conhecimento destas mulheres belicosas que Orellana teria encontrado e combatido [ . . . ]" Acrescenta que as informaes " [ . . . ] tendem a confirmar ter havi-do neste continente uma repblica de mulheres que viviam sozi-nhas, sem ter homens com elas. 4 9"

    Condamine acrescenta igualmente vrios testemunhos, in-clusive de governadores espanhis a respeito de mulheres que no tinham marido e se inquieta sobre sua localizao geogrfica no mundo conhecido poca. O autor, dentro do esprito racionalista do sculo X V I I I tenta combinar os testemunhos com a dvida plan-tada em seu esprito por suas representaes sobre os gneros: " [ . . . ] o que me parece mais possvel do que todo o resto que elas te-nham perdido com o tempo seus antigos usos, seja porque tenham

    48. Thvet, op.cit., p. 167/168. 49. Ch. M. de la Condamine. Voyage sur 1'Amazone. Paris: Maspero,l98l, p. 84.

  • 148 Tnia Navarro Swain

    sido subjugadas por uma outra nao, seja porque, cansadas da solido, as jovens tenham finalmente esquecido a averso de suas mes quanto aos homens. 5 0 "

    Mulheres sozinhas e aborrecidas sem a presena masculi-na uma idia extremamente difundida, que se perpetua no interdiscurso, e cuja simples enunciao significa sua evidncia at nossos dias. Os homens, por sua vez, entre eles se divertem, criam, trabalham. Tais representaes resultam em prticas soci-ais onde as mulheres vivendo entre elas demonstram uma anor-malidade biolgica e social. Os cronistas do sculo X V I , por sua vez , debruam-se sobre as reunies dos ndios e no se demoram um instante sobre as das mulheres, tarefa ociosa em seu entender, apesar de sua importncia social.

    A dvida metdica entra nas consideraes de Condamine: "se, para neg-lo, alega-se a falta de verosimilhana e a espcie de impossibilidade moral que haveria em que uma repblica de mu-lheres deste tipo possa ter se estabelecido e subsistido, no insisti-rei sobre o exemplo das antigas amazonas [...] j que o que lemos nos historiadores antigos e modernos , no mnimo matizado de fbulas e sujeito contestao." 5 1 Este j um discurso da poca clssica que se considera cientfico e reafirma argumentos, expon-do-os, sem adot-los de maneira peremptria: impossibilidade moral, falta de verosimilhana. Trata-se de um simples recurso de retrica que invoca a adeso do leitor, no quadro de representa-es do sculo X V I I I , onde as mulheres perdiam cada vez mais seu lugar e seus direitos cvicos. Aps dois sculos de transforma-es sociais criadas pelos europeus, Condamine estima que [...] se algum dia houve amazonas no mundo, na Amrica, onde a vida errante das mulheres que seguiam seus maridos guerra [...] fez-lhes nascer a idia e forneceu-lhes ocasies freqentes de escapar ao jugo de seus tiranos, buscando criar um lugar onde elas pudes-sem viver de forma independente[...]". 5 2

    50. Idem, p. 87. 51. Idem, p. 88. 52. Ibidem.

  • Construo imaginria da Histria e dos gneros 149

    Nas representaes binrias do mundo indispensvel que as mulheres no escolham viver entre si, por livre opo. A cria-o de um sentido explicativo se impunha e ser realizada em uma rede de representaes de gnero que se entrecruzam e se imbri-cam, negam-se e afirmam-se no caminhar dos sculos. No decor-rer da poca dos Iluministas e da Revoluo Francesa, as indge-nas guerreiras, altivas e livres so definitivamente relegadas ao mito, uma ilusria anomalia dos afrescos desenhados pela natu-reza. Enterradas pelo discurso da razo, as Amazonas americanas transformam-se em mulheres tiranizadas que fogem para a flores-ta. Em nossa poca, Srgio Buarque de Holanda situa definitiva-mente as Amazonas indgenas na dimenso mtico/ilusria; para este autor, o fato de enxergar mulheres guerreando ao lado dos homens podia criar a imagem das Amazonas: "[...] de tal espet-culo, entretanto, onde pareciam misturar-se o real e o fantstico, devia nascer o ambiente propcio ao mito. "S3

    Para este autor, os relatos dos espanhis eram uma produ-o tpica de um imaginrio exacerbado pela busca do maravilho-so. As Amazonas eram ento colocadas na mesma esfera signifi-cativa da Fonte da Juventude, do Eldorado, dos monstros que ha-bitavam a terra e os mares: [..] em Quito, a Academia Real inves-tiga a existncia, em certas provncias destas 'viragos', capazes de se sustentar sem a companhia dos homens, salvo em certas circunstncias." Sublinha, ainda, que fora das categorias do possvel, a existncia das Amazonas era a simples confirmao de tudo o que queriam ver o capito e seus companheiros.5 5

    Nesta diviso entre o real e o imaginrio , a histria decide sobre o que admissvel na espessura do real: unicamente o que contm as representaes disponveis para a decodificao dos sig-nos. Que as Amazonas tenham existido ou no, esta no a ques-

    53. Srgio Buarque de Holanda. Viso do Paraso. Sao Paulo: Ed. Naeional/USP, 1969, p. 25.

    54. Ihidem. 55. Idem, p. 28.

  • 150 Tnia Navarro Swain

    to. O que verdadeiramente importa a possibilidade de sua exis-tncia, negada pela histria no quadro das representaes binrias de gnero. Por sua vez, a historiografia contempornea retoma os cronistas para esboar o quadro das sociedades indgenas. Florestan Fernandes 5 6, em suas condies de representao, classifica as indgenas que escolhem o papel masculino na sociedade como "trbades"; cita os cronistas, que indicam simplesmente sua exis-tncia e maneira de viver, acrescentando seus prprios julgamen-tos de valor: "Segundo esta fonte as mulheres trhades assumiam as atitudes culturalmente definidas como masculinasf...] adota-vam a forma masculina de penteado e contraam npcias como os homens [...]Adquiriam , pois, atravs destes conbios, toda esp-cie de parentesco adotivo e de obrigaes assumidas pelos ho-mens em sues casamentos[...] Formalmente, porm, parece que este era simples recurso para atribuir status s mulheres que cons-tituam desvios psicolgicos[...f7 O mesmo autor acrescenta: "A avaliar pelas informaes, esses desvios eram pouco freqentes e em algumas situaes pelo menos, de acordo com as informaes de Gandavo, a sociedade resolvia o problema eliminando as mu-lheres trbades.5H

    Estas citaes so exemplares para mostrar a influncia do quadro de representaes de um autor sobre suas explicaes, tan-to mais que uma leitura minuciosa de Gandavo (a fonte por ele citada) no permite absolutamente admitir a eliminao destas mulheres, nem que sua existncia possa constituir um problema para a tribo. Doena, problema, desvios psicolgicos, as possibili-dades infinitas da histria das relaes humanas so reduzidas excluses modernas ou aos eternos silncios quando se trata das relaes entre mulheres. Por sua vez, entretanto, as relaes ho-mossexuais entre homens so mais abordveis e/ou explicveis.

    56. Autor muito conhecido nos meios acadmicos brasileiro e internacional, antigo professor da USP e da universidade de Toronto.

    57. Florestan Fernandes. A organizao social dos Tupinambs. SP: Hucitec, 1989, p. 137/138.

    58. Idem, p. 138.

  • Construo imaginria da Histria c dos gneros 151

    Florestan Fernandes procura justific-las pela necessidade: "Pa-rece-me que as prticas sodomticas dos Tupinambs devem ser encaradas em termos dessas dificuldades na obteno de parcei-ras sexuais. "59

    Efetivamente, a homossexualidade masculina faz parte da histria conhecida, sem que seu aparecimento traga modificaes na ordem da representao binaria dos gneros. Paul Veyne ad-verte muitas vezes em seus livros a respeito da utilizao dos ana-cronismos na histria, das palavras cujos sentidos pertencem rede atual de significaes, empregadas para significar seres ou situa-es longnquas no tempo e no espao. Foucault, por seu lado, interroga-se a respeito da convenincia de dizer que mesmo os gregos eram homossexuais. "De fato, a noo de homossexuali-dade pouco adequada para recobrir uma experincia, formas de valorizao e um sistema de recortes to diferente dos nos-sos. 50

    Florestan Fernandes, por exemplo, atribui s relaes entre mulheres conceitos ainda pouco utilizados mesmo no seu tempo6 1

    e sobretudo, em seus enunciados desqualifica estas relaes. No que diz respeito organizao social e poltica, Florestan Fernan-des descreve uma ordem patriarcal, onde classifica os tipos de dominao, oligarquias (conselho do ancios) e carismtica (o prin-cipal e os pajs); dedica um captulo ao Conselho doa Ancios, tratado no masculino. Ora, Thvet e Evreux confirmam o grande prestgio das ancis . 6 2 O Principal como j vimos, era espontane-amente seguido nas atividades da guerra; o paj, por sua vez, po-dia ser uma mulher. A anlise no pode ser feita no domnio do

    59. Idem, p. 136. 60. Michel Foucault. Histoire de Ia sexualit- Vusage des plaisirs. Paris: Gallimard,

    1984, vol 11, p. 207. 6 1 . 0 livro citado de Florestan Fernandes de 1948; em 1953, o Nouveau Petit Laroussc

    de Claude et Paul Auge, no continha ainda a palavra tribade e o lesbianismo era definido como: De Lesbos. Por outro lado, a psicopatologia, poca classificava o tribadismo com doena mental.

    62. Thvet, op. cit. e Evreux, apud Alfred Mtraux, A religio dos Tupinambs. So Paulo: Ed. Nacional/USP, 1979, p. 67.

  • 152 Tnia Navarro Swain

    impensvel: uma sociedade sem chefe definido, sem hierarquiza-o dos sexos, onde, no entanto, o papel das mulheres era poltica e economicamente extremamente importante. Os indcios, entre-tanto, as marcas discursivas nos discursos dos cronistas criam imagens orquestradas por relaes sociais que desautorizam a or-dem do "natural".

    Fernandes indica o papel decisivo das mulheres enquanto agentes econmicos; mas reelabora a organizao indgena no cam-po das representaes: "contudo , acredito que ela deve ser enca-rado do ponto de vista das compensaes recprocas garantidas pelo sistema de distribuio das ocupaes. Entre elas ressalta a proteo permanente assegurada mulher pelo homem. " u Aps a leitura dos cronistas, Fernandes comenta: a situao prec-ria em que ficavam os homens Tupinambs que no dispunham de mulheres (me, irm, esposa) que cuidassem deles".64 Mas de sua prpria lavra o autor acrescenta, para marcar a importncia dos homens, que "As mulheres poderiam passar grandes privaes sem o apoio dos homens "6S

    Por outro lado, descreve de uma forma generalizante a po-ligamia, que, como indicamos, era muito restrita; da mesma forma enfatiza o papel do homem- chefe de famlia- ainda que o pargra-fo que segue mostre a grande importncia da mulher no lar: "Cada chefe de famlia possua um lote exclusivo de algumas jeiras de terra nas plantaes feitas em comum [...] e cada uma das espo-sas tinha seu lote particular. O produto de cada horta devia ser consumido, em condies noramis, pelo grupo restrito dos mem-bros de cada lar polgino"''6 Acrescenta em seguida, citando os cronistas: "[...] cada filho entrega tudo o que traz de caa sua me[...]Com o matrimnio[...] devia entregar o produto de seu trabalho sua esposa. "6?

    63. Idem, p. 113. 64. Idem, p. 114. 65. lindem. 66. Idem, p. 122. 67. Ibidem.

  • Construo imaginria da Histria e dos gneros 153

    Assim, vemos a interpretao que esculpe uma sociedade ao sabor das representaes do presente, onde se perpetuam pa-pis que determinam os gneros, utilizando argumentos a respeito de uma "natureza" universal, manifestada, segundo esta tica, numa montona uniformidade histrica. No entanto, a razo histrica nos prova que, no plano das relaes humanas e da prpria nature-za, tudo possvel e que a singularidade o objeto precpuo da histria. No entanto, o que a histria no diz, nunca existiu e a histria silencia ou lana no domnio das coisas bizarras, o que no semelhante, o que no se manifesta por si mesmo. Desta forma, o rudo dos discursos constri uma histria imagem de seus autores e de suas representaes, conforme os valores liga-dos a uma viso binaria do mundo.

    As redes de sentido singulares que do uma significao s imagens de si e do outro so ignoradas, na medida em que os eixos rgidos de interpretao impedem e reduzem a infinita polissemia das relaes humanas. Neste quadro, as mulheres fo-ram expulsas da histria, no porque estivessem dela ausentes, mas porque o discurso histrico as tornou invisveis, modelou-as inexoravelmente como seres inferiores, imobilizadas em papis subordinados, dominadas, mesmo onde os indcios clamam di-ferena. A livre escolha dos gneros na sociedade indgena brasi-leira na poca do descobrimento mostra que a "natureza" mente.6 8

    Os estudos feministas tm a tarefa de rever o lugar das mulheres e a partilha do poder entre os gneros em sua historicidade, logo, em sua pluralidade, na infinita re-criao do humano.

    68. No original em francs, "nature-elle-ment" jogo de palavras utilizados pela revista Questions Fministes em um dossier sobre a "natureza" dos sexos.