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1. BIOGRAFIA.

1914 – Carolina Maria de Jesus nasce em Sacramento(MG), em 14 de março. Filha de Maria Carolina ede pai desconhecido. Cresce sob a influênciaafetiva da mãe e sob a intelectual do avô materno,o africano Benedito José da Silva, que chama de“o Sócrates africano”.

1923 – Neste e no próximo ano frequenta o colégio AllanKardec. Seu tempo de escolarização formal foipequeno, mas o suficiente para despertar o gostopela leitura, que nunca abandonou, mesmo nosmomentos de maior dificuldade econômica ouexistencial.

1924 – Sua mãe estabelece nova união conjugal, o que fazCarolina Maria de Jesus abandonar a cidade – e aescola – para morar em uma fazenda em Lajeado(MG).

1927 – Volta a Sacramento.1930 – Não encontrando mais meios de sobrevivência em

Minas Gerais, viaja a pé para Uberaba (MG) evárias cidades do interior paulista: Franca,Ribeirão Preto, Jardinópolis, Orlândia. Trabalhacomo boia-fria, ajudante geral, auxiliar de cozinhae doméstica.

1937 – Com a morte da mãe, muda-se para a cidade deSão Paulo.

1940 – Nesta década, começa a escrever um diário, queserá a base de Quarto de Despejo.

1941 – Por meio do jornalista Willy Aureli (1898-1968),publica na imprensa um poema sobre GetúlioVargas.

1948 – Grávida de João José, perde o emprego. Sem oapoio do marinheiro português que a engravidara,muda-se para a Favela do Canindé, às margens dorio Tietê, na zona norte da cidade de São Paulo.Seu barraco era o 9.

1950 – Nasce José Carlos, filho que tivera com umespanhol.

1953 – Nasce Vera Eunice, filha que tivera com um donode fábrica e comerciante.

1958 – Conhece por acaso o jornalista Audálio Dantas(1929-2018), que fora à favela do Canindé parauma reportagem na Folha da Manhã sobre essetipo de moradia. Descobre em Carolina Maria deJesus uma fonte mais preciosa do que qualquertexto que ele próprio poderia produzir sobre esseassunto. A autora mostra seus escritos, mas o quede imediato chama a atenção é o diário. Seusrelatos começam então a ser publicados nesseveículo de imprensa.

1959 – Parte dos diários de Carolina Maria de Jesus saina revista O Cruzeiro, publicação muito influenteà época.

1960 – Quarto de Despejo é lançado em 19 de agosto. Sónos três primeiros dias, vendeu mais de dez milexemplares. É traduzido para 14 línguas: dina -marquês, holandês, alemão, francês, inglês, checo,italiano, japonês, castelhano, húngaro, polonês,sueco, romeno e russo. Graças ao sucesso devendagem, compra uma casa em Santana, bairrode classe média da zona norte de São Paulo. Éhomenageada pela Academia Paulista de Letras epela Academia de Letras da Faculdade de Direitoda Universidade de São Paulo.

1961 – Viaja para Argentina (onde recebe a OrdenCaballero del Tornillo), Uruguai, Chile.Desentende-se com Jorge Amado (1912-2001),pois entende que o autor baiano, responsável porum evento literário no Rio de Janeiro, privilegioua divulgação de sua obra, Gabriela, Cravo eCanela, em detrimento de Quarto de Despejo.Publica Casa de Alvenaria: Diário de uma ex-favelada, que não alcança o sucesso de Quarto deDespejo: Diário de uma Favelada.

1963 – Publica Pedaços de Fome.1966 – Carolina Maria de Jesus volta aos noticiários como

catadora de lixo.

QUARTO DE DESPEJO

AULAS ESPECIAISAS OBRAS DA UNICAMP

PORTUGUÊS

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1969 – Vítima de racismo no bairro de Santana,enxergada apenas pela intelectualidade comoexótica e efêmera matéria de consumo, nãosabendo administrar a fama, não conseguindoemprego – “artista não precisa trabalhar” –, tendosua obra desprezada para não desagradar aditadura militar, exila-se em um sítio que haviacomprado em Parelheiros, na periferia da cidadede São Paulo.

1974 – Pesquisadoras entrevistam Carolina Maria deJesus para um livro sobre mulheres de destaque.É quando entrega Um Brasil para os Brasileiros,que é publicado postumamente como Diário deBitita, primeiro na França, depois no Brasil.

1975 – Estreia o filme alemão O Despertar de um Sonho,dirigido por Christa Gottmann-Elter e que versasobre a vida de Carolina Maria de Jesus. Suaexibição é proibida no Brasil.

1977 – Falece em São Paulo, no seu sítio, em 13 defevereiro de 1977.

1991 – Estreia em Los Angeles o documentário PassionFlower: the Story of Carolina Maria de Jesus, deKaren Brown.

2009 – Até este ano, a obra de Carolina Maria de Jesusvendeu mais de um milhão de exemplares.

2. RESUMO

Sintetizar um diário é uma tarefa complicada, poisesse tipo de texto se caracteriza pela repetição de eventoscorriqueiros e muitas vezes sem grande importância. Maso que Carolina Maria de Jesus nos apresenta em linhasgerais é o seu cotidiano de favelada. Sua vida centra-se naluta diária, quase que visceral e obsessiva, por obterdinheiro para a sua alimentação e a de seus filhos. Porisso, constantemente a autora faz com que suas páginassejam uma lista dos víveres que compra, não deixando demencionar o valor de cada um deles.

Eu não tinha um tostão para comprar pão. Então eu lavei 3

litros e troquei com o Arnaldo. Ele ficou com os litros e deu-me

pão. Fui receber o dinheiro do papel. Recebi 65 cruzeiros.

Comprei 20 de carne. 1 quilo de toucinho e 1 quilo de açucar e

seis cruzeiros de queijo. E o dinheiro acabou-se.1

Assim, o dinheiro se torna coisificado, muitas vezesfuncionando meramente como instrumento não de vida,tampouco de sobrevi vência, mas de sobrevida.

A diarista, em meio a toda essa dificuldade, mostra-seextremamente determinada. Mesmo enfrentando a fraquezada má alimentação e até mesmo da fome, dedica-se a catarpapel e demais materiais recicláveis. Tudo o que obtémserve apenas para a despesa do próprio dia, o queatrapalha a construção de um futuro e a libertação damiséria a que está submetida. O mais crítico é que muitasvezes o que adquire não é suficiente para o sustento,obrigando-a buscar alimento para si e para seus filhos nolixo – recurso extremo que considera conde nável. Provadisso é o seguinte trecho:

Eu ontem comi aquele macarrão do lixo com receio de morrer,

porque eu vendia ferro lá no Zinho. Havia um pretinho bonitinho.

Ele ia vender ferro lá no Zinho. Ele era jovem e dizia que quem

deve catar papel são os velhos. Um dia eu ia vender ferro quando

parei na Avenida Bom Jardim. No Lixão, como é denominado o

local. Os lixeiros haviam jogado carne no lixo. E ele escolhia uns

pedaços: Disse-me:

– Leva, Carolina. Dá para comer.

Deu-me uns pedaços. Para não maguá-lo aceitei. Procurei

convencê-lo a não comer aquela carne. Para comer os pães duros

ruidos pelos ratos. Ele disse-me que não. Que há dois dias não

comia. Acendeu o fogo e assou a carne. A fome era tanta que ele

não poude deixar assar a carne. Esquentou-a e comeu. Para não

presenciar aquele quadro, saí pensando: faz de conta que eu não

presenciei esta cena. Isto não pode ser real num paiz fertil igual

ao meu. Revoltei contra o tal Serviço Social que diz ter sido

criado para reajustar os desajustados, mas não toma

conhecimento da existencia infausta dos marginais. Vendi os

ferros do Zinho e voltei para o quintal de São Paulo, a favela.

No outro dia encontraram o pretinho morto. Os dedos do seu

pé abriram. O espaço era de vinte centimetros. Ele aumentou-se

como se fosse de borracha. Os dedos do pé parecia leque.2

A situação a que Carolina está submetida é maisproblemática porque o ambiente em que mora, a favela,mostra-se como um espetáculo do que há de mais torpeno ser humano. Lá as mulheres se entregam à maledi -cência, chegando a provocar brigas. Lá os filhos deCarolina, em meio a desentendimentos, são atingidos porfezes atiradas pelos vizinhos. Lá alguns bandidos

1 JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada.10. ed. São Paulo: Ática, 2014, p. 11. 2 Ibidem, p. 39-40.

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encontram moradia ou mesmo refúgio. Lá váriosmoradores se entregam ao alcoolismo – até mesmocrianças. Lá filho bate em pai, o que alimenta a violência,muitas vezes doméstica. Lá pai chega até a abusarsexualmente de filha.

A diarista honrosamente se esforça em se afastar dessasordidez. É sempre das primeiras a buscar água na únicatorneira, para evitar o contato com as demais moradoras,sempre preocupadas em falar da vida alheia e emcondenar Carolina por ser mãe solteira – apesar de elainsistentemente preferir se manter assim a se igualar àsvizinhas, sem dignidade ao se deixarem ser dominadas porrelacionamentos abusivos. Mas a ferramenta maisexpressiva de diferenciação utilizada pela diarista é abusca pela erudição. Enquanto o som das brigas conjugaisse espalhava pela favela, a autora se dedicava a ouvirvalsas vienenses. Enquanto os demais favelados seentregavam a baixarias, muitas delas em brigas em que asmulheres tinham a roupa rasgada e, assim, acabavamexpostas à vexatória nudez pública, a autora se envolviacom a leitura e a escrita.

Outro aspecto no qual Carolina sai engrandecida é adedicação aos filhos. Prova disso é que evita relaciona -mentos afetivos semelhantes aos de suas vizinhas,chegando a não admitir que um suposto namorado durmasob o mesmo teto em que ela abriga seus próprios filhos.Além disso, não quer que suas crianças trabalhem – o quepoderia ajudar no sustento do lar. Dá prioridade a queestudem, o que é visto como garantia de evolução social.

Além disso, a diarista mostra-se extremamentepolitizada. Acompanha os noticiários e exprime comdesenvoltura opiniões sobre os governantes da época,como Ademar de Barros (1901-1969) e JuscelinoKubitschek (1902-1976). Condena o estilo polêmico ealimentador de intrigas de Carlos Lacerda (1914-1977),que chega a chamar de político de cortiço. Criticaferozmente os políticos que só aparecem na favela emperíodo de eleição e depois dão as costas para os pobres.

Ainda assim, Carolina, tão superior e diferenciada, emalguns momentos não sai ilesa dos problemas sociais emque está inserida. É discriminada como mãe solteira, aindamais por escolher ser assim – o que é visto como arro -gância, o que na verdade pode também ser um mecanismode defesa. Os homens que arranjara no fundo não forambenéficos, deixando-lhe a responsabilidade de criar trêsfilhos. O último dos amantes é um misterioso empresárioque nunca é identificado, preocupando-se em ter o nome

protegido. Pior: atrapalha a vida da diarista ao nãocontribuir de forma pontual e suficiente com as despesaspara a criação da caçula, Vera. Escolada, Carolina passa aevitar relacionamentos, mas – a carne é fraca – hámomentos (raros) em que se entrega a um homem. Umdeles é um humilde e honrado trabalhador, o outro é umcigano. Sai desses enlaces decepcionada consigo mesma,já que se vê como vítima de uma presumida fraquezafeminina. Mas faz questão de tornar esses eventosefêmeros, pois crê que nenhum amante aceitaria umamulher que leva para a cama lápis e caderno.

Carolina é vítima também de preconceito por causa desua condição étnica e econômica. Ser chamada de “negrafidida” tornou-se para ela rotineiro. Mas a autora não renegasua origem, ao contrário, chega a encará-la com orgulho,ainda que não levante bandeira em defesa da causa dosafrodescendentes. Entretanto, é certo que em outrosmomentos incorpora o racismo de que ela própria é vítima,como no episódio em que diz que gostaria de ser da espéciedas negras escandalosas, acostumadas a arrumar briga econfusão. Essa contradição pode ser vista como deméritopara a escritora, mas também contribui para tornar seucaráter mais denso e complexo.

A virada de jogo para Carolina surge no momento emque Audálio Dantas, jornalista do grupo Folha da Manhã,visita a favela do Canindé, preocupado em colher materialpara uma reportagem a respeito dessa comunidade. Équando flagra a protagonista repreendendo um grupo deadultos que usava os brinquedos que a prefeitura tinhadeixado para as crianças da localidade. Como mecanismode persuasão ela chegou a ameaçar de colocar em seudiário a falta de educação que os indivíduos estavampraticando. O caráter incisivo da mulher atraiu o interessedo repórter, o que o inspirou a estabelecer contato comela. Recebendo atenção, a diarista vê-se incentivada amostrar seus escritos. Deles, o que conquista Dantas é umconjunto de mais de 20 cadernos amarelados: o diário deCarolina. Ele encontrou aí material muito mais rico do quequalquer texto que poderia escrever, pois era um relato dafavela vindo de dentro.

Graças ao apoio de Dantas, a literatura de CarolinaMaria de Jesus passa a ser publicada no jornal Folha daManhã e na revista O Cruzeiro, veículo de grande sucessona época. A autora transforma-se em celebridade, mastambém vira persona non grata na favela, pois tornarapública a má qualidade das relações sociais de seusmoradores. No entanto, esse é um fator que parece ser

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ignorad o pela escritora, pois ela própria não se via iden -tificada com os demais integrantes da sua comunidade.

Ainda assim, pelo menos no período de tempo abar -cado pelo diário, a mudança só se manifestara no camposocial – Carolina agora era famosa –, mas não noeconômico: continuava moradora de favela e ainda se viaobrigada a catar papel na rua para garantir sua sobrevi -vência. Sintomático é o fato de Quarto de Despejoencerrar-se em 1º de janeiro de 1960 apenas com alacônica declaração:

Levantei as 5 horas e fui carregar água. 3

Ano novo, velha rotina. A vida de Carolina mostrava-se sem saída, tão forte o quadro de injustiça social a queestava submetida.

3. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

O primeiro ponto a se considerar a respeito de Quartode Despejo é a veracidade do diário. Tradicionalmente,esse gênero textual apresenta uma dificuldade em suaanálise, pois os produtos dessa categoria nascem comoescrita privada, íntima, particular. No entanto, quandochegam ao público, perdem a sua característica essencial.Ainda assim, há que se considerar que não há uma traiçãoà sua essência ou uma hipocrisia em sua configuração,pois se acaba lidando com duas realidades: a privada,pertencente ao caderno íntimo e a pública, pertencente aolivro. É nesse último momento que, passando por edições,tal tipo de obra ganha outra configuração. E é somentenesta que deve ganhar importância literária.

Em Quarto de Despejo essa problemática se tornamais crítica, pois a própria autora deixa claro que o queescreve não tem como função a confissão privada.Inúmeros são os momentos em que ela afirma que aintenção com a sua escrita é torná-la um instrumento paratocar os políticos, incentivando-os a lutar pela eliminaçãodas injustiças sociais que ela testemunha e denunciainsistentemente em suas páginas. Além disso, sabe-se queAudálio Dantas, de posse dos mais de vinte cadernos queCarolina Maria de Jesus lhe entregou, fez inúmerasalterações, desde o corte das repetições (processo muitocomum na publicação de um diário), até a eliminação de

trechos que poderiam ajudar a compor a imagem da autoracomo uma mulher revoltada. Assim, a diarista acabouganhando uma feição de mulher submissa, mais palatávelpara o público, o que garantiria seu sucesso de venda.

Outro ponto a ser destacado é o testemunho pratica -mente documental do papel feminino em nossa sociedade.Carolina mostra-se como independente, decididamente mãesolteira, e por isso é discriminada até por pessoas que nãoconseguem manter a mesma dignidade que ela. Nota-setambém a carga que recai sobre a figura da mãe, que recebea responsabilidade de criar filhos, muitas vezes sem o apoiomínimo e decente do pai, coautor na concepção. A diaristaacaba expondo em suas páginas a dificuldade de ser mulherem um meio machista e patriarcal.

Ademais, Carolina Maria de Jesus relata o racismo deque é vítima. Constantemente é discriminada por serafrodescendente, até mesmo por quem é da sua mesmaetnia. Exemplo lamentável é o seguinte trecho:

... Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos.

Eles respondia-me:

– É pena você ser preta. 4

A sentença de Carolina, mesmo vazada comsimplicidade quase próxima da ingenuidade, é poderosa:

O branco é que diz que é superior. Mas que superioridade

apresenta o branco? Se o negro bebe pinga, o branco bebe. A

enfermidade que atinge o preto, atinge o branco. Se o branco

sente fome, o negro tambem. A natureza não seleciona ninguem.5

Moral da história: racismo não é natural. Quarto de Despejo é também uma obra valorosa

porque é testemunho de um processo de urbanização quese organizava nas grandes cidades brasileiras. São Pauloera exemplo de uma dinâmica que acabaria por expulsaros pobres de sua área principal e com melhor infraes -trutura. O congelamento dos aluguéis que a capital pau -lista impôs na década de 1940 tornou inviável aosproprie tários de cortiço a manutenção de um negóciovindo do século anterior e até então lucrativo. A saída eravender os imóveis, que seriam derrubados para oestabelecimento de largas avenidas e para a constru ção denovos prédios, que embelezariam a cidade. Não sepensou, entretanto, nos moradores pobres, que seriam

3 JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada. 10. ed. São Paulo: Ática, 2014, p. 191.

4 Ibidem, p. 11.5 Ibidem, p. 64.

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jogados para favelas ou expulsos para a periferia.Começava então a dinâmica da gentrificação.

Dentro desses aspectos, a obra de Carolina Maria deJesus torna-se um espelho de um processo de exclusãosocial. A autora, negra, migrante, mal escolarizada, éexemplo de como o Brasil, marcado por extremadesigualdade social, pode inviabilizar a cidadania ao vetarcondições minimamente decentes de sobrevivência. Osimples fato de a catadora de papel, por mais de uma vez,recorrer ao lixo para alimentar a si e a seus filhos éargumento veemente do que se está afirmando. Afora asvárias doenças de que ela e sua prole são acometidos:tuberculose, esquistossomose, lombriga, tudo por causado péssimo saneamento básico. O mais incrível é que todoesse quadro que Quarto de Despejo expõe está presenteem uma época marcada pelo desenvolvimentismo doperíodo de Juscelino Kubitschek, tornado célebre pelolema “50 anos em 5”. A obra de Carolina Maria de Jesusserviu de porta-voz de setores descontentes e prejudicadospelo modelo econômico então adotado pelo Brasil.

Inserida nesse contexto massacrante, a literaturafunciona como ferramenta de libertação. Para Carolina, aleitura e a escrita servem para afastá-la do contexto sórdidoem que está inserida. Em meio ao submundo da favela doCanindé, a autora consegue enxergar e produzir imagens

de beleza ligadas à natureza. E é também por meio dessaarte que ela vai alterar sua condição de vida. Não se vê oalcance econômico disso nas páginas do diário (esseaspecto será observado depois de sua publi cação), mas nocampo afetivo a evolução já está efetuada, pois a autoragarante, por meio de seu diário, o direito à estética e àfantasia, um dos pilares da formação da cidadania.

Por fim, resta destacar que, por causa da formaçãoescolar precária, Carolina Maria de Jesus não domina anorma culta, o que faz com que seu texto apresentediversos desvios gramaticais, principalmente no que serefere a ortografia, acentuação e concordância. Alémdisso, algumas vezes ela incorpora a seu texto termossofisticados que são fruto das leituras que realiza, princi -pal mente de poetas românticos, o que acaba criando o quese chamou de efeito lantejoula, tal é o destaque que essasexpressões provocam em meio a orações marcadas pordesobediências à norma gramatical muitas vezes gritantes.Ainda assim, esses procedimentos não invali dam o fazerestético da diarista. A autora sabe trabalhar com compe -tência figuras de linguagem, principalmente metáforas,comparações e até ironias. Merece, portanto, não serpejorati vamente considerada apenas como mera escrevi -nhadora, mas como escritora, o que sempre fora seusonho.

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ExercíciosTexto para as questões de 1 a 6.

13 de maio [de 1958] Hoje amanheceu chovendo. Éum dia simpatico para mim. É o dia da Abolição. Dia quecomemoramos a libertação dos escravos.

... Nas prisões os negros eram os bodes espiatorios.Mas os brancos são mais cultos. E não nos trata comdespreso. Que Deus ilumine os brancos para que os pretossejam feliz.

Continua chovendo. E eu tenho só feijão e sal. Achuva está forte. Mesmo assim, mandei os meninos paraa escola. Estou escrevendo até passar a chuva, para eu irlá no senhor Manuel vender os ferros. Com o dinheiro dosferros vou comprar arroz e linguiça. A chuva passou umpouco. Vou sair.

... Eu tenho tanto dó dos meus filhos. Quando eles vêas coisas de comer eles brada:

– Viva a mamãe!A manifestação agrada-me. Mas eu já perdi o habito

de sorrir. Dez minutos depois eles querem mais comida.Eu mandei o João pedir um pouquinho de gordura a DonaIda. Ela não tinha. Mandei-lhe um bilhete assim:

– “Dona Ida peço-te se pode me arranjar um poucode gordura, para eu fazer uma sopa para os meninos.Hoje choveu e eu não pude ir catar papel. Agradeço.Carolina.”

... Choveu, esfriou. É o inverno que chega. E noinverno a gente come mais. A Vera começou pedir comida.E eu não tinha. Era a reprise do espetaculo. Eu estavacom dois cruzeiros. Pretendia comprar um pouco defarinha para fazer um virado. Fui pedir um pouco debanha a Dona Alice. Ela deu-me a banha e arroz. Era 9horas da noite quando comemos.

E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contraa escravatura atual – a fome!

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo: Diário deuma Favelada. 10. ed. São Paulo: Ática, 2014, p. 31-32.

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1. Destaque um desvio da norma gramatical no que se refere aa) regência verbal no primeiro parágrafo;b) ortografia no segundo parágrafo;c) concordância no segundo parágrafo.

2. Em narrativas, é muito comum o forte distanciamento entre o tempo do enunciado (ligado aos fatos contados) e otempo da enunciação (ligado ao ato de contar história). Quarto de Despejo, por ser um diário, trabalha de maneirabastante curiosa esse dois eixos temporais. Explique como essa peculiaridade se manifesta no terceiro parágrafo dotexto anterior.

3. Carolina Maria de Jesus, apesar de ter frequentado apenas os dois primeiros anos do ensino fundamental, sabeexpressar-se de maneira organizada em sua escrita. Prova dessa capacidade é saber ordenar suas ideias no bilheteque escreve para Dona Ida. Tendo esse aspecto em mente, destaque do recado enviado à vizinha uma relação dea) explicação e finalidade;b) causa e consequência.

4. Em Quarto de Despejo, Carolina Maria de Jesus utiliza jogos de linguagem pertencentes ao campo da conotação. Nopenúltimo parágrafo do texto, extraia um exemplo desse procedimento.

5. No final do texto, é possível inferir uma correlação entre processos históricos que seria capaz de explicar a situaçãoem que se encontra a autora de Quarto de Despejo. Explicite esse processo.

6. A leitura do texto acima permite perceber que a enunciadora assume uma posturaa) derrotista, pois se mostra vencida pelas dificuldades da reurbanização paulistana. b) determinada, pois se apresenta focada em garantir a sobrevivência dos filhos. c) decadente, pois se entrega ao cotidiano de criminalidade típica do seu ambiente. d) alienada, pois se ocupa mais com a sobrevivência do que com problemas sociais.

Texto para as questões de 7 a 9.

22 de maio [de 1958] (...)... Os meninos come muito pão. Eles gostam de pão mole. Mas quando não tem eles comem pão duro.Duro é o pão que nós comemos. Dura é a cama que dormimos. Dura é a vida do favelado.Oh! São Paulo rainha que ostenta vaidosa a tua coroa de ouro que são os arranha-céus. Que veste viludo e seda

e calça meias de algodão que é a favela.JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada. 10. ed. São Paulo: Ática, 2014, p. 41.

7. Carolina Maria de Jesus demonstra no texto acima conhecimento de recursos sintáticos que dão expres sividade aoseu fazer literário. Um desses procedi mentos é a anáfora. Com base nessa informação, destaque do excerto umexemplo dessa figura de linguagem e indique a função que ela assume na lógica de construção do texto.

8. Que figura de linguagem é empregada de maneira enfática no último parágrafo? Explique como ela é construída,explicitando a relação de ideias que estabelece.

9. Qual a semelhança que o último período do texto mantém com o título da obra da qual foi retirado?

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1) a) Há desvio da norma culta no que se refere à regência em “Dia que comemoramos”. De acordo com o padrãogramatical, o adequado seria “Dia em que comemoramos”.

b) Ocorre afastamento do padrão culto no que tange à ortografia em “espiatorios”. O exigido pela normapadrão é “expiatórios”.

c) O trecho “E não nos trata com despreso” apresenta desobediência à norma padrão não só quanto àortografia, mas também à concordância. O adequado, para a variedade linguística exigida, seria “E não nostratam com desprezo”.

2) No excerto em análise, a distância entre o tempo do enunciado e o da enunciação foi praticamente eliminada,sendo os fatos narrados praticamente concomitantes aos que são escritos, como se percebe em “Estouescrevendo até passar a chuva” e “A chuva passou um pouco. Vou sair”.

3) a) A oração “para eu fazer uma sopa para os meninos” funciona como explicação e finalidade para a oração“peço-te se pode arranjar um pouco de gordura”. Ela justifica a ação de pedir e aponta o objetivo dagordura.

b) A oração “Hoje choveu” funciona como causa da oração “eu não pude ir catar papel”.

4) Ocorre linguagem conotativa em “Era a reprise do espetaculo”, em que a enunciadora utiliza ironicamentelinguagem figurada ao qualificar os pedidos constantes de seus filhos por comida, comparando-os a repetiçãode um evento artístico.

5) Carolina Maria de Jesus é negra e favelada. A situação de miserabilidade a que está exposta é fruto de umprofundo e traumático processo histórico ligado à escravização, o qual a Abolição da Escravatura não foicapaz de eliminar. Assim, a autora, aproveitando-se da coincidência de datas (o seu relato se passa em um 13de maio, dia em que se comemora a libertação dos escravos no Brasil), conecta a escravatura antiga (o sistemade mão de obra cativa) à escravatura atual (a fome, fruto da injustiça social).

6) Carolina Maria de Jesus expressa constantemente em seu diário a preocupação em garantir a sobrevivênciade seus filhos. No trecho em questão essa postura pode ser captada pela determinação em mandá-los para aescola (mesmo em dia de chuva), quando, como tantas outras mães mergulhadas em condições extremas demiserabilidade, poderia aproveitar-se da força de trabalho deles e aumentar o parco rendimento familiar. Naverdade, a diarista tem noção de que a educação é ferramenta de resgate e ascensão social. A outra prova deque ela é preocupada com o sustento de sua prole está nas referências constantes à necessidade de garantir aalimentação deles.Resposta: B

QUARTO DE DESPEJO

GABARITOAS OBRAS DA UNICAMP

PORTUGUÊS

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7) Ocorre anáfora no segundo parágrafo. Tal figura de linguagem consiste na repetição da expressão “duro(a) éo(a)” no início de todas as orações. Por meio desse procedimento, a autora pretende destacar, realçar a dureza,a extrema dificuldade de vida a que ela e seus filhos são submetidos.

8) O último parágrafo da entrada em análise utiliza a alegoria, que consiste na sequência de metáforas obtidaspor meio de palavras pertencentes ao mesmo campo semântico. Por meio delas, a autora estabelece uma relaçãode similaridade entre as diferentes vestimentas de uma pessoa e as diversas localidades que compõem a cidadede São Paulo.

9) O último período apresenta uma metáfora que serve para qualificar negativamente a favela: “meias dealgodão”. Esse mesmo processo orientou a construção da metáfora “quarto de despejo”, que de maneiradepreciativa aproxima a ideia de um cômodo onde se colocam os objetos que não têm serventia, e por issoserão descartados, à parte da cidade onde moram os indivíduos desprezados pela sociedade em que estãoinseridos.

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