6 - O Fidalgo - análise

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O Fidalgo Gil Vicente apresenta-nos o Fidalgo com toda a sua vaidade e presunção, “fumoso”(99), ricamente vestido e seguido de um pajem que lhe soerguia a cauda do manto e lhe transportava uma cadeira de espaldas. Habituado a gozar de privilégios especiais, o Fidalgo nem sequer pensa que poderá ir para o Inferno. Assim, para justificar o seu direito a entrar na barca celestial, apresenta apenas ao Anjo, como único argumento, a sua condição social:”Sou fidalgo de solar / é bem que me recolhais” (80 – 81). A sua altivez e jactância levam-no a exigir que todos o tratem por “Vossa Senhoria” de acordo com os seus pergaminhos nobiliárquicos. Quando o Anjo lhe diz uma frase que ele considerou pouco cortês (“Pera vossa fantesia / mui estreita é esta barca.”) (86 – 87), o Fidalgo reage logo violentamente: “Pêra senhor de tal marca / não há aqui mais cortesia?” (88 – 89). Mas o Diabo, momentos antes, tratara-o por tu nos vv. 45-49, sem qualquer reacção da parte do Fidalgo. Porquê? Certamente porque este ficou tão espantado com a revelação do Diabo que nem teve presença de espírito para o meter na ordem. Aliás é o próprio Diabo quem, passado este breve momento escarninho e zombeteiro, passa prontamente para o tratamento cerimonioso, depois de um verso de transição: “Embarcai! Hou! Embarcai” (50). Mas, na cena seguinte, depois de ter sido humilhado e condenado, vemos o Fidalgo tão abatido e deprimido que, quando o Onzeneiro o trata por vossa senhoria (241), o Fidalgo já reage de modo inverso: “Dá ao demo a cortesia!” (242). Mas, nessa altura, já não era um fidalgo mas um pobre condenado ao Inferno; o próprio Diabo ameaça espancá-lo: “Dar-vos-ei tanta pancada / com um remo, que renegues!” (246-247). Ao Fidalgo parece-lhe a barca infernal um “cortiço” (31), isto é, uma barca muito ordinária e reles para transportar um nobre tão poderoso e importante como ele. Mas o Diabo e o Anjo formulam as suas críticas, que se podem resumir assim: que ele vivera a seu prazer (47), isto é, que fizera tudo quanto quisera, que se entregara aos prazeres, fora tirano e, consequentemente, desprezara os pequenos (103), ou seja, os elementos do povo. Para demonstrar que ele vivera a seu prazer, analisa Gil Vicente a vida sentimental do Fidalgo, repartida entre duas mulheres: a esposa e a amante. Mas o que o Fidalgo ignora e que o dramaturgo denuncia, para caracterizar melhor a sociedade do seu tempo, é que tanto uma como a outra lhe eram infiéis e tinha cada uma delas o seu amante. Mas Gil Vicente não condena só aquele aristocrata mas todos os seus antepassados, como afirma expressamente o Diabo quando informa o Fidalgo que passará para o Inferno assim como “passou vosso pai” (53), isto é, o autor generaliza e condena a nobreza como classe social. O criado ou pajem que acompanha o Fidalgo não entra em nenhuma das barcas. Porquê? Evidentemente que não representa ali um tipo, uma alma de um defunto, mas um simples elemento caracterizador e distintivo, tratado a nível de objecto, que o dramaturgo risca do palco assim que deixa de ser necessário. Mas a sua função simbólica é deveras importante na medida em que representa um elemento do povo, a principal vítima da opressão da nobreza que, manifestamente, não poderia acompanhar o Fidalgo na sua viagem para o Inferno.

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O Fidalgo

Gil Vicente apresenta-nos o Fidalgo com toda a sua vaidade e presunção,

“fumoso”(99), ricamente vestido e seguido de um pajem que lhe soerguia a cauda do

manto e lhe transportava uma cadeira de espaldas. Habituado a gozar de privilégios

especiais, o Fidalgo nem sequer pensa que poderá ir para o Inferno. Assim, para

justificar o seu direito a entrar na barca celestial, apresenta apenas ao Anjo, como único

argumento, a sua condição social:”Sou fidalgo de solar / é bem que me recolhais” (80 –

81).

A sua altivez e jactância levam-no a exigir que todos o tratem por “Vossa

Senhoria” de acordo com os seus pergaminhos nobiliárquicos. Quando o Anjo lhe diz

uma frase que ele considerou pouco cortês (“Pera vossa fantesia / mui estreita é esta

barca.”) (86 – 87), o Fidalgo reage logo violentamente: “Pêra senhor de tal marca / não

há aqui mais cortesia?” (88 – 89). Mas o Diabo, momentos antes, tratara-o por tu nos

vv. 45-49, sem qualquer reacção da parte do Fidalgo. Porquê? Certamente porque este

ficou tão espantado com a revelação do Diabo que nem teve presença de espírito para o

meter na ordem. Aliás é o próprio Diabo quem, passado este breve momento escarninho

e zombeteiro, passa prontamente para o tratamento cerimonioso, depois de um verso de

transição: “Embarcai! Hou! Embarcai” (50). Mas, na cena seguinte, depois de ter sido

humilhado e condenado, vemos o Fidalgo tão abatido e deprimido que, quando o

Onzeneiro o trata por vossa senhoria (241), o Fidalgo já reage de modo inverso: “Dá ao

demo a cortesia!” (242). Mas, nessa altura, já não era um fidalgo mas um pobre

condenado ao Inferno; o próprio Diabo ameaça espancá-lo: “Dar-vos-ei tanta pancada /

com um remo, que renegues!” (246-247).

Ao Fidalgo parece-lhe a barca infernal um “cortiço” (31), isto é, uma barca

muito ordinária e reles para transportar um nobre tão poderoso e importante como ele.

Mas o Diabo e o Anjo formulam as suas críticas, que se podem resumir assim: que ele

vivera a seu prazer (47), isto é, que fizera tudo quanto quisera, que se entregara aos

prazeres, fora tirano e, consequentemente, desprezara os pequenos (103), ou seja, os

elementos do povo. Para demonstrar que ele vivera a seu prazer, analisa Gil Vicente a

vida sentimental do Fidalgo, repartida entre duas mulheres: a esposa e a amante. Mas o

que o Fidalgo ignora e que o dramaturgo denuncia, para caracterizar melhor a sociedade

do seu tempo, é que tanto uma como a outra lhe eram infiéis e tinha cada uma delas o

seu amante.

Mas Gil Vicente não condena só aquele aristocrata mas todos os seus

antepassados, como afirma expressamente o Diabo quando informa o Fidalgo que

passará para o Inferno assim como “passou vosso pai” (53), isto é, o autor generaliza e

condena a nobreza como classe social. O criado ou pajem que acompanha o Fidalgo não

entra em nenhuma das barcas. Porquê? Evidentemente que não representa ali um tipo,

uma alma de um defunto, mas um simples elemento caracterizador e distintivo, tratado a

nível de objecto, que o dramaturgo risca do palco assim que deixa de ser necessário.

Mas a sua função simbólica é deveras importante na medida em que representa um

elemento do povo, a principal vítima da opressão da nobreza que, manifestamente, não

poderia acompanhar o Fidalgo na sua viagem para o Inferno.

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Elementos alegóricos

Analisando com atenção, o cais, as barcas, o Diabo e o Anjo são elementos

concretos mas representam realidades abstractas, isto é, simbolizam determinados

conceitos:

Cais = fim da vida

Barcas = viagem para o Céu ou para o Inferno.

Diabo / Anjo = condenação ou salvação.

Ao utilizar estes elementos, Gil Vicente constrói uma alegoria que se vai

desenvolvendo ao longo de toda a peça. É através deste recurso que o autor critica a

sociedade em que vive, apontando os seus principais erros e vícios.

Para saber

A alegoria é um recurso estilístico que consiste na representação de uma

realidade abstracta através de uma realidade concreta, por meio de analogias,

metáforas, imagens e comparações. Trata-se de uma representação simbólica.

O Fidalgo traz consigo alguns elementos cénicos, os quais têm também um

significado abstracto e possibilitam identificar a classe social a que pertence:

Pajem = tirania

Cadeira = poder

Manto = vaidade

O Fidalgo constitui assim uma personagem-tipo, pois, na realidade, representa

uma classe social – a nobreza.

Sabes o que significa fidalgo?

Semanticamente, fidalgo é um indivíduo que tem títulos de nobreza; em

sentido popular e pejorativo é um individuo que vive sem trabalhar e que anda bem

vestido. Morfologicamente, fidalgo é uma palavra composta por aglutinação – filho de

“algo”.

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Para saber

Palavras simples são aquelas que possuem apenas um radical.

Palavras compostas são as que têm mais do que um radical ou palavra. Há duas

espécies de palavras compostas:

a) Compostas por Justaposição

Quando se juntam duas palavras que mantêm a sua integridade gráfica, embora o

significado da nova palavra seja diferente.

Exemplos: amor-perfeito; couve-flor; guarda-roupa; saca-rolhas; lua-de-mel.

b) Compostas por Aglutinação

Quando duas ou mais palavras perdem a sua integridade gráfica e se fundem numa

só.

Exemplos: aguardente (água ardente); girassol (gira sol); malmequer (mal me quer);

vinagre (vinho acre); planalto (plano alto).

Exercício

1. Assinala com V (verdadeiro) ou F (falsa) as seguintes afirmações:

a) O Fidalgo dá sinais de arrependimento.

b) O Fidalgo recusa-se a entrar na Barca do Inferno.

c) O Diabo humilha o Fidalgo.

d) O Pajem entra na Barca do Inferno.

Tipos de cómico

O cómico é algo que faz rir. Como Gil Vicente trabalhava para a corte,

procurando diverti-la, seguia a máxima “a rir, corrigem-se os costumes”. Assim, nas

suas obras recorre a vários tipos de cómico:

Cómico de linguagem – o discurso e o próprio vocabulário que o compõe provocam o

riso.

Exemplo: “Fid. – Que giricocins, salvanor!

Cuidam que sou eu grou?”

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Cómico de situação – as circunstâncias que envolvem a personagem fazem rir.

Exemplo: “Fid. – Que leixo na outra vida

Quem reze sempre por mi.

Dia. – Quem reze sempre por ti?

Hi hi hi hi hi hi hi hi!...”

Cómico de carácter – a maneira de ser e de se apresentar da personagem causam o

riso.

Exemplo: “Fid. – Que me leixês embarcar

Sou fidalgo de solar,

é bem que me recolhais.”

Ironia

A ironia é também um recurso estilístico muito usado por Gil Vicente para

provocar o riso. Consiste em exprimir o contrário daquilo que se pensa ou sente. A

ironia é utilizada para zombar de alguém, assim como para censurar ou humilhar.

Exemplos: “Dia. – à barca, à barca, bõa gente” Os passageiros da barca do Diabo não são boas pessoas, vão para o Inferno, se fossem

iam na barca do Anjo para o Céu.

“ Dia. – Embarqu´a a vossa doçura

Que cá nos entenderemos…” Com toda a certeza que o Diabo não considerava o Fidalgo uma doçura, um amor de

pessoa.

Registos de Língua

Para comunicarem, oralmente ou por escrito, as pessoas usam registos de língua

diferentes consoante as circunstâncias, o receptor, etc… Há uma necessidade de

adequação do registo à situação. Nas cenas I e II do Auto da Barca do Inferno

encontramos três registos de língua:

Registo corrente

Corresponde à norma, à língua padrão, utilizado e compreendido pela

maioria dos falantes. É caracterizado pelo uso de palavras, expressões e construções

gramaticais simples.

Exemplo: “Fid. - Porém a que terra passais?

Dia – Pera o Inferno, senhor.

Fid. – Terra é bem sem-sabor.”

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Registo cuidado

Raramente é utilizado na oralidade, excepto em discursos políticos, sermões,

conferências, entre outros acontecimentos solenes. Caracteriza-se pelo emprego de

um vocabulário mais rebuscado e de construções gramaticais mais complexas e

elaboradas do que as da linguagem corrente.

Exemplo: “Anjo – Vós irês mais espaçoso

Com fumosa senhoria”

Registo popular

Caracteriza-se por frequentes desvios da norma, tanto ao nível do

vocabulário como da sintaxe. O vocabulário inclui muitas vezes provérbios e

regionalismos. É utilizado pelas pessoas menos alfabetizadas.

Exemplo: “Fid. – Par Deus, aviado estou!

Cant´a isto é já pior…

Que jiricocins, salvanor!”

Fenómenos fonéticos

Ao leres o Auto da Barca do Inferno, tens algumas dificuldades em perceber

determinadas palavras, apesar de estar escrito em Língua Portuguesa. De facto, a língua

da época de Gil Vicente não é a que hoje se fala em Portugal. Isto significa que a

língua portuguesa, tal como as outras línguas, foi objecto de transformações, desde a

sua origem até ao momento actual, isto é, sofreu uma evolução.

É importante conheceres os fenómenos fonéticos que estiveram na origem da

evolução de algumas palavras, pois assim compreenderás melhor a sua ortografia e o

seu significado.

Ad sic > adsic > adsi > assi > assim

Queda de fonemas

Aférese – queda de um fonema no inicio da palavra.

Ex.: avantagem > vantagem

Síncope – queda de um fonema no meio da palavra.

Ex.: rivu >rio

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Apócope – queda de um fonema no final da palavra.

Ex.: - amore >amor

Adição de fonemas

Prótese – adição de um fonema no inicio da palavra.

Ex.: lembrar > alembrar

Epêntese – adição de um fonema no meio da palavra.

Ex.: humile > humilde

Paragoge – adição de um fonema no fim da palavra.

Ex.: ante > antes

Alteração de fonemas Metátese – permuta de um fonema dentro da sílaba ou palavra.

Ex.: semper > sempre

Assimilação – um fonema modifica-se por influência de outro, tornando-se igual a este.

Ex.: ipsu > isso

Dissimilação – dois fonemas iguais tornam-se diferentes.

Ex.: liliu > lírio

Vocalização – uma consoante transforma-se em vogal.

Ex.: nocte > noite

Sonorização – uma consoante surda torna-se sonora.

Ex.: lacu > lago

Nasalação – um som oral torna-se nasal por influência de outro.

Ex.: manu > mão

Desnasalação – um som nasal torna-se oral.

Ex.: luna > lua

Palatalização – passagem de um som ou grupo de sons não palatal a palatal.

Ex.: clamare > chamar

Contracção – duas vogais transformam-se numa só – crase – ou duas vogais

tranformam-se num ditongo – sinérese.

Ex.: pedem > pede > pee > pé (crase)

Legem > lege > lee > lei (sinérese)

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Exercícios

1. explicita o estado de espírito do Fidalgo, fazendo corresponder as palavras da

coluna da esquerda aos respectivos exemplos.

Arrependimento “Quantas mentiras que lias / e tu … morto de prazer!”

Humilhação “Entremos, pois que assi é”

Resignação “Ó triste! Enquanto vivi / não cuidei que o i havia”

2. identifica a classe social que o Fidalgo representa.

a) Nobreza

b) Clero

c) Burguesia

d) Povo

3. Identifica as figuras de estilo presentes nos versos:

“Dia. – Quem reze sempre por ti! / Hi hi hi hi hi hi hi!...”

a) Metáfora

b) Ironia

c) Comparação

d) Alegoria

4. Identifica os fenómenos fonéticos que ocorrem na passagem das seguintes

palavras para o português actual:

Ventezinho > ventozinho Assimilação

I > aí Dissimilação

Fantesia > fantasia Prótese

Assi < assim vocalização

Pera > para sonorização

Focu > fogo palatalização

Multu > muito paragoge

Pluvia > chuva síncope

Panes < pães nasalação Prof. Maria Filomena Ruivo Ferreira