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LETRAS CLÁSSICAS, n. 2, p. 115-126, 1998. PLATÃO E NIETZSCHE: A TRAMA DRAMÁTICA DA METAFÍSICA HECTOR BENOIT* Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas RESUMO: Neste artigo fazemos algumas reflexões sobre a história interpretativa dos Diálogos de Platão. Particularmente, procuramos mostrar que a crítica de Nietzsche a Platão, que segundo muitos autores aparece como a ruptura definitiva com a metafísica platônico-ocidental, seria apenas mais um momento de continuidade no interior da longa história do platonismo. PALAVRAS-CHAVE: Platão; Nietzsche; platonismo; dialética. 1. O desconhecimento da léxis O pensamento de Nietzsche, segundo representativos autores do pensa- mento contemporâneo, tais como G. Deleuze, M. Foucault, G. Lebrun, é consi- derado como o grande articulador da mais devastadora das críticas a Platão e à sua suposta metafísica. Nietzsche, a partir sobretudo da noção de genealogia, teria desvelado as forças negadoras da vida que se escondem sob todas as dialéticas da aparência e da essência, teria aberto o caminho para a libertação de todos os simulacros e assim para a destruição de toda a metafísica platônica ocidental. No entanto, desde a época do próprio Platão, desde pelo menos o século IV a.C., começaram as primeiras tentativas de fazer a crítica ou destruição da suposta metafísica do autor dos Diálogos. O primeiro grande exemplo nesse sen- tido foi Aristóteles, com a sua célebre crítica à chamada “teoria das idéias”. Como sabemos, Aristóteles procurou mostrar os diversos paradoxos nos quais mergulham os platônicos quando estabelecem a participação entre as idéias em si e por si (ou autó kath’autó) e as coisas sensíveis. Sabemos a sorte que tive- ram na história futura da Filosofia tais paradoxos, sempre enumerados em todos

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    PLATO E NIETZSCHE: A TRAMA DRAMTICA

    DA METAFSICA

    HECTOR BENOIT*Instituto de Filosofia e Cincias Humanas

    da Universidade de Campinas

    RESUMO: Neste artigo fazemos algumas reflexes sobre a histria

    interpretativa dos Dilogos de Plato. Particularmente, procuramosmostrar que a crtica de Nietzsche a Plato, que segundo muitos autores

    aparece como a ruptura definitiva com a metafsica platnico-ocidental,

    seria apenas mais um momento de continuidade no interior da longa

    histria do platonismo.

    PALAVRAS-CHAVE: Plato; Nietzsche; platonismo; dialtica.

    1. O desconhecimento da lxis

    O pensamento de Nietzsche, segundo representativos autores do pensa-mento contemporneo, tais como G. Deleuze, M. Foucault, G. Lebrun, consi-derado como o grande articulador da mais devastadora das crticas a Plato e sua suposta metafsica. Nietzsche, a partir sobretudo da noo de genealogia,teria desvelado as foras negadoras da vida que se escondem sob todas as dialticasda aparncia e da essncia, teria aberto o caminho para a libertao de todos ossimulacros e assim para a destruio de toda a metafsica platnica ocidental.

    No entanto, desde a poca do prprio Plato, desde pelo menos o sculoIV a.C., comearam as primeiras tentativas de fazer a crtica ou destruio dasuposta metafsica do autor dos Dilogos. O primeiro grande exemplo nesse sen-tido foi Aristteles, com a sua clebre crtica chamada teoria das idias.

    Como sabemos, Aristteles procurou mostrar os diversos paradoxos nosquais mergulham os platnicos quando estabelecem a participao entre as idiasem si e por si (ou aut kathaut) e as coisas sensveis. Sabemos a sorte que tive-ram na histria futura da Filosofia tais paradoxos, sempre enumerados em todos

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    os manuais e repetidos em todas as introdues Filosofia. Toda essa afortunadacrtica aristotlica da mthexis ou participao platnica, no entanto, como reco-nhecem hoje a maioria dos especialistas, bastante limitada conceitualmente ereduzida em seu valor, devido, sobretudo, sua relativa falta de originalidade.

    Assim como o paradoxo do terceiro homem, todos os outros argumentosrepetidos por Aristteles at a exausto, na verdade, estavam j descritos nas pr-prias pginas do dilogo Parmnides de Plato. Nessas pginas (130 a-e), o jovemScrates, j ento defensor da teoria das idias, assiste toda a sua doutrina serrefutada pelo velho filsofo Parmnides, e exatamente com os mesmos argumentosque, mais tarde, Aristteles usaria contra a suposta metafsica platnica.

    Diante desse texto do prprio Plato, to sem originalidade a clebrecrtica de Aristteles que, inconformados com essa estranha coincidncia, comose sabe, comentadores do sculo XIX, como Socher, Ueberweg, Schaarschmidt eoutros, levantaram a hiptese de que o dilogo Parmnides seria apcrifo e escritoposteriormente aos textos crticos de Aristteles. Supuseram estes comentadoresque o Parmnides teria sido redigido por algum platnico que teria lido as crticasde Aristteles e as plagiado. Ora, desde uma comunicao de Lewis Campbell,em 1890, exposta na Sociedade Filolgica de Oxford, ficou demonstrada, atravsda anlise estilomtrica, a autenticidade irrefutvel do Parmnides (Campbell,1896)1, autenticidade esta que jamais voltou a ser contestada.

    Se plgio houve, certamente no foi o autor do Parmnides, Plato, que ocometeu. Mas, sugerindo talvez o inverso, ou seja, o plgio da parte de Aristteles,ironicamente, o sbio autor do Parmnides (Plato), como que prevendo de ma-neira proftica toda esta longa polmica, colocou entre os personagens que par-ticipam do dilogo um jovem que se chama, exatamente, Aristteles. Teria sidoo nome deste personagem uma mera coincidncia? Teria sido o nome Aristtelesapenas um mero acaso? Ou ento, ao contrrio, um dos mltiplos ardis filosfi-cos que encerram a trama dramtica dos Dilogos?

    Seja como for, todo esse episdio mostra bem a dificuldade e o risco quecorrem todos aqueles que pretendem criticar, superar ou mesmo comentar osDilogos. Sobretudo, agrava-se o risco quando estes crticos ou comentadoresno estiverem atentos s articulaes da trama dramtica, ou, podemos dizer, trama da lxis, a ao de dizer dos Dilogos.

    Cito alguns exemplos. O prprio Aristteles sempre to pouco atento lxis, em outra passagem crtica em relao ao platonismo, mais uma vez de-monstra a fragilidade da sua leitura. No livro segundo da sua Poltica, como

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    sabemos, Aristteles critica nos cinco primeiros captulos as teorias desenvolvi-das por Scrates na Repblica; quando passa no captulo sexto a comentar asteorias do dilogo Leis, paradoxalmente, Aristteles continua se referindo aScrates (II, 6, 1256 a). Ora, visivelmente, nesta passagem, Aristteles confundeo personagem chamado de o Ateniense com a figura de Scrates. Como sesabe, Scrates no personagem deste dilogo, no nem sequer citado, e,inclusive, pelos fatos histricos mencionados nas Leis, a cena dramtica ocorre jna metade do sculo IV a.C., ou seja, quase cinqenta anos aps a morte deScrates. Seriam identificveis Scrates e o Ateniense das Leis? Evidentementeno, como tambm no so identificveis os projetos de cidade de ambos.

    Mas no acusemos exclusivamente a Aristteles. Sobretudo, esta ques-to, a questo quem fala nos Dilogos?, uma questo pouco observada porquase toda a longa tradio de leitores que, desde o sculo IV a.C., comearama construir a imensa e quase infinita biblioteca de comentadores dos Dilogos.

    Para citarmos exemplos contemporneos, bem significativo o caso deVictor Goldschmidt; afinal Goldschmidt se celebrizou, particularmente, pelasexigncias de rigor e de respeito cuidadoso dos textos. Ora, no seu clebre livroLes Dialogues de Platon, quando Goldschmidt comenta o dilogo Parmnides, serefere segunda parte dessa obra, como se ainda l fosse Scrates o interlocutorque dialoga com Parmnides (Goldschmidt, 1971, p. 150). Ora, como se sabe,aps a primeira parte do dilogo, aps a demonstrao dos paradoxos da teoriadas idias, Scrates se cala. Scrates imobilizado pelas aporias parmenideanas,e assim permanece em silncio durante toda a segunda parte do dilogo, onde,exatamente, o jovem Aristteles vem substitu-lo.

    Erro similar ocorre em comentrio de Louis Mridier. Da mesma forma,confunde Mridier personagens dos Dilogos. Prefaciando o dilogo Crtilo na eru-dita edio da Belles Lettres, o autor, ao comentar a questo do mobilismo e doimobilismo do Ser, ou seja, a oposio entre heracliteanos e parmenideanos, afirmaque somente no dilogo Sofista Scrates se pronunciar nitidamente contra a concepode Parmnides2. Ora, nos Dilogos de Plato, jamais Scrates se pronuncia contra aconcepo de Parmnides. Na verdade, Mridier confundia nessa passagem Scratescom o Estrangeiro de Elia (personagem do Sofista), como se ambos, indistintamen-te, representassem uma continuidade no pensamento de Plato.

    Ora, se lermos com ateno a lxis, a ao de dizer dos Dilogos, vere-mos que Scrates desde aquele encontro com o velho Parmnides no tempo desua bela juventude, como ele prprio relembra no dilogo Teeteto (183 e 184

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    a), desde aquela poca, diz Scrates, teme enfrentar o sbio eleata. Scrates ja-mais romper com a dialtica parmenideana e, sobretudo, sempre permanecerfiel ao parmenideano interdito do No-Ser.

    Por isso mesmo, para atacar o lgos do pai Parmnides, o pai de todas asdialticas do Ser, para cometer o histrico parricdio do dilogo Sofista, oparricdio que d ser ao No-Ser, necessariamente, e de maneira precisa, ocondutor da demonstrao ser outro que Scrates. Para isto aparecer no dilo-go Sofista o personagem conhecido como o Estrangeiro de Elia. Quem noentende a profunda significao conceitual dessa troca de personagens, quemconfunde Scrates e o Estrangeiro de Elia, parece-me, pouco compreendeu doprprio contedo filosfico dos Dilogos3.

    No entanto, se muitos helenistas e comentadores contemporneos aindainterpretam e citam os Dilogos sem levar em conta os personagens, a ao dra-mtica, a materialidade da cena, em uma palavra, a lxis dos Dilogos, se aindaboa parte dos intrpretes contemporneos ainda l os Dilogos como se eles fos-sem um monlogo, como se eles fossem um tradicional tratado filosfico queexpressaria de maneira unvoca o lgos, o pensamento ou a doutrina de Plato,todos esses helenistas, intrpretes e comentadores, so apenas bem fiis tradi-o, de longe quase absoluta e hegemnica, uma tradio que se firma desde pelomenos os sculos V e VI d.C.. Refiro-me tradio cristalizada nos manuais ecomentrios daquela poca, como o manual Prolegmenos Filosofia de Plato,texto annimo do sculo VI, ou como os extensos comentrios de Proclus data-dos do sculo V.

    Nestes textos, em geral muito cuidadosos, em geral muito prolixos, aindaque se perceba e se teorize a respeito da existncia dos personagens e, em geral, arespeito da lxis, no entanto, conscientemente, se realiza uma decisiva opo teri-ca: todos os aspectos da lxis passam a ser considerados apenas como elementossecundrios e suboordinados em relao a uma suposta doutrina dogmtica de Plato.Para citar apenas um texto, mas que sintetiza bem o problema, lembremos oseguinte trecho do comentrio de Proclus Repblica de Plato. Diz Proclus, nasexta dissertao:

    preciso caracterizar cada autor segundo aquela de suas operaesque a mais nobre e no aquela que a mais baixa. Pois, casocontrrio, poderamos [incorretamente] considerar Plato um imi-tador afastado em terceiro grau da verdade. Pois, diz ainda Proclus,h nos dilogos, imitao dos interlocutores bebendo, imitao

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    tambm de personagens em guerra ou em paz, como vimos noTimeu e no Crtias: mas tudo aquilo acessrio, o bem essencial a doutrina filosfica de Plato (Proclus, p. 199; cf. p. 215).

    Ou seja, como explicitar ainda mais adiante Proclus, absurdo valorizar a partesensvel em Plato, pois este no pode ser confundido com um poeta. Em poetas,como Homero, diz Proclus, realmente a imitao a preocupao principal,mas Plato, ao contrrio, no pode ser classificado na categoria dos produtoresde simulacros, ou como diz literalmente Proclus, Plato no pode ser classifica-do na demiurgia das imagens (p. 216: te demiourgia ton eidolon).

    Como se v, para a tradio neoplatnica que encerra a Antigidade e opaganismo, conscientemente, houve uma recusa terica e quase moral de aceitara parte, como dizia Proclus, mais baixa de Plato. O Plato sensvel foi elididoem nome do Plato inteligvel. Para Proclus, Plato no podia ele prprio serconfundido com um poeta ou com um sofista, ou ainda, com qualquer demiurgoenvolvido nas produes das coisas sensveis. Plato no podia, ele prprio, serum imitador afastado em terceiro grau da verdade, Plato no podia, sobretudo,ser classificado como um produtor de simulacros. Ora, com esta decisohermenutica do neoplatonismo, enterrava-se definitivamente, para a felicidadedos futuros sculos cristos, todas as imoralidades pags da lxis dos Dilogos, echegava-se ao platonismo hipostasiado, etreo e purificado, que at hoje predo-mina, em grande parte, nas nossas interpretaes contemporneas.

    2. Plato e Nietzsche

    Nesse sentido, sem dvida alguma, a leitura nietzschiana dos Dilogos foirevolucionria. Se a tradio neoplatnica e crist fez da doutrina do Bem o eixode todo o seu platonismo moralista, se fez de Scrates o sacerdote supremo dessaverdade quase revelada, um Scrates quase santo, muitas vezes, inclusive com-parado ao prprio Cristo, ao contrrio, atravs do mtodo genealgico, Nietzscheretornou radicalmente abandonada lxis dos Dilogos e perguntou, por issomesmo, de maneira permanente, quem fala?, quem fala afinal nos Dilogos dePlato?. Nietzsche voltava a ler os Dilogos como dilogos, isto , reconhecendoe observando o processo dialgico.

    Nesse movimento, Nietzsche deslocava assim toda a leitura da apreensode uma sonhada doutrina moral absolutamente pura e sempre em algum sentido

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    inacessvel, deslocava a leitura dos dilogos para a captao dos desejos e daspulses dos personagens. Estes desejos e pulses, mesmo que impuros, imorais epagos, foram reintegrados na leitura nietzschiana. Esta leitura nos prometiaassim desvelar as verdadeiras foras que agiriam sob as mscaras da procura daverdade, da moral, da justia.

    Nietzsche se detm sobretudo na figura de Scrates, nas caractersticassensveis desse personagem: observa que Scrates era um homem pobre, semdescendncia nobre, feio, nariz chato, e observa tambm que sobretudo entre osbelos gregos, as deficincias materiais, sensveis e estticas eram srias objees.Scrates era exatamente o contrrio daqueles que os gregos admiravam e desig-navam como kaloi kagathoi, isto , os belos e bons, Scrates no era um aristocra-ta, e sim um plebeu. Mas, Scrates, como observou ainda Nietzsche, era tambmum grande ertico4: apesar das suas deficincias, pretendia ser um especialista emta erotika, isto , nas coisas do amor; apesar da sua falta de atributos, pretendiaseduzir os jovens atenienses. Como poderia realizar, no entanto, os seus objeti-vos?

    Segundo Nietzsche, para se imiscuir entre os belos e nobres atenienses,Scrates teria desenvolvido, justamente, aquela sua grande e terrvel mquinade guerra: a dialtica. Com a dialtica despotencializava os seus interlocutores,os imobilizava com o seu mtodo de perguntas e respostas, os hipnotizava eafinal os seduzia. Atravs dos ardis da dialtica, atravs da inverso permanentedos plos, o sujeito se transforma em objeto, o objeto em sujeito, e ele, Scrates,pobre, velho e feio, transmutava-se de desejante em desejado, trocava de lugarcom os jovens e conseguia ele transformar-se de amante em amado.

    Mas, para realizar os seus desejos perversos Scrates tinha tambm queinverter todos os principais valores da cultura grega: ao invs da beleza era ne-cessrio valorizar a sabedoria e a verdade; ao invs da fora fsica e do poder, eranecessrio valorizar a moral e a justia; ao invs do sensvel era necessrio valo-rizar o inteligvel; ao invs de Dionsio era necessrio valorizar Apolo.

    A partir dessa sistemtica inverso dialtica de todos os valores e de todasas polaridades, teria se construdo toda a metafsica platnica, um poderoso dis-positivo de seduo cujo resultado seria, no entanto, catastrfico. Com a meta-fsica platnica teria se consagrado a negao doentia e decadente das principaisforas da vida (a beleza sensvel, a fora fsica, o poder do mais forte). Sendoassim, segundo o nietzschianismo, Scrates seria o pior de todos os sofistas, aqueleque em nome da sua seduo teria criado o terrvel veneno da metafsica platnica.

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    Se em relao a Plato, Nietzsche, algumas vezes, mostra at simpatia, porque, segundo Nietzsche, o jovem poeta trgico Plato teria sido, inclusive,uma das infelizes vtimas da dialtica socrtica. Se na juventude fora poeta, apsa fatal seduo socrtica teria rasgado as suas tragdias e passado a seguir cega-mente ao velho Scrates, o poeta se transformou ento em filsofo e escreveu osDilogos.

    Como se sabe, todos estes temas da leitura nietzschiana dos Dilogos,desde o Nascimento da Tragdia, esto espalhados nas diversas obras de Nietzschee so os fundamentos da sua crtica metafsica5.

    Sem dvida, como j dissemos, toda essa temtica da leitura nietzschianateve o grande mrito de romper com a tradio neoplatnica e crist que haviarenunciado totalmente a observar a lxis dos Dilogos. Nietzsche, na sua crtica,recolocou a nfase na lxis, na ao de dizer, e permitiu que voltssemos a ler osDilogos como dilogos, dilogos entre diversos personagens que realmente sorepletos de desejos e atos pagos, ou se quisermos, para usarmos as expresses deProclus, desejos e atos vis, atos afastados em terceiro grau da verdade.

    Se este realmente um mrito inquestionvel da leitura nietzschiana, atque ponto, no entanto, podemos encontrar mritos reais nos resultados dessaleitura, sobretudo, enquanto uma suposta crtica ou destruio definitiva dametafsica platnica6? A leitura nietzschiana teria realmente atravs dos seusprocedimentos genealgicos de fato realizado a superao ou renversement doplatonismo (para usarmos uma expresso de Deleuze)? Ou, ao contrrio, Nietzsche,como j Aristteles no sculo IV a. C., no teria sido ele tambm mais umpretensioso, inocente e no original crtico dos Dilogos? Isto , assim como acrtica aristotlica teoria das idias (antecipada no dilogo Parmnides pelo pr-prio Plato), a crtica nietzschiana metafsica platnica no seria apenas maisuma crtica ao autor dos Dilogos que, na verdade, inocentemente, parte dointerior dos prprios Dilogos? Nesse sentido, justamente, gostaria aqui de fazeralgumas observaes.

    3. Limites da crtica nietzschiana

    Realmente se observarmos com ateno os diversos temas da crticanietzschiana acima enumerados, veremos que eles aparecem como originais e atsurpreendentes, mas, somente para aqueles leitores que esto habituados com a

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    leitura da tradio. Ao contrrio, se nos voltarmos justamente para os prpriosDilogos e os lermos enquanto dilogos, desde o incio, respeitando a sua lxis,respeitando a existncia de personagens e de toda uma srie de indcios sensveisque compem a cena dramtica, veremos que a leitura de Nietzsche no somenteno surpreendente ou original, como, podemos at dizer, ao contrrio, atredundante e inocente. Vejamos os diversos temas da crtica nietzschiana.

    Em primeiro lugar, a questo quem fala?. Seria isto algo original diantedos Dilogos? Evidentemente no. Em diversos dilogos aparece a discusso e aexplicitao da importncia dessa questo. Por exemplo, no dilogo Alcibades I,a uma certa altura da discusso, Scrates se detm neste tema e longamenteargumenta a respeito de quem fala quando algum interroga e quando algumresponde. Assim em 113-a, chega a perguntar Scrates: Se eu te perguntassecomo se escreve o nome de Scrates e tu o dissesses, qual de ns dois o que estdizendo (poteros ho legon)?. E logo depois ainda acrescenta Scrates: quando htroca de questes e de respostas, qual aquele que diz as coisas? aquele quequestiona ou aquele que responde?. Assim aqui o prprio Scrates que,teorizando a respeito da forma dilogo, coloca a questo quem fala?.

    Se muitas passagens como essas poderiam ser citadas onde se teoriza aforma dilogo, evidentemente, no foi sem muito meditar filosoficamente a res-peito de quem fala que o prprio Plato utilizou essa forma, a forma dialgica.Este um tema fundamental da prpria estrutura da sua obra, inclusive, sempreprecisamente pensado na introduo de cada personagem, na mutao dos con-dutores e interlocutores nas diversas passagens dos Dilogos, na sobreposio deestruturas narrativas, e finalmente, na ausncia significativa dele prprio, Plato,autor jamais plenamente soberano, autor que, apesar de citado trs vezes, jamaistoma a palavra ele prprio em sua prpria obra.

    Ainda que talvez apcrifas, so significativas neste sentido as palavrasque se lem na Carta II atribuda a Plato: no existe obra de Plato e noexistir (314 c). Na mesma direo podemos lembrar as palavras que lhe soatribudas no manual annimo do sculo VI, Prolegmenos. Segundo o annimo,teria dito Plato: no sei nada, no ensino nada, apenas percorro aporias (p.17: ouden oida oute didasko ti, alla diaporo monon).

    Existe a doutrina de Plato? Onde est Plato nos Dilogos? Quem falaafinal nos Dilogos de Plato? A pergunta no somente foi colocada pelos pr-prios Dilogos, como tambm, a resposta a quem fala nos Dilogos, parece-me, bem mais complexa do que sempre pensaram a tradio e tambm Nietzsche.

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    Sem que aqui possamos nos estender neste tema, basta lembrar que a tradio(ao menos aquela posterior Media e Nova Academia7) sempre pensou que opensamento de Plato aquele expresso por Scrates nos Dilogos e atribui aopensamento de Plato tudo o que diz Scrates.

    Se Nietzsche diferenciou Scrates e Plato, os diferenciou apenas comopersonagens sensveis, mas no na instncia do pensamento. Para Nietzsche,Plato teria sido seduzido por Scrates e finalmente teria produzido a chamadametafsica platnica, ora, para Nietzsche, nesta metafsica falam as mesmasforas que se manifestam no ressentimento socrtico, as mesmas foras negadorasda vida. Nem a tradio nem Nietzsche perceberam a distncia claramentedemarcada nos Dilogos entre o que expressa o personagem Scrates e um pos-svel contedo absoluto dos Dilogos.

    Aquilo que diz o personagem Scrates est longe de coincidir com umsuposto pensamento ou doutrina absoluta de Plato. Isto fica claro sobretudo selermos com ateno o Parmnides, o Poltico, o Sofista e as Leis (dilogos onde Scratesdeixa de ser o condutor). Mas, sem dvida, est indicado tambm no Banquete eem muitos outros dilogos, onde a figura de Scrates aparece como fundamental.

    Sendo assim a pergunta quem fala? no somente no um tema originaldo nietzschianismo, como tambm, me parece, a sua resposta (a respostanietzschiana) bastante inocente quando nem sequer percebe a profunda com-plexidade dos personagens dos Dilogos.

    Ora, no muito diferente ocorre em relao aos outros temas da crticanietzschiana. Na verdade, eles so todos extrados dos prprios Dilogos. O temapor exemplo da feiura fsica de Scrates tratado em diversos dilogos (entreoutros lembremos o Banquete e o Teeteto). O tema de que Scrates apesar de feiofisicamente se pretendia um sedutor amplamente tematizado tambm em di-versos dilogos: Lysis, Crmides, Alcibades I, Banquete, e mesmo no Fedro. Adenncia do carter sedutor-hipnotizador da dialtica socrtica tambm no um tema original de Nietzsche, como se sabe; a isso se referem diversos persona-gens, particularmente Menon, que chega a compar-lo tremelga do mar, peixeque imobiliza a quem dele se aproxima.

    A prpria acusao de que Scrates trocava de lugar com o seu seduzido,que o velho Scrates se transformava assim em amado, e o jovem belo se transfor-mava em amante, mesmo essa acusao aparentemente to vil e to cara aonietzschianismo (Rey, 1971, p. 99-100), nem mesmo ela, como se sabe, original;basta lermos o discurso de Alcibades no Banquete, onde este justamente adverte a

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    Agato e aos outros que Scrates sempre fazia isso, transformando-se de amanteem amado8.

    Como se v, os diversos temas da crtica nietzschiana alardeados como adestruio da metafsica platnica, como a ao devastadora do genealogista quecom seu novo mtodo descobriria as foras escondidas sob a vontade mais secretade Scrates, na verdade, para quem l com ateno os velhos Dilogos, todos essestemas so repeties nada originais de temas desenvolvidos nos prprios Dilogos.

    At mesmo aquele tema to explorado pelo nietzschianismo de que Scratesseria talvez o mais sedutor de todos os sofistas, nem mesmo este tema pode-seconsiderar original aps uma leitura atenta do dilogo Sofista. Como se sabe, nasdiversas definies que o Estrangeiro de Elia produz a respeito do ser do sofis-ta, Scrates escapa somente nas ltimas divises, e particularmente a ltimadefinio serve para Scrates mas no, surpreendentemente, para Grgias, Polos,Trasmaco ou outros conhecidos sofistas. Como afirma o Estrangeiro de Elia aofinal do dilogo, o sofista pratica a sua arte em reunies privadas, corta seusdiscursos em argumentos breves e obriga o seu interlocutor a se contradizer a siprprio (268b). Ora, os sofistas se caracterizavam justamente por amar os lon-gos discursos e no os argumentos breves; assim como tambm o mtodo delevar o seu interlocutor contradio, o mtodo refutativo, caracterizava aScrates, mas no aos sofistas.

    Diante disso, o que restou de verdadeiramente original e inovador nacrtica nietzschiana aos Dilogos? Todos os seus temas, desde a questo quemfala? at a acusao de que Scrates seria o mais sedutor de todos os sofistas, sotemas extrados dos prprios Dilogos. Como pretender destruir a suposta meta-fsica platnica a partir dos prprios Dilogos? Como a crtica de Aristteles teoria das idias e como tantas outras crticas ao platonismo, parece-me quetambm a crtica nietzschiana, apesar do seu grande alarde, ser um dia reconhe-cida como apenas mais uma das mltiplas figuras que, desde sempre, estiverampresentes j, l, nas velhas pginas dos Dilogos.

    Mas, entenda-se bem, reconhecer isto significa apenas reconhecer quecomo o aristotelismo (com a sua metafsica do universal porque primeiro, ou doser que no gnero), como o hegelianismo (com a sua retomada das reflexessobre o no-ser e da dialtica inspiradas, sem dvida, nas pginas do dilogoSofista), assim tambm o nietzschianismo (com a sua retomada da lxis dos Dilo-gos de Plato e de todo o paganismo dos seus personagens, com o seu projeto dalibertao de todos os simulacros), assim tambm o nietzschianismo fundamen-

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    tal figura para compreender ao prprio Plato e ao platonismo, no entanto,ainda a partir dele e atravs dele.

    NOTAS

    * Professor Doutor do Departamento de Filosofia do IFCH da UNICAMP e Professor

    Visitante do Programa de Ps-Graduao em Letras Clssicas da FFLCH-USP.

    1 Todo o histrico da questo exposto por Dis (Dis, 1965, p. IX-XI).

    2 Cest seulement dans le Sophiste quil [Scrates] se prononcera nettement contre la conceptionde Parmnide. Toutefois Socrate dclare... (Mridier, 1931, p. 32).

    3 No dilogo Sofista abandona-se a dialtica de tipo parmenideano (ou seja, dialticado ser), e passa-se para uma nova forma de dialtica, aquela que admite a contradio

    e o no-ser.

    4 Sokrates war auch ein grosser Erotiker (Nietzsche, 1930, p. 91).

    5 Se quisermos privilegiar no entanto um texto em particular, devemos lembrar, sem

    dvida, os doze aforismos de O Crepsculo dos dolos, que Nietzsche denomina Oproblema Scrates (Nietzche, 1930).

    6 Sobre a pretensa crtica nietzschiana metafsica platnica, para citarmos somente

    um texto, podemos lembrar os seis aforismos de Crepsculo dos dolos, intituladosComo o verdadeiro mundo finalmente se tornou uma fbula, que possuem ainda

    o subttulo Histria de um erro. Pretende-se narrar uma pequena histria da meta-fsica. Comea com a frase: ich, Plato, bin die Wahrheit eu, Plato, sou a verdade,passa pelo momento do cristianismo e por outros momentos, tais como o kantiano,

    at que j no quinto estgio Plato ruboriza de vergonha (Schamrte Platos), e anoo de um mundo verdadeiro oposto a um mundo aparente comea a desaparecer.Finalmente, no sexto momento, o fim da histria desse erro, superam-se o mundo

    verdadeiro e tambm o aparente, o meio-dia, a hora de Zaratustra (Nietzsche, 1930,

    p. 99-100).

    7 Arcesilau, Carneades, Filon de Larissa foram alguns dos platnicos no-dogmticos,chegando a se confundir com o ceticismo, como se pode conferir nos comentrios de

    Sextus Empiricus.

    8 Tambm no final do Alcibades I ocorre a inverso.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    CAMPBELL, L. On the place of Parmenides. Classical review. Oxford, v. X, p.129-36, April-1896.

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    DIS, A. Notice gnrale du Parmnide. In: PLATON. Parmnide. Paris: LesBelles Lettres, 1965.

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    BENOIT, Alcides Hctor Rodriguez. Platon et Nietzsche.

    RSUM: Dans cet article on trouve quelques reflexions sur lhistoire

    interpretative des Dialogues de Platon. Particulirement, on cherche demontrer que la critique de Nietzsche Platon, laquelle, selon beaucoup

    dauteurs, apparat comme la rupture definitive avec la mtaphysique

    platonicienne-occidentale, nest quun moment en plus de continuit dans

    la longue histoire du platonisme.

    MOTS-CLS: Platon; Nietzsche; platonisme; dialectique.