62061318 Sociologia Critica Do Esporte Valter Bracht

download 62061318 Sociologia Critica Do Esporte Valter Bracht

of 70

Transcript of 62061318 Sociologia Critica Do Esporte Valter Bracht

SOCIOLOGIA CRTICA DO^^^

envolvidos com as matrias esportivas os elementos tericos para uma melhor compreenso das crticas que se fazem ao esporte. Pr/. Jos Chrstfar Frade

N

esta publicao o autor est oferecendo, principalmente aos professores de Educao Fsica, aos alunos dos cursos superiores de Educao Fsica e aos profissionais de comunicao

m

VALTER BRACHT

SOCIOLOGIA CRTICA DOerve o esporte como reforo hegemonia das classes dominantes ou antes um espao de articulao de contra-hegemonia? ele reflexo das relaes sociais coisificadas ou espao de auto-realiza co criadora do indivduo? Controle sensibilidade? Elemento e represso da cultura ertica do corpo ou revalorizao da industrial que transforma os indivduos em objetos consumidores ou espao para a criao cultural? Devemos festejar e desejar a ampliao da prtica e consumo do esporte como acesso a um importante produto social e, na tica Liberal, encarar a "cultura de massas" como expresso da democracia cultural criada/propiciada pelos meios de comunicao, smbolos vivos da liberdade de pensamento e expresso ou dela desconfiar, suspeitando da manipulao de necessidades, de desejos, da subjetividade, enfim, do indivduo? So estas as questes que subjazem s crticas sociofilosficas ao esporte, que so o objeto deste livro.

Uma Introduo

Coleo Educao Fsica

VALTER BRACHT

SOCIOLOGIA CRTICA DO

Uma Introduo3S Edko

Editora lHIJf

Iju 2005

2003, Editora Uniju Rua do Comrcio, 1364 Caixa Postal 560 98700-000 - Iju - RS- Brasil -

Fone: (0_55) 3332-0317 Fax: (0_55) 3332-0343 E-mail: [email protected] Http://ww\v. unijui.tchc.br/editora/ Responsabilidade Ediioral e Administrativa; Editora Uniju da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Uniju; Iju, RS, Brasil)Sei-vios Grficos: Sedigraf

A coleo Educao Fsica um projeto editorial da Editora Uniju, vinculado a urn conselho editorial incerinstitucional, que visa dar publicidade a pesquisas que buscam um constante aprofundamento da compreenso terica desta rea que vem constituindo sua reflexo conceituai, bem como os trabalhos que garantam uma maior aproximao entre a pesquisa acadmica e os profissionais que encontram-se nos espaos de interveno. Promover este movimento sem dvida o maior desafio desta coleo.

Capa: Elias Ricardo Schssler l" edio: 1997, editada pela Universidade Federal do Esprito Santo Centro de Educao Fsica e Desportos- UFES 2 a edio revisada: 2003, editada pela Editora Uniju 3a edio: 2005, editada pela Editora Uniju

Conselho EditorialCarmen Lcia Soares - Unicamp Mauro Betti - Unesp/Bauru Tarcsio Mauro Vago - UFMG Luis Osrio Cruz Portela - UFSM Amauri Bassoli de Oliveira - UEM Giovani De Lorenzi Pires - UFSC Valter Bracht - UFES Nelson Carvalho Marcellino - Unicamp Paulo Evaldo Fcnsterseifer - Uniju Vicente Molina Neto - UFRGS Elenor Kunz - UFSC Vtctor Andrade de Melo - UFRJ Silvana Vlodre Goellner - UFRGS

Catalogao na Publicao: Biblioteca Universitria Mario Osrio Marques-Uniju B796s Bracht, Valter Sociologia crtica do esporte : uma introduo / Valter Brachc. 3.ed. Iju: Ed. Uniju, 2005. 136 p. (Coleo educao fsica). ISBN 85-7429-259-1 1.Educao fsica 2.Esporte 3.Sociologia-esporte I.Ttulo II. Srie

^Editam Uniju afiliada:

CDU: 796 796.01

Comit de RedaoPaulo Fensterseifer Fernando Gonzalez Maria Simone Vione Schwengber Leopoldo Schonarde Filho Joel Corso

dus EdUoras Universitrias

SUMARIO

INTRODUO

9

CAPTULO l A Gnese do Esporte Moderno

13

CAPTULO 2 As Crticas Pioneiras ao Esporte

21

CAPTULO 3 A Crtica de Orientao Frankfurtiana

27

CAPITULO 4 O Corpo Disciplinado: corpo e poder em M. Foucault

45

CAPTULO 5 Esporte e Reproduo Cultural em P. Bourdieu

51

CAPTULO 6 O Marxismo Ortodoxo e a lese da Reproduo da Fora de Trabalho 57

CAPTULO 7 Esporte e Hegemonia

INTRODUO61

CAPTULO 8 Esporte e Estado

69No contexto das aes humanas, a aparncia desempenha funo muito particular, o que lhe empresta um estatuto ontolgico muito diferente daquele que lhe cabe na trama da natureza. Da a hesitao entre a anlise do dado e aquela de suas condies de existncia, do dado e do dar-se, que penetra a fundo nas cincias humanas contemporneas. (Gianotti, 1983, p. 10)

CAPTULO 9 Esporte, Estado e Cultura 81

CAPTULO 10 O Esporte e as Instituies 95 No de todo equivocada a afirmao de que o esporte um dos fenmenos mais expressivos da atualidade. Sem dvida, o esporte faz parte hoje, de uma ou de outra forma, da vida da maioria das pessoas em todo o mundo. To rpido e to "ferozmente" quanto o capitalismo o esporte expandiu-se pelo mundo todo e tornou-se a expresso hegemnica no mbito da cultura corporal de movimento. Hoje

CONSIDERAES FINAIS

121

BIBLIOGRAFIA

125

10

INTRODUO

ele , em praticamente todas as sociedades, uma das prticas sociais que rene a unanimidade quanto sua legitimidade social. No entanto, em meio ao "boom" esportivo levantam-se algumas vozes, principalmente no meio acadmico, que expressam dvidas quanto aos valores humanos e sociais deste fenmeno. a exposio destas crticas, bem como de suas bases tericas, que o objeto deste estudo. Pretendemos com este livro atingir basicamente dois objetivos, quais sejam: a) oferecer comunidade da Educao Fsica brasileira e de reas afins, uma sntese das principais crticas de cunho s cio-filosfico ao esporte, e b) contribuir para o avano da avaliao e do entendimento crticos das funes sociais e do significado humano do fenmeno esportivo. Entendemos que existe realmente uma lacuna na literatura brasileira no que diz respeito a textos que enfoquem criticamente o esporte na perspectiva das cincias sociais e humanas. Assim, este livro pretende oferecer uma alternativa para as disciplinas dos cursos de formao de profissionais da Educao Fsica incumbidas de desenvolver uma viso crtica do fenmeno esportivo. O procedimento bsico foi rever as diferentes abordagens sociolgicas e filosficas do esporte presentes na literatura, buscando dentro dos limites impostos por nossa competncia, fazer a crtica da crtica. A crtica da crtica pressupe: a) identificar a teoria impltica ou explcita que norteia a crtica; b) verificar em que medida a transposio dos princpios daquela teoria mais geral para o fenmeno esportivo plausvel em que medida a especificidade do esporte preservada; c) analisar ou levar em considerao o momento/contexto histrico em que a crtica foi produzida, verificando a possiblidade de sua generalizao para outros contextos e momentos histricos; d) operar a crtica da prpria teoria de base.

Isto tudo sempre lembrando que a crtica do esporte tambm crtica da sociedade, ou seja, crtica sociedade em um seu exemplo. No primeiro captulo procuramos construir uma breve histria social do conceito esporte. No captulo dois temos a anlise da crtica que antecede o momento do incio da sistematizao da crtica ao esporte, que ir acontecer com a entrada em cena principalmente da sociologia. No captulo trs analisamos a crtica de orientao frankfurtiana (Teoria Crtica). No captulo quatro abordada a crtica ao esporte a partir da teoria de Michel Foucault. No captulo cinco a tese do esporte enquanto reproduo cultural com base na teoria sociolgica de Pierre Bourdieu. No captulo seis temos a anlise do esporte enquanto elemento da reproduo da fora de trabalho, tese desenvolvida por autores vinculados ao marxismo ortodoxo ou enconomicista. No captulo sete o esporte tratado a luz da teoria gramsciana da hegemonia. Nos captulos oito e nove analisamos a relao entre esporte e estado de uma maneira geral. No captulo dez discutimos o surgimento do esporte enquanto fenmeno da modernidade a partir de uma teoria da instituio e seus desdobramentos no mbito da chamada "condio ps-moderna".

captulo

A GNESE DO ESPORTE MODERNO

O esporte moderno refere-se a uma atividade corporal de movimento com carter competitivo surgida no mbito da cultura europia por volta do sculo XVIII, e que com esta, expandiu-se para o resto do mundo. O esporte moderno resultou de um processo de modificao, poderamos dizer, de esportivizao de elementos da cultural corporal de movimento das classes populares inglesas, como os jogos populares, cujos exemplos mais citados so os inmeros jogos com bola, e tam-

14

AGHESE DO ESPORTE HODfRNO

15

bem, de elementos da cultura corporal de movimento da nobreza inglesa. Este processo inicia-se em meados do sculo XVIII e se intensifica no final do sculo XIX e incio do XX . O declnio das formas de jogos populares inicia-se em torno de 1800. Eles parecem ficar paulatinamente fora de uso, porque os processos de industrializao e urbanizao levaram a novos padres e novas condies de vida, com as quais aqueles jogos no eram mais compatveis (Dunning, 1979, 42). Com isso, os jogos tradicionais foram esvaziados de suas funes iniciais, que estavam ligadas s festas (da colheita, religiosas, etc.)- importante observar tambm, que os jogos populares foram muitas vezes reprimidos pelo poder pblico, como alis, tambm foi o caso de uma prtica corporal das classes populares brasileiras, a capoeira, que sofreu uma perseguio violenta por parte das autoridades brasileiras nas dcadas de 1910 a 1930. No caso da Inglaterra, foi principalmente nas eseolas pblicas (Public Schools) que estes jogos vo sobreviver, pois l eles no eram percebidos como ameaa propriedade e ordem pblica. Vai ser nas escolas pblicas que aqueles jogos (o caso clssico o futebol) vo ser regulamentados e aos poucos assumir as caractersticas (formas) do esporte moderno. No seu desenvolvimento conseqente no interior desta cultura, o esporte assumiu suas caractersticas bsicas, que podem ser sumariamente resumidas em: competio, rendimento fsico-tcnico, rccord, racionalizao e cientificizao do treinamento. Guttmann (1979)'1

identificou sete caractersticas bsicas: 1. secularizao (Weltichkcify Z. igualdade de chances; 3. especializao dos papis; 4. racionalizao; 5. burocratizao; 6. quantificao; 7. busca do record*. Este fenmeno esportivo, com estas caractersticas, tomou como de assalto o mundo da cultural corporal de movimento, tornando-se sua expresso hegemnica, ou seja, a cultura corporal de movimento esportivizou-se. Autores como Eichberg (1979) e Rigauer (1969), entendem que alguns princpios que passaram a reger a sociedade capitalista industrial acabaram sendo incorporados pelo esporte, como foi o caso do princpio do rendimento. Ficam como questes interessantes de investigao: por que exatamente a forma cultural de esporte tornou-se hegemnica em nvel mundial? Porque exatamente na Inglaterra "nasceu" ou se desenvolve esta forma de cultura coporal de movimento? Essas questes foram levantadas por Elias (1992) em seu artigo a "Gnese do Esporte". Este processo de expanso, que, alis, nem sempre decorreu sem oposio ou resistncia, como foi o caso da resistncia do movimento ginstico da classe trabalhadora alem na passagem do sculo, que recusava-se a incluir em suas atividades (o Turnen) elementos considerados da cultura burguesa4, desemboca hoje num processo de diferenciao, ou seja, o conceito de esporte parece precisar dar contaNo Brasil foi publicada uma obra introdutria Sociologia do Esporte (Helal, 1990), que em muitas partes simplesmente reproduz a obra e interpretaes do professor americano Allcn G u t m a n n (1979), chegando a reproduzir inclusive alguns esquemas como os que analisam a diferena e inter-rclaScs entre brincadeira, jogo c esporte. importante observar que a expanso do esporte, enquanto elemento da cultura europia, para outras culturas, significou cm muitos casos um confronto entre formas distintas de prticas corporais, que cm muitos casos levou adaptao cultura corporal europia, portanto sua esportivizao, ou simplesmente destruio ou desaparecimento. Em pases africanos comum perceber o esporte enquanto cultura corporal de movimento ativa e as prticas corporais originais sendo folclorizadas.

1

No captulo 10 discutimos c criticamos ;i perspectiva que defende ser o esporte um fenmeno presente j nas sociedades antigas e primitivas; quase que uma constante cultural, de maneira que o esporte que conhecemos hoje seria apenas a "atualizao" do mesmo fenmeno desde sempre presente na civilizao humana. Para Guttmann (1979), o esporte de certa forma uma "racionalizao do romntico", um misto de razes arcaicas e mticas e regulao raciona! moderna.

16

BSICHJ

A GNESE DO [SPRIE MODERNO

17

de atividades, que pelo seu grau de diferenciao, esto a exigir adjetivaes do tipo: esporte de alto rendimento ou de rendimento, esporte de lazer, esporte educativo etc. Inmeras tm sido as tentativas de captar e traduzir em conceitos esse processo de diferenciao, com um conseqente nmero de classificaes. No Brasil, a Comisso de Reformulao do Esporte Brasileiro, instituda pelo presidente Jos Sarney, em 1985, sugeriu e est sendo amplamente aceito, inclusive incorporado pela Constituio Federal de 1988, diferenciar o conceito de esporte em trs manifestaes: a) d&sporto-perforniance; b) desporto-participao e c) desporto-educao. Embora reconhecendo que a multifacitude do fenmeno esportivo hoje solicite uma abordagem mais diferenciada ou complexa, vamo-nos valer aqui de um esquema dual: ) Esporte de alto rendimento ou espetculo; b) Esporte enquanto atividade de lazei5. Diferentemente da referida comisso no adjetivamos uma forma especfica de esporte de educacional {no sentido lato toda prtica esportiva educacional, mesmo que num sentido diverso da nossa concepo de educao). O esporte praticado no mbito da instituio educacional, pode na verdade, vincular-se a uma das duas perspectivas de esporte acima referidas, embora parea predominar hoje, em maior ou menor grau, as caractersticas do esporte de rendimento, Ou seja, a manifestao do esporte que ainda fornece o modelo para o esporte escolar o de alto rendimento,

O esporte enquanto atividade de lazer obviamente tambm no homogneo. Neste encontram-se formas que so imediatamente derivadas do esporte de rendimento ou espetculo e que a ele muito se assemelham, como outras que dele divergem quanto a aspectos meramente formais, mas tambm, quanto ao sentido interno das aes. Utilizaremos a expresso "esporte-espetculo", complementando a expresso "alto rendimento", porque entendemos que esta abriga a caracterstica central desta manifestao hoje, ou melhor, sua tendncia mais marcante, qual seja, a transformao do esporte em mercadoria veiculada pelos meios de comunicao de massa. Segundo Digel (1986), o esporte de rendimento ou espetculo constitui hoje um sistema que pode ser resumido nos seguintes pontos: - Possui um aparato para a procura de talentos normalmente financiado pelo Estado. Alm disso, este aparato promove o desenvolvimento tecnolgico, com o desenvolvimento de aparelhos para a utilizao tima do "material humano"; - possui um pequeno nmero de atletas que tem o esporte como principal ocupao; - possui uma massa consumidora que financia parte do esporte-espetculo; - os meios de comunicao de massa so co-organizadores do esporteespetculo; - possui um sistema de gratificao que varia em funo do sistema poltico-societal. Por outro lado, precisamos estar conscientes das limitaes de conceitos na forma de "tipos ideais". Seria necessrio, para superar em parte estas limitaes, buscar esclarecer como estas "duas' manifesta-

Neste caso c fundamental atentar para a palavra atividade, uma vez que o esporte pode ser vivid enquanto lazer tanto na perspectiva do espectador do esporte de alto rendimento, este praticado por profissionais, como na perspectiva do praticante. Neste ltimo caso, os cdigos e o sentido so diferentes dos do primeiro.

18

BmcttT

A GNESE DO ESPORTE MODERNO

19

es se inter-relacionam, quais suas principais tendncias, bem como seus condicionantes e determinantes sociais. Ou seja, em vez de uma simples diferena analtica, teramos de gerar a diferena por meio do desdobramento de uma forma. Num esforo de sntese, podemos dizer que o esporte de alto rendimento ou espetculo, aquele imediatamente transformado em mercadoria, tende, a nosso ver, a assumir {como j acontece em maior escala em outros pases, como nos EUA) as caractersticas dos empreendimentos do setor produtivo ou de prestao de servios capitalistas, ou seja, empreendimentos com fins lucrativos, com proprietrios e vendedores de fora de trabalho, submetidos s leis do mercado. Isso se reflete nos apelos cada vez mais freqentes profissionalizao dos dirigentes esportivos e na administrao empresarial dos clubes (empresas) esportivos (esportivas). E o esporte de alto rendimento que, em linhas gerais, ainda fornece o modelo de atividade para grande parte do esporte enquanto atividade de lazer, como tambm recruta, cada vez menos, verdade, parte de seu contingente de praticantes (trabalhadores) nesta manifestao e no esporte escolar, este propiciando, ainda, a socializao para o consumo do esporte (contingente consumidor do produto esporte e de seus subprodutos). Outro aspecto da inter-relao entre o esporte de alto rendimento ou espetculo e o esporte enquanto atividade de lazer, diz respeito ao uso comum das instalaes esportivas. Se a tese de que a prtica do esporte corno lazer possui outro sentido, outros cdigos, verdadeira, ento, tambm o meio ambiente de sua prtica precisaria apresentar-se de certa forma diferenciado. Este e outros aspectos de-

as organizaes esportivas que dominam o esporte-espetculo 6 , buscam incorporar/encampar as formas alternativas de prtica esportiva que surgem para no perder o poder de determinar as formas legtimas de sua prtica. Da por que, tambm, as formas alternativas de prticas corporais logo sofrem presso no sentido da sua esportivizao (na Olimpada de Sidney-2000, j foi anunciada uma nova modalidade olmpica, a dana). A acentuao dessas inter-relaes importante, j que nas tentativas de conceituao das diferentes manifestaes do fenmeno esportivo (como no caso da Comisso de Reformulao do Esporte Brasileiro), so acentuadas as diferenas, parecendo possurem as diferentes manifestaes autonomia absoluta. Reforando: quanto funo social, as duas manifestaes circunscrevem-se no mbito do lazer; por um lado enquanto produo e consumo de um produto no tempo livre e, por outro, a prtica no perodo de tempo livre7. Sem perder de vista as semelhanas e as inter-relaes, pode-se apontar para as tendncias diferenciadoras. O esporte de alto rendimento ou espetculo, por exemplo, aproxima-se para o praticante e circunscreve-se no mundo do trabalho, enquanto o consumo daquele e o esporte praticado como lazer circunscrevem-se no mundo do notrabalho. O sentido interno das aes no interior da instituio do esporte-espetculo pautado pelos cdigos (e semntica) da vitria-derrota, da maximizao do rendimento e da racionalizao dos meios. Porft

Alis, como mostraram Simson e Jennings (1992) em Os Senhores dos Anis, nem sempre so as organizaes esportivas que determinam os rumos do esporte e sim empresas que atuam em outros setores da economia. No esquecer que neste ltimo caso, o da prtica de esporte no tempo livre esta cada vez mais presente a venda de servios especiali/adfjs, rias academias de natao, nas escolinhas de futebol, vlei, tnis '-tr. Remetemos o leitor para o captulo 10 onde esta questo tratada com mais detalhes.

7

monstram que a diferenciao destas duas manifestaes em direo a uma possvel autonomia encontra srias dificuldades, mesmo porque

20

BXICHT

outro lado, no esporte enquanto atividade de lazer, outros cdigos apresentam-se como relevantes e capazes de orientar a ao. Por exemplo, motivos ligados sade, ao prazer e sociabilidade. Como veremos nos prximos captulos, esta diferenciao vai mostrar-se til, pois alguns autores observam que existe a necessidade de se diferenciar as formas que assume o fenmeno esportivo. E de observar, tambm, que existem obviamente diferenas na funo social e nas caractersticas do esporte de pas para pas, de cultura para cultura. Estas diferenas no foram consideradas aqui neste momento, mas sero observadas no decorrer do estudo. No captulo seguinte abordaremos um conjunto de crticas feitas ao esporte que se situam no perodo anterior ao final da dcada de 60, momento esse que marca o surgimento de uma srie de estudos sociolgicos e filosficos tendo como tema o esporte, momento a partir do qual, portanto, o esporte passa a ser preocupao mais intensa e objeto de estudo de forma mais sistemtica das cincias sociais.

captulo *

AS CRTICAS PIONEIRAS AO ESPORTE

Ns chegamos concluso que este esporte burgus que leva ao frenesi do record e ao profissionalismo, deve ser negado pela classe trabalhadora corno uma expresso da essncia do capitalismo. No verdade que o esporte neutro; ele muito rnais uma parte de urna ordem social e concepo de cultura que existe para destruir a tarefa histrica e o dever moral do proletariado. (Juiius, 1928, apud Bernetc, 1982, p. 59) A proteo eficiente contra a destruio das prticas corporais pelo disparate do record burgus o esporte do trabalhador. Aqui a competio saudvel e o desejo do mais alto rendimento tambm no negligenciado, mas falta toda e qualquer pr-condio para uma adorao exagerada dos heris. A classe trabalhadora realiza todas as coisas com o objetivo de melhorar sua condio de classe; assim tambm

22

BSCHT

K CRTICAS PIONEIRAS AD ESPORTE

23

o esporte, que se constitui numa forma especfica da luta pela sim libertao. Isto torna nobre o seu jogo e o seu esporte e o preserva contra hilrios exageros. Para a jovem classe trabalhadora recm despertada paru conscincia de classe a idia do socialismo que a protege contra equvocos. (Fritz, 1929, apud Bernett, 1982, p. 54)

muito interessante notar que em muitos casos as crticas que hoje so feitas ao esporte, j aparecem em escritos esparsos e, em alguns casos, vinculados a movimentos sociais bem definidos do incio do sculo XX. Huizinga (1980, p. 219) em seu clssico Homo Ludens j advertia que o esporte corrompia uma das caractersticas fundamentais do jogo que a espontaneidade. O esporte tecnificava, racionalizava o jogo, o ldico. Nas palavras de Huizinga {1980, p. 219-220)*:Ora esta sisternatizao e regulamentao cada vez maior do esporte implica a perda de uma parte das caractersticas ldicas mais puras. Isto se manifesta nitidamente na distino oficial entre amadores e profissionais (ou "cavalheiros e jogadores", como j foi hbito dizer-se), que implica uma separao entre aqueles para quem o jogo j no jogo e os outros, os quais por sua vez so considerados superiores apesar de sua competncia inferior. O esprito do profissional no mais o esprito ldico, pois lhe falta a espontaneidade, a despreocupao. Isto afeta tambm os amadores, que comeam a sofrer de um complexo de inferioridade. Uns e outros vo levando o esporte cada vez mais para longe da esfera ldica propriamente dita, a ponto de transform-lo n uma coisa suigeneris, que nem jogo nem seriedade. O esporte ocupa, na vida social moderna, um lugar que ao mesmo tempo acompanha o processo cultural e dele est separado, ao passo que nas civilizaes arcaicas as grandes competies sempre fizeram parte das grandes festas, sendo indispensveis para a sade e a felicidade dos que nelas participavam. Esta ligao com o

ritual foi completamente eliminada, o esporte se tornou profano, foi dessacrahzado sob todos os aspectos e deixou de possuir qualquer ligao orgnica com a estrutura da sociedade, sobretudo quando de iniciativa governamental. A capacidade das tcnicas sociais modernas para organizar manifestaes de massa com um mximo de efeito exterior no domnio do atletismo no impediu que nem as Olimpadas, nem o esporte organizado das universidades norte-americanas, nem os campeonatos internacionais tenham contribudo um mnimo que fosse para elevar o esporte ao nvel de urna atividade culturalmente criadora. Seja qual for sua importncia para os jogadores e os espectadores, ele sempre estril, pois nele o velho fator ldico sofreu urna atrofia quase completa.

Bernett (1982), autor que ser nossa referncia bsica neste captulo, sistematizou a crtica ao esporte no perodo que antecede a crtica da Nova Esquerda (1968) da seguinte forma: a) a crtica dos adeptos da ginstica; b) a crtica do movimento ginstico da classe trabalhadora ao esporte "burgus"; c) a crtica moral da igreja ao carter irreal do esporte; d) o esporte voluntarista na viso dos tericos da ginstica; e) o esporte como objeto da crtica cultural; f) a crtica ao esporte por parte dos "intelectuais"; g) a crtica dos nacional-socialistas ao esporte "apoltico". Como vemos, o esporte no se desenvolveu sem despertar reaes crticas, o que parece contrastar com a "aparente" unanimidade social da qual desfruta hoje. verdade que, excesses regra, essas crticas tiveram um carter bastante assistemtico. Procurarei a seguir destacar seus pontos centrais.

K

Eichberg (1979, p. 14ss.) classifica a crtica de Huizinga no mbito da crtica cultural crist-conservadora do esporte. Segundo o autor, os fenomenlogos do esporte e do jogo derivam sua avaliaaci/valorao do esporte de normas crists.

24

SCHT

AS CRITICAS PIONEIRAS AO ESPORTE

25

E conhecido o debate entre os defensores do esporte (na Inglaterra) e os defensores da ginstica (no continente europeu), ou seja, os sistematizadores dos mtodos ginsticos, quanto ao meio mais adequado para a Educao Fsica da juventude. No entanto, menos conhecidas entre ns no Brasil (pelo menos quase no encontramos registros na historiografia esportiva em lngua portuguesa) so as crticas oriundas das organizaes de ginstica e esportivas de trabalhadores europeus (alems, belgas, francesas, suas e inglesas principalmente), levadas a efeito nas primeiras dcadas deste sculo. A classe trabalhadora em pases como a Blgica, a Tchecoeslovquia, a Frana e principalmente a Alemanha criou uma organizao de clubes de ginstica e, posteriormente, tambm de esportes, prpria, que procurava diferenciar-se das organizaes ginsticas e esportivas "burguesas". Este movimento produziu textos (de jornais e mesmo livros), onde os princpios que norteavam suas atividades bem como as crticas ao esporte "burgus" estavam expressas. Dierker (1990)9 publicou pesquisa em que ressalta a integrao do movimento ginstico e esportivo dos trabalhadores (dos pases citados acima) nos movimentos internacionais de trabalhadores, como a segunda internacional socialista e a terceira internacional comunista. Na verdade, as associaes ginsticas e esportivas de trabalhadores na Frana, Alemanha, Sua, Inglaterra, Tchecoeslovqua e Blgica criaram em 1913 uma "Internacional Esportiva" (Association Internationale Socialiste d'Edcation Physique), com sede em Bruxelas. Posteriormente, ocorreu urna diviso na organizao ginstica e esportiva inVer cambem Fischer, J. De Russenspiclc - E i n h e i t s f r o n t der Arbeitersportlcr fr Demokratie u n d internationale Solidaritt. In Hopf.W. (Hrsg.). Fussball; Soziologie und Sozialgeschichte cincr populiircn Sporcart. Bcnshcim: Pad-Extra-Buchverlag, 1979, P. 1 0 1 - 1 1 6 .

ternacional dos trabalhadores em uma vertente socialista e outra comunista, seguindo a tendncia geral do movimento de trabalhadores europeu. Mesmo assim, foram organizadas duas grandes olimpadas, uma em Frankfurt em 1915 (Arbeitersportolympiade) e outra em Praga em 1927 (Delnicka Olympiade). Aps a Segunda Guerra Mundial este movimento no foi retomado. Bernett (1982, p. 43-82) resumiu em cinco pontos as crticas ao esporte advindas deste movimento: 1. emancipao do "esporte dos senhores". Era destacada a necessidade de quebrar a exclusividade do esporte dos senhores (dos dominantes); 2. os princpios da competio, do rendimento e do record. A negao do princpio da competio entendida como decisivo para uma cultura corporal proletria. O esporte competitivo burgus atacado genericamente como um espelho e instrumento da economia capitalista. Nesta viso, a racionalizao das tcnicas esportivas aparece como paralela ao sistema capitalista taylorizado; 3. mentalidade esportiva capitalista. As organizaes ginsticas e esportivas de trabalhadores buscavam se distanciar da mentalidade esportiva burguesa, na medida em que colocavam como princpio orientador a solidariedade de todos os trabalhadores; 4. o esporte como arma dos dominantes. O esporte-espetculo utilizado como meio para desviar a ateno das massas da luta de classes e como fuga da realidade poltica. Com relao ao esporte nas fbricas, alertava-se contra a introduo de uma nova "arma" para a disciplinao dos trabalhadores; 5. esporte "burgus" a servio do militarismo e do fascismo. O esporte burgus dominado pelo capitalismo que fomenta o militarismo e o facismo.

Os textos que o autor cita com reproduo dos originais em sua obra so datados de 1902, 1924, 1928, 1930 e 1931. O ambiente que se seguiu Segunda Guerra Mundial na Europa no possibilitou o ressurgimento deste movimento social, em funo de um ambiente francamente anticomunista/socialista, ambiente que envolver tambm o cenrio esportivo, principalmente no mbito dos jogos olmpicos. A seguir apresentaremos e discutiremos a crtica ao esporte que encontra-se na tradio da Teoria Crtica, mais conhecida como Escola de Frankfurt. E interessante notar que autores importantes desta corrente, como Rgauer (1969), procuram com sua crtica encaminhar uma reflexo sobre a possibilidade da construo de um esporte proletrio, de uma cultura corporal/esportiva especfica da classe trabalhadora, fazendo referncia experincia histrica referida acima.

A CRTICA DE ORIENTAO FRANKFURTIANA

At a dcada de sessenta, nos textos produzidos aps a segunda guerra mundial, o esporte aparecia na literatura fundamentalmente corno um mundo a parte, reduto do mundo privado, espao apoltico da vida. A sociologia e a filosofia haviam se ocupado com o fenmeno esportivo de forma muito espordica e assistemtica1". Este quadro vai, no final da dcada de 60 e, principalmente, durante a dcada de 70, modificar-se radicalmente.Dois importantes autores {Gutmann, 1979, p. 9 e Lenk, 1972, p. 7} citam no incio de suas obras, como indicador, um pargrafo do filsofo Schelcr, escrito em 1927: "Quase n e n h u m f e n m e n o t r a n s n a c i o n a l de nosso t e m p o merece um e s c l a r e c i m e n t o (Durchieiichtimg) sociolgico c psicolgico como o esporte. No entanto, acc agora no foi feita n e n h u m a tentativa seria para a explicao deste fantstico fenmeno".

28

A CRTICA DE ORIENTAO FRAHKFURTIANA

Este processo de crtica sociofilosfica do esporte nesse perodo, principalmente na Europa, foi em grande parte desencadeado pelo movimento (revolta) dos estudantes". Tal crtica tinha como referencial bsico o neomarxismo dos frankfurtianos, da chamada Escola de Frankfurt, tambm conhecida como Teoria Crtica, principalmente de Herbert Marcuse, mas tambm Theodor Adorno, Max Horkheimer e Jrgen Habermas 12 . Concordamos com a advertncia de Freitag (1986, p. 33), de que o termo Escola de Frankfurt ou a concepo de uma Teoria Crtica sugerem uma unidade temtica e um consenso epistemolgico, terico e poltico, que raras vezes existiu entre os representantes da Escola. No entanto, no nos fica aqui outra opo. Assim sendo, apoiando-nos em Salamun (1981), procuraremos estabelecer sumariamente as teses da Escola de Frankfurt que transpareceram na crtica ao esporte de forma mais pronunciada: a) a tese da coisificao ou alienao. Essa tese resumidamente prope que a sociedade e os homens no so aquilo que em funo de suas possibilidades e sua natureza poderiam ser. Isso transparece nas sociedades industriais principalmente no mundo do trabalho. Como causa, temos um tipo de pensamento que se efetiva na razo instrumental ou racionalidade tcnica. Isto , as relaes sociais em seu conjunto so norteadas por uma razo instrumental, coisificando-as13;11 lz

b) a tese da represso e manipulao. De acordo com essa tese, a sociedade moderna altamente tecnologizada, industrializada e desenvolvida, representa um sistema de represso, dominao e manipulao. principalmente Marcuse que defende a tese da represso. Ele parte da concepo freudiana de que somente uma permanente represso e inibio da estrutura de impulsos do homem, que originalmente est orientada para o ilimitado ganho de prazer e felicidade e satisfao das necessidades, permite a vida em sociedade. Sua crtica a de que a moderna sociedade industrial capitalista teria institucionalizado um grau elevado e desnecessrio de represso (Salamun, 1981, p. 300), a mais represso (Marcuse, 1978b). O princpio do rendimento desempenha um papel importante neste contexto. Segundo Marcuse (1978b, p. 50), "sob o domnio do princpio do rendimento corpo e alma tornam-se instrumentos de rendimento do trabalho alienado". De acordo com essa tese, os homens nesta sociedade teriam de tal maneira suas necessidades e desejos manipulados que passariam a ter de encarar uma transformao revolucionria como contrria aos seus interesses e, assim, tambm a negariam. A partir desse referencial - apresentado aqui de forma muito precria - diferentes autores levaram a efeito uma crtica da instituio burguesa do esporte. Na Frana, destacaram-se inicialmente J-M. Brohm (1978a, 1978b) e P. Laguillaumie (1978), na Alemanha Federal, B. Rigauer (1969, 1978), G, Vinnai (1970) e Bhme et ai. (1971). O esporte nessa crtica caracterizado: a) como um sistema de ao coisificado e em conformidade com o trabalho;

Ver a respeito Moegling, 1988, p. 36s. e Brohm 197Sb, p. ls. Para uma introduo ao pensamento da Escola de Frankfurt remetemos o leitor ao trabalho de Freitag (1986), publicado pela Brasiliense. Aqui rcflctc-se o que Habermas (19HH, p. 96) chamou de marxismo wcbcriano de Adorno e Horkheimer. Adorno mesmo manifcstou-sc de forma muito breve sobre o esporte, como por exemplo: "O esporte moderno procura devolver ao curpo uma parte das funes que a m q u i n a havia lhe roubada. Mas ele procura faze-lo para colocar o homem de forma mais implacvel ainda a servio da mesma mquina. Ele molda o corpo tendcncialmentc mquina. Por isso, ele pertence ao mundo da noliberdade, independentemente de onde a gente o organize" (Adorno 1955, citado por Kirsch, 1986, p. 22).

11

30

Yu

A CRTICA DE ORIENTAO FRAMKFURTIANA

b) como um instrumento de represso das necessidades; c) como um fenmeno de manipulao e adaptao, sendo que tal adaptao dar-se-ia, por sua vez, pelas funes de compensao, socializao e integrao cumpridas pelo esporte. No ser possvel rever em detalhes todos os aspectos dessa vertente da crtica ao esporte. Espero, no entanto, com a sntese que se segue resumi-la de forma satisfatria. Partindo da crtica da sociedade dominante como uma formao social capitalista tardia, o esporte foi analisado em sua funo de estabilizao do sistema como um todo. So postuladas para o esporte, por exemplo, as funes de desvio da ateno e de atenuador das tenses sociais, que permitiriam uma compensao para as insuportveis condies de vida. Tanto o esporte de rendimento quanto o esporte de lazer desviam a agressividade potencial das suas origens sociais para as aes esportivas. Frustraes que resultariam do trabalho alienado e das condies de moradia dirigem-se, assim, no contra as verdadeiras causas, e, sim, so transformadas em agir agressivo no contexto das competies esportivas. Assim, diluem-se as energias necessrias para uma transformao das condies societrias, que so assim inibidas e no acontecem. Todo gol comemorado no esporte , na verdade, um gol contra a classe trabalhadora. Tambm de efeito estabilizador a funo do esporte no processo de represso sexual e canalizao do impulso Hbidinoso . A sexualidade, atravs de uma acentuada atividade alternativa, o esporte, 14IS

destituda de seu potencial de atuao social e sua ao libertadora bloqueada. Um atleta dispende sua energia sexual no esporte e, assim, disciplina seus impulsos sexuais, roubando-lhes, dessa forma, seu possvel efeito social-libertador. No esporte o interesse sexual em relao ao corpo coisificado e alienado e, assim, envolvido e canalizado em normas abstratas de rendimento. Uma outra variante refere-se funo ideolgica do postulado da igualdade de chances no esporte. A igualdade formal de chances da estrutura esportiva indica para a presumvel existncia de uma correspondente forma de sociedade. Tal idia nega a fundamental desigualdade de chances inerente sociedade capitalista e eleva o princpio esportivo da igualdade de chances a um princpio geral da sociedade15. Tambm a dimenso poltica da socializao atravs do esporte realada nessa crtica16. Ao lado do contedo ideolgico veiculado pelo esporte, o intensivo engajamento no esporte provocaria um desinteresse poltico, O interesse nas tabelas dos campeonatos, nos dolos esportivos etc. impediria a formao da conscincia poltica e o conseqente engajamento poltico. Alm disso, a pratica do esporte levaria adaptao s normas e ao comportamento competitivo, bsicos para a estabilidade e/ou reproduo do sistema capitalista.

Aqui vale uma observao interessante: alguns estudos brasileiros, como os do antroplogo Roberto da Ma t t e da antroploga Alba Zaluar, esta cm parte respaldada no primeiro, fazem uma avaliao exatamente contrria do significado da vivncia no esporte do princpio dtt igualdade de chances e da valorizao do rendimento como princpio que decide os benefcios advindos dele. Segundo esses autores, essa experincia faz ver que possvel uma sociedade regida por regras democrticas, embora esta, na qual eles vivem, no o seja (Zaluar, 1994, p. 61). Ver a respeito Brachc (1986).

14

ESSI tese defendida principalmente por Uruhm (1978a) e Vinnai (1970).

l

32

ACfTICADEQIflENTAOFRANKFUKTim

Principalmente o esporte de alto rendimento desenvolveu um ritual que refora o comportamento e pensamento nacionalista exacerbado. Assim, as injustias sociais podem ser compensadas por uma identificao com a nao no contexto do confronto esportivo internacional. As crticas que se pode fazer a essas interpretaes da funo poltica do esporte so vrias. Elas vo da acusao de generalizao excessiva das anlises, da falta de diferenciao do conceito de esporte, da reduo da crtica forma capitalista de sociedade, ignorando o papel do esporte nos pases socialistas da poca, bem como nos ainda hoje socialistas, como Cuba e China, at a falta de fundamento emprico das afirmaes' 7 . No entanto, a crtica da crtica no pode se contentar com objees to gerais. Por isso, gostaramos de tomar um aspecto da anlise das repercusses do esporte sobre as relaes de poder dessa vertente e analis-lo mais de perto. Tal aspecto diz respeito afinidade entre o esporte de alto rendimento e o trabalho industrial e a tese da alienao. Foi principalmente Rigauer (1969)1S

ractersticas, e essas so basicamente: disciplina, autoridade, concorrncia, rendimento, racionalidade tcnica, organizao e burocratizao. Esses aspectos dominantes na sociedade capitalista industrial impregnam paulatinamente o esporte, principalmente o de rendimento. Assim, Rigauer critica a concepo contrria (por exemplo, de um dos idelogos do movimento esportivo internacional, Carl Diem), a partir da qual esporte e trabalho seriam dois sistemas de ao completamente distintos. Rigauer procura demonstrar a afinidade dos dois sistemas de ao a partir dos seguintes aspectos: - paralelismo entre as medidas de racionalizao nos sistemas de ao do esporte de rendimento e do trabalho; - mtodos complexos de trabalho e treinamento; - a cientifizao do trabalho e do treinamento esportivo; - o refinado taylorismo do mundo do trabalho encontra um correspondente no treinamento do esporte de alto rendimento;

que desenvolveu detalha-

- execuo repetitiva e sobrecarga so caractersticas tanto do trabalho como do moderno treinamento; - carter de mercadoria de ambos; - mtodos analticos de aprendizagem dos movimentos.

damente a tese da afinidade entre trabalho industrial e esporte de rendimento. Para, Rigauer o esporte desenvolve-se em interdependncia corn o processo social global, qu acaba determinando suas ca-

'A respeito do conceito de "emprico" presente na critica ncoposifivista a estas anlises, falaremos mais adiante.f

Vinnai (1970) ampliou a anlise de Rigauer, introduzindo elementos da psicanlise em sua abordagem: "o treinamento esportivo e seu princpio imanente do rendimento seguem o postulado econmico geral internalizado da produo da mais-valia capitalista. Na prtica do esporte so compensados fracassos sociais e psquicos, no entanto, sob o ditado do princpio industrial do rendimento, que em sua

Rigauer (1969), na poca, estudou Sociologia c Esporte cm Frankfurt, sendo seu livro, Esporte c Trabalho (Sport und Arbctc), a monografia de concluso do curso de sociologia, tendo sido influenciado tanto por Adorno como por Habermas. Alis, Habermas publicou, em 1958, um ensaio que influenciou um grupo grande de trabalhos; trata-se do ensaio Anotaes Sociolgicas, sobre a relao entre trabalKo c tempo livre (Habermas, J. Arbeic, Erkenntnis, Kortschritt. AufsUtze 1954-1970. Amstcrdan, 1970). Nesse texto encontra-se a famosa frase: "Sob a aparncia do jogo c do livre desenvolvimento das foras o esporte duplica o mundo do trabalho".

34

BtACHT

A CRTICA DE ORIENTAO FRANKFORTIANA

35

transformao especificamente esportiva leva novamente utilizao de estruturas de conscincia e comportamento relativas ao trabalho, acaba atuando, assim, contra o desenvolvimento do ganho do prazer corporal". O que nos interessa neste contexto so as conseqncias que derivam da tese da afinidade. Uma delas a de que no esporte de alto rendimento "a reduo da fora de trabalho forma abstrata e quantitativa de mercadoria implica uma coisificao concreta do agir humano" (Rigauer, 1981, p. 61). No distante desta interpretao encontra-se ento a derivao lgica: se esporte de alto rendimento trabalho, e trabalho na sociedade capitalista trabalho alienado, ento alienao'9 tambm o que acontece no esporte de alto rendimento. Segundo Helmer (1981, p. 59),se analisarmos a heterogeneidade do conjunto das linhas de argumentao a respeco da tese da alienao via esporte de rendimento, fica claro que elas giram em torno de dois aspectos: a) por um lado, em torno do tema da funo da compensao do esporte, isto , uma abordagem cientfica que entende as atividades esportivas de massa como urna forma de comportamento compensatrio, como reao de compensao ao desgaste sofrido no processo capitalista alienado de produo; e b) por outro lado, ern torno do tema da manipulao das necessidades e dos desejos dos instintos de conformidade com os interesses do dominante capital monopolista, em torno, portanto, daquilo que foi formulado de forma pregnante como disciplinao da sensibilidade.Segundo Frcitag (1985, texto mimeografado), alienao do trabalhador assalariado tem na obra de Marx trs significados: a) a objctivao no sentido de "colocar fora de si" atravs do trabalho a sua prpria essncia = produto do trabalho; b) a desapropriao do produto de seu trabalho por outros = apropriao capitalista; c) o tornar-se estranho a si mesmo, no se reconhecendo mais no produto de seu trabalho como produtor = perda da conscincia de si.

Essa "acusao" foi rebatida principalmente pelo filsofo Hans Lenk . A argumentao de H. Lenk gira em torno da impossibilidade de eqivaler trabalho industrial e esporte de rendimento, pois no esporte o atleta teria a possibilidade de retirar-se dele, j que se trata de atividade voluntria e, acima de tudo, de reconhecer-se no seu produto, isto , identificar-se com sua atividade. Lenk faz, na verdade, uma interpretao marcadamente psicolgica21 da teoria marxista da alienao, o que, por um lado, no faz juz a essa teoria, mas, por outro, indica tambm dificuldades a ela inerentes. Lenk (1972) prope ou julga no termos outra opo que no seja eleger o prprio indivduo como responsvel por suas aes - a autoridade moral s pode ser em ltima instncia o prprio indivduo. Assim, se os indivduos dizem identificarem-se com sua atividade, isto o que precisa valer zz . possvel superar o impasse entre uma interpretao objetiva e outra subjetiva? possvel superar esse impasse atravs de uma abordagem cientfica da realidade, sem apelar para uma viso de homem de cunho normativo ou tico? Se a resposta est vinculada em ltima instncia a uma determinada concepo normativa de homem, como fundamentar racionalmente essa viso? Gomo superar a cilada conservadora da impossibilidade de fundamentar decises ticas, que presumivelmente seriam atribuies individuais?21t

211

Ver sumrio da contracrtica em Liischcn, G. c Wcis, K. Sociologia de! deporte, Valladolid, Minn, s/d. p. 113-141 (H. Lenk: sobre Ia crtica ai princpio dcl rcndmicnto cn cl deporte), c, mais recentemente, em "Die achtc Kunst", publicado em 1985. A respeito ver Helmer (1981, p. 43-58). Por outro lado, para Sevc (1973, p. 15), "a transformao de condies econmicas em problemas psicolgicos c um dos cruques clssicos da ideologia burguesa". "O sujeito assim declarado como fonte de verdade representa uma verso da existncia subjetiva apurada dos juzos cotidianos na pura razo transcendental; isto permite um 'acesso privilegiado' ao setor dos objetos reais do pensamento, atravs da reduo transcendental. Assim, so criadas verdades relativas c ao mesmo tempo absolutas (BrClhl, 1989, p, 5).

21

2i

36

BtCH!

A CRITICA DE ORIENTAO FRANKFURTIANA

37

Dada a centralidade dessa questo no mbito dessa vertente da crtica ao esporte, vamos dedicar mais algum espao para sua discusso. Talvez seja preciso dizer desde logo que bem provvel que uma resposta, ou melhor, que o problema tenha muitas chances de no ter soluo, o que deslocaria nossa ateno para o entendimento de por que no podemos responder claramente essa questo. Consideramos importante dispensar um pouco mais de nossa ateno a esse aspecto, porque ele central, tambm para a anlise da relao trabalho-lazer (e nesse contexto o esporte como atividade de lazer) e da tese, de orientao marxista ortodoxa, de que a funo bsica do esporte a reproduo da fora de trabalho. Lanarei mo aqui, na inteno de avanar na questo, da obra O Discurso Filosfico da Modernidade, de Jrgen Haberrnas (1988). Segundo o autor, o marxismo ao substituir a "autoconscincia" (Hegel) pelo "trabalho" acaba se manobrando em direo a uma aporia. Habermas indica algumas dificuldades do que ele chama "paradigma da produo" para fundamentar sua tese. A categoria central em Marx neste caso trabalho. Marx concebe o trabalho como "a auto-realzao coletiva dos produtores" (Habermas, 1988, p. 81), na medida em que ele assimilou, segundo o autor, a categoria trabalho da atividade criadora do artista, o qual "atravs do seu trabalho coloca para fora de si sua essncia (externaliza o seu ser), e na contemplao do seu produto, dela se reapropria" {idem, p. 80). "No trabalho alienado este crculo 'de colocar fora de si' (externalizar) e de 'reapropriao' rompido. O produtor alienado do proveito de seu produto onde ele poderia se reencontrar, e assim, aliena-se de si prprio" (idem, p. 81). Desta maneira, o circuito da prxis interrompido. Mas, o conceito de prxis tambm que precisa conter a "atividade crtico-revolucionria", isto ,

a autoconsciente ao poltica, com a qual os trabalhadores unidos rompero com o encanto capitalista do trabalho morto sobre o trabalho vivo. Isso significa que a prxis emancipatria teria de emergir do prprio trabalho (alienado) (idem, p. 82), isto , o trabalho alienado precisa superar a dicotomia a partir de si mesmo. Ainda segundo Habermas (1988), Marx fica aqui no plano da filosofia do sujeito (ou da conscincia), que localiza a razo no na reflexo de quem conhece (do sujeito que conhece), mas, sim, na racionalidade objetiva do sujeito que age. Uma das conseqncias que o conceito de trabalho, assim como a racionalidade objetiva que existe em seu interior, ficou, no marxismo, ambguo. Assim, cincia e tcnica, que para Marx ainda possui claro potencial emancipatrio, aparecem em Lukcs, Bloch e Marcuse apenas como meios eficientes de represso social (idem, p. 83). Habermas pergunta: "o que pode a filosofia da prxis opor a uma razo instrumental, a uma racionalidade tcnica que elevou-se totalidade social, se ela prpria, de forma materialista, precisa se entender como parte e resultado dessas relaes coisificadas - se a coao para a objetivao alcana o interior da razo crtica (idem, p. 85)? Eis o impasse! Como lembra Freitag (1986, p. 110), "o resgate da concepo emancipatria da razo no se d para Habermas automaticamente com a superao das relaes de trabalho alienadas e alienantes do capitalismo, como supunha Marx, mas exigiria uma nova mediao, que Habermas encontrar na categoria da intersubjetividade". Nos crculos conservadores, a anlise do processo de ampliao para todos os setores da razo instrumental levou concepo de que os "cidados do mundo moderno devem sua liberdade subjetiva abstrao das condies histricas de vida" (Habermas, 1988, p. 91). Cidados de dois mundos: pblico e privado.

38A CRlTICi D ORIENTAO fRAHKFURTIANA

O excurso acima tinha tambm o objetivo de tentar mostrar que a chamada filosofia da prxis possui um componente tico, normativo - uma viso de como o homem deveria ser . Isto , trabalho alienado s recusado (eticamente) em funo do pressuposto do trabalho criativo, este possvel numa sociedade em que o trabalho alienado for superado e onde, ento, autorealizao, autodeterminao, autoconscincia, conceitos que definem a modernidade, seriam possveis. A pergunta que surge : como eu fundamento tal concepo de homem, de sujeito? possvel fundament-la racionalmente? Ou no possvel ir alm de anunci-la, a exemplo das religies? Para os filsofos ps-modernos, elas deveriam ser abandonadas como todas as metanarrativas. Como enfrentar a acusao conservadora de metafsica - tambm levantada por um autor que v nas instituies no o cerceio da liberdade mas a sua possibilidade, como Arnold Gehlen? Talvez seja ainda interessante ressaltar que aportamos num dos pontos centrais das teorias da socializao. Nas teorias da socializao (enquanto teorias da ontognese da personalidade), sempre foi problemtica a questo da passagem do saber/conhecer cognitivamente uma determinada situao e o querer, o agir transformador. Mais claramente, o reconhecer uma situao injusta no desemboca necessariamente na deciso de agir e, finalmente, na ao transformadora. E nesse contexto que inscreve-se tambm a problemtica do conceito de "conscincia critica" (Paulo Freire). No Congresso Brasileiro de Cin23

cias do Esporte, realizado em Recife/PE no ano de 1987, o professor Carlos Rodrigues Brando proferiu palestra sobre a "socializao no esporte", durante a qual afirmou que "critico s pode ser o sujeito amoroso, ou seja, aquele que est em condies de perceber afetivamente o drama do mundo". Brando centra tambm sua exposio sobre a necessidade de levar a efeito uma "ginstica afetiva do corpo"24. E, na verdade, um deslocamento da questo da criticidade como elemento cognitivo, eu diria, lgico-racional, para a criticidade como elemento afetivo, emocional, do mbito da sensibilidade, como algo radicado no "corpo". Essa concepo encontramos tambm em Marcuse, para quem ns teramos "para alm de todos os valores, um fundamento impulsivo-psicolgico para a solidariedade entre os homens, uma solidariedade que em funo das necessidades da luta de classes foi eficazmente reprimida, e que agora surge como prcondio para a libertao" (em Gesprache mit Marcuse, 1978a). Uma tal interpretao implica uma radicalizao do conceito de revoluo (apud Marcuse, 1978a, p. 25). Se isso tudo pode ser interpretado como uma ampliao do conceito de criticidade (de racionalidade), no temos objees, mas faltaria mostrar como, de que maneira se relacionam cognitividade e afetividade e, mais, em que momento a interao leva tomada de deciso para a prtica transformadora revolucionria. No est aqui presente uma tentativa de fundamentar a razo critica na "natureza", uma fundamentao naturalista da razo crtica?

" A obscrvao de Habcrmas (1988, p. 98) a respeito pertinente: "No conceito de coisificao rcflete-se o contedo normativo do modelo da expressividade: o que no pode chegar conscincia como seu prprio produto, limita sua prpria produtividade, inibe tio mesmo tempo a autonomia c a auto-realizao e aliena o sujeito tanto do mundo quanto de si mesmo".

a

Aqui tocamos numa vertente da crtica ao esporte como elemento de estabilizao do sistema, que se expressa resumidamente na tese da represso ou manipulao do corpo, que segundo entendo possui duas variantes principais: uma orientada na psicologia marxista (por exemplo, de W. Reich e em H. Marcuse, fortemente influenciados pela psicanlise), e outra, que oricnta-sc cm M. Foucault c tambm T. Adorno.

40

BHCHJ

A CRTICA DE ORIENTAO FRANKFURTIANA

41

Habermas, como sabemos, est buscando desenvolver uma teoria ou um conceito de razo que possa integrar ou reintegrar a racionalidade cindida da modernidade, fundamentando o conceito de razo comunicativa, visando a superar os impasses da filosofia da conscincia, para tal a language-turn fundamental. Mais algumas reflexes cabem aqui. Em seu livro O Que E Ideologia, Chau (1984), buscando identificar a origem da ideologia, discute em determinado momento a questo da dialtica materialista:dialtica materialista porque o seu motor no o trabalho do esprito, mas o trabalho material propriamente dito: o trabalho como relao dos homens com a natureza, para negar as coisas naturais enquanto naturais, transformando-as em coisas humanizadas ou culturais, produtos do trabalho. Mas o que interessa realmente dialtica materialista no a simples relao dos homens com a natureza atravs (pela mediao) do trabalho. O que interessa a diviso social do trabalho, e portanto, a relao entre os prprios homens atravs do trabalho dividido [...] O motor da dialtica materialista a forma determinada das condies de trabalho, isto , das condies de produo e reproduo da existncia social dos homens, forma que sempre determinada por uma contradio interna, isto , pela luta de classes ou pelo antagonismo entre proprietrios das condies de trabalho e no proprietrios (servos, escravos, trabalhadores assalariados), (p. 54)

a deciso de faz-lo, se, livres de qualquer ideologia, eles percebem teoricamente que possvel mudar a realidade? Seria no interior da prtica a gnese do momento revolucionrio e, portanto, qualitativo, do processo histrico? [...] A atividade propriamente revolucionria, como transformao do mundo, fica completamente exterior ao esquema terico proposto. A postura de Chau estritamente epistemolgica, corno relao abstrata entre dois conceitos (teoria e prtica) que se relacionam genericamente para produzir o "saber real" sobre a histria. Efetivamente, suprimida a ideologia dos dominados e tomada a teoria como mera revelao da objetividade, suprime-se igualmente, no mbito da reflexo, o antagonismo de interesses, as contradies de classe.[,..] Essa dialtica misteriosa, cujos sujeitos so as classes em luta, sendo que a luta se explica pelas classes e estas se explicam pela luta, sem que possamos saber em que dimenso subjetiva se constitui o momento revolucionrio (pois estamos falando dos homens) tem uma paternidade bem conhecida. Trata-se de L. Althusser, indiscutivelmente o pai do "estruturalismo marxista". (P- 74)

Se a interpretao estruturalsta de certa forma elimina os sujeitos, ou negligencia o peso e a importncia histrica da subjetividade (do sujeito), ou supra-individual, identificando a razo com a histria, em Marcuse (1978a, p. 33)Z5, a razo est ligada ao sujeito (que pode conhecer a verdade) e tem duas bases: a) os instintos (impulsos) do homem; b) a teoria. Habermas, por sua vez, intersubjetiviza a possibilidade dessa verdade, e formula a teoria da razo comunicativa. Segundo Maier (1989, em palestra proferida na Universidade de Oldenburg/Alemanha), Habermas procura "humanizar a verdade atra-

Genro Filho (1985), escreveu um artigo intitulado "A ideologia de Marilena Chau", do qual transcrevo alguns trechos:J tnhamos visto: a teoria no muda a vida. Ela nega teoricamente a prtica, mostrando aos homens que foram suas prprias aes que produziram as condies que os submetem. A teoria indica, to somente, que foram os prprios homens que criaram as circunstncias que os faz pensar que no foram eles que produziram tais circunstncias. Logo, a teoria mostra aos homens que eles podem se quiserem, mud-las. Mas isso s poder ser feito de modo prtico e revolucionariamente, Em que dimenso da conscincia social os homens tomam

B

Em debate na U K RJ fui feita uma interveno com pergunta ao filsofo S. P. Rouanet, um que o interlocutor faz referncia a uma conversa entre Habermas e Marcuse, quando este j se encontrava s portas da morte, em que Marcuse admitia que o fundamento normativo em que ele baseava sua teoria crtica era a compaixo pc o sofrimento dos outros. Rouanet diz no conhecer o texto, mas comenta q^utpostura contraditria com o pensamento do prprio Marcuse e que no c q Escola de Frankfurt cm geral. (In: Rouanet, S. R e Maffesoli, M. Moderno c posmodcrno. Rio de Janeiro: UERJ, Dept. Cultura1/SR3, 1994, p. 66-67.

42

BSACHI

A CRTICA DE ORIENTAO FRANKFURTUNA

43

vs da linguagem ou comunicao". O interesse geral (sobre o que deve ser o bem comum e de cada indivduo) poderia ser identificado via comunicao no interior de uma comunidade ou atravs do discurso comunicativo numa situao ideal livre de dominao/coero. Um autor que tem se ocupado com a possibilidade de fundamentar racionalmente uma tica intersubjetivamente vlida K-O. Apel, ao qual apelarei para continuar a problematizar a questo. Para Apel, justamente o conceito de racionalidade que domina no interior da cincia analtica, no seu sentido de objetividade sem julgamento de valor, que coloca a impossibilidade de fundamentar racionalmente uma tica intersubjetivamente vlida, pois essa teria de submeter-se s seguintes premissas: a) fundamento racional significa deduo lgico-formal de sentenas a partir de sentenas mais bsicas em um sistema de sentenas sinttica e semanticamente axiomatizadas; b) validade intersubjetiva de sentenas (afirmaes) igual a validade objetiva no sentido de constatao no valorativa ou da deduo gico-formal; c) a partir de tal verificao ou constatao (de fatos) no possvel com o auxlio da deduo lgica derivar nenhum julgamento de valor ou afirmao normativa (Apel, 1988,p.24)26, o que torna logicamente tal fundamentao impossvel. Apel (1988, p. 28) procura mostrar como a identificao da deciso privada (indivduo) com uma deciso existencial livre uma iluso, mas que faz parte da ideologia do sistema complementar ocidental

(sistema complementar ocidental: decises individuais; racionalidade no-valorativa objetiva ou cincia objetiva por um lado, e liberdade e responsabilidade subjetiva, por outro). Ora, assim "nem a autonomia de uma assim chamada deciso livre pode ser garantida, se ela s pode ser a partir dela prpria fundamentada de forma privada; pois, o exclusivamente privado no somente o irracional, mas, tambm, a heteronomia no sentido de pura determinao causai" (p. 28).Algum socilogo ou poltico-social pode se dar por satisfeito com tal desmascaramento e sacrificar o lado liberal-existencialista do sistema complementar ocidental em favor de uma absolutizao da parte objetivo-cientfica. Foi o caso de B. Skinner. Ele substituiu, por assim dizer, a exigncia de responsabilidade solidria de uma comunidade de sujeitos autnomos, em funo da catstrofe mundial eminente, pela exigncia cie nti fieis t de um condicionamento responsvel do comportamento das massas atravs do cientista. Skinner no entanto, no responde quem vai condicionar o condicionador, o cientista responsvel (ou quem deveria condicion-lo). (Apel, 1988, p. 29)

Para Apel, portanto, a questo no negar ou tornar suprflua a liberdade e a responsabilidade dos homens como sujeitos do agir e, sim, no entend-la (a liberdade) no sentido da privacidade irracional e, assim, na prtica, deixar que ela seja arruinada na impotncia da privaticidade manipulvel e, mobiliz-la para uma potencial responsabilidade solidria (Idem, p. 30). "Como puro arbtrio privado de deciso, a liberdade no s incapaz de assumir responsabilidade tica mas, tambm, permanece politicamente impotente" (Idem, p. 30). Qual a resposta que o marxismo deu ou pode dar para aquele que est frente a uma situao de deciso no cotidiana e que precisa responder pergunta: "o que devo fazer?". Deciso no cotidiana entendida aqui como uma situao em que as normas institucionais e os

Farte dcss;i obra est traduzida para o portugus em Apel, K.-O. Estudos de moral moderna. Pctrpolis: Vozes, 1994.

44

costumes estabelecidos, bem como o quadro de orientao, nem sempre oferecem resposta previamente. Uma situao, portanto, que, em funo do sistema conflitivo de normas, o sujeito precisa decidir para si, ou no sentido de uma tica poltica para com uma comunidade, estabelecer o caminho futuro. Segundo ainda Apel (1988, p. 89), o objetivismo terico e histrico do marxismo levou a uma variante projetada no futuro da aporia hegeliana: precria aspirao de pretender responder pergunta tica "do que deve ser", atravs de um exame prognstico do necessrio rumo da histria. Dentro de uma tal perspectiva que temos de buscar entender uma afirmao como a seguinte de J.-M. Brohm (1978b): "o esporte alienante; na sociedade comunista universal ele desaparecer"(p. 52). Com essas reflexes tivemos a pretenso de mostrar que a avaliao, bem como a crtica das crticas ao esporte levadas a efeito a partir desse referencial (da Teoria Crtica/Escola de Frankfurt), nos remetem a questes fundamentais do plano da filosofia e da epistemologia. A avaliao do contedo de verdade daquelas crticas ao esporte depender das posies de fundo que o leitor assumir. As reflexes que apresentamos pretenderam evidenciar alguns caminhos ou trilhas que a radicalizao da crtica pode percorrer.

captulo 1

O CORPO DISCIPLINADO: corpo e poder em M. Foucault

Segundo Honneth (1988, p. 139), para Foucault assim como para Adorno, a estabilidade das sociedades altamente desenvolvidas apenas o resultado da capacidade de direo ou comando de organizaes administrativamente perfeitas: essas organizaes intervm, enquanto instituies sociais, nas relaes de vida de cada indivduo, para, atravs da disciplinao e controle, atravs manipulao c treinamento, torn-lo um membro (uma pea) da sociedade. Adorno, no entanto, via o controle total primeiro atravs da manipulao psquica pelos meios de comunicao de massa, isto , agncias da indstria cultural, enquanto Foucault via tal integrao scr.do concretizada primeiro atra-

46

YlLlX

D CORPO DISCIPLINADO: corpo e podei em H. foutaul!

47

vs de procedimentos disciplinares do corpo, levados a efeito por instituies como a escola, a fbrica ou a priso27. "A racionalizao da sociedade significa em Adorno e Foucault cometer violncia contra o corpo"(Idem, p. 127). Dentro dessa perspectiva, tambm a introduo da ginstica/ Educao Fsica na instituio escolar, pode ser analisada como um elemento do processo de disciplinao dos corpos; a construo de um tipo de corpo exigido pela poca. Tambm o esporte moderno pode ser interpretado como instituio "disciplinadora" do corpo. Algumas tentativas nesse sentido j foram levadas a efeito. Refiro-me aos trabalhos de Mller {1986), Dieguez (1985) e Gebauer (1988). Em Dieguez (1985, p. 102) pode-se ler:O poder, como situa Foucault, deve ser analisado como algo circulante, atgo que atua em cadeia. Com o investimento de todas as instncias do sistema, o corpo j no consegue mais ter linguagem prpria: ele no fala, falado. Os bens que circulam so, antes de tudo, linguagem do poder, transmitida pelos mdia. Mas no apenas os meios de comunicao de massa atuam nesse campo: as universidades, com os seus saberes cientficos; os clubes, torcidas, tudo, assenhoreamento do corpo para torn-lo escravo.

vs do reforo de fantasias corporais que aprisionam a mente. Quanto mais ns estivermos convencidos da possibilidade de fazer com o nosso corpo experincias verdadeiras, autnticas, tanto mais ns reforaremos o poder, que a estrutura pedaggica do poder sobre ns desenvolveu. Quanto mais ns, neste processo, nos sentimos livres, tanto mais ns nos amarramos.

Em Mller (1986), encontramos as seguintes formulaes: "A tcnica, assim como ela encontra seu desfile triunfal no esporte, extremamente atual, est sempre no nvel atual da pesquisa sobre a manipulao e condicionamento dos corpos" (p. 170)As atividades corporais dos sculos XVIII e XIX e o esporte do sculo XX so apenas exemplos de uma instrumentalizao do corpo humano (produo, medicina, militarismo, justia etc.) mais geral [...] medida que o corpo se aproxima do total condicionamento, transformando-se assim em corpo regulado, fecha-se o acesso a experincias sensveis. O uso instrumental do corpo bloqueia a possibilidade de perceb-lo adequadamente, promove o bloqueio do prprio corpo, que, assim, no pode ser escutado e percebido. Somente em sua funo de objeto ele ainda considerado; se ele pode funcionar de forma eficiente e com bom rendimento. O corpo torna-se surdo, isto , ele foi calado, (p. 178)

Mller interpreta as modernas tcnicas de treinamento como um arsenal de tcnicas de manipulao corporal com vistas exclusiva-

Gebauer (1988, p. 177) analisa a influncia de Rousseau sobre os filantropos e suas propostas de educao corporal: a volta natureza. O autor culmina seu ensaio dizendo:o exemplo de Rousseau mostra como a partir da educao do corpo pode ser exercido poder sobre a mente. O exerccio do poder no serve-se mais de nenhuma clara tcnica de represso. Ele atua atra" Alm disso, Foucault procura evitar o conceito de ideologia - ver a respeito Koucault (1985, p. 7s.).

mente ao rendimento (esportivo) e que tem como resultado um controle corpreo do homem. Nessas trs citaes podemos perceber que, na concepo de Foucault, o poder no s disciplina o corpo no sentido "negativo" da represso, mas, tambm, no sentido "positivo" da manipulao/ estimulaao. Alis, Foucault (1985) critica os para-marxistas como Marcuse, que, segundo ele,

VUIS Bstcar

O CORPO DISCIPLINADO: corpo e poderem M. foucoult

49

do noo de represso urna importncia exagerada. Pois, se o poder s tivesse a funo de reprimir, se agisse apenas por meio da censura, da excluso, do impedimento, do recalcamento, maneira de um grande superego, se apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frgil. Se ele forte, porque produ/, efeitos positivos no nvel do desejo - como se comea a conhecer - e tambm no nvel do saber. (p. 148)

um conceito utilizvel descritivamente, servindo para uma anlise emprica de tecnologias do poder, que, no que diz respeito metodologia, no se diferencia visivelmente de uma sociologia do conhecimento que historicamente opera de forma funcionalista. Por outro lado, preserva a categoria do poder, a partir de sua origem histrica ocultada (que se situa no conceito metafsico crtico do desejo da verdade e do saber), tambm o sentido de um conceito bsico terico constituinte que vai conceder s anlises das tecnologias do poder seu significado racional-crtico e garantir, assim, historiografia genealgica seu efeito desmascarador". Observa ainda Habermas (1988, p. 330) criticamente:Todo contrapoder movimenta-se j no horizonte do poder que ele combate e transforrna-se, assim, logo que seja vencedor, em um complexo de poder que provoca o aparecimento de um novo contrapoder. Desse crculo vicioso tambm a genealogia do saber no pode sair, mesmo ativando a revolta dos saberes desqualificados e mobilizando o "saber subordinado" contra a coero de um discurso cientfico formal, terico e unificado.

E em outro momento: "Gomo resposta revolta do corpo, encontramos um novo investimento que no tem mais a forma de controlerepresso, mas de controle-estimulao: fique nu... mas seja magro, bonito, bronzeado!" (p. 147). Isto , nada foge aos olhos do poder, ou melhor, rede do poder. Como lembra Machado (1985), em Foucauk "os poderes no esto localizados em nenhum ponto especfico da estrutura social. Funcionam como uma rede de dispositivos ou mecanismos a que nada ou ningum escapa, a que no existe exterior possvel, limites ou fronteiras" (p. XIV). Embora, segundo Honneth (1988, p. 139), nas suas duas ltimas obras Foucault tenha considerado a subjetividade dos homens no mais como um simples campo de manipulao de tcnicas de poder, em suas principais obras tericas sobre poder, os indivduos aparecem, a princpio, como seres que no resistem manipulao e conformao. Segundo ainda Honneth, encontramos em Foucault um dilema terico: "embora tudo parea, em sua crtica da modernidade, estar baseado no sofrimento do corpo sob as aes disciplinadoras dos modernos aparelhos do poder, no possvel encontrar em sua teoria nada que pudesse articular este sofrimento enquanto sofrimento" (p. 142). Habermas (1988, p. 317), por sua vez, argumenta criticamente que a categoria do poder, em Foucault, sistematicamente utilizada em um duplo sentido, o que conferiria "por um lado a inocncia de

Nesse contexto precisamos incluir tambm o conhecimento por ele prprio (Foucault) produzido. Rorty (1990), analisando o debate entre Habermas e Lyotard em torno da ps-modernidade, em cujo contexto a obra de Foucault possui grande destaque, tambm faz referncia a algumas posies deste autor. Entende Rorty (1990, p. 90) que Foucault pode "facilmente se passar por reinventor da sociologia 'funcionalista' americana, pois est ausente de sua obra a retrica da emancipao - a noo de um tipo de verdade que no mais uma produo de poder". Para este autor Foucault assume um distanciamento que nos impede de encontrar qualquer "ns" em seus escritos.

50

YitJfS

BSCHT

esse distanciamento que faz lembrar um conservador que joga gua fria nas esperanas de reforma e finge olhar os problemas de seus concidados com os olhos do historiador do futuro. A tarefa de escrever "a histria do presente", em lugar de sugestes sobre como nossas crianas poderiam viver num mundo melhor no futuro, faz desistir no apenas da noo de uma natureza humana comum, e da noo de "sujeito", mas tambm de nosso sentimento no terico de solidariedade social. (Rorty, 1990, p. 90)

captulo^

Refere-se o autor, nesse caso, recusa de Foucault {e Lyotard) qualquer metanarrativa, como a da emancipao do homem. Com as citaes anteriores, procuramos apenas indicar alguns pontos da teoria do poder de Foucault passveis de crtica. No entanto, um aprofundamento dessa crtica no aqui possvel. E preciso considerar, tambm, que no so muitas as tentativas de tornar a teoria desenvolvida por Foucault frutfera para uma anlise do fenmeno esportivo; sendo muito mais ampla a sua utilizao no mbito da pedagogia, em funo das anlises realizadas pelo prprio Foucault da instituio escola. De qualquer forma, nas poucas anlises existentes, o esporte aparece como elemento paradigmtico da sociedade moderna no plano das prticas corporais, ou seja, como expresso da modernidade no plano da cultura corporal. Assim, a crtica alcana o projeto da modernidade, levando em alguns casos a um pessimismo ou a uma descrena, como em Dieguez (1985):O caminho da verdade, se essa a meta do leitor compete a cada um. Trs so, no nosso modo simplista de encarar o fenmeno, as alternativas: ou adota-se a postura neurtica de combater o sistema (ou o poder, V.B.), sem conseguir muito sucesso, posto ele ser mais forte; ou adota-se a postura alienada, tentando ignorar todos os problemas e envolvimentos; ou por fim, adota-se a postura cnica, daquele que conhece todas as injunes e se filia ao sistema para dele tirar proveito, (p. 106)

ESPORTE E REPRODUO CULTURAL EM P. BOURDIEU

Pierre Bourdieu um dos poucos socilogos importantes da atualidade que tem se preocupado com o fenmeno esportivo28. O interesse de Bourdieu concentra-se, principalmente, na relao entre cultura, dominao e desigualdades sociais, pois em seus olhos a cultura no uma esfera inocente e, sim, um meio importantssimo para a reproduo da estrutura de classes da sociedade capitalista desenvolvida.M

'lambem Korbert Elias em conjunto com Bric Dunning. Esses autores tiveram seus textos publicados, alem do ingls, cm vrias oneras lnguas: Elias, N.; Dunning. Sport et civilJsaton; In violcnce maitrisc. Paris: Fayard, 1994 (com prefcio de Roger Chartier); Elias, N. c Dunning, E. Deporcc y cio en c!proccso de In civilizacin. Mxico: Fundo de Cultura, 1992; Elias, N. c Dumur.^ K. Sporc im Zivitisatonsprozess. Mnstcr: Lie Verlag, s/J.

52

V ALT t s Sn cs rESPORTE E REPRODUO CULTURAL EM f! BOURDIEU

53

Segundo H. P. Mller (1986, p. 163), o "objetivo da teoria da sociedade de Bourdieu entender a constituio e reproduo da vida social e descobrir os mecanismos que atuam neste sentido". No processo de construo de sua teoria Bourdieu empreende um esforo muito grande para superar tanto o "objetivismo" quanto o "subjetivismo" reinante na sociologia (Bourdieu, 1979)29. Nesse sentido, um conceito bsico desenvolvido por Bourdieu o de habicus. E o conceito de habitusque. superar o paradoxo entre sentido objetivo e inteno subjetiva. O habitus, definido como um sistema de disposies, que atuam no cotidiano como esquemas de pensamento, percepo e avaliao ou julgamento, faz a mediao entre estrutura e prxis (frmula da reproduo: estrutura-Aa/f-prxis). Essa frmula do processo de reproduo pode ser entendida da seguinte forma: "uma estrutura (por ex. classe) cunha, em indivduos ou grupos, determinadas disposies que levam a aes prticas e a uma prxis estratgica, assim que a estrutura original recolocada e o crculo novamente fechado" (H. P. Mller,

que localiza o interesse de sua teoria do capital na acumulao e transformao de recursos, apa-se, na verdade, na concepo marxista de capital, segundo H. P. Mller (1986, p. 165), "para obter um conceito de capital generalizvel a todas as suas formas de manifestao". Bourdieu distingue basicamente trs formas de capital: econmico, cultural e social. na base da distribuio dessas formas de capital que ele desenvolve seu modelo de estratificao social, procurando vincular as esferas materiais e simblicas. Assim, segundo ainda H. P. Mller (1986, p. 170), aparece em Bourdieu, "ao lado da luta de classes econmica, tambm uma luta de classes simblica, pois a luta no s em torno da distribuio de bens e servios, mas, tambm, em torno dos valores corretos, dos padres legtimos e dos estilos de vida distintivos de classe". Segundo Hargreaves (1982, p. 13), Bourdieu observa que o campo das prticas esportivas o lugar da luta para a definio do corpo legtimo e do uso legtimo do corpo no esporte - amador x profissional, esporte participativo x esporte espetculo, esporte distintivo (da elite) x esporte popular (de massa) - que parte de um campo de luta mais geral pelo monoplio sobre o corpo entre as categorias morais dos usos e definies "asctica" e "hedonstca" do corpo. A relao do indivduo para com o seu corpo um aspecto fundamental do habitus, que varia no s entre as classes, mas, tambm, entre as faces de classe (Boltanski, 1979). Bourdieu (1986) afirma que a passagem do esporte enquanto uma prtica reservada elite (para amadores), para o esporte-espetculo, produzido por profissionais para as massas espectadoras,

1986, p. 163).Bourdieu capta o mundo social moderno a partir de um tipo de "topologia social", apresentando-o como um espao multidimensional, cujas dimenses individuais so compostas a partir dos princpios de diviso preexistentes e de suas caractersticas. Essas caractersticas no so nada mais, nada menos, do que os recursos estrategicamente importantes, mais concretamente, os tipos de capital ou poder. Bourdieu,

Para Bourdieu (1979, p. 147), "o objeto do tipo de conhecimento que chamamos de praxiologia, no so apenas aquelas relaes objetivas que o sistema de conhecimento objetivista elaborou, mas, sim, tambm as relaes dialticas cncre essas estruturas objetivas e das disposies estruturadas [...]; cm outras palavras, o duplo processo de imcriorizao da exterioridade e a exteriorizao da intcrioridade".

tem sido determinado por processos econmicos, os quais alteraram as relaes de poder no interior desse campo. A demanda por sensacionalismo e a urgncia de produzir um resultado dividem os expcres e

54

BSACHJ

ESPORTE f REPRODUO CULigML EM P BOURDIEU

profissionais dos leigos e torcedores. A popularizao do esporte permitiu s classes privilegiadas manter o capital poltico, por exemplo, pela promoo e controle da indstria esportiva privada ou estatal. Aqui de acrescentar que os dirigentes esportivos, via-de-regra pertencendo s camadas privilegiadas, podem transformar, na linguagem de Bourdieu, o capital social obtido na administrao esportiva em poder poltico- aludo aqui aos dirigentes de federaes esportivas corn aspiraes polticas. As diferentes classes sociais, e estes so resultados de exaustivas pesquisas empricas desenvolvidas por Bourdieu junto com Boltanski (1979), vinculam com a prtica esportiva e atividades corporais as mais distintas expectativas:onde para uma classe em primeiro plano est a aparncia da musculatura atltica, para outra est a elegncia e a beleza; enquanto uns esperam obter sade, outros esperam compensao psquica. Em outras palavras, a distribuio especfica de classe da prtica esportiva no est baseada apenas na desigualdade de recursos financeiros disponveis, ela baseia-se tambm, nas diferentes percepes e entendimentos da prtica esportiva. (Bourdieu, 1986, p. 107)

pelas classes baixas, como box, rugby e fisculturismo. Para as classes altas, a prtica esportiva est indissoluvelmente ligada com as maneiras do comportamento fino, que repercute na indumentria esportiva bem cuidada, numa atitude de reserva frente utilizao fsica do corpo, para que tambm, rnesmo num esforo corporal mais intenso, no exponha nua e cruamente sua sensibilidade; est ligada tambm com as formas de tcnicas esportivas, com a finesse, com a habilidade e a inteligncia corporal. A inclinao das classes altas para a prtica esportiva a vem transformando paulatinamente num campo da esttica. No portanto estranho que representantes das classes altas no esporte, no percam a oportunidade para ressaltar suas qualidades estticas. Importante que para Bourdieu, o consumo e a prtica do esporte, bem como das atividades corporais em geral, participa enquanto elementos da cultura do processo de reproduo das diferenas de classe. Sua teoria da educao (socializao) tem sido no Brasil denominada no debate pedaggico por Saviani (1993) e seguidores de "reprodutivista", j que no perspectiva para o sistema educacional outra funo que no seja, exatamente, reproduzir as diferenas de classe. Uma crtica semelhante provm de Hargreaves (1982, p. 14), para quem

Para exemplificar, vejamos como Gebauer (1986, p. 123s.), com base na teoria de Bourdieu e mais especificamente operando corn a categoria da distino, descreve o que ocorre no esporte de lazer. Segundo o autor, o engajamento esportivo das classes baixas e altas reflete de forma similar a oposio entre contedo 30 (maneira e substncia) e forma. A "matria bruta" do corpo do esportista e a "substncia" do uso da fora e da luta caracterizam as prticas esportivas privilegiadas11

os problemas da teoria de Bourdieu so similares aos do "estruturalsmo" em geral. A lgica do campo cultural do esporte, por exemplo, opera de forma tal que leva, aparentemente de forma inevitvel, a reproduzir as relaes sociais dominantes. Isto significa que o esporte no pode ser, em nenhum sentido, autnomo. Isso impe teoria de Bourdieu uma forma de determinismo cultural, no qual os agentes da prtica cultural, as classes sociais e as relaes de poder so propriedades do sistema.31

No original alemo "Matcrie".

Embora Bourdieu trabalhe tom a perspectiva da "autonomia relativa dos campos", um cnnceitu bastante problemtico pnrt|iic impreciso.

56

?lfS

BttCHI

Para H. P. Mller (1986), por outro lado, um dos principais problemas da teoria de Bourdieu refere-se concepo de queo habitus dirige uma praxis orientada estrategicamente. O que nos modelos das teorias clssicas ainda era desenvolvida como a "dualidade da natureza humana" e que era abrigada em concepes como a de Freud do "Ego" e "Superego", a de Mead "I" e "me", a de Durkheim "organismo" e "personalidade", em Bourdieu cede lugar conformao social do sujeito. Se a teoria da personalidade de Parsons parecia conter um "oversocialized concept of man", a abordagem de Bourdieu parece indicar para um "overstructuralized concept of man": o habitus no nada mais do que uma expresso para a traduo de coaes econmicas na aparente liberdade de um estilo de vida. Subjetividade tambm subjetividade social, e no no sentido de identidade nica, o que os clssicos, apesar de tudo, haviam previsto na forma de um resto de impulso (Freud e Durkheim) e de um fator de espontaneidade (Mead). (p. 182)

captulo 1

Um outro aspecto que a ns interessa analisar mais aprofundadamente at que ponto a teoria de P. Bourdieu - que foi desenvolvida com vistas realidade dos pases capitalistas desenvolvidos e mais especificamente a Frana - pode sugerir um referencial para a anlise da reproduo social em sociedades como a brasileira. Fica a interrogao!

O MARXISMO ORTODOXO32 E A TESE DA REPRODUO DA FORA DE TRABALHO

Como variante do debate que se concentra na relao esporte e trabalho, discutida no captulo 3, desenvolveu-se uma vertente com base terica no materialismo histrico, que aborda o esporte enquanto reprodutor da fora de trabalho. O esporte nesta perspectiva de anlise considerado na verdade, como um dos componentes do tempo livre ou do lazer, abrangendo a problemtica mais ampla da relao trabalho-lazer.'- A opo pela expresso , como se sabe, polemica. Aqui refere-se aquela variante que procura, mesmo na anlise de elementos do mbito cultural, privilegiar a tica econmica.

58

Q MARIISMQ ORTODOXO E A TESE A REPRODUO D4 FORA DE TRABALHO

59

Interessante notar que os autores que trabalham nessa perspectiva, principalmente Gldenpfennig (1974), Volpert (1974) e Maier (1975), ao contrrio daqueles que se situam na tradio da Escola de Frankfurt, no dedicam ateno maior ao contedo interno do esporte. No criticam, por exemplo o possvel contedo ou efeito ideolgico do esporte de rendimento, seu efeito sobre o nacionalismo, a veiculao ideolgica via socializao. O esporte parece ser considerado um produto do processo histrico e como tal, uma conquista dos homens que cabe, no entanto, colocar a servio da maioria, isto , dos trabalhadores. Em outros estudos procura Gldenpfennig (1989), inclusive, realar o papel que o esporte pode desempenhar na paz mundial. Aqui essa vertente ser apresentada e discutida numa forma bastante breve, mesmo porque seu campo de influncia parece se circunscrever basicamente Alemanha, e tambm, porque voltaremos aos seus aspectos centrais quando analisarmos os estudos que se fundamentam no conceito gramsciano de hegemonia. Segundo esta vertente, o esporte teria se desenvolvido em estreita ligao com as necessidades da reproduo da fora de trabalho para o sistema de produo capitalista. Esta tese foi desenvolvida em detalhes por Gldenpfennig (1974), que diferenciou dois tipos de reproduo: a) reproduo simples (ou fsica) e b) reproduo ampliada da fora de trabalho (qualificao do trabalhador). O autor ou os autores entendem que se o esporte restringir-se sua funo de reprodutor simples da fora de trabalho, isto , uma reproduo simplesmente fsica (orgnica), alm de reforar qualidade pessoais necessrias tambm ao trabalho, como, dedicao, ascese, persistncia, disciplina, pontualidade, ordem etc., ele estar efetivamente reforando a submisso

do trabalhador ao capital. No entanto, e esta tese defendida principalmente por Gldenpfennig (1974, p. 49), se o esporte de lazer contribuir para a reproduo ampliada da fora de trabalho, colaborando para qualificar o trabalhador, este estaria em condies de melhor resistir explorao. Isso pressupe que os prprios trabalhadores assumam o controle da conformao do seu tempo livre, no caso, do seu esporte de lazer. Uma crtica a essa concepo vem de um autor que se situa nessa mesma perspectiva terica:E indiscutvel que a qualificao do trabalhador necessria e que, assim, a exigncia de uma qualificao ampliada tambm correta, porque ela representa urna condio para uma melhor venda da mercadoria fora de trabalho. tambm indiscutvel que, sob determinadas condies (planejamento cientfico, incentivo poltico etc.), a aprendizagem sensomotora e o esporte podem assumir um significado importante na reproduo da fora de trabalho. , no entanto, necessrio analisar quais so, concretamente, as funes da aprendizagem sensomotora e do esporte na qualificao da mercadoria fora de trabalho. Politicamente e cientificamente problemtico , em qualquer caso, a concluso pura e simples de que a qualificao para o trabalho leva a uma qualificao poltica. Pois, a relao causai entre "melhor educao" e "maior conscincia poltica", defendida no interior da educao poltica, mostrou-se, nas pesquisas, um equvoco. A falta de clareza sobre esta relao parece ser a razo pela qual Gldenpfennig sempre, onde ele procura desenvolver sua anlise de forma mais concreta, esquece a qualificao especificamente poltica. (Maier, 1975, p. 62)

Estamos aqui, possivelmente, frente a uma ambigidade. O esporte de lazer parece tanto contribuir para a reproduo da fora de trabalho, tendo como efeito uma maior adaptao explorao capitalista, como tambm, no sentido contrrio, contribuir para qualificar o

60

Batem

captulo ;trabalhador para a luta contra a mesma explorao. Funo de uma sociologia do lazer ou do esporte crtica, seria analisar concretamente em que momento, sob quais condies, etc., um ou outro efeito predominante. fundamental, para tanto, que estudos empricos sejam realizados enfocando o lazer da classe trabalhadora, a includo o esporte, com vistas a aclarar o seu papel na construo da subjetividade deste trabalhador, bem como de sua cidadania33.

ESPORTE E HEGEMONIA

Uma outra vertente da sociologia crtica do esporte aquela que se vale das anlises ou da vertente gramsciana do marxismo, ou do marxismo que se desenvolveu na esteira das obras de A. Gramsci. Aqui destacam-se como autores mais importantes Hargreaves (1982), Gruneau (1983) Gruneau e Whitson (1993), Donnely (1983) e Manhes (1986). O estudioso do lazer N. C. Marcellino (1983) tambm poderia ser enquadrado dentro desta perspectiva, embora seu tema no seja especificamente o esporte. Como bem lembra Hargreaves (1982), o paradigma predominante na sociologia do esporte, em funo de sua orientao funcionalista, tem salientado a funo integram* do elemento cultural esporte.

Como exemplo profcuo de estudo do lazer da classe trabalhadora indico a dissertao de mestrado de Elza Margarida de Mendona Peixoto, "Para No Deixar o Crebro na Mquina", defendida na Faculdade de Educao Tsica da Unicamp, em 1996,

62

Bttcxj

ESPORTE HEGEMONIA

63

A influncia do "poder de classe subestimado neste paradigma terico, e assim sendo, o espao para a discusso do problema da relao da cultura com o que Gramsci chama de Hegemonia, e o papel do esporte nesta relao, muito reduzido" (p. 37). O conceito central em Gramsci para nossas discusses aqui o de hegemonia. Segundo Chau (1986, p. 21), a novidade gramsciana consiste em considerar que o conceito de hegemonia inclui o de cultura como processo social global que constitui a "viso de mundo" de uma sociedade e de uma poca, e o conceito de ideologia como sistema de representaes, normas e valores da classe dominante que ocultam sua particularidade numa universalidade abstrata. Todavia, o conceito de hegemonia ultrapassa aqueles dois conceitos: ultrapassa o de cultura porque indaga sobre as relaes de poder e alcana a origem do fenmeno da obedincia e da subordinao; ultrapassa o conceito de ideologia porque envolve todo o processo social vivo percebendo-o como prxis, isto , as representaes, as normas e os valores so prticas sociais e se organizam como e atravs de prticas sociais dominantes e determinadas. Pode-se dizer que, para Gramsci, a hegemonia a cultura numa sociedade de classes. Hegemonia portanto, no pode ser entendida como uma estrutura esttica. Segundo Williams (apud Chau, 1986, p. 22),., na prtica, a hegemonia nunca pode ser singular. Suas estruturas concretas so altamente complexas e sobretudo no existe apenas passivamente na forma de dominao. Deve ser continuamente renovada, recriada, defendida e modificada e continuamente resistida, limitada, alterada, desafiada por presses que no so suas. Nesse

sentido, devemos acrescentar ao conceito de Hegemonia os conceitos de contra-hegemonia e hegemonia alternativa, que so elementos reais e persistentes da prtica.

Gomo lembra Laclau (1979, p. 168), "uma classe hegemnica no tanto na medida em que capaz de impor uma concepo uniforme do mundo ao resto da sociedade, rnas na medida em que consiga articular diferentes vises de mundo de forma tal que seu antagonismo potencial seja neutralizado". O conceito de hegemonia permite portanto entender o esporte no s como elemento de dominao, mas, tambm, como resistncia cultural ou resistncia poltica. Nesta concepo so negadas de certa forma, uma concepo marx