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    Nacional por subtrao

    Roberto Schwarz

    Brasileiros e latino-americanos fazemos constantemente a experincia do carter postio,

    inautntico, imitado da vida cultural que levamos. Essa experincia tem sido um dado formador de

    nossa reflexo crtica desde os tempos da Independncia. Ela pode ser e foi interpretada de muitasmaneiras, por romnticos, naturalistas, modernistas, esquerda, direita, cosmopolitas, nacionalistas

    etc., o que faz supor que corresponda a um problema durvel e de fundo. Antes de arriscar uma

    explicao a mais, digamos portanto que o mencionado mal-estar umfato.

    As suas manifestaes cotidianas vo do inofensivo ao horripilante. O Papai Noel

    enfrentando a cancula em roupa de esquim um exemplo de inadequao. Da tica de um

    tradicionalista, a guitarra eltrica no pasdo samba outro. Entre os representantes do regime de 64

    foi comum dizer que o povo brasileiro despreparado e que democracia aqui no passava de umaimpropriedade. No sculo XIX comentava-se o abismo entre a fachada liberal do Imprio, calcada

    no parlamentarismo ingls, e o regime de trabalho efetivo, que era escravo. Mrio de Andrade, no

    Lundu do escritor difcil , chamava de macaco o compatriota que s sabia das coisas do

    estrangeiro. Recentemente, quando a poltica de Direitos Humanos do governo Montoro passou a

    beneficiar os presos, houve manifestaes de insatisfao popular: por que dar garantias aos

    condenados, se fora da cadeia elas faltam a muita gente? Dessa perspectiva, tambm os Direitos

    Humanos seriam postios no Brasil... So exemplos desencontrados, muito diferentes no calibre,

    pressupondo modos de ver incompatveis uns com os outros, mas escolhidos com propsito de

    indicar a generalidade social de uma certa experincia. Todos comportam o sentimento da

    contradio entre a realidade nacional e o prestgio ideolgico dos pases que nos servem de

    modelo.

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    Como estamos entre estudantes de Letras, vejamos algo da questo em nosso campo. Nos

    vinte anos em que tenho dado aula de literatura assisti ao trnsito da crtica por impressionismo,

    historiografia positivista, new criticism americano, estilstica, marxismo, fenomenologia,

    estruturalismo, ps-estruturalismo e agora teorias da recepo. A lista impressionante e atesta o

    esforo de atualizao e desprovincianizao em nossa universidade. Mas fcil observar que s

    raramente a passagem de uma escola a outra corresponde, como seria de esperar, ao esgotamento

    de um projeto; no geral ela se deve ao prestgio americano ou europeu dadoutrina seguinte. Resulta

    a impresso decepcionante da mudana sem necessidade interna, e por isso mesmo sem

    proveito. O gosto pela novidade terminolgica e doutrinria prevalece sobre o trabalho de

    conhecimento, e constitui outro exemplo, agora no plano acadmico, do carter imitativo de nossa

    vida cultural. Veremos que o problema est mal posto, mas antes disso no custa reconhecer a sua

    verdade relativa.Tem sido observado que a cada gerao a vida intelectual no Brasil parece recomear do

    zero. O apetite pela produo recente dos pases avanados muitas vezes tem como avesso o

    desinteresse pelo trabalho da gerao anterior, e a conseqente descontinuidade da reflexo.

    Conforme notava Machado de Assis em 1879, o influxo externo que determina a direo do

    movimento 1. Que significa a preterio do influxo interno, alis menos inevitvel hoje do que

    naquele tempo? No preciso ser adepto da tradio ou de uma impossvel autarquia intelectual

    para reconhecer os inconvenientes desta praxe, a que falta a convico no s das teorias, logo

    trocadas, mas tambm de suas implicaes menos prximas, de sua relao com o movimento

    social conjunto, e, ao fim e ao cabo, da relevncia do prprio trabalho e dos assuntos estudados.

    Percepes e teses notveis a respeito da cultura do pas so decapitadas periodicamente, e

    problemas a muito custo identificados e assumidos ficam sem o desdobramento que lhes poderia

    corresponder. O prejuzo acarretado se pode comprovar pela via contrria, lembrando a estatura

    isolada de uns poucos escritores como Machado de Assis, Mrio de Andrade e, hoje, Antonio

    Candido, cuja qualidade se prende a este ponto. A nenhum deles faltou informao nem abertura

    para a atualidade. Entretanto,todos souberam retomar criticamente e em larga escala o trabalho dos

    predecessores, entendido no como peso morto, mas como elemento dinmico e irresolvido,

    subjacente s contradies contemporneas2.

    1 Machado de Assis, A nova gerao , in Obra completa, Rio de Janeiro, Aguilar, 1959, v. 3, p. 826.2 Para um balano equilibrado e substancioso do tema, ver do prprio Antonio Candido Literatura esubdesenvolvimento , inA educao pela noite, So Paulo, tica, 1987.

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    No se trata, portanto, de continuidade pela continuidade, mas da constituio de um campo

    de problemas reais, particulares, com insero e durao histrica prprias, que recolha as foras

    em presena e solicite o passo adiante. Sem desmerecer os tericos da ltima leva que estudamos

    em nossos cursos de faculdade, parece evidente que nos situaramos melhor se nos obrigssemos a

    um juzo refletido sobre as perspectivas propostas por Silvio Romero, Oswald e Mrio de Andrade,

    Antonio Candido, pelo grupo concretista, pelos Cepecs... H uma dose de adensamento cultural,

    dependente de alianas ou confrontos entredisciplinas cientficas, modalidades artsticas e posies

    sociais oupolticas sem a qual a idia mesma de ruptura, perseguida no culto aonovo, no significa

    nada. Isso posto, vale a pena lembrar que aos hispano-americanos o Brasil d impresso de

    invejvel organicidade intelectual, e que, por incrvel que parea, dentro do relativo eles talvez at

    tenham razo.

    O que fica de nosso desfile de concepes e mtodos pouco, j que o ritmo da mudanano d tempo produo amadurecida. O inconveniente real e faz parte do sentimento

    inadequao que foi nosso ponto de partida. Nada mais razovel, portanto, para algum consciente

    do prejuzo, que passar ao plo oposto e imaginar que baste no reproduzir a tendncia

    metropolitana para alcanar uma vida intelectual mais substantiva. A concluso ilusria, como se

    ver, mas tem apoio intuitivo forte. Durante algum tempo ela andou na boca dos nacionalismos de

    esquerda e direita, convergncia que, sendo mau sinal para aesquerda, deu grande circulao social

    quele ponto de vista e contribuiu para prestigiar o baixo-nvel.

    Da a busca de um fundo nacional genuno, isto , no-adulterado: como seria a cultura

    popular se fosse possvel preserv-la do comrcio e, sobretudo, da comunicao de massa? O que

    seria uma economia nacional sem mistura? De 64 para c a internacionalizao do capital, a

    mercantilizao das relaes sociais e a presena da mdia avanaram tanto que estas questes

    perderam a verossimilhana. Entretanto, h vinte anos apenas elas ainda agitavam a

    intelectualidade e ocupavam a ordem do dia. Reinava um estado de esprito combativo, segundo o

    qual o progresso resultaria de uma espcie de reconquista, ou melhor, da expulso dos invasores.

    Rechaado o Imperialismo, neutralizadas as formas mercantis e industriais de cultura que lhe

    correspondiam, e afastada a parte antinacional da burguesia, aliada do primeiro, estaria tudo pronto

    para que desabrochasse a cultura nacional verdadeira, descaracterizada pelos elementos anteriores,

    entendidos como corpo estranho. A nfase, muito justa, nos mecanismos da dominao norte-

    americana servia mitificao da comunidade brasileira, objeto de amor patritico e subtrada

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    anlise de classe que a tornaria problemtica por sua vez. Aqui preciso uma ressalva: o governo

    Goulart, durante o qual este sentimento das coisas chegou ao auge, foi um perodo de

    acontecimentos extraordinrios, com experimentao social e realinhamentos democrticos em

    larga escala. No pode ser reduzido s inconsistncias de sua auto-imagem ilustrativas, no

    obstante, dailuso prpria ao nacionalismo populista, que coloca o mal todo no exterior.

    Quando os nacionalistas de direita em 64 denunciavam o aliengena o marxismo talvez

    imaginassem que o fascista fosse inveno brasileira. Neste ponto, guardadas as diferenas, as duas

    vertentes nacionalistas coincidiam: esperavam achar o que buscavam atravs da eliminao do que

    no nativo. O resduo, nesta operao de subtrair, seria a substncia autntica do pas. A mesma

    iluso funcionou no sculo XIX, quandoentretanto a nova cultura nacional se deveu muito mais

    diversificao dos modelos europeus que excluso do modelo portugus. Na outra banda, dos

    retrgrados, os adversrios da descaracterizaoromntico-liberal da sociedade brasileira tampouco

    chegavam ao pas autntico, pois extirpadas as novidades francesas e inglesas ficava restaurada a

    ordem colonial, isto , uma criao portuguesa. O paradoxo geral deste tipo de purismo est

    encarnado na figura de Policarpo Quaresma, a quem o af de autenticidade leva a se expressar em

    tupi, lngua estranha para ele. Analogamente em Quarup, de Antonio Callado, onde o depositrio

    da nao autntica no o passado pr-colonial, como queria a figura de Lima Barreto mas o

    interior longnquo do territrio, distante da costa atlntica e de seus contatos estrangeirizantes. Um

    grupo de personagens identifica no mapa o centro geogrfico do pas e sai sua busca. Depois de

    muita peripcia a expedio chega ao termo daprocura, onde encontra um formigueiro.

    Ao nacionalista a padronizao e a marca americana que acompanham os veculos de

    comunicao de massa apareciam como efeitos negativos da presena estrangeira. claro que

    gerao seguinte, para quem o novo clima era natural, o nacionalismo que teria de parecer

    esteticamente arcaico e provinciano. Pela primeira vez, que eu saiba, entra em circulao o

    sentimento de que a defesa das singularidades nacionais contra a uniformizao imperialista um

    tpico vazio. Sobre fundo de indstria cultural, o mal-estar na cultura brasileira desaparece, ao

    menos para quem queira se iludir.

    Tambm nos anos 60 o nacionalismo havia sido objeto da crtica de grupos que se

    estimavam mais avanados que ele poltica e esteticamente. O raciocnio de ento vem sendo

    retomado em nossos dias, mas agora sem luta de classes nem antiimperialismo, e no mbito

    internacionalssimo da comunicao de massas. Nesta atmosfera global , de mitologia unificada e

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    planetria, o combate por uma cultura genuna faz papel de velharia. Fica patente o seu carter

    ilusrio, alm de provinciano e complementar de formas arcaicas de opresso. O argumento

    inatacvel, mas no custa assinalar que, dado o novo contexto, a nfase na dimenso internacional

    da cultura vem funcionando como pura e simples legitimao da mdia. Assim como os

    nacionalistas atacavam o imperialismo e eram lacnicos quanto opresso burguesa, os

    antinacionalistas de agora assinalam a dimenso autoritria e atrasada de seu adversrio, com

    carradas derazo, o que no entanto faria crer que o reinado da comunicao de massa seja libertrio

    ou aceitvel do ponto de vista esttico. Uma posio crtica e moderna, em aparncia, conformista

    no fundo. Outra inverso imaginria de papis: embora se estejam encarreirando no processo

    ideolgico triunfante de nosso tempo, os globalistas raciocinam como acossados, ou como se

    fizessem parte da vanguarda herica, esttica ou libertria, de incios do sculo. Alinham-se com o

    poder como quem faz uma revoluo. Na mesma linha paradoxal, observe-se ainda que imposioideolgica externa e expropriao cultural do povo so realidades que no deixam de existir porque

    h mistificao na frmula dos nacionalistas a respeito. Estes mal ou bem estiveram ligados a

    conflitos efetivos e lhes deram alguma espcie de visibilidade. Ao passo que os modernistas da

    mdia, mesmo tendo razo em suas crticas, fazem supor um mundo universalista que, este sim, no

    existe. Trata-se enfim deescolher entre o equvoco antigo e o novo, nos dois em nome do progresso.

    O espetculo que a Avenida Paulista oferece ao contemplativo pode servir de comparao: a feira

    repulsiva das manses em que se pavoneava o capital da fase passada parece perversamente

    tolervel ao p dos arranha-cus da fase atual, por uma questo de escala, e devido tambm

    poesia que emana de qualquer poder quando ele passado para trs.

    A filosofia francesa recente outro fator no descrdito do nacionalismo cultural. A

    orientao antitotalizadora, a preferncia por nveis de historicidade alheios ao mbito nacional, a

    desmontagem de andaimes convencionais da vida literria (tais como as noes de autoria, obra,

    influncia, originalidade etc.) desmancham, ou, ao menos, desprestigiam a correspondncia

    romntica entre o herosmo do indivduo, a realizao da grande obra e a redeno da coletividade,

    correspondncia cujo valor de conhecimento e potencial de mistificao no so desprezveis e que

    anima os esquemas do nacionalista. O esvaziamento pode ser fulminante e convencer em parte,

    alm de render conforto ao sentimento nacional ondemenos se espera.

    Conforme sugere o lugar-comum, a cpia secundria em relao aooriginal, depende dele,

    vale menos etc. Esta perspectiva coloca um sinal de menos diante do conjunto dos esforos

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    culturais do continente e est na base do mal-estar intelectual que nosso assunto. Ora, demonstrar

    o infundado de hierarquias desse gnero uma especialidade da filosofia europia atual, por

    exemplo, de Foucault e Derrida. Por que dizer que o anterior prima sobre o posterior, o modelo

    sobre a imitao, o central sobre o perifrico, a infra-estrutura econmica sobre a vida cultural e

    assim por diante? Segundo os filsofos em questo, trata-se de condicionamentos (mas so de

    mesma ordem?) preconceituosos, que no descrevem a vida do esprito em seu movimento real,

    antes refletindo a orientao inerente s cincias humanas tradicionais. Seria mais exato e neutro

    imaginar uma seqncia infinita de transformaes, sem comeo nem fim, sem primeiro ou

    segundo, pior ou melhor. Salta vista o alvio proporcionado ao amor-prprio e tambm

    inquietao do mundo subdesenvolvido, tributrio, como diz o nome, dos pases centrais. De

    atrasados passaramos a adiantados, de desvio a paradigma, de inferiores a superiores (aquela

    mesma superioridade, alis, que esta anlise visa suprimir), isto porque os pases que vivem nahumilhao da cpia explcita e inevitvel esto mais preparados que a metrpole para abrir mo

    das iluses da origem primeira (ainda que a lebre tenha sido levantada l e no aqui). Sobretudo o

    problema da cultura reflexa deixaria de ser particularmente nosso, e, de certo ngulo, em lugar da

    almejada europeizao ou americanizao da Amrica Latina, assistiramos latino-americanizao

    das culturas centrais. Leiam-se, desse ponto de vista, O entre-lugar do discurso latino-americano ,

    de Silviano Santiago (Uma literatura nos trpicos, So Paulo, Perspectiva, 1978), e Da razo

    antropofgica: dilogo e diferena na cultura brasileira , de Haroldo de Campos (Boletim

    Bibliogrfico Biblioteca Mrio deAndrade, So Paulo, v. 44, jan./dez. 1983).

    Resta ver se o rompimento conceitual com o primado da origem leva a equacionar ou

    combater relaes de subordinao efetiva. Ser que as inovaes do mundo avanado se tornam

    dispensveis uma vez desvestidas do prestgio da originalidade? Tampouco basta priv-las de sua

    aurola para estar em condio de utiliz-las livremente e transform-las de modo a que no sejam

    postias. Contrariamente ao que aquela anlise faz supor, a quebra do deslumbramento cultural do

    subdesenvolvido no afeta o fundamento da situao, que prtico. A reproduo de solues de

    ponta responde a necessidades culturais, econmicas e polticas de que a noo de cpia, com sua

    conotao psicologizante, no d idia e as quais no especifica. Em decorrncia o exame desta

    noo, se ficar no mesmo plano, sofre de limitao igual, e a radicalidade de uma anlise que passa

    ao largo das causas eficazes tem por sua vez alguma coisa de enganoso. Digamos que a fatalidade

    da imitao cultural se prende a um conjunto particular de constrangimentos histricos em relao

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    ao qual a crtica de corte filosfico abstrato, como essa a que nos referimos, parece impotente.

    Ainda aqui o nacionalismo argumentativamente a parte fraca, mas nem por isso sua superao

    filosfica satisfaz, pois nada diz sobre as realidades a que ele deve a fora. Entre parnteses, note-

    se que nestes ltimos tempos a quase ausncia do nacionalismo no debate intelectual srio tem

    andado a par com a sua presena crescente na rea da administrao da cultura, onde para mal ou

    para bem no h como fugir existncia efetiva da dimenso nacional. A volta pela outra porta

    reflete um paradoxo incontornvel do presente, em que o espao econmicoest internacionalizado

    (o que diferente de homogeneizado), mas aarena poltica no.

    Na dcada de 1920 o programa pau-brasil e antropofgico de Oswald de Andrade tambm

    tentou uma interpretao triunfalista de nosso atraso. A dissonncia entre padres burgueses e

    realidades derivadas do patriarcado rural forma no centro de sua poesia. Ao primeiro dos dois

    elementos cabe o papel de veleidade disparatada ( Rui Barbosa: uma cartola na Senegmbia ). Odesajuste no encarado como vexame, e sim com otimismo a a novidade , como indcio de

    inocncia nacional e da possibilidade de um rumo histrico alternativo, quer dizer, no-burgus.

    Este progressismo sui generis se completa pela aposta na tecnificao:inocncia brasileira (fruto de

    cristianizao e aburguesamento apenas superficiais) + tcnica = utopia. A idia aproveitar o

    progresso material moderno para saltar da sociedade pr-burguesa diretamente ao paraso. O

    prprio Marx na carta famosa a Vera Sassulitch (1881) especulava sobre uma hiptese parecida,

    segundo a qual a comuna camponesa russa alcanaria o socialismo sem interregno capitalista,

    graas aos meios que o progresso do Ocidente colocava sua disposio. Neste mesmo sentido,

    ainda que em registro onde piada, provocao, filosofia da histria e profetismo esto indistintos

    (como alis maistarde em Glauber Rocha), a Antropofagia visava queimar uma etapa.

    Voltando porm ao sentimento de cpia e inadequao causado no Brasil pela cultura

    ocidental, est claro que o programa de Oswald lhe alterava a tnica. o primitivismo local que

    devolver cansada cultura europia o sentido moderno, quer dizer, livre da macerao crist e do

    utilitarismo capitalista. A experincia brasileira seria um ponto cardeal diferenciado e com

    virtualidade utpica no mapa da histria contempornea (algo semelhante est insinuado nos

    poemas de Mrio de Andrade e Raul Bopp sobre a preguia amaznica). Foi profunda portanto a

    viravolta valorativa operada pelo Modernismo: pela primeira vez o processo em curso no Brasil

    considerado e sopesado diretamente nocontexto da atualidade mundial, como tendo algo a oferecer

    no captulo. Em lugar de embasbacamento, Oswald propunha uma postura cultural irreverente e

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    sem sentimento de inferioridade, metaforizada na deglutio do alheio: cpia sim, mas

    regeneradora. A distncia no tempo torna visvel a parte de ingenuidade e tambm ufanismo nestas

    propostasextraordinrias.

    A voga dos manifestos oswaldianos a partir da dcada de 1960, e sobretudo nos anos 70,

    ocorre em contexto muito diverso do primitivo. Opano de fundo agora dado pela ditadura militar,

    vida de progresso tcnico, aliada ao grande capital, nacional e internacional, e menos repressiva

    que o esperado em matria de costumes. No outro campo, a tentativa de passar guerra

    revolucionria para derrubar o capitalismotambm alterava as acepes do que fosse radical . Em

    suma, nada a ver com a estreiteza provinciana dos anos 20, por oposio qual a rebelio

    antropofgica fazia figura libertria e esclarecida em alto grau. Nas novas circunstncias o

    otimismo tcnico tem pernas curtas, ao passo que a irreverncia cultural e o deboche prprios

    devorao oswaldiana adquirem conotao exasperada3, prxima da ao direta, sem prejuzo do

    resultado artstico muitas vezes bom. Em detrimento da limpidez construtiva e do lance agudo, to

    peculiares ao esprito praticado por Oswald, sobe a cotao dos procedimentos primrios e

    avacalhantes, que ele tambm cultivava. A deglutio sem culpa pode exemplificar uma evoluo

    desta espcie. O que era liberdade em face do catolicismo, da burguesia e do deslumbramento

    diante da Europa hoje, nos anos 80, um libi desajeitado e rombudo para lidar acriticamente com

    as ambigidades da cultura de massa, que pedem lucidez. Como no notar que o sujeito da

    Antropofagia semelhante, neste ponto, ao nacionalismo o brasileiro em geral, sem

    especificao de classe? Ou que a analogia como processo digestivo nada esclarece da poltica e

    esttica do processo culturalcontemporneo?

    Em sntese, desde o sculo passado existe entre as pessoas educadas doBrasil o que uma

    categoria social, mais do que um elogio o sentimento de viverem entre instituies e idias que

    so copiadas do estrangeiro e no refletem a realidade local. Contudo, no basta renunciar ao

    emprstimo para pensar e viver de modo mais autntico. Alis, esta renncia no pensvel. Por

    outro lado, a destruio filosfica da noo de cpia tampouco faz desaparecer o problema. Idem

    para a inocncia programtica com que o antropfago ignora o constrangimento, o qual teima em

    reaparecer. Tupi or not Tupi, that is the question , na famosa frmula de Oswald, cujo teor de

    contradio a busca da identidade nacional passando pela lngua inglesa, por umacitao clssica

    e um trocadilho diz muito sobre o impasse.

    3 A observao de Vinicius Dantas.

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    Vista em perspectiva histrica a questo talvez se descomplique. Silvio Romero tem

    excelentes observaes a respeito, de mistura com vrios absurdos. O trecho que vamos citar e

    comentar est num livro escrito em 1897 contra Machado de Assis, justamente para provar que a

    arte desteno passava de anglomania inepta, servil, inadequada etc.

    *

    Deu-se, entretanto, uma espcie de disparate (...): uma pequena elite intelectual separou-se

    notavelmente do grosso da populao, e, ao passo que esta permanece quase inteiramente inculta,

    aquela, sendo em especial dotada da faculdade de aprender e imitar, atirou-se a copiar na poltica e

    nas letras quanta coisa foi encontrando no Velho Mundo, e chegamos hoje ao ponto de termos uma

    literatura e uma poltica exticas, que vivem e procriam em uma estufa, sem relaes com o

    ambiente e a temperatura exterior. este o mal de nossa habilidade ilusria e falha de mestios e

    meridionais, apaixonados, fantasistas, capazes de imitar,porm organicamente imprprios para criar,

    para inventar, para produzir coisa nossa e que saia do fundo imediato ou longnquo de nossa vida edenossa histria.

    Durante os tempos coloniais, a hbil poltica da segregao, afastando-nos dos estrangeiros,

    manteve-nos um certo esprito de coeso. Por isso tivemos Baslio, Duro, Gonzaga, Alvarenga

    Peixoto, Claudio e Silva Alvarenga, que se moveram num meio de idias puramente portuguesas e

    brasileiras.

    Com o primeiro imperador e a Regncia, a pequena fresta (aberta) no muro de nosso isolamento

    por D. Joo VI alargou-se, e comeamos a copiar oromantismo poltico e literrio dos franceses.

    Macaqueamos a carta de 1814, transplantamos para c as fantasias de Benjamin Constant,

    arremedamos o parlamentarismo e a poltica Constitucional do autor de Adolphe, de mistura com a

    poesia e ossonhos do autor deRenee Atala.

    O povo, este continua a ser analfabeto.

    O segundo reinado, com sua poltica vacilante, incerta, incapaz, durante cinqenta anos,

    escancarou todas s portas, e f-lo tumultuariamente, sem discrmem, sem critrio. A imitao, a

    macaqueao de tudo, modas,costumes, leis, cdigos, versos, dramas, romances, foi a regra geral.

    A comunicao direta para o velho continente pelos paquetes de linha regular engrossou a

    corrente da imitao, da cpia servil.

    [...]

    E eis porque, como cpia, como arremedo, comopastiche para inglsver, no h povo que tenha

    melhor constituio no papel, [...] tudomelhor... no papel. A realidade horrvel!4

    4 Silvio Romero,Machado de Assis, Rio de Janeiro, Laemmert & C., 1897, p. 121-123.

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    As descries e as explicaes de Silvio so desencontradas, s vezes incompatveis, e

    interessam ora pelo argumento ora pela ideologiacaracterstica. Ao leitor de hoje convm examin-

    las em separado. O esquema bsico seria o seguinte: uma pequena elite dedica-se a copiar a cultura

    do Velho Mundo, destacando-se assim do grosso do povo, que permanece inculto. Em

    conseqncia, literatura e poltica tm posio extica e seremos incapazes de criar coisa nossa,

    que saia do fundo de nossa vida e histria. Implcita na reclamao est a norma da cultura

    nacional orgnica, passavelmente homognea e com fundo popular, norma alis que no pode ser

    reduzida a uma iluso da historiografia literria ou do Romantismo, pois em certa medida expressa

    as condies da cidadania moderna. por oposio a ela que o quadro brasileiro minoria

    europeizada, maioria ignorante configura um disparate. Por outro lado, para situ-la

    realisticamente, note-se que a exigncia de organicidade coincidia no tempo com a expanso de

    Imperialismo e cincia organizada, duas tendncias que tornavam obsoleta a hiptese de umacultura nacional autocentrada e harmnica.

    O pecado original, causa da desconexo, foi a cpia. Os efeitos negativos dela entretanto

    esto no plano da ciso social: cultura sem relaes com o ambiente, produo que no sai do fundo

    de nossa vida. Ora, a desproporo entre efeitos e causa tamanha que leva a duvidar desta ltima

    e a desconsider-la. So as indicaes mesmas do Autor que convidam a raciocinar em linha

    diferente da sua. Abrindo um parnteses,note-se que o prprio do disparate ser evitvel e que, de

    fato, o argumento e a invectiva de Silvio fazem crer que obrigao da elite corrigir o erro que a

    distanciou da populao. A crtica ambicionava tornar intolervel o abismo entre as classes, quer

    dizer, intolervelparaos cultos, j que no Brasil recm-sado da escravatura adebilidade do campo

    popular desestimulava outras noes.

    Assim, a origem de nosso disparate cultural est na aptido imitativa de mestios e

    meridionais, pouco dotados para a criao. A petio de princpio bvia, pois a imitao se

    explica pela bossa racial para aquela mesma imitao que se queria explicar, no que alis o

    Autor imitava o naturalismo cientfico em voga na Europa. So explicaes hoje difceis de levar a

    srio, e que no entanto merecem exame enquanto voz corrente e mecanismo ideolgico. Se a causa

    da tendncia brasileira para a cpia racial, por que s a elite ter copiado? Por outro lado claro

    que, se todos copiassem, desapareceriam como por encanto os mencionados efeitos de exotismo

    (falta de relaes com o ambiente) e disparate (separao entre elite e povo), e, com eles, todo o

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    problema. Este portanto no se devia cpia, mas ao fato de que s uma classe copiava. A

    explicao no deve ser de raa, mas de classe.

    Nos pargrafos seguintes Silvio esboa o histrico do vcio imitativo dacultura brasileira. O

    ponto zero da evoluo est no perodo colonial, quando os escritores se moviam num meio de

    idias puramente portuguesas e brasileiras . Entretanto, a distncia entre elite e populao seria

    menor naquele tempo? O amor da cpia menos vivo? Seguramente no, e alis no isso que est

    dito. A coeso a que s refere a passagem era de outra ordem, efeito da hbil poltica da

    segregao (!), que separava Brasil de tudo que no fosse portugus. A comparao noutras

    palavras sem objeto, pois num caso a homogeneidade se mede por uma estrutura social,

    extraordinria pela desigualdade, e no outro pela ausncia de idias estrangeiras, que estavam

    proibidas. Contudo, se a explicao no convence, a observao que ela devia esclarecer justa:

    antes do sculo XIX a cpia do modelo europeu e a distncia entre letrados e populao noconstituam disparate . Digamos,esquematizando ao extremo, que na situao colonial o letrado

    solidrio da metrpole, da tradio do Ocidente e tambm de seusconfrades, mas no da populao

    local. Nestas circunstncias, o cultivo do padro metropolitano e o afastamento cultural em relao

    ao meio no aparecem como deficincia, at pelo contrrio. Acresce que a esttica neoclssica

    universalista e valoriza o respeito e a prtica das formas cannicas, de modo que tambm no plano

    da teoria da arte a imitao aparecia como um valor positivo. Na boa observao de Antonio

    Candido, o poeta rcade que metia uma ninfa no ribeiro do Carmo no estava faltando com a

    originalidade: incorporava Minas Gerais tradio do Ocidente, e, meritoriamente, cultivava esta

    mesma tradio naquelasafastadas terras.5

    Portanto a cpia no nasceu com a abertura dos portos e a Independncia, como queria

    Silvio, mas verdade que s a partir da ela se torna o insolvel problema que at hoje se discute e

    que solicita termos como macaqueao, arremedo oupastiche. Por que motivo a imitao passava

    a ter conotao pejorativa?

    sabido que a Independncia brasileira no foi uma revoluo: ressalvadas a mudana no

    relacionamento externo e a reorganizao administrativa no topo, a estrutura econmico-social

    criada pela explorao colonial continuava intacta, agora em benefcio das classes dominantes

    locais. Diante dessa persistncia, era inevitvel que as formas modernas de civilizao, vindas na

    esteira da emancipao poltica e implicando liberdade e cidadania, parecessem estrangeiras ou

    5 Antonio Candido, Formao da literatura brasileira, So Paulo, Martins, 1969, v. 1, p. 74.

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    postias, antinacionais, emprestadas, despropositadas etc., conforme a preferncia dos diferentes

    crticos. A violncia da adjetivao indica as contores do amor-prprio brasileiro (de elite),

    obrigado a desmerecer em nome do progresso os fundamentos de sua preeminncia social, ou vice-

    versa, opo deprimente nos dois casos. De um lado, trfico negreiro, latifndio, escravido e

    mandonismo, um complexo de relaes com regra prpria, firmado durante a Colnia e ao qual o

    universalismo da civilizao burguesa no chegava; de outro, sendo posto em xeque pelo primeiro,

    mas pondo-o em xeque tambm, a Lei (igual para todos), a separao entre o pblico e o privado,

    as liberdades civis, oparlamento, o patriotismo romntico etc. A convivncia familiar eestabilizada

    entre estas concepes em princpio incompatveis esteve no centro da inquietao ideolgico-

    moral do Brasil oitocentista. A uns a herana colonial parecia um resduo que logo seria superado

    pela marcha do progresso. Outros viam nela o pas autntico, a ser preservado contra imitaes

    absurdas. Outros ainda desejavam harmonizar progresso e trabalho escravo, para no abrir mo denenhum dos dois, e outros mais consideravam que esta conciliao j existia e era desmoralizante.

    A crtica de Silvio por sua vez, contempornea do declnio do Segundo Reinado, usa argumentos

    conservadores dentro de nimo progressista: salienta o pas real , fruto e continuao do

    autoritarismo da Colnia, mas para combat-lo; e menospreza o pas ilusrio , das leis, dos

    bacharis, da cultura importada, depreciado por inoperante. Da a sua observao: no h povo

    que tenha melhor constituio no papel [...]. Arealidade horrvel! .

    A lista de arremedos lembrada por Silvio e que a alfndega faria bem de barrar inclui modas,

    costumes, leis, cdigos, versos, dramas e romances. Um a um, medidos pela realidade social do

    pas, estes itens efetivamente podiam parecer importao suprflua, destinada a tapar a indigncia

    real e a encenar a iluso do progresso. Vistos em conjunto, entretanto, so aspectos da constituio

    e do aparelhamento do novo Estado nacional, bem como da participao das novas elites na cultura

    contempornea. Sem prejuzo da aparncia postia, estranha ao andamento cotidiano dos negcios,

    este dado mais inseparvel do quadro que a prpria escravido, a qual adiante seria substituda

    por outras formas detrabalho compulsrio, tambm elas incompatveis com a pretensoesclarecida.

    Corrido o tempo, a marca ubqua de inautenticidade veio a ser concebida como a parte mais

    autntica do espetculo brasileiro, algo como um penhor de identidade. Privados de seu contexto

    oitocentista europeu e acoplados ao mundo da sociabilidade colonial, os melhoramentos da

    civilizao que importvamos passavam a operar segundo outra regra, diversa da consagrada nos

    pases hegemnicos. Da o sentimento to difundido de pastiche indigno, a que escapava Machado

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    de Assis, cuja grande imparcialidade permitia ver um modo particular de funcionamento ideolgico

    onde os demais crticos s enxergavam esvaziamento. Em palavras de Srgio Buarque de Holanda:

    A presteza com que na antiga colnia chegara a difundir-se a pregao das idias novas , e o

    fervorcom que em muitos crculos elas foram abraadas s vsperas daIndependncia, mostram de

    modo inequvoco, a possibilidade que tinham de atender a um desejo insofrido de mudar,

    generalizada certeza de que o povo, afinal, se achava amadurecido para a mudana. Mas tambm

    claro que a ordem social expressa por elas estava longe de encontrar aqui o seu equivalente exato,

    mormente fora dos meios citadinos. Outra era aarticulao da sociedade, outros os critrios bsicos

    de exploraoeconmica e da repartio de privilgios, de sorte que no podiam, essasidias, ter o

    sentido que lhes era dado em parte da Europa ou da antiga Amrica inglesa (...). O resultado que

    as frmulas e palavras so asmesmas, embora fossem diversos o contedo e o significado que aqui

    passavam a assumir .6

    Digamos que o passo da Colnia ao Estado autnomo acarretava a colaborao assdua

    entre as formas de vida caractersticas da opresso colonial e as inovaes do progresso burgus. A

    nova etapa do capitalismo desmanchava a relao exclusiva com a metrpole, transformava os

    proprietrios locais e administradores em classe dominante nacional, virtualmente parte da

    burguesia mundial em constituio, e conservava entretanto as antigas formas de explorao do

    trabalho, cuja redefinio moderna at hoje no se completou. Noutras palavras, a discrepncia

    entre os dois Brasis no produzida pela veia imitativa, como pensavam Silvio e muitos outros,

    nem marca um curto momento de transio. Ela foi o resultado duradouro da criao do Estado

    nacional sobre base de trabalho escravo, a qual por sua vez, com perdo da brevidade, decorria da

    Revoluo Industrial inglesa e da conseqentecrise do antigo sistema colonial, quer dizer, decorria

    da histria contempornea7. Assim, a m-formao brasileira, dita atrasada, manifesta a ordem da

    atualidade a mesmo ttulo que o progresso dos pases adiantados. Os disparates de Silvio na

    verdade as desarmonias ciclpicas do capitalismo mundial no so desvios. Prendem-se

    finalidade mesma do processo, que, na parte que coube ao Brasil, exige a reiterao do trabalho

    forado ou semi-forado e a decorrente segregao cultural dos pobres. Com modificaes, muito

    6 Srgio Buarque de Holanda,Do Imprio Repblica, t. 2, v. 5 daHistria geral da civilizao brasileira, dirigidapelo mesmo Autor, So Paulo, Difel, 1977, p. 77-78.7 Emlia Viotti da Costa,Da Monarquia Repblica: momentos decisivos, So Paulo, Grijalbo, 1977, cap. 1; LuizFelipe de Alencastro, Latraitenegrireet l unit nationalebrsilienne , inRevueFranaise de l Histoire dOutreMer,t. 66, n. 244-245, 1979; Fernando Novais, Passagens para o Novo Mundo ,Novos Estudos Cebrap, n. 9, So Paulo,jul. 1984.

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    disso veio at os nossos dias. No momento o panorama parece estar mudando, devido a consumo e

    comunicao de massas, cujo efeito primeira vista anti-segregador.So os novssimos termos da

    opresso e expropriao cultural, poucoexaminados por enquanto.

    Assim, a tese da cpia cultural ideologia na acepo marxista do termo, quer dizer, uma

    iluso bem fundada nas aparncias: a coexistncia entre princpios burgueses e do antigo regime,

    fato muito notrio e glosado, explicada segundo um esquema plausvel, de alcance abrangente e

    fundamento individualista, em que efeitos e causas esto trocados emtoda linha.

    A cpia tem por conseqncia, segundo Silvio, a falta de denominador comum entre a

    cultura do povo e da elite, bem como a pouca impregnaonacional desta ltima. Por que no fazer

    o raciocnio inverso? Neste caso, a feio copiada de nossa cultura resultaria de formas de

    desigualdade brutais a ponto de lhes faltarem mnimos de reciprocidade o denominador comum

    ausente sem os quais a sociedade moderna de fato s podia parecer artificiosa e "importada". Odescaso impatritico (adotada a idia de nao que era norma) da classe dominante pelas vidas que

    explorava a tornava estrangeira em seu prprio juzo... A origem colonial e escravista destas causas

    salta aos olhos.

    As deficincias comumente associadas imitao explicam-se da mesma maneira.

    Conforme os seus crticos, a cpia est nos antpodas de originalidade, criao com sentido

    nacional, juzo independente e adequado s circunstncias etc. Ora, no extremo a dominao

    absoluta faz que a cultura nada expresse das condies que lhe do vida, se excetuarmos o trao de

    futilidade que resulta disso mesmo e que algunsescritores souberam explorar. Da uma literatura e

    uma poltica exticas , sem ligao com o fundo imediato ou longnquo de nossa vida e de nossa

    histria , assim como a ausncia de discrmem e critrio , e sobretudo a convico muito

    pronunciada de que tudo s papel. Noutras palavras o sentimento aflitivo da civilizao imitada

    no produzido pela imitao, presente em qualquer caso, mas pela estrutura social do pas, que

    confere cultura uma posio insustentvel, contraditria com o seu autoconceito, e que entretanto

    j na poca no era to estril quanto os argumentos de Silvio fazem crer. Complementarmente a

    esferasegregada tampouco permanecia improdutiva, e suas manifestaes maisadiante teriam, para

    o intelectual de extrao culta, o valor de uma componente no-burguesa da vida nacional,

    servindo-lhe como fixador daidentidade brasileira (com as ambigidades bvias).

    A denncia do transplante cultural veio a ser o eixo de uma perspectiva crtica ingnua e

    difundida. Para concluir, vejamos alguns de seusinconvenientes.

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    1) Ela faz supor que a imitao seja evitvel, aprisionando o leitor num falso problema.

    2) O que um mal-estar de classe dominante, ligado dificuldade de conciliar moralmente

    as vantagens do progresso e do escravismo ousucedneos, aparece como feio nacional.

    3) Fica sugerido que as elites se poderiam conduzir de outro modo, sanando o problema, o

    que equivale a pedir que o beneficirio de uma situao acabe com ela.

    4) Por sua lgica o argumento oculta o essencial, pois concentra a crtica na relao entre

    elite e modelo, quando o ponto decisivo est na segregao dos pobres, excludos do universo da

    cultura contempornea.

    5) A soluo implcita est na auto-reforma da classe dominante, a qual deixaria de imitar;

    conforme vimos no disso que se trata, mas doacesso dos trabalhadores aos termos da atualidade,

    para que os possamretomar segundo o seu interesse, o que neste campo vale comodefinio de

    democracia.

    6) Quem diz cpia pensa nalgum original, que tem a precedncia, est noutra parte, e do

    qual a primeira o reflexo inferior. Esta diminuio genrica freqentemente responde

    conscincia que tm de si as elites latino-americanas, e d consistncia mtica, no plano da cultura,

    sob forma de especializaes regionais do esprito, s desigualdades econmico-teconolgico-

    polticas prprias ao quadro internacional (o autntico e criativo est para a imitao como os

    pases adiantados para os atrasados). Nem por isso adianta passar ao plo oposto: as objees

    filosficas ao conceito de originalidade levam a considerar inexistente um problema efetivo, que

    seria absurdo desconhecer. A historiografia dacultura ficou devendo o passo globalizante dado pela

    economia e sociologia de esquerda, que estudam o nosso atraso como parte da histria

    contempornea do capital e de seus avanos.8 Visto do ngulo da cpia, o anacronismo formado

    pela justaposio de formas da civilizao moderna e realidades originadas na Colnia um modo

    8 Ver Celso Furtado,A pr-revoluo brasileira, Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1962; e Fernando H. Cardoso,Empresrio industrial e desenvolvimento econmico no Brasil, So Paulo, Difel, 1964.

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    deno-ser, ou ainda, a realizao vexatoriamente imperfeita de um modelo que est alhures. J o

    crtico dialtico busca no mesmo anacronismo uma figura da atualidade e de seu andamento

    promissor, grotesco ou catastrfico.

    7) A idia de cpia discutida aqui ope o nacional ao estrangeiro e o original ao imitado,

    oposies que so irreais e no permitem ver a parte do estrangeiro no prprio, a parte do imitado

    no original, e tambm a parte original no imitado (Paulo Emilio Salles Gomes fala de nossa

    incompetncia criativa em copiar ) 9. Salvo engano, o quadro pressupe o seguinte arranjo de trs

    elementos: um sujeito brasileiro, a realidade do pas, a civilizao das naes adiantadas sendo

    que a ltima ajuda o primeiro a esquecer a segunda. Tambm este esquema irreal e impede de

    notar o que importa, a saber, a dimenso organizada ecumulativa do processo, a fora potenciadora

    da tradio, mesmo ruim, as relaes de poder em jogo, internacionais inclusive. Sem prejuzo deseus aspectos inaceitveis para quem? , a vida cultural tem dinamismos prprios, de que a

    eventual originalidade, bem como a faltadela, so elementos entre outros. A questo da cpia no

    falsa, desde que tratada pragmaticamente, de um ponto de vista esttico e poltico, e liberta da

    mitolgica exigncia da criao a partir do nada.

    Aula dada no curso Tradio/Contradio , organizado por Adauto Novaes para a Funarte.

    Publicao original na Folha de So Paulo, 07/06/1986, reproduzido em Que horas so?So Paulo,

    Cia. das Letras, 1987 e Cultura e PolticaRio de Janeiro,Paz eTerra, 2001.

    9 Paulo Emilio Salles Gomes, Cinema: trajetria no subdesenvolvimento, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980, p. 77.

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