63508658 a Historia Cultural Entre Praticas e Representacoes Roger Chartier

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MEMOR e !: EDADE Aos 43 anos, Roger Chartier e um dos expoentes maximos da historia cultural francesa actual. Director de Investiga9oes na Escola dos Altos Estudos em Ciencias Sociais, depois de uma breve passagem como docente pela Universidade de Paris I (Sorbonne), tern sido convidado para conferencias e missoes de ensino em universidades europeias e americanas. A sua actividade reveia uma enorme capacidade de cria?ao individual, bem como um grande empenhamento em projectos de trabalho colectivos (Nouvelle Histoire, Histoire de I'Edition Fran$aise, Histoire de la Privee). Na fidelidade critica a historia cultural dos Annales muitas vezes designada por «historia das mentalidades» a reflexao aqui apresentada pretende ilustrar um percurso intelectual defmido por dois objectives interligados: por um lados, examinar os legados inferiorizados e os postulados nao questionados da tradi9ao historiografica; por outro, criar um espa?o de trabalho entre textos e leituras no intuito de compreender as praticas que constroem o mundo como representa^ao. : Diogo ROGER CHARTIER A HISTORIA CULTURAL ENTRE PRATICAS E REPRESENTAQOES MEMORIA eSOCIEDADE

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M E M O R e !: E D A D E

Aos 43 anos, Roger Chartier e um dos expoentes maximosda historia cultural francesa actual. Director de Investiga9oes

na Escola dos Altos Estudos em Ciencias Sociais, depoisde uma breve passagem como docente pela Universidade

de Paris I (Sorbonne), tern sido convidado para conferenciase missoes de ensino em universidades europeias e americanas.

A sua actividade reveia uma enorme capacidade de cria?aoindividual, bem como um grande empenhamento

em projectos de trabalho colectivos (Nouvelle Histoire, Histoirede I'Edition Fran$aise, Histoire de la Privee).

Na fidelidade critica a historia cultural dos Annales muitasvezes designada por «historia das mentalidades» a reflexaoaqui apresentada pretende ilustrar um percurso intelectualdefmido por dois objectives interligados: por um lados,examinar os legados inferiorizados e os postulados nao

questionados da tradi9ao historiografica; por outro, criar umespa?o de trabalho entre textos e leituras no intuitode compreender as praticas que constroem o mundo

como representa^ao.

: • Diogo

ROGER CHARTIER

A HISTORIA CULTURALENTRE PRATICAS E REPRESENTAQOES

M E M O R I A e S O C I E D A D E

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© Roger Chamer, 1988 e Cornell University Press, 1982; Editions du Centre GeorgesPompidou, 1987; Editions FlammaFion,1985; Institute de Cultura Portuguesa,1987; Editions Gamier et Freres, 1986; Promodis, 19S4; Pergamon Press, 1986;

Ecole Fran^aise de Rome, 1985.Todos os direitos para publicaijao desta obra em lingua portuguesa reservados por:

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Memoria e SociedadeColeccao coordenada por Francisco Bethencourt e Diogo Ramada Curro

Capa: Emilio VilarRevisao: Fernando PortugalComposicao: Maria Either — Gab. Fotacomposi^aoImpressao e acabamento: Tipogrqfia Guerra - Viseu

Deposito Legal n.° 174 602/02

ISBN 972-29-0584-8 / Janeiro 2002

Proibida a reproducao total ou parciai sem a previa aucorizacao do Editor

NOTA DE APRESENTAgAO

Apresentar ao publico portugues um livro de Roger Chartierimplica uma reflexao preliminar sobre as condiqoes da sua recep^ao,Para isso, devemos come^ar por precisar o sentido das trocas entre ashistoriografias francesa e portuguesa nas ultimas decadas. No ambitodos estudos relatives a epoca moderna, tats trocas poderao ser pensadasa partir de tres dominion essenciais. Em primeiro lugar, urn conjunto'de trabalbos de historia economica e social — dimensionados em dife-rentes escalas: urbana, regional, oceanica, intercontinental — revelao grau de intervengao e a capacidade de mfluencia do circuit) cons-tituido pela antiga Ecole Pratique des Hautes Etudes. Em segundolugar, urn numero consideravel de estudos de historia cultural, atentossobretudo aos registos literdrios, exprime nao so o interesse frances porobras e autores Portugueses, mas tambem a preocupaqao em proceder asua legitimagao — atraves de re-vistas proprias, de provas academicase de format de reconbecimento institucional (Sorbonne, College deFrance, Ecole Pratique, Centre Cultural Portugal}. Por ultimo, astraduces de obras francesas — promovidas por algumas editoraslisboetas, entre as quais a Cosmos desempenhou urn papel pioneiro —sao a prova de uma procura crescente da produqao proveniente da«escola» dos Annaies. Sera uma evidencia afirmar que nestes tresdominion existem atrasos nacionais, num quadra de trocas desiguais(salvaguardando o caracter excepcional de obras como a de VitorinoMagalbaes Godinho).

Mais dificil sera diagnosticar a situagao actual. A este proposito,algumas questoes poderao ser deixadas em aberto. Antes de mats,importa considerar a banaliza$ao de conceitos e de modelos explica-tivos da historia economica e social — em boa parte proporcionada porprogramas e curriculos escolares — uma vez dissociados do seu quadraoriginal, verdadeiramente inovador. Depots, ha que reconhecer o declt-nio do interesse frances pelos estudos de literatura portuguesa, facto

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a que nao sera estranba a interrup^ao do dialogo entre as bistorias daliteratura e da cultura — consequencia da difusao de abordagensPOUCQ interessadas no contexto temporal dos discursos e resultado dedesconfiancas /rente a fonts literdria, dotada de um estatuto menosreal que o documento de arquivo. For fim, interessa analisar omercado das traducoes, quando pretends passar-por actuals produtoscom dez ou vinte anos, cbegando a nao identificar os sens tradutorese so mttito raramente arriscando uma apresentagao das obras e dosautores. Ora, e a possibilidade de levar mais fundo a interrogatesobre estas tres questoes que o presents livro nos faculta. Propoe-nosuma reflexao sobre o paradigma historiografico dos anos 50 e 60,construido em relacao a economia e sociedade, mas que se tornouextensivo a bistoria das mentalidades. Assume como um duplo proble-ma as formas narrativas, por um lado, porque sao inerentes aodiscurso bistorico e literdrio, por outro, porque fazem parte dosdocumentor que o bistoriador toma por objecto. Enfim. apresenta-secomo actual, pois inchd oito ensaios publicados apos 1982, organiza-dos exclusivamente para a edi^ao portuguesa, numa altura em que sepreparam ou come^am a sair traduces do autor em ingles (PrincetonUniversity Press, Polity Press) e italiano.

Neste contexto, ler a Historia cultural: entre praticas e repre-sentagoes implica uma segunda ordem de reflexoes, de modo a porem causa as possibilidades de migrac,ao das ideias de Roger Chartier.0 que eq^tivale a perguntar: qual a distantia entre o autor na suaorigerrt e neste seu ponto de chegada? Sem preocupa^oes sistemdticas,repare-se que uma primeira distanda se encontra na configurate deautores, reivindicada ou aceite pelo proprio, e o conhecimento que osleitores Portugueses poderao ter dos mesmos. Tanto Pierre Bourdieucomo Michel de Certeau sao pouco conhecidos em lingua portuguesae, apesar das traduces do primeiro, publicadas no Brasil, encontram-

NOTA DE APRESENTA^AO

-se por divulgar a/gumas das suas obras mais importantes. Editoresbrasileiros tem-se preocupado em dar a conbecer a obra de MichelFoucault, mas do lado de ca do Atlantico so muito dificilmente essastradugoes podem ser comparadas ao fragmento que nos ofereceu, vaipara dez anos, uma antologia organizada por E. Prado Coelbo. Asondagem devera ser extensiva a outros autores — Gadamer, Geertz,Habermas. Jauss e, ainda, Ricoeur — quase ignorados entre nos, masq^le interessaria controlar mais direct'amente, ultrapassandoa leitura de segunda mao o^i a estupefac^ao /rente aos nomes considera-dos na moda, Neste quadro, talvez desolador, a excepgao sera NorbertElias — que outras editoras tern procurado divulgar —, mas tambemaqui ba o perigo de se estarem a favorecer leituras redutoras da suaobra.

Se, ao esqmcer tais autores, corremos o risco de ler Cbartier forado seu contexto, o mesmo acontece quando isolamos uma pequena parteda sua obra e a apresentamos em forma de livro, Neste caso, controlaro acto de leitura implica, no minimo, atender a um conjunto depraticas de exclusao e de class ificacao. Para as entender, sera utildefinir o conjunto de areas e de interesses presentes na totalidade daspublicagoes do autor. Cinco rubricas podem servir de ponto de partida.a) Uma primeira area de trabalhos de Roger Cbartier visa a analisedas institutes de ensino e das sociabilidades intelectuais. b) Numasegunda area, sera possivel agrupar um conjunto de investigatesparcelares — sobre a marginalidade, os intelectuais frustrados, a festaou a morte — e de tentativas de sintese — da Franca urbana a vidaprivada; tanto num caso como no outro, pocteremos dizer que se pretendereinventar a bistoria social, atendendo sobretudo a um conjunto depraticas e de objectos culfurais. c) Segue-se um campo de. publicaqoesconstituido principalmente pela historia da leitura, permanentementeconfrontada com a bistoria do livro, da edigao ou dos objectos

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tipogrdficos, e que ao mesmo tempo se esforga por interrogar a teoria darecep^ao e a sociologia cultural (por exemplo, os capitulos IV, V e VIdo presente li-vro). d) Um quarto domtnio diz respeito as analises dacultura politica, nas suas varias configurates — dos circulos cortesaosaos meios populares — e concedendo uma atenqdo particular aosdiscursos escritos (caso dos capitulos VII e VIII), e) Uma ultima areade publicagoes revela um permamnte esforgo em reflectir sobre o oficiode historiador, por um lado, a partir do exame das condigoes deproduqao dos agentes da pratica historiografica, por outro, atraves deuma avaliaqao dos conceitos e das formas discursivas que fundam essamesma pratica (como acontece na introdugao e nos capitulos I, II eI I I ) . Assim, com base nesta tipologia — assumida tambem como actode leitura —, sera passive/ situar melbor o presente livro no quadra daprodu$ao historiografica do autor.

Avaliar as condigoes de recep$ao deste livro de Roger Cbartierobriga, ainda, a explicitar uma leitura, que gostariamos de proporcontra as apropriagoes hagiograficas ou de mero reconhecimento dos seusprecursors. Tres aspectos, dotados de um-estatuto desigual, constituema nossa proposta. Em primeiro lugar, importa pensar em con junto umpercurso academico (Ecole Normale Superieure de Saint-Cloud, Paris I— Sorbonne, E.H.E.S.S. e numerosas universidades europeias e ame-ricanas), um itinerario editorial (de dirigido a director de projector)e uma trajectoria historiografica (a que se poderia juntar umaactividade de cntico nas revistas cientificas e nos jornais de maiorcirculagao, como Le Monde). 0 sentido dos conflitos, que este livronos da a ler, so sera compreensivel neste quadro de aftrma$ao daautonomia e de aquisigao crescente dos titulos de prestigio, no interiordo campo intelectual. Depots, sera preciso nao isolar o caracterfragmentario, proprio dos estudos de caso — opqao de uma praticanecessariamente experimental —, e a necessidade de pensar os processor

NOTA DE APRESENTACAO n

de civiliza$aQ ou as transforma^oes sociais, recorrendo aos temposlongos, mesmo que descontinuos. Aceitar como uma tensao, mm semprefdcil de equilibrar, a passagem do caso ao processo obriga a poro problema do mercado dos produtos historiograficos e mais concreta-mente a querer saber qual o peso das solicita^oes dos editores,interessados na novidade do pequeno objecto parcelar (e o caso doscapitulos V e VI), mas preocupados sobretudo com o tipo de ofertaproporcionado pela obra de sintese. Finalmente, importa enunciar atensao fundamental que percorre a obra de Chartier. Por um lado,existe uma permanente interroga^ao sobre a possibilidade de ir dodiscurso ao facto, o que obriga a por em causa a ideia da fonteenquanto testemunbo de uma realidade de que esta seria meroinstrument de mediagao. Donde, a dupla tendencia para ana/tsara realidade atraves das suas representacoes e para considerar asrepresenta^oes como realidade de multiples sentidos. Por outro lado,constata-se a existencia de praticas sociais que nao poderao serreduzidas a representacoes, pois revestem uma logica autonoma. Resol-ver esta tensao implica tomar operatorias a no$ao de leitura e oconjunto de formas de apropria^ao, as quais permitem pensar simulta-neamente a relaqao de conbecimento, em particular os procedimentos comas fontes, e o conjunto dos actos de rela$ao, comprometedores de praticase de representa^oes. Neste sentido, o conceito-chave de leitura sera paraCbartier o que as relates de interdependencia sao para Norbert Eliase a nogao de campo e para Bourdieu.

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INTRODUgAO

For uma sociologist historicadas praticas cultural

O presente livro, composco por oito ensaios publicadosencre 1982 e 1986, constitui-se como resposta a insatisfacaosentida frente a historia cultural francesa dos anos 60 e 70,entendida na sua dupla vertente de historia das mentalidadese de historia serial, quantitativa. Os tragos que a caraccerizamso podem ser compreendidos quando relacionados com a situa-c,ao da propria historia, como disciplina, naquelas decadas.Numa palavra, podera dizer-se que a historia era entao institu-cionalmente dominante e que se encontrava intelectualmenteamea^ada '. A posi^ao que detinha no campo universitario eraassegurada pelo seu peso numerico (-em 1967, ascende aosegundo piano das letras e das ciencias humanas, atras daliteratura francesa, mas muito antes da iinguistica, da psicolo-gia ou da sociologia) e pela importancia do capital escolar, emtermos de currkulo e de graus academicos, dos seus mestres:nove em cada dez eram agregados, dois em cada dez eramantigos alunos das Escolas Normais Superiores. Na escala dalegitimidade institucional, a historia pertencia ao grupo dasdisciplinas dominantes, ainda que ultrapassada pelo frances,pelas linguas mortas ou pela filosofia, e apresentava caracterfs-ticas muito diferentes das atribuidas as disciplinas novas, queexibiam numeros mais discretos e cujos docentes (sobretudo osmais jovens, que nao eram professores mas tao so assistentes)careciam dos graus academicos de maior prestigio.

1 Os dados relatives as cransforma^oes morfologicas das disciplinas queestao na base desta evolu^ao focajn reunidos pot Pierre Bourdieu, LucBoltanski e Pascale Maldidier, in «La defense du corps», Information sur lesSciences Sociales, X, 4, 1971, pp. 45-86. Esses dados consrituem a baseescaci'scica de Pierre Bourdieu em Homo academicus, Paris, Minuir, 1984.

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Ora e precisamente essa posigao, baseada na primazia doestudo das conjunruras economical e demograficas ou das estru-turas socials, que as ciencias sociais mais recencemente institu-cionalizadas tentam abalar nos anos 60. Para tal, puderam con-tar com uma fortissima taxa de crescimento dos seus efectivos(que variou encre 200% e 300%, de 1963 a 1967, para a lin-guistica, a sociologia e a pskologia) e com a contratacao denovos professores, com diplomas mais modestos do que nasdisclplinas canonicas, mas que dispunham, na maioria, de umforte capital social. O desafio langado a historia pelas novasdisciplinas assumiu diversas formas, umas estruturalistas, ou-tras nao, mas que no con junto puseram em causa os seusobjectos — desviando a atengao das hierarquias para as rela-goes, das posicoes para as representatives — e as suas certezasmetodologicas — consideradas mal fiindadas quando confronta-das com as novas exigencias teoricas. Ao aplicar em areas ateentao estranhas aos interesses da historia economica e socialnormas de cientificidade e modelos de trabalho frequentementedecalcados das ciencias exactas (como a formalizagao e a mode-lizac,ao, a explicitacjio das hipoteses, a investigate em grupo),as ciencias sociais conquistadoras iam minando o dominio dahistoria nos campos universitario e intelectual. E ao importarda area das disciplinas literarias novos princfpios de legitimida-de, que desqualificavam a historia enquanto disciplina empiri-ca, tentavam converter a sua fragilidade institucional emhegemonia intelectual.

A resposta dos historiadores foi dupia. Puseram em praticauma estrategia de captagao, colocando-se nas primeiras linhasdesbravadas por outros. Dai a ernergencia de novos objectos noseio das questoes historicas: as atitudes perante a vida e amorte, as crencas e os comportamentos religiosos, os sistemasde parentesco e as relacoes familiares, os rituais, as formas desociabilidade, as modalidades de funcionamento escolar, etc.— o que representava a constituigao de novos territories dohistoriador atraves da anexacao dos territorios dos outros. Dai,corolariamente, o retorno a uma das inspiracoes fundadoras dosprimeiros Annales dos anos 30, a saber, o estudo das utensila-gens rnentais que o dominio de urna historia dirigida antes de

INTRODU£AO 15

mais para o social tinha em certa medida relegado para segundopiano. Sob a designacao de historia das mentalidactes ou depsicologia historica delimitava-se um novo campo, distinto cantoda antiga hisroria intelectual literaria como da hegemonicahistoria economica e social. Com estes objectos novos oureencontrados podiam ser experimentados tratamentos ineditos,tornados de emprestimo as disciplinas vizinhas: foi o caso dastecnicas de analise linguistica e semantica, dos meios estatisti-cos utilizados pela sociologia ou de alguns modelos da anttopo-logia.

Mas esta estrategia de capcacao (dos territorios, das tecni-cas, dos indices de cientificidade) so podia resultar na condicaode nao por de lado nada do que tinha estado na base do sucessoda disciplina, determinado pelas renovacoes audaciosas dotratamento serial dessas fontes massivas, nomeadamente regis-tos de precos, registos paroquiais, arquivos pottuarios e actosnotariais. Nas suas grandes grandes linhas a historia das men-talidades construiu-se aplicando a novos objectos os principlesde inteligibilidade utilizados na historia das economias e dassociedades, como sejam a preferencia dada ao maior niimero,logo a investiga^ao da cultura tida como popular; a confian^anos mimeros e na quantiflcacao; o gosto pela longa duracao; aprimazia atribuida a um tipo de divisao social que organizavaimperativamente a classificacao dos factos de mentalidade. Ascaracteristicas proprias da historia cultural assim definida, queconcilia novos dominios de investigacao com a fidelidade aospostulados da historia social, eram como que a traducjio daestrategia da propria disciplina, que visava a apropriagao deuma nova legitimidade cientifica, apoiada em aquisicoes inte-lectuais que tinham fortalecido o seu dominio institucional.

Ao inscrever, deste modo, as caracteristicas da historia dasmentalidades na conftguracao do campo cientifico em queforam moldadas, pretendemos assinalar que qualquer reflexaosobre os desvios ou afrontamentos proprios de uma disciplinasupoe necessariamente a identificagao da sua posicao no campouniversitario e a verificagao dos legados interiorizados e dasposturas partilhadas que constituem o cerne da sua especificida-de. Durante urn perfodo demasiado longo, os historiadores

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escreveram a historia da sua disciplina socorrendo-se de catego-rias de pensamenco cujo emprego teriam recusado na analise dequaiquer outro objecto. Durante esse periodo demasiado longo,a historia da historia foi habitada por «essas sequencias deconceitos saidos de inteligencias desencarnadas», denunciadaspor Lucien Febvre como o pior defeito da antiga historia dasideias 2. Ora, o presence livro pretende ilustrar (discretamente,atendeado a que nao e esse o seu objecto) uma outra maneira depensar as evolucoes e oposicoes intelectuais. E deseja faze-lotracando as determinacoes objectivas, expressas nos habitsdisciplinares, que regularam a relacao da historia culturalfrancesa com outros campos do saber, proximos mas muitas ve-zes ignorados: a historia literaria, a epistemologia das ciencias,a filosofia.

Uma tal abordagem, tomada de emprestimo a sociologia dosaber, deveria levar a compreensao de certas clivagens apresen-tadas neste volume: por exemplo, entre a sociologia, tal como apratica Norbert Elias, e as tradic.6es historicas -contra as quaisela se constroi. Essas oposigoes, forrnuladas em termos dediferengas conceptuais e metodologicas (e o que sao na realida-de), e determinadas por lutas pelo dommio disciplinar ou inte-lectual, nao sao as mesmas na Alemanha universitaria dos anos30 ou no mundo intelectual dos anos 80, So as suas configura-coes especificas e as estrateglas particulares que produzempodem dar inteiramente conta das posi^oes sustentadas e doscaminhos seguidos. Dizer isto nao e reduzir os debates intelec-tuais a mera condicao de aparenres confrontos de poder (entreescolas, entte disciplinas ou entre tradigoes nacionais), nempensar que tal analise permite, a quern a faz, escapar as deter-minacoes do campo em que se encontra. Trata-se de outracoisa, que e o dever de pensar as divergencias surgidas no nossomundo academico ou as evolugoes das disciplinas que sao asnossas, situando-as no espac.o social que e o seu.

A historia cultural, tal como a entendemos, tern por prin-cipal objecto identificar o modo como em diferentes lugares e

Lucien Febvre, «Leur histoire et la notre», Annales d'Histoire Economi-qm et Sociale, 8 (1938), texto recomado em Combats pour I'histoire, Paris,A. Colin, 1953, pp. 276-283.

INTRODUCAO 17

momentos uma dererminada realidade social e construida,pensada, dada a ler. Uma tarefa deste tipo supoe varioscaminhos. O primeiro diz respeito as classificacoes, divisoes edelimitacoes que orgaruzam a apreensao do mundo social comocategorias fundamentals de percepgao e de apreciagao do real.Variaveis consoante as classes sociais ou os meios intelectuais,sao produzidas pelas disposicoes estaveis e partilhadas, propriasdo grupo. Sao estes esquemas intelectuais incorporados quecriam as figuras gracas as quais o presente pode adquirirsentido, o outro tornar-se inteligivel e o espaco ser decifrado.

As representa^oes do mundo social assim construfdas, em-bora aspirem a universalidade de um diagnostico fundado narazao, sao sempre determinadas pelos interesses de grupo queas forjam. Dai, para cada caso, o necessario relacionamento dosdiscursos proferidos com a posicao de quern os utiiiza.

As percepcoes do social nao sao de forma alguma discursosneutros: produzem estrategias e praticas (sociais, escolares,politicas) que tendem a impor uma autoridade a custa deoutros, por elas menosprezados, a legitimar um projecto refor-mador ou a justiflcar, para os proprios individuos, as suasescolhas e condutas. Por isso esta investigacjlo sobre as repre-sentacoes sup5e-nas como estando sempre colocadas numcampo de concorrencias e de. competicoes cujos. desafios seenunciana em termos de poder e de dominacao. As lutas derepresentacoes rem tanta importancia como as lutas economicaspara compreender os mecanismos peios quais um grupo impoe,ou tenta impor, a sua concepcao do mundo social, os valoresque sao os seus, e o seu dommio. Ocupar-se dos conflitos declassificacoes ou de delimitacoes nao e, portanto, afastar-se dosocial — como julgou durante muito tempo uma historia devistas demasiado curtas —, muito pelo contrario, consiste emlocalizar os pontos de afrontamento tanto mais decisivos quantomenos imediatamente materiais3.

Deste modo, espera-se acabar com os falsos debates desenvol-vidos em rorno da partilha, tida como irredutfvel, entre a objec-

Ao formular estas escolhas metodologicas, apoiamo-nos em grandemedida no Crabalho de Pierre Bourdieu, em particular La distinction. Critiquesociale du Jugement, Paris, Minuic, 1979-

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18 INTRODU^AO

tividade das estruturas (que seria o terreno da historia maissegura, aquela que, manuseando documentos seriados, quantifi-caveis, reconstroi as sociedades tais como eram na verdade) e asubjectividade das representagoes (a que estaria ligada uma outtahistoria, dirigida as ilusoes de discursos distanciados do real).Tal clivagem atravessou profundamente a historia, mas tambemoutras ciencias sociais, como a sociologia ou a etnologia, opondoabordagens estruturaiistas e perspectivas fenomenologicas, traba-Ihando as primeiras em grande escala sobre as posicoes e relagoesdos diferentes grupos, muitas vezes identificados com classes, eprivilegiando as segundas o estudo dos valores e dos comporta-mentos de comunidades mais restritas, frequentemente conside-radas homogeneas. Os debates recentes entte os defensores damicrosforia ou dos case studies e os da historia sociocultural serial,herdeira directa da historia social, ilustram bem esta polarizac,aoconstitutiva do campo das ciencias sociais. Tentar ultrapassa-laexige, antes de mais, considerar os esquemas geradores das clas-sificagoes e das percepgoes, proprios de cada grupo ou meio,como verdadeiras instkuigdes sociais, incorporando sob a formade categorias mentais e de representagoes colectivas as demarca-goes da propria organizagao social: «As primeiras categoriaslogicas foram categorias sociais; as primeiras classes de coisasforam classes de homens em que essas coisas foram integradas".» 4

O que leva seguidamente a considerar estas representagoes comoas matrizes de discursos e de praticas diferenciadas — «mesmoas representagoes colectivas mais elevadas so tem uma existencia,isto e, so o sao verdadeiramente a partir do momento em quecomandam actos» 5 — que tem por objective a construgao domundo social, e como tal a definigao contraditoria das identida-des — tanto a dos outros como a sua.

Efectuar um retorno a Marcel Mauss e a Emile Durkheim auto-4 Emile Durkheim e Marcel Mauss, «De quelques formes primitives

de classification. Contribution a 1'etude des representations collectives*,Annee sociologique, 6 (1903), texto recomado em Marcel Mauss, Oeuvres, II,Representations collectives et divenite des civilisations, Paris, Minuit, 1969, pp.13-89, citato p. 83.

Marcel Mauss, "Divisions et proportions de la sociologies Anneesocwlogique, nova serie, 2 (1927), texto retomado in Marcel Mauss, Oeuvres,III, Cohesion sociale et divisions de la sodologis, Paris, Minuit, 1969, pp.178-245, citac.ao p. 210.

INTRODU^AO 19

riza, paradoxalmeate, a pensar naquilo de que a utensilagemconceptual da historia das mentalidades careceu. A nogao de«representac,ao colectiva», entendida no sentido que Ihe atri-buiam, permite, conciliar as imagens mentais claras — aquiloque Lucien Febvre designava por «os materials de ideias» —com os esquemas interiorizados, as categorias incorporadas, queas gerem e estruturam. Aquela nogao obriga igualmente a re-meter a modelagao destes esquemas e categorias, nao paraprocesses psicologicos, sejam eles singulares ou partilhados, maspara as proprias divisoes do mundo social. Desta forma, podepensar-se uma historia cultural do social que come por objecto acompreensao das formas e dos motives — ou, por outras pala-vras, das representagoes do mundo social — que, a revelia dosactores sociais, traduzem as suas posigoes e interesses objecti-vamente confrontados e que, paralelamente, descrevem a socie-dade tal como pensam que ela e, ou como gostariam que fosse.

Nomear estes motives abre um primeiro debate: sera neces-sario identificar como simboios e considerar como «simb6Hcos»todos os signos, actos ou objectos, todas as figuras intelectuaisou representagoes colectivas gragas aos quais os grupos forne-cem uma organizagao conceptual ao mundo social ou natural,construindo assim a sua realidade apreendida e comunicada?A referenda fundadora a Ernst Cassirer, reivindicada pelaantropologia simbolica americana, depois de o ter sido porErwin Panofsky, poderia constituir um incitamenco nessesentido, pois define a fungao simbolica (dita de simbolizagao oude representagao) como uma fungao mediadora que informa asdiferentes modalidades de apreensao do real, quer opere pormeio dos signos linguisticos, das figuras mitologicas e da reli-giao, ou dos conceitos do conhecimento cientiflco6. A tra-digao do idealismo critico designa assim por «forma simbolica»todas as categorias e todos os processes que constroem «o mun-do como representagao» 7. Dai o destinar uma fungao

Ernst Cassirer, La philosofihie des formes symboliqties, 3 tomos, ParisMinuit, 1972, cf. em especial a "Introduction et exposition du probleme»,I, Le langage, pp. 13-58.

7 Id., La philosophse des formes symboliques, op. cit., Ill, La phenomenologiede la connaissance, p. 310, cicando Schopenhauer.

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20 PRATICAS CULTURAIS

universal ao espirito de con junto das produgoes, quaisquer quesejam, provenientes da ordem da representac,ao ou da flgurac.ao;dai, consequentemente, a extensao maxima fornecida ao con-ceiro de simbolo para o qua! remetem codas as formas ou todosos signos gragas aos quais a consciencia constirui a «reali

dade».Propomos que se tome o conceito de representagao num

sentido mais particular e historicamente mais decerminado.A sua pertinencia operatoria para trarar os objectos aqui analisa-dos resulra de duas ordens de razoes. Em primeiro lugar, e claroque a noc,ao nao e estranha as sociedades de Antigo Regime,pelo contrario, ocupa ai urn lugar central. A este respeitooferecem-se varias observances. As definigoes antigas do termo(por exemplo, a do dicionario de Furetiere) manifestam atensao entre duas famiiias de sentidos: por um lado, a represen-ragao como dando a ver uma coisa ausente, o que supoe umadistinc.ao radical entre aquilo que representa e aquiio que erepresentado; por oucro, a representacjlo como exibic,ao de umapresenc,a, como apresentac,ao publica de algo ou de alguem. Noprimeiro sentido, a representac,ao e instrumento de um conhe-cimenco mediato que faz ver um objecto ausente atraves da suasubscituicjio por uma «imagem» capaz de o reconstituir emmemoria e de o figurar tal como ele e. Algumas dessas imagenssao bem mareriais e semeihantes, como os bonecos de cera, demadeira ou de couro, apelidados jusramente de «representa-C,6es», que eram colocados por cima,do feretro real durante osfunerals dos soberanos Franceses e ingieses e que mostravam oque ja nao era visfvel, isto e, a dignidade imortal perperuadana pessoa mortal do rei8. Outras, porem, sao pensadas numregisto diferente: o da relagao simbolica que, para Furetiere,consiste na «representac,ao de um pouco de moral atraves dasimagens ou das propriedades das coisas naturals (...) O leao e osimbolo do valor; a esfera, o da inconstancia; o pelicano, o doamor paternal» 9. Uma relac.ao compreensivel e, entao, postuiada

8 Ernst Kancorowicz, The King's Two Bodies. Study in Medieval PoliticalTheology, Princeton, Princeton University Press, 1957, pp. 419-437.

Furetiere, Dtctzonnaire universel 1690 [data da l.a edicao], artigos•(Representations e «Symbole».

INTRODUCAO 21

entre o signo visivel e o referente por ele significado — o quenao quer dizer que seja necessariamente estavel e univoca.

A reiagao de representac.ao — entendida, deste modo, comorelacionamento de uma imagem presente e de um objectoausente, valendo aquela por este, por Ihe estar conforme— modela roda a teoria do signo que comanda o pensamentoclassico e encontra a sua elaboragao mais complexa com osloglcos de Port-Royal. Por um lado, sao as suas modalidadesvariaveis que permitem distinguir diferentes categorias de signos(certos ou provaveis, naturais ou instituidos, ligados ou separa-dos do que e representado, etc.) e que nos permitem caracterizaro simbolo (em senrido restrito) na sua diferenc.a relativamente aourros signos *°. Por outro lado, ao identificar as duas condigoesnecessarias para que uma relagao desse tipo seja inteligivel — asaber, o conhecimento do signo enquanto signo, no seu distan-ciamento da coisa significada, e a existencia de convengoespartilhadas que regulam a rela^ao do signo com a coisa — n, aLogiqw de Port-Royal coloca os termos de uma questao hisroricafundamental: a da variabilidade e da pluralidade de compreen-soes (ou incompreensoes) das representa^oes do mundo social enatural propostas nas imagens e nos textos antigos.

Por ultimo, nore-se que a distingao fundamental entrerepresentac,ao e represenrado, entre signo e significado, e perver-tida pelas formas de teatralizagio da vida social de AntigoRegime. Todas elas tern em vista fazer com que a identidade doser nao seja ourra coisa senao a aparencia da representagao, istoe, que a coisa nao exista a nao ser no signo que a exibe: «EsteSenhor tern mesmo ar e a representagao daquilo que e» e um dosexemplos de emprego dado por Furetiere. Ao tratar da imagina-cjio, Pascal poe a nu esse funcionamento da «montra» que leva acrer que a aparencia vale pelo real: «Os nossos magistrados ternconhecido bem esse misterio. As suas vestes vermelhas, os seus

Antoine Arnauld e Pierre Nicole, La logique ou I'art de penser, edicaocritica por Pierre Clair e Francois Girbal, Paris, Presses Universitaires deFrance, 1965, Livro 1^ Capitulo IV, pp. 52-54. [Desta obra existe umaedic.ao de bolso, com introduc.ao de Louis Marin, Paris, Flammarion,«Champs», 1970].

11 Ibid., Livro II, Capiculo XIV, pp. 156-160.

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INTRODUCAO 23

— , como corolario da ausencia ou do apagamento da violenciabruta. E no processo de longa duragao, de erradica^ao e demonopolizacao da violencia, que e necessario inscrever a impor-tancia crescente adquirida pelas lutas de representacoes, onde oque esta em jogo e a ordenac_ao, logo a hierarquizacao dapropria esttutura social. Trabalhando assim sobre as representa-C,6es que os grupos modelam deles proprios ou dos outros,afastando-se, portanto, de uma dependencia demasiado estritarelativamente a historia social entendida no sentido classico, ahistoria cultural pode regressar utilmente ao social, ja que fazincidir a sua atencao sobre as estrategias que determinamposi^oes e relacoes e que atribuem a cada classe, grupo ou meioum «ser-apreendido» constitutive da sua identidade.

Deste modo, a noc,ao de representacao ser pode construida apartir das acepc_6es antigas. Ela e um dos conceitos mais im-portantes utilizados pelos homens do Antigo Regime, quandopretendem compreender o funcionamento da sua sociedade oudefinir as operacoes intelectuais que Ihes permitem apreender omundo. Ha a£ uma primeira e boa razao para fazer dessa nogaoa pedra angular de uma abordagem a nfvel da historia cultural.Mas a razao e outra. Mais do que o conceito de mentalidade,

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social: em primeiro lugar, o trabalho de classificacao e dedelimitate que produz as configuracoes intelectuais multiplas,atraves das quais a realidade e contraditoriamente construidapelos diferentes grupos; seguidamente, as praticas que visamfazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneirapropria de estar no mundo, significar simbolicamente um esta-tuto e uma posigao;- por fim, as formas institucionalizadas eobjectivadas gragas as quais uns «representantes» (instanciascolectivas ou pessoas singulares) marcam de forma visivel e per-petuada a existencia do grupo, da classe ou da comunidade16.

A problematica do «mundo como representacao^, moldadoatraves das series de discursos que o apreendem e o estruturam,conduz obrigatoriamente a uma reflexao sobre o modo como

l 6Cf. a utilizac.ao da no?ao de representacao in Luc Bolcansky, Lescadres. La formation d'un groups social, Paris, Minuit, 1982, pp. 57-58.

22 PRATICAS CULTURAIS

arminhos, que os envolvem em mantos felinos, os palacios ondeexercem a justica, as flores de lis, todo esse augusto aparelhoe muito necessario; e se os medicos nao tivessem sotainas emulas e os doutores nao tivessem barretes quadrados e becasdemasiado largas e de quatro panos, nunca teriam enganado omundo, que nao consegue resistir a essa montra tao autentica. Seaqueles ultimos detivessem a verdadeira justica e se os medicospossuissem a verdadeira arte de curar, nao teriam necessidade debarretes quadrados; a majestade dessas ciencias seria por si pro-pria suficientemente veneravel. Mas lidando apenas com cienciasimaginarias, e-lhes necessario lancar mao desses vaos instrumen-tos que impressionam a imaginacao daqueles com que tem detratar; e e deste modo, que se dao ao respeko» 12. A relacao derepresentacao e assim confundida pela acc.ao da imaginacao,«essa parte dominante do homem, essa mestra do erro e dafalsidade» 13, que faz tomar o logro pela verdade, que ostenta ossignos visrveis como provas de uma realidade que nao o e. Assimdeturpada, a representagao transforma-se em maquina de fabricode respeito e de. submissao, num instrumento que produzconstrangimento interiorizado,- que e necessario onde quer quefalte o possivel recurso a uma violencia imediata: «S6 os homensde guerra nao se mascaram dessa maneira, porque efecrivamente0 seu papel e mais essencial, eles afirmam-se pela forca, enquan-to os outros o fazem por meio de dissimulacpes 14.»

A reflexao sobre a sociedade de corte, introduzida neste volu-me a partir de uma leitura do livro classico de Norbert Elias,retoma esta perspectiva de Pascal de duas maneiras: quando define,na sociedade antiga, a posicao «objectiva». de cada individuo comoestando dependente do credito atribuido a representacao que ele fazde si proprio por aqueles de quem espera reconhecimento; quandocompreende as formas de dominacao simbolica, por meio do

1 L /

12 Pascal, Pensees, 104, in Ouvres completes, texco estabelecido porJacques Chevalier, Paris, Bibliocheque de la Pleiade, 1954, p. 1118.

"Ibid., p. 1116.l*lbid., p. 1118.15 La Bruyere, Les caracteres, Paris, Garnier/Flammarion, 1965, «Du

merite personnel", 27, pp. 107-108.

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24 PRATICAS CULTURAIS

uma figuragao desse tipo pode ser apropriada pelos leitores dostextos (ou das imagens) que dao a ver e a pensar o real. Dai,neste livro e noutros, mais especificamente coasagrados aspraticas da leicura i7, o interesse manifestado pelo processo porintermedio do qual e historicamente produzido um sentido ediferenciadamente construi'da uma signifkagao. Tal tarefa cru-za-se, de maneira bastante evidente, com a da hermeneutica,quando se esforga por compreender como e que um rexto pode«aplicar-se» a situacao do leitor, por outras palavras, comoe que uma configuragao na'rrativa pode corresponder a umarefiguragao da propria experiencia. No ponto de articulagaoentre o mundo do texto e o mundo do sujeito coloca-se neces-sariamente uma teoria da leitura capaz de compreender a apro-priagao dos discursos, isto e, a maneira como estes afectam oleitor e o conduzem a uma nova norma de compreensao de siproprio e do mundo. E sabido como Paul Ricoeur quis cons-rruir essa teoria da leitura apoiando-se, por um lado,-nafenomenologia do acto de ler; por outro, na estetka da recep-gao 1S. O objective visado era duplo: pensar a efectivagao dotexto na sua leitura como a condigao para que se revelem assuas possibilidades semanticas e se opere o trabalho de refigura-gao da experiencia; compreender a apropriacuo do rexto comouma mediagao necessatia a constituigao e a compreensao de simesmo 19. Todo o trabalho que se propoe identificar o modocomo as configuragoes inscritas nos textos, que dao lugar aseries, construiram representagoes-aceites ou impostas domundo social, nao pode deixar de subscrever o projecto e colo-car a questao, essenciai, das modalidades 'da sua' recepgao.

E na resposta a tal questao que deve ser marcado um dis-tanciarnento em relacad a perspectiva hermeneutica. Com-preender na sua historicidade as apropriagoes que se apoderam

1 Roger Chartier, Lectures et lecteurs dans la.France d'Ancien Regime,Paris, Seuil, 1987; Idem, The Cultural Uses of Print in Early; Modern France,Princeton, Princecon University Press; 1987.

18 Paul Ricoeur, Temps et recit, III, Le temps raconte, Paris, Seuil, 1985,pp. 243-259.

Id., «La fonction hermeneucique de la distanciacion», Da texte afaction. Essais d'htrmeneuttque, II, Paris, Seuil, 1986, pp. 101-117.

INTRODU<;AO 25

das configurag5es textuais exige o rompimento com o conceitode sujeito universal e abstracto tai como o utilizam a fenome-nologia e, apesar das aparencias, a estetica da recepgao. Ambaso constroem quer a partir de uma invariancia trans-historica daindividualidade, considerada identica atraves dos tempos, querpela projecgao no universal de uma singularidade que e a deum eu ou de um nos contemporaneo. Ai se situa, de formabem evidente, o ponto de discordancia relativamente a umaoutra maneira de pensar que, com Norbert Elias, coloca adescontinuidade fundamental das formacoes sociais e culturais,logo a das categorias filosoficas, das economias psiquicas, dasformas de experiencia. As modalidades do agir e do pensar,como escreve Paul Ricoeur, devem ser sempre remetidas paraos lagos de interdependencia que regulam as relagoes entre osindividuos e que sao moldados, de diferentes maneiras emdiferentes situagoes, pelas estruturas do poder. Pensar assim aindividualidade nas suas variagoes historicas equivale nao so aromper com o conceito de sujeito universal, mas tambem a ins-crever num processo a longo prazo — caracterizado pela trans-formagao do Estado e das relagoes entre os homens — as muta-goes das estruturas da personalidade. Desta maneira, pode serfundada na historia de longa duragao das sociedades europeias aintuigao de Lucien Febvre e da historia das mentalidades.quanto a disparidade das utensilagens mentals.

Aplicada a teoria da ieitura, esta perspectiva leva a observarquao insatisfatorias sao as abordagens que consideram o acto deler como uma relagao transparente entre o «texto» — apresen-tado como uma abstracgao, reduzido ao seu conteudo semanti-co, como se existisse fora dos objectos que o oferecem a deci-fragao — e o «leitor» — tambem ele abstracto, como se aspraticas atraves das quais ele se apropria do texto nao fossemhistorica e socialmente variaveis. Os textos nao sao depositadosnos objectos, manuscritos ou impresses, que o suportam comoem receptaculos, e nao se inscrevem no leitor como o fariamem cera mole. Considerar a leitura como um acto concretorequer que quaiquer processo de construgao de sentido, logo deinterpretagao, seja encarado como estando situado no cruza-mento entre, por um lado, leitores dotados de competencias

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26 PRATICAS CULTURAIS

especificas, identificados pelas suas posigoes e disposic.6es,caracterizados peia sua pratica do ler, e, por outro lado, textoscujo significado se encontra sempce dependente dos dispositi-vos discursivos e formais — chamemos-lhes «tipograficos» nocaso dos textos impresses — que sao os seus. Esta constatagaopermite tragar um espac.0 de trabalho, esboc,ado nos estudosaqui reunidos, aptofundado noutro local, e que situa a produ-C,ao do sentido, a «aplicac.ao» do texto ao leitor como umarelagao movel, diferenciada, dependente das variances, simulta-neas ou separadas, do proprio texto, da passagem a impressaoque o da a ler e da modalidade da sua leitura (silenciosa ouoral, sacralizada ou laicizada, comunitaria ou solitaria, publicaou privada, elementar ou virtuosa, popular ou letrada, etc.)20.

A no^ao de apropriagao pode ser, desde logo, refbrmulada ecolocada no centto de uma abordagem de historia cultutal quese prende com praticas diferenciadas, com utilizac.6es contrasta-das. Tal reformulac,ao, que poe em relevo a pluralidade dosmodos de emprego e a diversidade das leituras, que nao forgamo texto, distancia-se do sentido que Michel Foucault dava aoconceito quando considerava «a apropriac.ao social dos discur-sos» como um dos procedimentos mais importantes atraves dosquais esses discursos eram confiscados e submetidos, colocadosfora do alcance de todos aqueles cuja competencia ou posic,aoimpedia o acesso aos mesmos21. Esta reformulac.ao afasta-seigualmente do sentido que a hermeneutica da a apropriac.aoentendida como o momento do ttabalho de refigurac.ao daexperiencia fenomenologica, postulada como universal, a partirde configuragoes textuais particulares22. A apropriac,ao, talcomo a entendemos, tern por objectivo uma historia social dasinterpretagoes, remetidas'p'ara as suas determinacoes fundamen-tals (que sao sociais, institucionais, culturais) e inscritas naspraticas especificas que as produzem. Conceder deste modoatenc.ao as conduces e aos processes que, muito concretamente,

20 Roger Chartier (sob a direc^ao de), Les usages de Vimpnmi (XVe-XlXeesiede), Paris, Fayard, 1986.

2 'Michel Foucaulc, L'ordre du dhcaun, Paris, Gallimacd, 1971, pp.45-47.

22 Paul Ricoeur, Temps et recit, III, op. tit. p. 229.

1NTRODUCAO 27

determinam as operagoes de construc.ao do sentido (na rela^aode leitura, mas em muitas outras tambem) e reconhecer, contraa antiga historia intelectual, que as inteligencias nao saodesencarnadas, e, contra as correntes de pensamento que postu-lam o universal, que as categorias aparentemente mais invaria-veis devem ser construfdas na descontinuidade das trajectoriashistoricas.

Representagao, pratica, apropria^ao: e a partir destas tresno^oes que este livro e construi'do. Mas que nao haja enganos: areflexao efectuada sobre estes concehos nao foi de modonenhum anterior a escrita dos estudos de casos coligidos.Caminharam as duas iado a lado, num dialogo constante entrea confrontac.ao com o documento e a exigencia de eiucida^aometodologica. No termo (provisorio) do percurso, espera-seque as questoes postas pelo primeiro texto do volume possamHear, se nao resolvidas, pelo menos formuladas com mais rigor.A definigao de historia cultural pode, nesse contexto, encon-trar-se alterada. Por um lado, e precise pensa-la como a analisedo trabalho de representagao, isto e, das classificagoes e dasexclusoes que constituem, na sua diferenga radical, as configu-ragoes sociais e conceptuais proprias de um tempo ou de umespac.o. As estruturas do mundo social nao sao um dadoobjectivo, tal como o nao sao as categorias intelectuais epsicologicas: todas elas sao historicamente produzidas pelaspraticas articuladas (polfticas, sociais, discursivas) que cons-troem as suas figuras. Sao estas demarcates, e os esquemas queas modelam, que constituem o objecto de uma historia culturallevada a repensar completamente a relac.ao tradicionalmentepostulada entre o social, identificado com um real bem real,existindo por si proprio, e as representac.6es, supostas comoreflectindo-o ou dele se desviando.

Por outro lado, esta historia deve ser entendida como oestudo dos processes com os quais se constroi um sentido.Rompendo com a antiga ideia que dotava os textos e as obrasde um sentido intrfnseco, absolute, unico — o qua! a criticatinha a obrigagao de identifkar —, dirige-se as praticas que,pluralmente, contraditoriamente, dao significado ao mundo.Dai a caracterizagao das praticas discursivas como produtoras de

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28 PRATICAS CULTURAIS

ordenamento, de afirmacao de distancias, de divisoes; daio reconhecimento das praticas de apropriacao cultural comoformas diferendadas de interpretac.ao. Umas e outras tern as suasdeterminac_6es socials, mas as ultimas nao se reduzema sociografia demasiado simples que, durante muiro tempo, ahistoria das sociedades ditou a das culturas. Compreender estesenraizamentos exige, na verdade, que se tenham em conta asespecificidades do espac.o proprio das praticas culturais, que naoe de forma nenhuma passivel de ser sobreposro ao espago dashierarquias e divisoes sociais.

Na fidelidade critica a historia cultural dos Annales, muitasvezes deslgnada «das mentalidades», a reflexao aqui apresentadapretendeu ilustrar um percurso inteiectuai definido por doisobjectives interligados: por um lado, submeter a exame oslegados interiorizados e os postulados nao questionados de umaforte tradicjio historiografica, inspiradora e reivindicada; poroutro, propor, gragas ao apoio de algumas obras importantes —sociologicas e filosoflcas —, um espaco de trabalho entre textose lekuras, no intuito de compreender as praticas, complexas,multiplas, diferenciadas, que constroem o rnundo como repre-sentacjio.

CAPITULO I

Historia inteiectuai e historia das mentalidades:

uma dupla reavalia<;ao

Equacionar os problemas da historia inteiectuai constituitarefa embarac,osa por multiplas razoes. A primeira prende-secom o proprio vocabulario. Com efeito, em nenhum outrocampo da historia existe tal especificidade nacional das designa-coes utilizadas e tamanha dificuldade em adapta-las, ou maissimplesmente em traduzi-las para uma outra lingua e paraoutro contexto inteiectuai1. A historiografia americana conheceduas categorias, cujas relac/oes se encontram pouco especificadase tern sido sempre problematicas: a inteiectuai history, surgidacom a «new history» dos infcios do seculo e constitufda comodesignate de uma aerea particular de investigacao, com PerryMiller, e a history of ideas, criada por A. Lovejoy para definiruma disciplina que possui o seu objecto proprio, o seu progra-ma e os seus metodos de investigac.ao, o seu lugar institucional(em especial devido ao Journal of the History of Ideas, fundadoem 1940 por Lovejoy). Mas nos diferentes paises europeus,nenhuma destas duas designates se impos inteiramente: naAlemanha, a Geistesgeschichte* continua a ser dominante, emItalia nao aparece uma Storia intellettuale, nem com Cantimori.Em Franga, a historia das ideias praticamente nao existe, nemcomo noc.ao, nem como disciplina (e sao na verdade historiado-res da literatura, como Jean Ehrard, que reivindicaram — comdiividas e de maneira prudente, alias — o termo), e a historiainteiectuai parece ter chegado demasiado tarde para substituir asdesignacoes tradicionais (historia da filosofia, historia literaria,

Vd. as primeiras paginas do artigo de F. Gilbert, «IntellectualHistory: its Aims and Methods*, Daedalus, Historical-Studies Today, Invernode 1971, pp. 80-97.

* Literalmente, «Historia do espirito* (N. da T.).

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30 HISTORIA INTELECTUAL

historia da arte, etc.), tendo permanecido sem forc.apara se opora um novo vocabulario, forjado no essencial pelos historiadoresdos Annales: historia das mentalidades, psicologia bistorica, historiasocial das ideias, historia sociocultural, etc. For outro lado, otermo historia das mentalidades e de dificil exportac.ao, parece serpouco consistence noutras lihguas que nao o Frances, constituin-do a fonte de numerosas confusoes, o que leva a nao traduzir aexpressao e a reconhecer assim a irredutfvel especificidade deuma maneira nacional de pensar as questoes.

As certezas lexicais das outras historias (economica, social,politica), a historia intelectual opoe, portanto, uma duplaincerteza respeitante ao vocabulario que a designa: cada historio-grafia nacional possui a sua propria conceptual idade e, em cadauma delas, entram em competic.ao diferentes noc,5es, maldiferenciadas umas das oucras.

Mas, por detras dessas difetentes palavras havera seme-lhanc.as entre as coisas? Ou, noutros termos, o objecto que elasdesignam de maneiras tao diversas sera unico e homogeneo?Nada parece menos certo. Refiram-se, a tftulo de exemplo,duas tentativas taxionomicas: ,para Jean Ehrard, a bistoria dasideias cobre tres historias — «historia individualista dos gran-des sistemas do mundo, historia dessa realidade colectiva e di-fusa que e a opiniao, historia escmtural das formas de pensa-mento e de sensibilidade» 2; para Robert Darnton, a historiaintelectual (intelectual history) compreende: «a historia das ideias(o estudo do pensamento sistematico, geralmente por tentativasfilosoficas), a historia intelectual propriamente dita (o estudodo pensamento informal, das vagas de opiniao e das diuamicasde alfabetizac,ao), a historia social das ideias (o estudo dasideologias e da difusao de ideias) e a historia cultural (o estudono sentido antropologico, incluindo visoes do mundo e mmtali-dades colectivas)» 3. Num vocabulario diferente, estas definic,6es

2J. Ehrard, «Hiscoire des idees et histoire litteraire», in Problems etmethodes de I'htstoire litteraire. Colloque 18 novembre 1972, Publications de laSociete d'Histoire Litteraire de la France, Paris, A. Colin, 1974, pp. 68-80.

3 Era ingles, no original: «che history of ideas (the study of systematicthought, usually in philosophical tentatives), intellectual history proper (thestudy of informal thought, climates of opinion and literacy movements), thesocial history of ideas (the study of ideologies and idea diffusion) and cultural

CAPITULO I 31

designam, no fundo, a mesma coisa: o campo da historia ditaintelectual cobre, de facto, o conjunto das formas de pen-samento e o seu objecto nao e, a partida, mais precise do queo da historia social ou economica.

Para alem das designates e das definigoes importam, acimade tudo, a ou as maneiras como, em dado momento, os his-toriadores delimitam esse territorio imenso e indeciso e tratamas unidades de observac.ao assim constituidas. Situadas no meiode oposic.6es intelectuais e ao mesmo tempo institucionais,essas diversas maneiras determinam cada uma o seu objecto, asua utensilagem conceptual, a sua metodologia. No entanto,cada uma e portadora, explicitamente ou nao, de uma represen-tac,ao da totalidade do campo historico, do lugar que pretendeai ocupar e do deixado ou recusado as outras. A incerteza e adispersao do vocabulario de designacjio remetem, sem sombrade dtivida, para essas lutas intradisciplinares ou inrerdisciplina-res cujas configuragoes sao proprias de cada campo de formasintelectuais e onde o que esta em jogo e uma posi^ao de hege-monia que e, antes de mais, a hegemonia de um lexico.

Sao, pois, algumas das oposic,6es que moldaram e dividi-ram de maneira original a historia intelectual francesa quepretendemos aqui expor, fazendo-o na consciencia de umadupla limitac,ao: por um lado, por falta de investigac,ao sobreestas materias, nao poderemos reconstituir inteiramente osdesafios institucionais ou politicos subjacentes aos confrontosmetodologicos; por outro, devido a nossa posi^ao pessoal,privilegiaremos for^osamente certos debates, ern especial osdesenrolados em torno dos Annales, de 1930 aos nossos dias,desequilibrando talvez assim o quadro de conjunto.

history (the study of cultute in the anthropological sense, including world--views and collective mentalites», R. Darnton, "Intellectual and CulturalHistory», in The Past Before Us: Contemporary Historical Writing in the UnitedSlates, direcc.ao de M. Kammer, Ithaca, Cornell University Press, 1980,p. 337.

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HISTORIA INTELECTUAL

Os primeiros Annales e a Historia intelectual

No seculo XX, a trajectoria intelectual em Franca (no duplosentido das suas mutac.6es tematicas ou metodologicas e damudanca das suas posicoes no campo disciplinar da historia) foiem grande medida comandada por um discurso que Ihe eraexterior: o sustentado por historiadores que, no periodo quemediou entre as duas Guerras Mundiais, formularam umaoutra maneira de escrever a historia. E, portanto, necessariopartir dai e tentar compreender como os Annales e, em primei-ro piano, Lucien Febvre e Marc Bloch, pensaram o que deviaser a historia intelectual. O facto tern importancia, nao poruma qualquer celebrac.ao retrospectiva, mas porque essa abor-dagem da historia das ideias se tornou gradualmente dominan-te para os historiadores, na propria medida em que a comuni-dade de historiadores designada, sem duvida abusivamente, por«escola» dos Annales, se tornava dominante, de infcio intelec-tualmente (nos anos trinta), depois institucionalmente (apos

1945)4.Para Febvre, pensat a historia intelectuai e, antes de mais,

reagir perante os escritos que, na sua epoca, dela se reclamam.Sob esse ponto de vista, a conrinuidade e grande entre asprimeiras criticas publicadas na Revue de Syntbese Historique deHenri Berr, antes de 1914, e as que escreve para os Annalesdurante e apos a Segunda Guetra Mundial. Citem-se, porexemplo, as duas longas recensoes-que consagra, na revista deBerr, em 1907, ao livro de L. Delaruelle sobre Bude e, em1909, ao de E. Droz sobre Proudhon. Encontram-se ai formu-ladas duas interrogates que iriam fornecer os ptoptios funda-mentos dos seus grandes livros, Luther, em 1929, e Rabelais,em 1942. Antes de mais, poderao teduzir-se as caregotiastradicionais, utilizadas pela historia das ideias (Renascimento,Humanismo, Reforma, etc.), os pensamentos por vezes contta-ditorios, ftequentemente complexos e em todo o'caso moveis,

4 Cf. J. Revel, «The Annales: Continuities and Discontinuities*,Review, vol. I, n.° 3/4, Invetno/Primavera de 1978, pp. 9-18 e «Histoire etsciences sociales: les paradigmes des Annales, Annales E.S.C., 1979,pp. 1360-1376.

CAPITULO I 33

de um homem ou de um meio? As designates retrospectivas eclass ificativas sao portadoras de contrasensos e traem a antigavivencia psicologica e intelectual: «Assim, por exemplo, aodesignar pelo nome de Reforma, nesse infcio do seculo [XVI]0 esforc.o de renovacao religiosa, de renascimento cristao de umLefebvre e dos seus discipulos, nao estaremos ja a falsear, ao in-terpreta-la, a realidade psicologica de entao?» 5. pesembaracan-do-se das etiquetas que, pretendendo identificar os pensamen-tos antigos, os mascaram na realidade, a tarefa dos «historiado-res do movimento intelectual» (como escreve Febvre) e acimade tudo reencontrar a originalidade, itredutivel a qualquerdefmic,ao a priori, de cada sistema de pensamento, na suacomplexidade e nas suas mudancas.

O esforc,o para pensar a telagao das ideias (ou das ideologi-as) e da reaiidade social atraves de categories que nao as dainfluencia ou do determinismo e a segunda preocupagao expres-sa por Febvre ja antes de 1914'. Dela e testemunho este textode 1909 acerca do proudhonismo: «Nao existem, no sentidoproprio do termo, teorias 'criadoras', potque desde o momentoem que uma ideia, por muito fragmentaria que seja, se realizouno domfnio dos factos, da maneira mais imperfeita que sequeira, nao e a ideia que conta a partir de entao, e a instituicaocolocada no seu lugar, no seu tempo, incorporando, uma. .redecomplicada e movel de factos sociais, que ptoduzem e sofremregularmente mil ac^oes diversas e mil reaccoes» 6. Ainda queos processes de «encarnac.ao» das ideias sejam indubitavelmentemais complexos do que Febvre deixa aqui supor, o facto e queele afirma claramente a sua vontade de romper com toda umatradicjio de historia intelectual (figura invertida de um marxis-mo simplificado) que deduzia de alguns pensamentos volunta-ristas o conjunto dos processes de transforma^ao social. ParaFebvre, o social nao poderia, de modo nenhum, dissolver-se

L. Febvre, «GuiIlaume Bude et les origines de 1'humanisme ftangais.A propos d'ouvrages recents», Revue de Synthese Historique, 1907, textoretomado in Pour une htstoire a part entiere, Paris, SEVPEN, 1962,p. 708.

6 Id., «Une question d'influence: Proudhon et les syndicalismes desannees 1900-19l4», in RSH, 1909, texto retomado in Pour une hisloirs apart entiere, off. cit., p. 785.

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34 HISTORIA 1NTELECTUAL

nas ideologias que tem por objectivo molda-lo. Ao estabelecerassim, nesses textos de juventude, um duplo distanciamento,por um lado encre as antigas maneiras de pensar e as nocoes,em regra bastante pobres, nas quais os historiadores preten-diam cataloga-las, e, por outro, entre esses pensamentos anti-gos e o terreno social em que se inscreviam, Lucien Febvreindicava o caminho a seguir para uma analise historica quetomaria por modelo as describes dos factos de mentalidade,tais como os construiam entao os sociologos durkheimianos ouos etnologos que trabalhavam na esteira de Levy-Bruhl.

Quarenta anos mais tarde, o torn tornou-se mais critico emais mordaz contra uma historia das ideias que Febvre apreen-de como imobilizada nas suas abstraccoes. Em 1938, maltrataassim os historiadores da filosofla: «De todos os trabalhadoresque utilizam, precisado ou nao por algum epfteto, o qualifica-tivo generico de historiadores, nao ha quern, aos nossos olhos,justiflque se-lo por qualquer meio~— salvo, muitas vezes,aqueles que, ao "esforgarem-se por repensar por sua contasistemas as vezes yelhos de varios seculos, sem a menorpreocupacjio em assinalar a sua relacao com outras manifesta-$6es da epoca que os viu nascer, se encontram a fazer precisa-mente o contrario do exigido por um metodo de historiadores.E que, perante essas sequencias de conceitos saidos de inteli-gencias desencarnadas e que vivem, depois, a sua propria vida,fora do tempo e do espaco, entrelacam estranhas cadeias deaneis simultaneamente irreais e feGhados...» 7.

Contra a historia intelectual da epoca, a crftica e, portanto,dupla: porque isola as ideias ou os sistemas de pensamento dascondigoes que permitiram a sua producjio, porque os separaradicalmente das formas de vida social, essa historia desencar-nada institui um universe de abstraccoes onde o pensamentosurge como nao tendo limites, ja que sem quaisquer dependen-cias. Ao fazer a apreciagao critica — com admiracao — do livrode Etienne Gilson La Philosophie au Moyen Age, Febvre retoma

7 Id., «Leuc histoire et la notre», Annales d'Histoire Economique stSociale, 1928, cexto recomado in Combats pour I'Histoire, Paris, A. Colin,1953, p. 278 [tradu^ao incompleta desta colectanea de Lucien Febvre com otitulo Combates peta Historia, 2 vols., Lisboa, Presenga, 1977].

CAPITULO I 35

em 1948 essa ideia para ele central: «Nao se trata de subesti-mar o papel das ideias na historia. E ainda menos de o subor-dinar a acc_ao dos interesses. Trata-se de mostrar que umacatedrai gotica, o mercado central de Ypres... e uma dessasgrandes catedrais de ideias como as que Etienne Gilson nosdescreve no seu livro — sao filhos de um mesmo tempo.Irmaos criados no mesmo Iar» 8. Sem a explicitar nem ateorizar, Febvre sugere aqui uma leitura que postula, para umadada epoca, a exisrencia de «estruturas de pensamento» (otermo nao e usado por Febvre), comandadas elas proprias pelasevolucoes socioeconomicas, que organizam as constru^oes inte-lectuais como as producoes artfsticas, as praticas colectivascomo os pensamentos fiiosoflcos.

Arquitectura e escolastica: o proprio torn da observacao deFebvre convida a uma aproximagao ao livro seu contemporaneode Erwin Panofsky Gothic Architecture and Scolasticism (objectode uma serie de conferencias em 1948 e publicado em 1951)9.Ambos, de modo paralelo e rriuito provavelmente sem influen-cia reciproca, tentam na mesma altura dotar-se dos meiosintelectuais que permitiam pensar esse «espirito do tempo»,esse «Zeitgeist» que, por exemplo, fundamenta todo o percur-so de Burckhardt, mas que para Panofsky, como para Febvre,mais do que aquilo que explica, e justamente aquilo que enecessario explicar. Assim sendo, e cada um a sua maneira,tomam as suas distancias relativamente as nocoes que ate entaosustentavam implicitamente todos os trabalhos de historiaintelectual, a saber:

1. o postulado de uma relacao consciente e transparenteentre as intencoes dos ptodutores intelectuais e os seiis produtos;

2. a atribuicao da criacao intelectual (ou estetica) unica-mente a capacidade de invencao individual, logo a sua liberda-de — ideia em que se baseia a pr6pria logica, tao cara a certahistoria das ideias, da procura do precursor;

Id., «Doctrines et societes. Etienne Gilson et la philosophic du XIV.siecle», Annales E.S.C., 1948, texto retomado em Combats pour I'Htsioire,op. tit., p. 288.

E. Panofsky, Architecture gothique et pensee scolastique, precedido deL'abbe Suger de Saint Denis, traduc.ao e posfacio de P. Bourdieu, Paris,Minuit, 1967.

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36 HISTORIA INTELECTUAL

3. a explicagao das concordancias detectadas entre asvarias produgoes intelectuais (ou artisticas) de um periodo,quer pelo jogo .dos emprestimos e das influencias (oucraspalavras-mestras da historia intelectuai), quer pelo remeter paraum «espirito do tempo*, conjunco complexo de tracos filosofi-cos, psicologicos e esteticos. Pensar de outra forma estas variasrelates (entre a obra e o seu criador, entre a obra e o seutempo, entre as diferentes obras da mesma epoca) exigia que seforjassem novos conceitos: para Panofsky, o de habitos mentals(ou habitus) e 0 de forc.a criadora de habitos (habit-forming force);para Febvre, o de utensilagem mental. Em ambos os casos,devido a estas novas no^oes, ganhava-se uma distancia relativa-mente aos processes habituais da historia intelectual e, porisso, o seu proprio objecto encontrava-se deslocado.

No seu Rabelais, publicado em 1942, Febvre nao define autensiiagem mental, mas caracteriza-a do seguinte modo: «Acada civilizacao, a sua ucensilagem mental; mais ainda, a cadaepoca de uma mesma civilizacao, a cada progresso (quer dastecnicas, quer das ciencias) que a caracteriza» — uma utensila-gem renovada, um pouco mais desenvolvida para certas utiliza-C.6es, um pouco menos para outras. Uma utensilagem mentalque essa civilizacao, que essa epoca, nao esta segura da capaci-dade de transmitir, integralmente, as civilizac.6es, as epocasque Ihe vao suceder, podendo conhecer mutilacoes, retrocessos,deformagoes importantes. Ou, pelo contrario, progresses, enri-quecimentos, novas complicacies. .A utensilagem vale pelacivilizagao que soube fotja-la; vale pela epoca que a uciliza; naovale pela eternidade, nem pela humanidade: nem sequer pelocurso restrito de uma evoiucjio interna de uma civiliza^aow 10.

O que equivalia a afirmar tres coisas: em primeiro lugar, nasequencia do Levy-Bmhl de La mentalite primitive (1922), queas categorias do pensamento nao sao de modo algum universaise, por isso, estao longe de ser redutfveis as utilizadas peloshomens do seculo XX; seguidamente, que as maneiras depensar dependem, acima de tudo, dos instrumentos materiais

' °L . Febvre, Le Probleme de I'imroyance au XV!e siecle. La religion deRabelais, 1942, reed., Paris, Albin Michel («L'Evolution de I'Huraanite»),1968, pp. 141-142.

CAPITULO I 37

(as tecnicas) ou conceptuais (as ciencias) que as tornam possi-veis; por flm — contra um evolucionismo ingenuo — que naoexiste um progresso continue e necessario (definido como umapassagem do simples ao complexo) na sucessao das diferentesutensilagens mentals. Para compreender o que, para Febvre,designa a propria nocao de utensilagem mental, podem serinvocados dois textos: por um lado, o tomo primeiro deL'-Encyclopedie frangaise, publicado em 1937, com o titulo L'Ou-tillage mental. Pensee, langage, mathematique; por outro, o segun-do livro da segunda parte de Rabelais. O que define nessaspaginas a utensilagem mental e o estado da lingua, no seulexico e na sua sintaxe, os utensdios e a linguagem cientificadisponfveis, e tambem esse «suporte sensivel do pensamento»que e o sistema das percepc.6es, cuja economia variavel coman-da a estrutura da afectividade: «Tao proximos de nos na aparen-cia, os contemporaneos de Rabelais estao ja bem longe por todasas suas pertenc.as intelectuais. E a sua propria estrutura nao eraa nossa» :' (o sublinhado e nosso). Nurna dada epoca, o cruza-mento desses varios suportes (lingufsticos, conceptuais, afecti-vos) dirige as «maneiras de pensar e de sentir» que delineiamconfiguracoes incelectuais especificas (por exemplo, sobre oslimites entre o possivel e o impossivel ou sobre as fronteirasentre o natural e o sobrenarural). • -

A tarefa primeira do historiador, como do ecnologo, e, por-tanto, reencontrar essas representacoes antigas, na sua irredutivelespeciflcidade, isto e, sem as envolver em categorias anacronicasnem as medir pelos padroes da utensilagem mental do seculoXX, entendida implicitamente como o resultado necessario deurn progresso contfnuo. Ai, mais uma vez, .Febvre reencontraLevy-Bruhl para nos por de sobreaviso contra uma leituraerronea dos pensamentos antigos. A prova e a semelhan(;a entre aintroducao de La mentalite primitive («Em vez de nos substitui-rmos em imagina^ao aos primitives que estudamos, e de osfazerrnos pensar como nos pensariamos se estivessernos no seulugar, o que so pode conduzir a hipoteses quanto muito vero-simeis e quase sempre felsas, esforcemo-nos, pelo contrario, por

11 Ibid., p. 394

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38 HIST6RIA INTELECTUAL

nos pormos em guarda contra os nossos proprios habitos mentalse tratemos de descobrir os dos primitives atraves da analise dassuas representacoes colectivas e das ligacoes entre essas represen-tacoes* u), e as primeiras paginas de urn livro publicado porFebvre em 1944, Amour sacre, amour profane. Autour de I'Heptame-ron («A esses antepassados, emprestar candidamente conheci-mentos de facto — e, portanto, materials de Ideias — que todospossuimos, mas que para os mais sabios de entre eles eraimpossfvel obter; imitar tantos bons missionaries que, emtempos, regressaram maravilhados das 'Unas', pois todos osselvagens que tinham encontrado acreditavam em Deus (maisurn pequeno passe, e tornar-se-iam autenticos cristaos); dotar-mos os contemporaneos do papa Leao, com uma generosidadeimensa, das concepcSes do universe e da vida que a nossa cienclapara nos forjou e cujo teor e tal que nenhum dos seus elementos,ou quase, habitou aiguma vez o espirito de um homem daRenascenca — porem, contam-se peios dedos os faistoriadores, erefiro-me aos de maior envergadura, que recuam perante taldeformacao do passado, cal mutilacao da pessoa humana na suaevolucao. E isto, sem duvida, por nao terem posto a si propriosa questao que colocamos acima, a questao da inteligibilidade.Na verdade, um homem do seculo XVI deve ser inteligivel naorelativamente a nos, mas aos seus contemporaneos» I3).

Todavia, a nocao de utensilagem mental, tal como e utili-zada por Febvre, apresenta um certo numero de diferengas emrelacao aos conceitos, ainda que proximos, aplicados na mesmaaltura por Panofsky. Antes de mais, a propria palavra utensila-gem (ou a expressao «utensilios mentals*, as vezes empregue porFebvre), que sugere a existencia quase objectivada de umapanoplla de instrumentos intelectuais (palavras, simbolos,conceitos, etc.) a disposicao do pensamento, contrasta com amaneira como Panofsky define o habito mental, conjunto deesquemas inconscientes, de principios interiorizados que dao asua unidade as maneiras de pensar de uma epoca, qualquer que

12 L. Levy-Bruhl, La Mmtalite primitive, 1922, reed., Paris, Retz, 1976,p. 41.

13 L. Febvre, Amour sacre, amour profane. Autour de I'Ueptameron, 1944,reed., Paris, Gallimard («Idees»), 1971, p. 10.

CAPITULO I 39

seja o objecto pensado. Nos seculos XII e XIII, por exempio, saoos principios de clarificacao e da condliacao dos contraries queconstituem um modus operandi escolastico cujo campo de aplica-gao nao se limica a construcao teologica. Deste primeiro afas-tamento decorre um segundo. Com Febvre, a utensilagem mentalque podiam manipular os homens de uma epoca e pensada comoum determinado stock de «materials de ideias» (para retomar a suaexpressao). Desde logo, o que diferencia as mentalidades dosgrupos sociais e, acima de tudo, o uso mais ou menos alargadoque eles fazem dos «utensilios» disponiveis: os mais conhecedoresaplicarao a quase totalidade das palavras ou dos conceitosexistentes; os mais desprovldos so utilizarao uma infima parte dautensilagem mental da sua epoca, limitando assim, comparativa-mente aos seus proprios contemporaneos, o que Ihes e possivelpensar. Com Panofsky, a tonica e outra (e, paradoxalmente,mais social). Para ele, com efeito, os habitos mentals remetempara as suas condicoes de inculcacao, portanto para as «forcascriadoras de habitos» (habit-forming forces) — por exempio, ainstituicao escolar nas suas diferentes modalidades — proprias decada grupo. E-lhe entao possfvel compreender, na unidade da suaproducao, as homologias de estrutura existentes entre varios«produtos» intelectuais de um dado meio, e tambem pensar osdistanciamentos entre os grupos como diferencas entre sistemasde percepcao e de apreciacao, remetendo eles proprios paradiferencas nos modos de formagao. E de uma concepcao destetipo que se aproxima Marc Bloch quando, no capitulo de LaSociete feodale intitulado «Facons de sentir et de penser», hierar-quiza nfveis de lingua e universes culturais em funcao dascondicoes de formagao intelectuall4. Falta aqui, no entanto,corno em Febvre, a analise (central em Panofsky) dos mecanismosatraves dos quais categorias de pensamentos fundamentais setornam, num dado grupo de agentes sociais, esquemas interiori-zados e nao algo que sobre-estrutura todos os pensamentos ouaccoes partlculares.

Apesar desta limiragao, de natureza teorica, e bem claro que aposicao dos hisroriadores da primeira geracao dos Annales

14 M. Bloch, lasocielefeodale, 1939, reed., Paris, Albin Michel («L'Evolu-tion de l'Humanite»), 1968, pp. 115-128.

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pesou fortemente na evolugao da historia inteiectual francesa.Ela fez deslocar, com efeito, o proprio conjunto de questoes:doravante o que Importa compreender nao sao ja as audacias dopassado, mas muito mais os limites do pensavel. A uma his-toria inteiectual das inteligencias sem redeas e das ideias semsuporte opoe-se uma historia das representacoes colecrivas, dasutensilagens e das categorias inteleccuais disponiveis e partilha-das em determinada epoca. Para Lucien Febvce, e um projectoassim que fundamenta o primado atribuido ao estudo biografico.Lucero em 1928, Rabelais e Des Periers em 1942, Margarida deNavarra em 1944: outros cantos «case studies* com vista adetectar como, para os homens do seculo XVI, se organizavam apercepc.ao e a represenracjao do mundo, como se definiam oslimites do que era possivel entao pensar, como se construiarn asreiac_6es proprias da epoca entre religiao, ciencia e moral. Destemodo, 0 individuo e devolvido a sua epoca, ja que, quern querque seja, nao pode subtrair-se as determinacoes que regulamas maneiras de pensar e de agir dos seus contemporaneos.A biografia inteiectual a maneira de Febvre e, de facto, ahistoria da sociedade, atendendo a que situa os sens heroissimultaneamente como testemunhas e produtos dos condiciona-mentos coiectivos que limiram a livre invengao individual.Estava assim aberta a via (uma vez abandonado o gosto par-ticular de Febvre pela biografia) a uma historia dos sistemasde crenc,as, de valores e de representagoes proprios de uma epocaou de um grupo, designada na historiografia francesa pelaexpressao, tanto mais globalizante quanto o seu conreudo nocio-nal perrnanece fluido, de «hisroria das menralidades». E o quevamos examinar em seguida.

Historia das menialidades I Historia das ideias

A partir dos anos 60, a noc.ao de mentalidade impoe-se nahistoriografia francesa para qualificar uma historia que naoescolhe como objecto nem as ideias nem os fundamentos socio-economicos das sociedades. Mais exercida do que teorizada, essahistoria das mentalidades «a £rancesa» assenra num certo numero

CAPITULO I 41

de concepc.6es mais ou menos comuns aos seus praticantes i5.Antes de mais, a definigao da palavra: «a mentalidade de umindividuo, mesmo que se trate de um grande homem, ejustarnente o que ele cem de comum com outros homens do seutempo» ou entao «o nivel da historia das mentalidades e o doquotidiano e do automatico, e aquilo que escapa aos sujeitosindividual's da historia porque revelador do conteudo impessoaldo seu pensamento» (ambas as definicoes sao de J. Le Goff).E assim constitufdo como objecto historico fundamental algoque e exacramente o contrario do objecto da historia inteiectualclassica: a ideia, construcao conscience de um espirito indivi-dual, opoe-se, passo a passo, a mentalidade sempre colectiva querege as representagoes e jufzos dos sujeitos sociais, sem que esteso saibam. A relagao entre a consciencia e o pensamentoe colocada de uma forma nova, proxima da dos sociologos datradigao durkheimiana, pondo em relevo os esquemas ou osconceudos de pensamento que, embora enunciados sobre o mododo individual, sao de facto os condicionamentos nao conscientese interiorizados que fazem com que um grupo ou uma sociedadepartilhe, sem que seja necessario explicica-los, um sistema derepresent.ac.6es e um sisrema de valores.

Outro ponto de acordo: uma concep^ao alargada do campocoberco pela no^ao de mencalidade a qua! engloba, como escreveR. Mandrou, «o que e concebido e sentido, o campo da in-teligencia e do afectivo». Dai, a acen^ao prestada as categoriaspsicologicas, tanto como (e, mais sem diivida) as categoriasintelectuais, e portanto um distanciamento suplemencar entreuma historia das mentalidades assim identificada com a psico-logia historica e a historia inteiectual na sua definicao tradi-cional. Muito presenre em Febvre, leitor atento de C. Blondel

15 Vd. G. Duby, «L'histoire des mentalites», in L'Histoire et ses jnsthodes,Paris, Gallimard («La Pleiade»), 1961, pp. 937-966; R. Mandrou, .(L'His-toire des mentalites», in Encyclopedia Universal^, vol. VIII, 1968, pp.436-438; G. Duby, «Histoire sociale et hiscoire des mentalites. Le MoyenAge», 1970, in Aujourd'hui /'Histoire, Paris, Edition Sociales, 1974, pp.201-217; J. Le Goff, «Les mentalites. Une histoire ambigue», in Fairs deI'Histoire, Paris, Gallimard, 1974, c. Ill, pp. 76-94 (trad, pomiguesa, FazerHistoria, trad. Cascais Franco, III, Lisboa, Bercrand, 1987); P. Aries,«L'histoire des mentalites» e R. Chactier, «Outillage mental», in La Nouvelletihtoire, Paris, Retz, 1978, pp. 402-423 e pp. 448-452.

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(Introduction a la psychologie historique, 1929) e de H. Wallon(Principes 4e psyckologie appliques, 1930)16, e nos seus sucessores(o livro de R. Mandrou Introduction a la France moderns, 1500--1640, publicado em 1961, nao tern por subti'tulo Essai depsyckologie historique^, essa identiflcacao e a base da propria obrade Meyerson cuja importancia foi capital para a transformacaoda area dos estudos gregos. Assim, para alem do projecto dereconstituicao dos sentimentos e das sensibilidades proprios aoshomens da epoca (que e, em tragos gerais, o proJ£cto deFebvre), sao as categorias psicologicas essenciais — as quefuncionam na construcao do tempo e do espac.o, na produgaodo imaginario, na percepcao coiectiva das actividades humanas— que sao postas no cencro da observagao e apreendidas no quetern de diferente consoante as epocas historicas, Refira-se, porexemplo, a noc.ao de pessoa tal como a aborda J.-P. Vernant,no seguimento de Meyerson17: «nao existe, nao pode existiruma pessoa-modelo, exterior ao curso da historia humana, comas suas vicissitudes, as suas variedades conforme os lugares, assuas transformac,5es conforme o tempo. A investigacao naotern, portanto, de estabelecer se a pessoa, na Grecia, e ou nao emas de procurar o que e a pessoa grega antiga, rio-que e que eladifere, na muitiplicidade dos seus trac.os, da pessoa dos nossosdias» 18.

E a partir de uma posic,ao intelectual semelhante queA. Dupront propunha, em I960, ao Congresso Internacionaldas Ciencias Historicas realizado em.Estocolmo, a constituic.aoda historia da psicologia afectiva como disciplina particular naarea das cienclas humanas, atribuindo-lhe a maxima extensao,tendo em conta que cobria «a historia do valores, das mentali-

l 6Cf. os seus tres actigos: «Methodes ec solutions pratiques. HenriWalion et la Psychologie appliquee», Annales d'Histoire Economique el Sociale,1931; «Une vue d'ensemble. Hiscoire et psychologies in EncyclopediePranqam, 1938; e "Comment reconstituer la vie affective d'autrefois? Lasensibilice et l'histoire», Annales d'Histoire Sociale, 1941, texto tetomado emCombats pour I'hhtoire, op. at. supra n. 7., pp. 201-238.

17 I. Meyerson, Les Fonctions psychologiques et les oetivres, Paris, Vein,1948.

is J.-P. Vernant, Mythe et pensee chez les Grecs. Etudes de psycbologiehistorique, Paris, Maspero, 1965, pp. 13-14.

CAPITULO I 43

dades, das formas, dos simbolos, dos mitos» 19. E de facto,atraves dessa definicao da psicologia afectiva, era uma reformu-lacao total da historia das ideias que era sugerida. Um dosobjectos maiores da historia da psicologia coiectiva e constitui-do pelas ideias-forcas e pelos conceitos essenciais que habitamo «mental colectivo» (o termo e de A. Dupront) dos homens deuma epoca. As ideias, apreendidas por meio da circula^ao daspalavras que as designam, situadas nos seus enraizamentossociais, pensadas na sua carga afectiva e emocional, tantoquanto no seu conteiido intelectual, tornam-se assim, tal comoos mitos ou os complexes de valores, uma dessas «forcascolectivas pelas quais os homens vivem o seu tempo» e,portanto, uma das componentes da «psique colectiva» de umacivilizagao. Ha ai como que um culminar da tradi^ao dosAnnales, na caracterizacao fundamentalmente psicologica damentalidade. coiectiva e, simultaneamente, na redefini^ao doque deve ser a historia das ideias reposta numa exploracao deconjunto do mental colectivo.

Finalmente, resulca claro que a historia das mentalidades(considerada como parte da historia sociocuitural, tendo porobjecto o colettivo, o automatico, o repetitive); pode e devetornar-se contavel: «A historia da psicologia coiectiva necessitade series, senao exaustivas, pelo menos na maior extensaopossfvel» 20. Ve-se deste modo o que ela deve a historia daseconomias e das sociedades que, no horizonte da grande crisedos anos 30 e, em seguida, no periodo imediatamente posteriora guerra, constitui o sector «pesado» (pelo mimero dos levanca-mentos e pelos exkos de alguns empreendimentos) de investi-gacao historica em Franca. Quando, nos anos 60, a historiaintelectual emerge como o dominio mais frequentado e maisinovador da historia, fa-lo retomando, para as transpor, asproblematicas e as metodologias que asseguraram o sucesso dahistoria socioeconomica. O projecto e simples, claramenteenunciado a posteriori por P. Chaunu: «o problem'a consiste emlevar verdadeiramente o terceiro m'vel [a saber, o afectivo e o

A. Dupront, «Problemes et methodes d'une hiscoire de la psycholo-gic collective^ Annales E.S.C., 1961, pp. 3-11.

20 Ibid., p. 8.

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mental (R.C.)l a beneficiar das tecnicas de uma estatisticaregressiva, a beneficiar, portanto, da analise matemattca dasseries e da dupla interrogacao do documento, em primeirolugar por si mesmo, seguidamente em relacao a sua posicao noseio da serie homogenea na qual a informacao de base eintegrada e colocada. Trata-se de uma adaptacao tao completaquanto possivel dos metodos aperfeic.oados desde ha varies anospelos historiadores da economia, seguidos pelos da quantidadesocial» 21.

Deste primado atribuido a serie, logo a recolha e aorratamento de dados homogeneos, repetidos e comparaveis aintervales' regulares, dependem varios corolarios, e antes demais o privilegio dado a conjuntos documentais, massivos nasua maioria socialmente representatives e que permitem, paraum longo penodo, tragar os contornos de dados multiplos. Daia releitura e o reemprego de fontes classicamente utilizadas emhistoria social (por exemplo, os arquivos notariais), dai tambema invencao de novas fontes proprias para restituir as maneirasde pensar ou de sentir. Para la da semelhanca metodologica,esta «historia serial do terceiro nivel» (para retomar a expres-sao, que adiante discutiremos, de P. Chaunu) partilha com adas economias e das sociedades um dupla problemarica. A pri-meira e a das durances: como articular, com efeito, o tempolongo de mentalidades que, na sua maioria, sao pouco moveis epouco plasticas, com o tempo curto de bruscos abandonos oude transferencias colectivas de crenca e de sensibllidade?A questao (colocada, por exemplo, a proposito das descristiani-zac,ao da Franca entte 1760 e 1800) reproduz a interrogac.aocentral de La M.editerranee: como pensar a hierarquizacao, aarticulacao e a imbricagao das diferentes duracoes (tempo curto,conjuntura e longa dura^ao) dos fenomenos historicos?22

21 P. Chauna, «Un nouveau champ pour I'histoire serielle: le quanti-tatif au troisieme niveau», in Melanges en t'bonneur de Fernand Braudel,Toulouse, Privat, 1973, t. II, pp. 105-125.

22 F. Braudel, La Medtierranee et le monde mediterramsn a I'epaqxe dePhilippe II, 2.a ed., I, Paris, A. Colin, 1966, pp. 16-17 e «Hiscoire etsciences sociales. La longue duree», 1959, in Ecrits sur /'Histoire, Paris,Flammarion, 1969, pp- 41-83.

CAP ITU LO I 45

A segunda heranc.a problematica que coube a historiacultural tern a ver com a maneira de conceber as relacoes entreos grupos sociais e os m'veis cuiturais. Na fideiidade a obra deE. Labrousse e da «escola» francesa de historia social, as divi-soes utilizadas para classificar os factos de mentalidade saosempre as que resultam de uma analise social que hierarquizaos mveis de fortuna, distingue os tipos de proventos, classificaas profissoes. E a partir dessa grelha social e profissional, dadade antemao, que pode operar-se a reconstituigao dos diferentessistemas de pensamento e de comportamentos cuiturais. Daiuma adequac,ao necessaria entre as partilhas intelectuais oucuiturais e as fronteiras sociais, seja a que separa o povo e osnotaveis, os dominados e os dominadores ou as que fragmen-tam a escala social. Este primado quase tiranico do social, quedefine previamente distanciamentos cuiturais que, depois, sofalta caracterizar, e o sinal mais nitido dessa dependencia dahistoria cultural relativamente a historia social que marca ahistoriografia francesa do pos-guerra (pode, de resto, assinalar--se que essa dependencia nao existe em Febvre ou em Bloch,mais sensiveis quer as categorias partilhadas por todos oshomens de uma epoca, quer as diferentes utilizacoes do equipa-mento intelectual disponivel).

E sobre estes fundamentos-metodologicos, afirmados ouinconscientes, que a historia das mentalidades se desenvolveuna historiografia francesa desde ha uma quinzena de anos. Elarespondia, bem melhor do que a historia intelectual, as novastomadas de consciencia dos historiadores franceses. Entre estasformas de tomada de consciencia, consideremos as tres maisimportantes. Antes de mais, a consciencia de um equilibrionovo entre a historia e as ciencias sociais. Contestada na suaptimazia intelectual e institucional, a historia francesa reagiuanexando a si os terrenes e as questoes das disciplinas vizi-nhas (antropologia, sociologia) que punharn em causa o seudominio. A atencao desviou-se, portanto, para novos objectos(os pensamentos e gestos colectivos perante a vida e a morte, ascrengas e rituais, os modelos educativos, etc.) ate entao pro-prios da investigagao etnologica e para novas questoes, emgrande medida estranhas a historia social, ocupada antes de

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mais com a hierarquizac.ao dos grupos conscitutivos de umasociedade. Tomada de consciencia, cambem, de que as diferen-cia^oes sociais nao podem ser pensadas apenas em termos defortuna ou de dignidade mas que sao produzidas ou craduzidaspelos distanciamentos culturais. A partilha desigual das com-petencias culturais (por exemplo, ler e escrever), dos bensculturais (por exemplo, o livro), das praticas cuiturais (dasatitudes face a vida as atitudes face a morte) tornou-se assimo objecto central de multiplas investigates, conduzidas deacordo com processes de quantificacao e tendo em vista daroutro conteudo a hierarquizagao social, sem a por em causa.Finalmente, uma outra tomada de consciencia colectiva reco-nheceu que, para abordar esses domfnios novos, as metodologi-as classicas nao eram suficientes: daf, como vimos, o recursoa analise serial, onde as formulas testamentarias, os motivesiconograflcos e os conteudos impresses substituiram o prec.o dotrigo; daf, o trabalho sobre a ou as linguagens, da lexicometriaa semantica historica, da descricjio dos campos semanticosa analise dos enunciados23. Assim, porque transpunha percursos eproblemas que eram os da historia socioeconomica, o que signifi-cava uma deslocacao do con junto das questoes historicas, ahistoria das mentalidades (parte ou todo da historia sociocultural)p6de ocupar o primeiro piano da cena intelectual e parecer (comosugetia implicitamente A. Dupront) reformular — e, portanto,desqualificar — a antiga maneira de fazer a historia das ideias.

Mas essa reformulacao foi tambern levada a cabo no interiordo campo da historia intelectual, tendo a{ conduzido a posicoescompletamente contraditorias em relacao as dos historiadoresdas mentalidades. A obra capital, de resto bem acolhida pelosAnnales, e neste caso a de L. Goldmann24. No ponto departida, ha uma mesma distancia face as modalidades tradi-cionais, biograflca e positivista, da historia das ideias quesustenta o seu projecto, Tal como em Febvre e na historia das

23 Cf. R. Robin, Histoire et linguistique, Paris, A. Colin, 1973* L. Goldmann, Le Dieu cache. Etude sur la vision tragique dans les

Pensses de Pascal et dans le theatre de Racine, Paris, Gallimard, 1955 e o artigode R. Mandrou «Tragique au XVlle siecle. A propos de travaux recents»,Annales E.S.C., 1957, pp. 305-313.

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mentalidades, trata-se antes de mais de pensar a articulacaoentre os pensamentos e o social. Tornado de emprestimo aLukacs, o conceito de «visao do mundo» e o instrumento quepossibilita tal captacao. Definido como «conjunto de aspira-coes, de sentimentos e de ideias que reune os membros de ummesmo grupo (de uma classe social, na maioria das vezes) e osopoe aos outros grupos» 2S, ele permite uma tripla operacao:atribuir um significado e uma posicao social aos textos literari-os e fllosoficos, compreender os parentescos existentes entreobras de forma e natureza opostas, discriminar no interior deuma obra individual os textos «essenciais» (o adjective e deGoldmann), constitmdos como um todo coerente, com o qualcada obra singular deve ser relacionada. Para Goldmann,o con-ceito de visao do mundo reune simultaneamente as funcoes quesao as da utensilagem mental para Febvre e de habitus paraPanofsky (e Bourdieu). O Dieu cache dava uma aplkacao, dis-cutivel mas exemplar, dessas propostas, construindo o Penseesde Pascal e nove tragedias de Racine, de Andromaque a Athalie,como o corpus que exprimia com maior coerencia «uma visaotragica do mundo», identiflcada com o jansenismo, relacio-nando essa consciencia colectiva com um grupo particular, odos ofkiais de toga despojados do seu poder, logo do seupoderio social, aquando da construcao do Estado absolutista.

Qualquer que seja a validade historica de tal analise, ela eraportadora de uma ideia essencial, inteiramente oposta a um dospostulados da historia das mentalidades, concretamente o deque sao os «grandes» escritores e filosofos que afirmam com omaior grau de coerencia, atraves das suas obras essendais, aconsciencia do grupo social de que fazem parte; sao eles queatingem «o maximo da consciencia possivel do grupo socialque exprimem«. Dai o primado atribufdo aos textos maiores(definidos, de uma nova maneira, peia sua adequa^ao a umavisao do mundo) e o seu corolario: a suspeita, ou mesmo arecusa, relativamente as abordagens quanritativas na area dahistoria cultural. Muito antes das desconfiangas actuais, apoi-adas numa concepgao antropologica da cultura, e na tradigao da

2S L- Goldmann, op. tit., p. 26.

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historia intelectual a maneira de Goldmann que apareceram osprimeiros avisos de alerta contra as ilusoes da quantificacao.«Uma historia sociologica da literatura deve privilegiar oestudo dos grandes textos», escreveu Jean Ehrard2 , o queequivale a dizer, por um ladof que e na singularidade dessestextos que se dao a conhecer da maneira mais clara e maiscompleta as ideias partilhadas; por outro lado, que as contagensdas palavras, dos titulos, dos motives, das representacoescolectivas sao, no sentido proprio do termo, "insignificantesw,isto e, incapazes de testituir os significados complexos, confli-tuais e contraditorios dos pensamentos colectivos. A recoihacontavel do superficial, do banal, do rotineiro, nao e represen-tativa, e a consciencia colectiva do grupo (que e «inconscien-cia» colectiva para a maioria) e dada a let unicamente atravesdo trabalho, imaginativo ou conceptual, de alguns autores quea levam ao seu mais alto gtau de coerencia e de transparencia.

O debate aqui estabelecido atinge mesmo a definic.ab dahistoria intelectual, e pottanto a constituicao do seu objectoproprio. Em I960, A. Dupront argumenta do seguinte modocontra a historia das ideias: «A historia das ideias — aopetmanecet mal diferendada e capaz de receber, um poucocomo uma gtande artecadagao, tudo aquilo com que a historiattadicional pouco se ocupava — inclina-se demasiado para aintelectualidade pura, a vida abstracta da ideia, frequentementeisolada dos meios sociais onde se enraiza e que a exprimem demaneiras diversas [...]. O que importa, tanto quanto a ideia,e talvez mais, e a encamacao da ideia, os seus significados, ouso que dela faz» 27. Dai a proposta de uma historia social dasideias, tomando por objecto o seu enraizamento e circulac,ao.Num texto dez anos posterior, F. Venturi recusa a pertinenciade tal projecto que, para ele, carece do essencial: «O risco dahistoria social do iiuminismo, tal como a vemos hoje, sobretu-do em Franca, e o de estudar as ideias quando ja se tornaramestruturas mentais, sem nunca captar o movimento criativo eactive no qual se devera examinar coda a estmtura geologica do

2 6J. Ehrard, an. tit. supra n. 2, p. 79-27 A. Dupront, art. cit. supra n. 19.

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passado, salvo precisamente o humus sobre o qual crescem asplantas e os frutos» 2S, Ideias contra estruturas mentais: aoposic.ao indica bem o lugar das divergencias e a recusa dosuposto reducionismo da historia social (logo quantitativa) daproducao intelectual. Esse reducionismo apresenta, de resto,um duplo rosto. O primeiro e sociologico, reconduzindo osignificado das ideias a sua qualificacao social, seja esta dadapela posic,ao dos individuos, pela dos meios que eles produzemou pelo campo social da sua recepc.ao29. E precise notat queesta ctitica, dirigida aos empreendimentos da sociologia cultu-ral, nao poe em causa a perspectiva de Goldmann, situando-se,na realidade, na sua heranc.a. Com efeito, a noc,ao de visao domundo permite articular, sem os reduzir um ao outro, o signi-ficado de um sistema ideologico descrito por si proprio, porum lado, e, por outro, as conduces sociopoiiticas, que fazemcom que um grupo ou uma classe determinados, num dadomemento historico, partilhem, mais ou menos, consciente-mente ou nao, esse sistema ideologico. Estamos, longe dascaracterizagoes sumarias que esmagam o social sob o ideologicoe que, per exemplo, levam a designar as Luzes como unica-mente burguesas a pretexto de que os Filosofbs ou os seusleitores o sao na sua maioria. Perante as ideias, ou melhor,perante os conceitos que utilizam os homens de uma epoca,fbrnecendo-lhes um conteudo proprio dessa epoca, a tarefa dohistoriador das ideias e, portanto, a de «substituir a busca deuma determinagao pela de uma fun$ao», fungao essa que so

28 Em italiano, no original: «I1 rischio della scoria sociale dell'Illumi-nismo, quale la vediamo oggi soprattutto in Francia, e di studiare le ideequando son diventate ocmai structure mental!, senza coglier mai il momen-to creative e attivo, di esaminare cutta la scrutcura geologica del passato,salvo precisamente 1'humus sulla quale crescono le piante e i frutti», F.Venturi, Utopia e riforma neU'Illumimsmo, Turim, Einaudi, 1970, p. 24.

J. Ehrard, «Histoire des idees ec hiscoire sociale en France au XVllle

e. siecle: reflexions de methode», in N'tveaux de culture et groupes sociaux,Actas do coloquio realizado de 7 a 9 de Maio de 1966 na Escola NormalSuperior, Paris/Haia, Mouton, 1967, pp. 171-178 [traducao porruguesa:"Historia das ideias e hiscoria social em Franca no seculo XVIII: reflexoessobre o rnetodo«. in Niveis ae cuhura e grupos sociais, trad. Franco de Sousa,Lisboa, Cosmos («Coordenadas»), 1974, pp. 217-227].

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pode ser apreendida se for considerado globalmente o sistemaideologico da epoca considerada30.

Mais recentemente, a critica dirigida a historia social dasideias visou urn outro alvo e denunciou uma outra forma de re-ducionismo, a saber, nao ja a reducao de uma ideia ou de umaideologia as suas conduces de producao ou de recepcao, mas aassimilacjlo, que e uma coisificacao, dos conteudos do pensa-mento a objectos culturais. A «historia serial do terceiro nivel»e portadora no seu proprio projecto de tal reducao, uma vezque o seu empreendimento contavel supoe ou que os factosculturais e inteiectuais analisados sejam logo a partida conjun-tos de objectos (por exemplo, livros cujos titulos podem sertratados estatisticamente ou imagens cujos motivos podem serinventariados) ou entao que os pensamentos colectivos, torna-dos nas suas expressoes mais repetitivas e menos pessoais, sejam«objectivados», isto e, reconduzidos a um conjunto rmnimo deformulas onde so ha que estudar a frequenda diferencial no seiodos varies grupos de uma populacao. A tentacjio sociologicaconsist^ aqui, em considerar as palavras, as ideias, os pensa-mentos e as representac,6es como simples objectos a enumerar,a fim de reconstituir a sua distribuicao desigual. O quesignifica privar o sujeito (individual ou colectivo) da analisee negar qualquer importancia a relacao (pessoal ou social) quemantem os agentes sociais com os objectos culturais ou osconteudos do pensamento. Qualquer utilizacao ou qualquerapropriacao de um produto ou de uma ideia e um «trabalho» aque so escapa infalivelmente o estudo distributive: «no caso dahistoria quanritativa das ideias, so a consciencia da variabilida-de, historica e social, da figura do leitor, podera colocarverdadeiramente as premissas de uma historia das ideiastambem qualitativamente diferente» 31. For exemplo, e paraseguir C. Ginzburg no seu terreno, aquilo que os leitores fazemintelectualmente das suas leituras e uma questao decisivaperante a qual as analises tematicas da producao de fontesimpressas — tal como as da difusao social das diferentes cate-

30 Ibid., p. 175 e a incerven^ao de J. Proust, pp. 181-183 [trad, por-cuguesa, pp. 230-233].

Em italiano, no original: «nel caso delta scoria quantitativa dele

gorias de obras — permanecem impotentes. Do mesmo modoque as modalidades das pracicas, dos gostos e das opinioes saomais distintivas do que essas obras, as maneiras como umindividuo ou um grupo se apropria de um motivo intelectualou de uma forma cultural sao mais importantes do que adistribuicao estatistica desse motivo ou dessa forma.

Seguros da sua metodologia quantitativa, reunidos numadefinigao de historia das mentalidades menos fluida do que seafirmou33, os historiadores franceses permaneceram durantemuito tempo surdos a essas interpelacoes. Implicitamente, asua representac,ao do campo da historia intelectual encaravaessas criticas como outros tantos combates de retaguarda deuma tradi^ao esgotada e postulava, a prazo, a absorcao dahistoria das ideias em contornos mais vastos, que podiam serbaptizados de diversas maneiras (historia sociocultural, historiadas mentalidades, historia da psicologia colectiva, historiasocial das ideias, etc.). Podemos veriflcar hoje em dia que issosignificava acreditar que nada se passara no dominio da historiaintelectual desde os anos 30. Ora o desconhecimento era duplo.Desconhecimento, em primeiro lugar, do modelo proposto aqualquer abordagem de historia intelectual pela epistemologiade Bachelard, de Koyre ou de Canguilhem. E sintomatico quese encontre nos Annales uma unica aprecia^ao critica consagradaa Bachelard (duas paginas de Lucien Lebvre em 1939 sobre aPsicanalise do fogo) e nenhuma sobre as obras de Canguilhem ouKoyre (o umco artigo publicado na revista por Koyre se-lo-aapenas em I960). Esta extraordinaria cegueira teve pesadasconsequencias: com efeito, privou os historiadores franceses detodo urn conjunro de conceitos suscepttveis de os alertar para ascertezas demasiado frustes sai'das do levantamento estatistico eque Ihes teria permitido substituir a descrigao nao articuladados produtos culturais ou dos conteudos de pensamento de uma

idee, soltento la consapevolezza della variabilita, storica e sociale, dellafigura del lettoce, potra porre davero le premesse di una storia delle ideeanche qualitativamente diversa», C. Ginzburg, II formaggio e i vermi. II cosmodi am mugnaio del 500, Turim, Einaudi, 1976, pp. XXI-XXII.

32 P. Bourdieu, La Distinction. Critique sociale du jugsment, Paris,Minuit, 1979, pp. 70-87.

33 Por exemplo, R. Darnton, art. tit. supra n. 3.

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epoca (tal como a produz o estudo quantitative) pela compreen-sao das relagoes que existem, num dado memento, entre osvaries campos intelectuais. Desse modo, tornava-se pensavelaquilo de que carece o inventario contavel: em primeiro lugar,os lagos de dependencia reciproca que unem as representa^oesdo mundo, as tecnologias e o estado de desenvolvimento dosdiferentes saberes; seguidamente, atraves de uma nocao comoa de obstaculo epistemologico (que reencontra de outra forma oque ha de mais penetrante na de utensilagem mental), a ar-ticulagao entre as representagoes comuns (stock de sensagoes, deimagens, de teorias) e os progresses dos conhecimentos desi-gnados como cientificos34. Ter escutado os epistemologosdeveria, igualmente, ter permitido colocar de outra forma oproblema que coda a historia das mentalidades tern em mira,ou seja, as razoes e as modalidades de passagem de um sistemaa outre. Af, mais uma vez, a constatagao das mutacoes atravesda enumeragao dos objectos ou dos motivos continua a revelar--se impotente para apreender os processes de transformagao queso podem ser compreendidos quando se pensa, a maneira deKoyre, a dependencia juntamente com a autonomia das dife-rentes areas do saber. A passagem de um sistema de representa-C.6es a outro pode, desde logo, ser entendida simultaneamentecomo uma ruptura radical (nos saberes, mas tambem nasproprias estruturas do pensamento) e como um processo feitode hesitagoes, de retrocessos, de bloqueios35.

A este desconhecimento da epistemologia, os histotiadores— privados dos instrumentos intelectuais capazes de articularaquilo que a hiscoria social das ideias ihes permitia constatar —acrescentaram durante muito tempo um outro: o da novamaneira de pensar as relac.6es entte as obras (no sentido maislato) e a sociedade, tal como a formulavam, na fidelidade mastambem no distanciamento de L. Goldmann, historiadores da

34 G. Bachelard, La Formation de /'esprit scientifique. Contribution a linepsychanalyse de la connatssance objective, Paris, Vrin, 1939.

35 A. Koyre, From the Closed World to the Infinite Universe, Baltimore,The John Hopkins University Press, 1957, trad, francesa Du monde dos ai'univers infini, Paris, P.U.F., 1962, pp. 1-6.

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literatura e das ideias. A problematica corrente da historiatinha sido ai alterada de duas maneiras: por um lado, dandouma acepfao do representative nao fundada na quantidade; poroutro, desarticulando os sistemas ideologicos da sociedade cujosconflitos deviam supostamente reflectir, prolongar ou traduzir— o que nao significa afirmar a sua absoluta independenciaface ao social, mas colocar essa relac,ao em termos de homolo-gias estruturais ou de correspondencias globais. Actualmente,os historiadores das mentalidades reencontram a validade destesmodos de questionar, em tempos descurados, certamenteporque, renunciando ao projecto de uma historia total, coiocamagora o problema das articulagoes entre opcoes intelectuais eposicjio social a escala de segmentos sociais bem delimitados,mesmo a do-indivfduo36. A esta escala reduzida, e sem duvidaapenas a essa escala, podem ser compreendidas, sem redugaodeterminista, as relates entre sistemas de crengas, de valorese de representagoes, por um lado, e de pertenc,as sociais, porOutro. Os processes de analise proprios da historia dos pensa-mentos situados no topo sao, assim, mobilizados para um outroterreno, para apreender como um grupo ou um homem «co-mum» se apropria, a sua maneira, que pode ser deformadora oumutiladora, das ideias ou das crengas do seu tempo. Longe dese^encontrar esgotada, a historia intelectual (entendida comoa analise do «trabalho», em cada caso especifica, realizada sobreum dado material ideologico) incorpora o terreno dos pensa-mentos populates que parecia constituir, por excelencia, odomfnio reservado da historia quantificada. Entre historia dasmentalidades e historia das ideias, as relagoes devem, portanto,ser pensadas de maneira infinitamente mais complexa do que acomum aos historiadores Franceses dos anos sessenta.

?6 A ciculo de exemplo, vd. o livro, ja citado na nota3 ' de C.Ginzburg, consagrado a cosmologia de um moleiro de Friiilia, DomenicoScandella dito Menocchio, e os ensaios de N.-Z. Davis, que coiocam apartir de alguns «estudos de caso» o problema das relates entre opgaoreligiosa e perten^a social, reunidos em Society and Culture in Early ModemFrance, Stanford University Press, 1975.

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Questionar as delimitates

Para alem dos metodos de analise ou das deflmc.6es discipli-nares, o cerne fundamental dos debates dos nossos dias diz res-peito as deiimitagoes essenciais, que ate agora eram admitidaspor todos. Estas distincoes primordiais, expressas na maioria dasvezes atraves de pares de oposigoes (erudito/popular, cria^ao/con-sumo, realidade/ficc.ao, etc,), eram como que os alicerces co-muns e nao problematicos sobre os quais podiam apoiar-se asmaneiras de tratar os objectos da historia intelectuai ou cultural,maneiras essas que divergiam entre si. Ora, passados algunsanos, sao essas mesmas delimitac.6es que se tornaram objecto deproblematizac.6es, convergentes, senao identicas. Pouco a pouco,os historiadores tomatam consciencia de que as categorias, queestruturavam o campo da sua analise (com uma evidencia tal quepassava a maiot parte das vezes despercebida), eram elas proprias— tal como aquelas que eram objecto da historia — o produtode divisoes moveis e temporarias. E por isso que a atengao secentra agora (neste texto, mas igualmente no seio da disciplina*historica) na reavaliacao crftica das distincoes tidas como eviden-tes e que sao, na realidade, o que e precise questionar.

1. Primeira divisao tradicional: a que opoe letrado e po-pular, high culture e popular culture. Apresentada como evidente,esta divisao e portadora em si mesma de toda uma serie de coro-larios metodologicos cujo princfpio fornecia, em 1954, J. Higham:«a analise interna do humanista aplica-se principalmente a eliteintelectuai, nao penetrou de maneira muito profunda no vastocampo do pensamento popular. A abordagem externa e mais di-recta do cientista social conduz-nos mais proximo das fidelidadese aspirates colectivas da maior parte da humanidade» 37,

Em Franc.a e nos Estados Unidos, encontra-se em numero-sos textos esta mesma oposigao entre, por um lado, a cultura da

37 Em ingles, no original: «the internal analysis of the humaniseapplies chiefly to the intellectual elite, it has not reached very far into thebroad field of popular thought. The blunter, external approach of the socialscientist leads us closer co collective loyalties an aspirations of the bulk ofhumanity», J. Higham, "Intellectual History and its Neighbours", in TheJournal of the History of Ideas, vol. XV, n.° 3, 1954, p. 346. '

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maioria, que ressaltaria de uma abordagem externa, colectiva equantitativa, e, por outro lado, a intelectualidade dos pensa-mentos do topo, susceptivel apenas de uma analise interna,individualizando a irredutivel originalidade das ideias. Clara-mente ou nao, e sobre esta distinc.ao que se apoiaram oshistoriadores desejosos de explorar o vasto territorio da culturapopular, objecto nao unico mas em todo o caso privilegiado, dahistoria das mentalidades em Franca e de uma historia culturalgrandemente inspirada pela antropologia nos Estados Unidos.

Tomemos o exemplo Frances. A cultura popular (que poderiatambem set designada como aquilo que e considerado popularno campo da historia intelectuai) foi ai idennficada duplamente:com um conjunto 'de textos — os dos pequenos livros de vendaambulante e conhecidos sob o termo generico «bibliothequebleue» [«literatura de cordel»]*; com um conjunto de crenc,ase de gestos considerados como constitutivos de uma religiaopopular. Em ambos os casos, o popular e definido pela suadiferen^a relativamente a algo que nao o e (a literatura erudita eletrada; o catolicismo normative da Igreja); em ambos os casos, ohistoriador («intelectual» ou «cultural») tern perante si um corpusbem delimitado cujos motivos precisam de ser inventariados.

Ora e justamente esta delimita^ao que constitui um proble-ma. Por um lado, a atribuicao social das'praticas culturaisdesignadas ate entao como populates e agora pensada de maneiramais complexa. A religiao «popular» sera a dos camponeses, ado conjunto dos dominados (por oposic.ao as elites), da totali-dade dos laicos (por oposic.ao aos clerigos)? A literatura «popu-lat» alimentara as leituras (ou a escuta) da sociedade camponesa,ou de um publico mediano situado entre o povo analfabeto e amagra minoria dos letrados, ou ainda, constituira uma leiturapartilhada por toda uma sociedade, que cada grupo decifra a suamaneira, da simples detecc.ao dos signos a leitura corrente?Debates dificeis, mas que em todo o caso indicam que nao esimples identificar um nfvel cultural ou intelectuai, que seriao do popular, a partir de um conjunto de objectos ou de pra-ticas. Por outro lado, todas as formas culturais nas quais os his-

* A falta de melhor termo, designada por literacura de cordel.

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toriadores reconhecem a cultura do povo surgem sempre, hojeern dia, como conjuntos rm'stos que reunem, numa meada dificilde desembarac,ar, elementos de origens bastante diversas. A li-teratura de cordel e produzida por profissionais da escrita e daimpressao, mas a partir de processes de reescrita que submetemos texcos letrados a arranjos, a delirnitagoes que o nao sao.E, por intermedio da compra mais ou menos massiva, os leitoresexprimem as suas preferencias; desse modo, os seus gostos ficamem posigao de fazer inflectir a propria produc,ao dos textos. Nummovimento inverso, a culrura folclorica, que fornece a sua base areligiao da maioria, foi profundamente «trabalhada» em cadaepoca peias normas ou pelas interdic,oes da instituic,ao eclesias-tica. Saber se pode chamar-se popular ao que e.criado pelo povoou aquilo que Ihe e desrinado e, pois, um.falso problema.Importa antes de mais jdentificar a maneira como, nas praticas,nas representac,6es ou nas produces, se cruzam e se imbricamdiferences formas culturais.

Estas constatac,6es so aparentemente se afascam da historiaintelectual, e por duas razoes. Em primeiro lugar, torna-seclaro que a, propria cultura de elite e constituida, em largamedida, por um trabalho operado sobre materials que nao Ihesao proprios. E num mesmo jogo subtil de apropriac.ao, dereempregos, de desvios, que se apoiam, por exemplo, as rela-C.6es entre Rabelais e a «cultura popular da prac.a» 3S ou entreos irmaos Perraulr e a literatura oral39. A relac,ao assiminstaurada entre a cultura de elite^e aquilo que nao o e dizrespeito tanto as formas como aos conteudos, aos codigos deexpressao como ao sistemas de representagoes, logo ao conjuntodo campo reconhecido. a historia intelectual. Estes cruzamentosnao devem ser entendidos como relagdes de exterioridade entredois conjuntos estabelecidos de antemao e sobrepostos (umletrado, o outro popular) mas como produtores de «ligas» cul-turais ou intelectuais cujos elementos se encontram tao soli-

38 Cf. M. Bakhcine, L'Qeuvre de Francois Rabelais et la culture populaireau Moyen Age et sous la Renaissance, crad. francesa, Paris, Gallimard, 1970.

39 M, Soriano, Les Contes de Perrault. Culture savante et traditionspofwtaires, Paris, Gallimard, 1968.

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damente incorporados uns nos outros como nas ligas metah'cas.A atender a Bakhtine, para certas epocas (como o Renascimen-to), e precisarhente nas obras da cultura letrada ou erudita quea cultura popular encontraria a sua maxima coerencia e revela-ria de forma mais completa o seu proprio principio. Para ele, aobra de Rabelais e «insubstituivel a partir do momento em quese trate de penetrar na essencia mais profunda da culturacomica popular. No mundo que ele criou, a unidade interna detodos os seus elementos heterogeneos revela-se com urna ex-traordinaria clareza, sendo certo que a sua obfa constitui todauma enciclopedia da cultura popuiar»40. «Enciciopedia»: edizer que para la da utilizac,ao de palavras, de imagens ou deformas da «cultura comica popular*, o texto fiinciona, todoele, sobre urna concepcao da vida e do mundo que e a mesmada cuitura carnavalesca, encarada como o «seio maternal» detoda a expressao popular.

Alem disso, tornar problematica a divisao popular/letradoe anular, de uma assentada, as diferenc,as metodologicas postu-ladas como necessarias para o tratamento contrastado de um ede outro dommio. O «popular» nao esta por natureza vocacio-nado para a analise quantitativa e externa dos «cientistassociais» e, como mostra C. Ginzburg, quando os documentos opermitem, e > inteiramente licito apreender, a lupa, como umhomem do povo pode pensar e utilizar os elementos intelectua-is esparsos que, atraves dos seus livros e da leitura que delesfaz, Ihe advem da cultura letrada. Bakhtine e aqui pensado aocontrario, uma vez que e a partir de fragmentos emprestadospela cultura erudita e livresca que se constroi um sistema derepresentac,6es que Ihes fornece um outro sentido, porque nasua base se encontra uma outra cultura: «Por detras dos livrosrevolvidos por Menocchio tinhamos individualizado um codigode leitura; por detras deste codigo, um solido estrato de culruraoral»4!. Nao se pode, pois, colocar como necessario o elo

40 M. Bakhcine, op. til. supra n. 38, p. 67.41 Em icaliano, no original: «Dietro i libri rimuginati da Menocchio

avevamo individuaco un codice di lectura; dietro questo codice, uno scratosolido di cultura orale», C. Ginzburg, op. tit. supra n. 31, p. 80.

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estabelecido, por exemplo por F. Gilbert, entre o alargamentosocial da area de investigates da historia intelectual e o recursoaos processes estan'sticos42. Com efeito, se sob certas conducesa abordagem quantitativa (interna e externa) dos texros maiselaborados pode ser acolhida como legitima, ao inves, quando oarquivo o permite, o. trabalho intelectual do mais anonimo dosleitores e susceptivel de julgar os processos de analise geral-mente reservados aos «maiores» pensadores.

2. Colocar em duvida o par letrado/populat conduz,portanto, a um segundo problema, que tern por objecto outradas distingdes tidas como fundamentals pelos historiadores,sejam eles historiadores das. ideias ou das mentaiidades: aoposic.ao entre criac.ao e consumo, entre produgao e recepgao.Mais uma vez, dessa distinc,ao primordial decorre toda umaserie de corolarios implicitos. Em primeiro lugar, ela esta nabase de uma representac.ao do consumo .cultural que se opoe,passo a passo, a representacjio da criac,ao intelectuai: passivida-de contra inyengao, dependencia contra liberdade, alienac.aocontra consciencia. A inteligencia do «consumidor» e (pararetomar uma.metafora da pedagogia antiga) como cera moleonde se inscreveriam de maneira bem legivel as ideias e asimagens fbrjadas pelos criadores intelectuais. Dai outro corola-rio, uma necessaria partilha disciplinar entre o estudo dadifusao intelectual, que decorreria de uma sociologia culturalretrospectiva, .e a da produgao intelectual que, por seu turno,seria o apanagio de uma abordagem estetica das formas ou deuma compreensao filosofica das ideias. Esta separacao radicalentre produgao e consumo leva assim a postular que as ideiasou as formas tern um sentido intrinseco, totalmente indepen-dente da sua apropriac.ao por um sujeito ou por um grupo desujeitos. Desse modo, subrepticiamente, o historiador reintro-duz a maior parte das vezes o seu proprio «consumo» e eleva-o,sem ter bem consciencia disso, a categoria universal de inter-pretac,ao. Agir como se os textos (ou as imagens) tivessemsignificados por si mesmos, fora das leituras que os constroem,

42 F. Gilbert, art. cit. supra n. 1, p. 92.

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leva de facto, quer se queira ou nao, a remete-los para o campointelectual (e sensorial) que e o do historiador que os analisa,ou seja, a decifra-los atraves das categorias de pensamento cujahistoricidade nao e de modo nenhum apreendida e que se con-sideram implicitamente como petmanentes.

Restituir essa historicidade exige em primeiro lugar que o«consumo» cultural ou intelectual seja ele proprio tornadocomo uma produgao, que evidentemente nao fabrica nenhumobjecto, mas constitui representac.6es que nunca sao identicasas que o produtor, o autor ou o artista, investiram na sua obra.Por este motive e sem duvida necessario atribuir um alcancegeral a definigao que da M. de Certeau do consumo cultural demassas que caracteriza actualmente as socie'dades ocidentais:«A uma produ^ao racionalizada, expansionista, tanto quantocentralizada, estrondosa e espectacular, corresponde uma outraproduc,ao qualificada como «consumo». Esta e ardilosa,encontra-se dispersa, mas insinua-se por toda a parte, silenciosae quase invisivel, uma vez que nao assinala a sua presenc,a comprodutos proprios mas com maneiras de utilizar os produtosimpostos por uma ordem economica dominante» 43. Anular ocorte entre produzir e consumir e antes de mais afirmar que aobra so adquire sentido atraves da diversidade de interpreta^oesque constroem as suas significances. A do autor e uma entreoutras, que nao encerra em si a «verdade» suposta como unicae permanente da obra. Dessa maneira, pode sem duvida ser de-volvido um justo lugar ao autor, cuja intenc.ao (clara ou incons-ciente) ja nao contem toda a compreensao possivel da sua criagao,mas cuja rela<;ao com a obra nao e, por tal motivo, suprimida.

Deflnido como uma «outra produgao», o consumo cultural,por exemplo a leitura de um texto, pode assim escapar apassividade que tradicionalmente Ihe e atribulda. Ler, olhar buescutar sao, efectivamente, uma serie de atitudes intelectuaisque — longe de submeterem o consumidor a toda-poderosamensagem ideologka e/ou estetica que supostamente o devemodelar — permitem na verdade a reapropriacao, o desvio, a des-

43 M. de Certeau, Ulnvention du quotidim, t. I: Arts de Faire, Paris,U.G.E. (10/18), 1980, p. 11.

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60 HISTORIA INTELECTUAL

confianca ou resistencia, Esca constatacao deve levar a repensarcotalmente a relac,ao entre am publico designado como populare os produces historicamente diversos (livros e imagens, ser-moes e discursos, canc.6es, fotonovelas ou emissdes de televisao)proposto para o seu consume. A «atenc.ao obliqua», que, paraRichard Hoggart, caracteriza a decifracao popular contempora-nea desses maceriais44, e uma das chaves que permitem eluci-dar como a cultura da maloria pode em qualquer epoca, emvirrude de uma colocacjio a distancia, construir um lugar ouinstaurar uma coerencia propria nos modelos que Ihe saoimpostos, a forc,a ou com a sua concordancia, pelos grupos oupelos poderes dominantes. Tal perspectiva leva.a fornecer umcontrapeso a que poe em relevo os dispositivos, discursivos ouinstitucionais, que numa sociedade tern por finalidade esqua-drinhar o rempo e os lugares, disciplinar os corpos e as pra-ticas, modelar, pelo ordenamento regulado dos espacos, ascondutas e os pensamenros. Estas tecnologias da vigilancia e dainculcacao tern de facto de estar em sintonia com as.tacticas deconsumo e de utilizagao daqueles que elas tern por func.aomodelar. Longe de terem a absoluta eficacia aculturante que seIhes atribui com demasiada frequencia, esses dispositivos detodas as ordens (de que fazem parte numerosos materials quesao geralmente objecto da historia cultural) concedem necessa-riamente um lugar, no momento em que sao recebidos, ao dis-tanciamento, ao desvio, a reinterpretagao.

Estas observances, que repoem em causa todo um conjuntode postuiados implicitos na historia sociocultural francesa dosnossos dias (a brac.cs, em particular, com a interpretagao daReforma catolica, cujos efeitos supostamente destruiram deforma radical uma antiga cultura fplclorica), afastar-nos-ao dahistoria intelectual, ainda que estritamente definida? Naoparece, na medida em que tais observances incitam a situarqualquer texto nas relacoes de leitura que o implicam. Contraa concepcjlo, cara aos historiadores da literatura ou.da filosofla,

44 R. Hoggart:, The Uses of Literacy, 1957, trad, francesa, La Culture dupauvre. Etude sur le style de vie des dosses populaires en Angleterre, Paris, Minuit,1970, pp. 263-298, e a apresentacao de J.-C. Passeron, pp. 20-24.

CAPITULO I 61

segundo a qua! o sentido de um texto nele se encontrariaescondido como perola em ostra (sendo a critica, desde logo, aoperacao que traz a luz do dia esse sentido oculto), e necessariorelembrar que todo o texto e o produto de uma leitura, umaconstrugao do seu leitor: «este nao toma nem o lugar do autornem um lugar de autor. Inventa nos textos uma coisa diferentedaquilo que era a «intenc,ao» deles. Separa-os da sua origem(perdida ou acessoria). Combina os seus fragmentos e cria odesconhecido no espac.o organizado pela capacidade que elespossuem de permitir uma pluralidade indefmida de signifl-

Concebidos como um espago aberto a multiplas leituras, ostextos e tambem todas as categorias de imagens) nao podem,entao, ser apreendidos nem como objectos cuja distribuigaobastaria identificar nem como entidades cujo signiflcado secolocaria em termos universais, mas presos na rede contradito-ria das utilizac,6es que os constituiram historicamente. O queconduz, de uma forma bem evidente, as duas questoes: o que eler? Como reconstituir as leituras antigas? As respostas naoestao de modo nenhum garanddas, mas torna-se claro que a his-toria intelectual nao podera evita-las por muito tempo. A ti-tulo provisorio, e sem duvida urn bom metodo nao recusar ne-nhuma das percepgoes que permitem reconstituir, pelo menosparcialmente, o que os leitores faziam das suas leituras: apercepc,ao directa, por ocasiao de uma confissao, escrita ou oral,voluntaria ou extorquida; o exame dos factos de reescrita e deintertextualidade onde se anula o classico corte entre escrita eleitura, ja que aqui a escrita e, ela propria, leitura de umaoutra escrita46; por fim, a analise serial de corpus fechados- namedida em que a inflexao dos motives no interior de um dadogenero (por exemplo, os manuals de civilidade ou os tratadospara bem morrer) se situa no cruzamento de uma intenc,ao — ados produtores de textos — com uma leitura — a do seu pu-

45 M. de Certeau, op. tit. supra n. 43, pp. 285-286, e cap. XII, «Lire:Un braconnage», pp. 279-296.

Nurna bibliografia ja. imensa, citemos apenas J. Krisceva, Recherchespour um semanalyse (Semeiotike), Paris, Seuil, 1969, e H.-R. Jauss, Pour uneesthetique de la reception, Paris, Gallimard, 1978.

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62 HISTQRIA INTELECTUAL

biico. Sem a reduzir a uma hiscoria da difusao social das ideias, ahistoria intelectual deve colocar como central a rela^ao do cextocom as leiruras individuais ou colectivas que, de cada vez, oconstroem (ou seja, o decompoem por uma recomposic.ao).

3. Mas qua! o estatuto desses texros multiples que a his-toria intelectual roma como objecto de analise? Tradicional-mente, e a sua propria fungao que supostamente Ihes confereuma unidade: todos eles, com efeito, constituiriam representa-C,oes de um real que se esforcariam por apreender sob modalida-des diversas, filosoficas ou lirerarias. A oposicio encre realidadee representac.ao e assim encarada como primordial, para distin-guir cipos de historia e, ao mesmo tempo, discriminar tipos detextos. Ao historiador das economias e das sociedades, quereconstitui o que existiu, opor-se-ia, efectivamente, o dasmentalidades .ou das ideias, cujo objecto nao e o real mas asmaneiras como os homens o pensam e o transpoem. A estadivisao do trabalho historico corresponde uma divisao dosmaterials proprios.de cada campo. Aos textos «documentais»,que, submetidos a uma justa critica, revelam o que era arealidade antiga, opor-se-iam os textos «literarios», cujo esta-tuto e o da ficgao e que nao podem ser considerados testemu-nhos da realidade. Esta divisao fundamental nao foi alteradanem pela construc,ao sob a forma de series estatisticas dos«documentos» antigos, o que so faz salientar o valor da suaveracidade, nem pela recente utilizagao . de textos literariospelos historiadores, uma vez que neste caso perdem a sua natu-reza literaria para serem reconduzidos ao estatuto de documen-to, validos porque mostrando, de um outro modo, o que a ana-lise social esrabeleceu pelos seus proprios processes. O textoindividual torna-se assim uma ilustrac.ao «vivida» das leis daquantidade.

Sao esras divisoes demasiado simples que nos nossos dias oshistoriadores, atentos a critica literaria contemporanea47 ou asociologia, voltam a por em causa. Torna-se claro, antes de

47 Cf. J.-M. Goukmot, «Hiscoire litteraire», in La Nouvelle Histoire,op. at. supra n. 15, pp. 308-313-

CAPITULO I 63

mais, que nenhum texto — mesmo aparentemente mais do-cumenral, mesmo o mais «objectivo» (por exemplo, um qua-dro estatistico trac,ado por uma administrate) — mantem umarela^ao transparente como a realidade que apreende. O texto,literano ou documental, nao pode nunca anular-se como texto,ou seja, como um sistema construfdo consoante categorias,esquemas de percep^ao e de apreciagao, regras de funcionamen-to, que remetem para as suas proprias conduces de produgao.A rela^ao do texto com o real (que pode talvez definir-se comoaquilo que 0 proprio texto apresenta como real, construindo-ocomo um referente situado no seu exterior) constroi-se segundomodelos discursivos e deiimitac,6es intelectuais proprios de cadasitua^ao de escrita. O que leva, antes de mais, a nao tratar asficc.6es como simples documentos, reflexes realistas de umarealidade historica, mas a arender a sua especificidade enquantotexto situado relativamente a outros textos • e cujas regras deorganizagao, como a elaboracjio formal, tern em vista produzirmais do que mera descric.ao. O que leva, em seguida, a consi-derar que os «materiais-documentos» obedecem tambem a pro-cesses de construc,ao onde se investem conceitos e obsessoes dosseus produtores e onde se estabelecem as regras de escritaproprias do genero de que emana o rexto. Sao essas categoriasde pensamento e esses principles de escrita que e necessarioactualizar antes de qualquer leitura «positiva» do documento.O real assume assim um novo sentido: aquilo que e real, efec-tivamente, nao e (ou nao e apenas) a realidade visada pelotexto, mas a propria maneira como ele a cria, na historkidadeda sua produgao e na intencionalidade da sua escrita.

CondusaoP

A unica defini^ao actualmente valida da historia intelectualou cultural parace ser, assim, a que da C. Schorske, na propriamedida em que nao Ihe atribui nem merodologia particularnem conceitos determinados, indicando apenas a dupla dimen-sao de um trabalho: «O hisrociador procura localizar e interpre-tar tempo ralmente o artefacto num campo em. que se intersec-

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64 HISTORIA INTELECTUAL

tam duas linhas, Uma linha e vertical, ou diacronica, pela qua!ele estabelece a relacao de um texto ou de um sistema depensamento com as manifestacoes anteriores no mesmo ramo deactividade cultural, (pintura, politica, etc.)- A outra e horizon-tal, ou sincronica; atraves dela, determina a relacao do conteu-do do objecto intelectual com o que vai surgindo ao mesmotempo noutros ramos ou aspectos de uma cultura» 48. E, demodo bem evidente, uma mesma concepcao da tarefa do his-toriador intelectual que partilha H. V. White ao propor-lheum duplo modelo e um duplo questionario: «Gombrich e Kuhnderam-nos modelos de como escrever as historias dos generos,estilos e disciplinas; Goldmann mostra-nos como uni-los nosquadros mais vastos fornecidos pelos historiadores sociais, poli-ticos e economicos» 49. Sem necessariamente o dizerem, aquelesque em Franca tentam compreender os «objectos intelectuais»(para retomar a expressao de C. Schorske) dao o seu acordo adefinigao do espaco cultural (e, consequentemente, do proprioterreno do seu estudo) como um espaco a duas dimensoes, oque permite pensat uma producao intelectual ou artistica naespecificidade da historia do seu genero ou da sua disciplina, nasua relagao com as outras producoes culturais que sao suascontemporaneas, e, ao mesmo tempo, nas suas relacoes comvaries referentes situados noutras areas da totalidade social(socio-economica ou politica). Ler um texto ou decifrar umsistema de pensamento consiste, pois, em considerar conjunta-mente essas diferentes questoes que constituem, na sua arti-

48 Em ingles, no original: «The historian seeks to locate and interpretthe artifact temporally in a field whete two lines intersect. One line isvertical, or diachronic, by which he establishes the relation of a text or asystem of thought to previous expression in the same branch of culturalactivity (paintings, politics, etc.). The other is horizontal, or synchronic;by it he assesses the relation of the content of che intellectual object to whatis appearing in other branches or aspects of a culture at the same time», C.Schorske, f' in-de-siecte Vienna. Politics and Culture, Nova lorque, A.A.Knopf, pp. XXI-XXII.

49 Em ingles, no original: «Gombrich and Kuhn have given us modelsof how to write the histories of genres, styles and disciplines; Goldmannshows us how co unite chem on the broader canvases provided by social,political, and economic historianes*, H. V. White, «The Tasks of Intellec-tual History*, in The Monist, vol. 53, n. 4, Outubro de 1969, pp- 606-630(citacao p. 626).

CAP1TULO I 65

culagao, o que pode ser considerado como o proprio objecto dahistoria intelectual.

Contudo, por detras da forc.a da sua evidencia, tal defmicaoencerta ainda varias armadilhas. Dois conceitos constituem aium probiema e correm o risco de se perder: o de objectointelectual {«intellectual object») e o de cultura.

Depois de Foucault, torna-se claro, com efeito, que nao sepodem considerar esses «objectos intelectuais» como «objectosnatutais» em que apenas mudariam as modalidades historicasde existencia. A loucura, a medicina ou o Estado nao saocategorias pensaveis em termos universais e cujo conteudo seriaparticularizado por cada epoca. Por detras da permanenciaenganadora de um vocabulario que e o nosso, e necessarioreconhecer, nao objectos, mas objectiva^oes que constroem decada vez uma forma original. Como afirma de maneira eleganteP. Yeyne, cujo comentario aqui reproduzimos: «neste mundo,nao. se joga xadrez com figuras eternas, o rei, o bispo: as figurassao aquilo que delas fazem as configuracoes sucessivas, notabuleiro» 50.

Sao, portanro, as relacoes com os objectos que os consti-tuem, de forma especfflca para cada caso e segundo composi-coes e disttibuicoes sempre singulares. A historia intelectualnao deve cair na armadilha das palavras que podem dar a iLusaode que os varies campos de discursos ou de praticas saoconstituidos de uma vez pot todas, delimitando objectos cujoscontornos, ou mesmo os conteudos, nao variam; pelo contrario,deve estabelecer como centtais as descontinuidades que fazemcom que se designem, se admiram e se avaliem, sob formas di-ferentes ou contradirorias, consoante as epocas, os saberes e osactos. E ai que se encontra o seu proprio objecto, a saber;«relacionar os objectos pretensamente naturais com as praticasdatadas e raras que os objectivam e explicar essas praticas, naoa partir de um motor unico, mas a pattir de todas as praticasafins sobre as quais se encontram fixadas»si. O que significa

P. Veyne, «Foucault revolutionne rhiscoire>-, in Comment on ecritt'histoire mivi de Poucault revolutionne I'histoire, Paris, SeuiL 1978, p. 236.

p. 241.

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66 CAPITULO I

reconsticuir, sob as praticas visiveis ou os discursos conscientes,a «gramatica escondida» ou «imersa» (como escreve Veyne)que a explica. E ao identificar as divisoes e as relates queconscituiram o objecto, em estudo, que a historia (das ideias,das formac.6es ideologicas, das praticas discursivas — poucoimporta a designagao) podera pensa-lo sem o .reduzir a simplescondic.ao de figura de circunstancia de uma categoria suposta-mente universal.

Tao arriscado quanto o de objecto intelectual e o conceitode cultura. A sua discussao nao tern lugar aqui. Quandomuito, podera observar-se que uma representacuo comum,particularmence sensfvel na afirmac.ao de uma «historia serialdo terceiro nivel», constrol a cultura como uma instancia datotalidade social, situada «acima» do economico e do social,que supostamente constituem os dois primeiros niveis doedificio. Esta tripartite, utilizada como uma comodidadepelos historiadores quantitacivistas para delimitar varioscampos de aplicagao do tratamento serial, reproduz de factoa divisao marxista tal como a sistematizou L. Althusser. Estapartilha — que postula, por um lado, que uma das instancias,o economico, e decerminante, e, por outro, que o cultural ou oideologico formam um nivel a parte (claramente identificavele acantonado em limites reconheciveis) da totalidade social —parece ja nao ser aceitavel. Na verdade, e preciso pensar e comotodas as relates, inciuindo as que designamos. por relagoeseconomicas ou sociais, se organizam de acordo com logicas quepoem em jogo, em aero, os esquemas de percepgao e de apre-ciac.a.0 dos diferentes sujeitos sociais, logo as representagoesconstitutivas daquilo que podera ser denominado uma «cultu-ra», seja esta comum ao conjunto de uma sociedade ou propriade um determinado grupo. O mais grave na acepgao habitualda palavra cultura nao e, por isso, o facto de ela geralmenterespeitar apenas as produces intelectuais ou artfsticas de umaelite, mas de levar a supor que o «cultural» so e irivestido numcampo particular de praticas ou de produces. Pensar de outromodo a cultura, e por consequencia o proprio campo dahistoria intelectual, exige concebe-la como um conjunto designificances que se enunciam nos discursos ou nos comporta-

CAPfTULO I 67

mentos aparentemente menos culturais, tal como fez C. Geertz:«o conceito de cultura ao qual adiro [...] denota um padrao,transmicido historicamente, de significados corporizados emsimbolos, um sistema de concep^oes herdadas, expressas emformas simbolicas, por meio das quais os homens comunicam,perpetuam e desenvolvem o seu conhecimento e as atitudesperante a vida» 52.

E, portanto, uma articulacao nova entre «estrutura cultu-ral» e «estrutura social» que e necessario construir sem aiprojectar quer a imagem do espelho, que faz de uma o reflexoda outra, quer a da engrenagem, que constitui cada instanciacomo um dos maquinismos do sistema, repercutindo todos eleso movimento primordial que afecta o primeiro anel da cadeia.

52 Em ingles, no original: «the culture concept to which I adhere [...]denotes an historically transmitted pattern of meanings embodied insymbols, a system of inherited conceptions expressed in symbolic forms bymeans of which men communicate, perpetuate, and develop their knowle-dge about and attitudes towards life», C. Geertz, The Interpretation ofCultures, Nova lotque, Basic Books Inc., 1973, p. 89-

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CAPITULO II

0 Passado composto. Relates entre filosofia e historia

1. Filosofia e historia. O cema nao e corrente nestes tempos,em que se multiplicand dialogos e colaboracoes entre as dis-ciplinas, e nao e daqueles que o historiador aborde seminquietacao. Existem varias razoes para esca inquietagao, e emprimeiro lugar o receio de que sejam despertados os fantasmashoje adormecidos das «filosofias da historia» a maneira deSpengler ou de Toynbee — essas filosofias «baratas» (comoescrevia Lucien Febvre) que desenvolvem o seu discurso sobte ahistoria universal a partir de um conhedmento em terceira maodas regras e procedimentos do trabalho historico. Colocando aquestao mais a serio, a perturbagao do historiador advem dodistanciamento constacado entre dois universos de saber, emgrande medida estranhos um ao outro. A historia tal como sefaz nao atribui, com efeito, a minima importancia ao questio-nario classico dos discursos filosoficos produzidos a seu respei-to, cujos temas (a subjectividade do historiador, o estatuto doconhecimento historico, as leis e os fins da historia) parecemnao possuir pertinencia .operatoria para a pratica historica.As interrogagoes, as incertezas, as hesitacoes que a atravessamtern pouco a ver com uma caracterizacao global daquilo que e osaber historico: dai, a distancia aparentemente intranspomvelentre, por um lado, a reflexao filosofica sobre a historia, emque os historiadores nao reconhecem nada, ou quase nada, dassuas praticas e dos seus problernas, e, por outro lado, osdebates actualmente desenvolvidos, no proprio seio da historia,sobre a definicao, as condicoes, as formas da inteligibilidadehistorica, e onde se encontram formuladas, sem qualquerespecie de referenda a filosofia, numerosas questoes que sao,todavia, inteiramente filosoficas.

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70 FILOSOFIA E HISTORIA

2. A fllosofia da kistoria da historia da fllosofia, Tecer umdialogo entre fllosofia e historia supoe, pois, que se avaliemmelhor as faltas de conhecimenco reciprocas e os seus motives.Para os historiadores, a fllosofia e como que biface: de um lado,a historia da filosofia; do outro, a fllosofia da historia. Ora,nem uma nem outra se encontram em pe de igualdade com ahistoria tal como vem a ser construida desde ha meio seculo.A historia da fllosofia, que poderia ter constituido o lugar deencontro mais imediato, foi na realidade (pelo menos na tra-dic.ao francesa) a ocasiao para manifestar as maiores diferengas.Para Febvre e para os historiadores dos primeiros Annales, ahistoria da filosofia tal como a escrevem os filosofos ilustrou opior de uma historia intelectual desencarnada, fechada sobre simesma, dedicada em vao ao jogo das ideias puras l. A criticaindica bem o perpetuo rrial-estar dos historiadores perante umahistoria da filosofia que postula a liberdade absoluta da criac.aointelectual, totalmente desligada das suas condigoes de possibi-lidade, e a existencia autonoma das ideias, deslocadas doscontextos onde sao elaboradas e onde circulam.

Nos seus desenvolvimentos mais pujantes, a historia da fi-losofia nao se propos colmatar esse distanciamento face a his-toria dos historiadores. Muito pelo contrario, poderia dizer-se,a partir do momento' em que ela define o seu objecto como «aanalise objectiva das estruturas da obra», ou ainda o evidenciardas «estruturas demonstrativas e arquitectonicas da obra»2.Entendida deste modo, a historia 'da fiiosofia e uma historiaespecifica, irredutivel a todas as outras formas do saber historico,inarticulavel com o corihecimento de'sse «mundo das realidades»de: que falava Febvre. Esse estatuto proprio, que subtrai emabsolute a filosofia a interrogacao historica comum, prende--se com o facto de a historia da filosofia ser, ela propria,

1 L. Febvre, «Leur histoire et la n6tre», Annales d'Histoire Economique etSociale, 1938, cexto retomado in Combats pour I'Histoire, Paris, A. Colin1953, p. 278, e «Ecienne Gilson et la philosophic au XVIe e siecle», AnnalesE.S.C., 1946, cexto retomado in Combats pour I'Hisioire, op. cit.t p. 288.

2 Essas formulas pertencem ao prefacio do livro de M. Gueroult,es selon I'ordre des raisom, I — L'ame et Dieu, Paris, Aubier-Montai-

CAPITULO H 71

Descartesgne, 1968,

filosofia, ou, de acordo com a formula hegeliana, ser «o essen-cial para a ciencia da filosofia». Este relacionamento original,unico, que a filosofia mantem com a propria historia, cria umobjecto singular, constituido a partir do presente da disciplina:«o espirito filospfico afirma-se como o criador da historia dafilosofia, pois e a sua actividade que confere aos objectos dashistoria o seu valor de objectos dignos da historia [...]E, portanto, o pensamento filosofico do historiador da filosofiaque constitui a doutrina intrinseca em objecto»3. Donde, emprimeiro lugar, o postulado do caracter especffico do dadofilosofico presente em cada doutrina, um dado que nao e apenasconsiderado irredutfvel as circunstancias historicas do seusurgimento, mas, ainda por cima, e pensado como «nao estri-tamente historico», e por consequencia negado ou destruidopor todas as leituras que o constituem como um «acontecimen-to» inscrito na historia, submetido a um conjunto de determi-na^oes complexas e relacionado com outros «acontecimentos»:«a decomposi^ao de cada doutrina em elementos de origemdispar e externa, a sua resolugao numa soma de influencias, decircunstancias materials, de necessidades psicologicas indivi-duals ou colectivas, fa-los-ia surgir como o reflexo epifenome-nico de um momento da vida da humanidade no intelecto deum homem historicamente determinado, e destruiriam assim asua propria substancia» 4. Dai, consequentemente, uma praticada historia da filosofia que escolhe para objecto — e poderiadizer-se objecto exclusivo — a desmontagem da «lei internaespecifica de cada doutrina» organizadora do corpo de demons-tragoes articuladas que sao a propria substancia de qualquerobra filosofica.

Fundada deste modo a historia da filosofia, inteiramente es-truturada e «internalista», pode desenvolver-se numa singularida-de radical que contribuiu bastante para afastar a historia dafilosofia, dado que definia em termos completamente diferentes

3 M. Gueroult, Dianoematique, H — Philosophie de I'histoire de la philoso-pbie, Paris, Aubier-Montaigne, 1979, p. 49 (este texto foi escrito por M.Gueroult entre 1933 e 1938, portanro antes das obras mestras sobre Leibni2,Malebranche, Descartes e Spinoza),

p. 4610.

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72 FILOSOFIA E HISTORIA

dos termos dos historiadores tanto o seu objecto conio o seumecodo. Ao consticuir a historia da filosofia a partir da propriainterrogate filosofica — e unicamente a partir dela —, aoafirmar nao apenas a, irredutibilidade do discurso filosofico aqualquer determinac,ao, mas tambem, a propria impossibilidadede pensar historicamence o objecto fiiosofico, atendendo a queagir assim e na realidade destrui-lo, a historia filosoflca dafilosofia — monopolio de filosofos — instituia uma «deshistori-cizac,ao» radical na sua pratica. Que haja ai uma maneira bemfilosofica de consagrar a eminente dignidade da posicjio e dapostura filosoficas, nem determinadas nem condicionadas pelacontigencia historica, nao apresenta qualquer duvida5 — mesmose, ou sobretudo se tal perspectiva conduz a uma leiturarigorosissima das obras, unicamente guiada pela preocupagaodentifica de compreender a ordem das suas razoes.

Da historia da filosofia, os historiadores (e outros) podem,todavia, ter uma ideia diferente, que substitui a questao dasconduces de determinac,ao da verdade filosofica, que e a unicaa perrnitir estabelecer o. «valor» ou a «realidade» filosofica decertas doutrinas, e portanco do «pensamento filosofante» (ques^tao que Martial Gueroult colocava no centra da sua dianoemati-ca), pela das conduces sociais de produc,ao e de recepc,ao dosdiscursos. tidos por filosoficos nesta ou naquela economia dediscurso (questao que, precisamente, e o «impensado» funda-mental de toda a filosofia). Uma interrogate semelhante teravalor operatorio para a analise das pbras? E bem sabido quealgumas das tentativas feitas para articular urn discurso fiiosoficocom as estruturas da sociedade, onde ele surgiu, deixaram recor-dac,6es desagradaveis pelo seu reducionismo apressado e pelo seudeterminismo ingenuo. A legitimidade de-tuna «interpretac.aosocio-economica de um sistema inteiectual» (para retomar aformula de Jon Elster no seu Hvro sobre Leibniz)6 exige umaabordagem diferente do relacionamento directo de um discurso ede uma posigao social — uma abordagem que, antes de mais,

= P. Bourdieu, «Les sciences sociales ec la philosophies, Actes de laRecherche m Sciences Sociales, 47/48, 1983, pp. 45-52.

6 J. Elster, Leibniz et la formation de I'esprit capitalists, Paris, Aubier--Montaigne, 1973-

CAPITULO H 73

identifique as transferencias de paradigmas de um domfnio paraoutro (no caso, do discurso economico ou do discurso fiiosofico)ou ainda, a utilizagao de analogias que aproximam universesconceptuais separados para Leibniz (o do social e o da metafisi-ca). Pensar a possivel reinserc.ao da historia da filosofia nahistoria da producjio cultural — e, portanto, na historia toutcourt — nao e necessariamente anular o dado fiiosofico dodiscurso fiiosofico, mas tentar compreender a sua racionalidadeespeci'fica na historicidade da sua producjio e das suas relatescom outros discursos. As maneiras de entender a historia dafilosofia constituem, pois, de forma bem evidente, um dosprimeiros pontos fulcrais das relagdes entre a filosofia e historia.

3. Renunciar a Hegel. A esta primeira antinomia entre ahistoria filosofica da filosofia e a historia historica vem juntar-seuma segunda, de ha muito conceptualizada, entre conhecimentohistorico e filosofia da historia, ou melhor «historia fllosofica»,segundo a expressao hegeliana. E na verdade a Hegel, que e ,pre-ciso recorrer se se quiser compreender de modo correcto a dis-tancia acentuada entre as praticas dos historiadores e a represen-tagao filosofica da historia. Desde o primeiro esbogo da introdu-:ao as Ligoes sobre a filosofia da historia, que data de 1822,

estabeleceu-se firmemente a distinc.ao entre todas as formas dehistoria praticadas pelos historiadores — a historia original dosAntigos ou dos cronistas medievais, a historia universal amaneira de Ranke, a historia pragmatica moralizante, a hiscoriacrftica e filologica, e por fim as historias especiais dedicadasa um dominio particular — e a historia filosofica a construir,que e a unica verdadeira historia, ja que o seu objecto e, deacordo com a definigao dada no curso ministrado por Hegel em1830, «a manifestac.ao do processo divino absoluto do Espfritonas suas mais elevadas figuras: a marcha gradual pelo qua! elechega a sua verdade e toma consciencia de si. Os povos his-toricos, os caracteres determinados da sua erica colectiva, da suaconstituigao, da sua arte, da sua religiao, da sua ciencia,constituem as configurates dessa marcha gradual [...] Osprincipios dos povos [Vo/ksgeist], na serie necessaria da suasucessao, mais nao sao do que os momentos do Espirito universal

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74 F1LOSOFIA E HISTQRIA

unico: gramas a eles, este eleva-se na historia a uma totalidadetransparence em si propria e realiza a conclusao» 7. Necessidade,totalizac.ao, finalidade: tantas outras nocoes fundamentals quedurante muico tempo estruturaram os discursos filosoficos sobrea historia, numa fidelidade maior ou menor a Hegel.

Ora e justamente contra tal apreensao da realidade historicaque se construiu, desde ha cinquenta anos, a pratica historicamais concreta, que trabalha com descontinuidades, desfazamen-tos, diferenc,as. Deste distanciamento, a constatacjio mais pene-trante e incontestavelmente a apresentada por Michel Foucauitem todo um con junto de textos de finals dos anos 60 (La Reponsean Cercle d'Ephtemologie em 1968, L'Arcbeologie du savoir em1969, Uordre du discours em 1970), nos quais opoe, passo apasso, a ideia da historia geralmente admitida pelos filosofos —atravessada pela referenda hegeliana — e «o trabalho efectivodos historiadores». Para a historia tal como e praticada, e que etraduzida em obra serial de fontes massivas (em L'ordre dudiscours, Foucault cita os registos de precos, os actos notariais, osregistos paroquiais, os arquivos portuarios, fazendo assim umaalusao" implicita aos grandes temas de uma historia ligada asconjunturas economicas, demograficas ou sociais), «as nocoesfundamentals que agora se impoem ja nao sao as da consciencia eda continuidade (com os problemas que Ihes sao correlatives, daliberdade e da caiisalidade), como tambem nao sao os do signo eda estrutura. Sao as nogoes do acontecimento e da serie, comtodo o jogo das nocoes que Ihes estao ligadas — regularidade,contmgencia," descontinuidade, dependencia, transfbrmacao: epor um tal conjunto que esta analise dos discursos, sobre a qua!eu reflicto, nao se articula de modo algum com a tematicatradicionai que os filosofos de ontem ainda tomam pela historia«viva», mas com o trabalho efectivo dos historiadores» 8.

Leitor atento daquilo que designa por uma «historia nova»em L'Archeologie du savo'tr, e que e constituida antes de mais pelasgrandes teses e investigates francesas dos anos 50 e 60 sobre os

7 G. W. F. Hegel, La Raison dan I'Histoire. Introduction a la PhilosophieI'Histoire, Paris. Plon, 10/18, 1965, citacao p. 97-98.

3M. Foucautt, L'ordre du discours, Paris, Gailimard, 1970, pp. 58-59.

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movimentos dos precos e dos traficos (de Labrousse a Chaunu),as variacoes demograficas definidas a partir do merodo dereconstltuicao das familias e as evolucoes das sociedades, geral-rnente consideradas num enquadramento secular e monografico(do Beauvaisis ao Languedoc, de Amiens a Leon ou a Caen),Foucault detecta nesses trabalhos, realizados no terreno e demodo nenhum portadores de uma teoria explicita da historia,uma dupla origmalidade intelectual: relativamente a umahistoria global dedicada a contar «o desenrolar continue deuma historia ideal» — que e a historia dos filosofos e dosavatares do hegelianismo — mas tambem relativamente a umahistoria estrutural que supostamente se despoja-ria, com oacontecimento, de rupturas e quebras. O diagnostico formula-do sobre a historia tal como era feita nos anos 60 concentra,pois, a atenc,ao no conceito que mais a diferencia da herangadeixada pela «historia filosofica»: o de descontinuidade. Na suapratica, os historiadores romperam decididamente com umpensamento da totalidade — que identifica o princfpio unico,o «espirito subsrancial» universalmente presente nas diferen-tes «formas» ou «esferas» que o realizam em dado momento (oEstado, a religiao, o direito, os costumes, etc.) — e umpensamento da continuidade — que postula a unidade doEspirito atraves das suas diferentes, sucessivas- e necessariasparticularidades historicas. A historia como construc.aodesenvolve-se de outro modo: procedendo a «um uso reguladoda descontinuidade, para a analise das series temporais»9,e tentando estabelecer as relacoes que articulam essas se-ries diversas e entrecruzadas sem as remeter todas «para oprincfpio universal que impregna todas as esferas particularesda vida» 10.

Historia nova contra «historia filosofica», os Annales contraHegel: o destine desta antinomia nao deixa de ter interesse.Por um lado, e a propria filosofia que se desligou do projectohegeliano, considerando ser impossivel pensar e produzir essawfllosofia da historia universal» que as lic.6es de 1830 pretendi-

M. Foucault, «Reponse au Cercle d'Epistemologie», Cahiers pourI'Analyse, 9, 1968, Paris, Seuil, pp. 9-40, cicacao p. 11.

'°G. W. F. Hegel, op. at., p. 157.

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am fundar. Desca renuncia a Hegel, deste abandono do hegelia-nismo, a modalidade principal nao e a da refutac.ao, mas antes ado distanciamento, da deslocacjlo. Ougamos Ricoeur: «O que nosparece alcamente problematico e o proprio projecto de comporuma historia filosofica do mundo que seja definida pela «efectiva-cao do Espfrito na historia» [...] O que nos abandonamos foio proprio territorio. Ja nao estamos a procura da formula na baseda qual a historia do mundo poderia ser pensada como umatotalidade efectivada» u. A inteligibilidade da historia fica assimseparada de qualquer projecto de totalizagao, seja a escaia decada momento historico particular ou a escaia do devir universal.

Mas, por outro lado, no precise momento em que se operaessa renuncia, esse abandono filosofico de Hegel, a praticahistorica, que contribuiu para que ele se tornasse possivel,encontra-se ela propria profundamente transformada. A historiatal como se escreve hoje ja nao e aquela, ou melhor ja nao eunicamente aquela,; com que Foucault-queria articular o seuprojecto de analise dos discursos. No centra das revisoes contem-poraneas esta a propria nocao de serie, considerada fulcra! nacaracterizagao de uma historia desembaracada da referencia hege-liana. Menos seduzida agora pelos registos de precos ou pelosarquivos portuarios, a historia pode interrogar-se sobre a valida-de das deiimltagoes e dos procedimentos que implica o trata-mento serial do material historico. A critica foi dupla. Por umlado, denunciou as ilusoes animadas pelo projecto de umahistoria serial (isto e, quantitativa, na tradicao historiograficafrancesa) dos factos de mentalidade ou das formas de pensamen-to. Um tal projecto, com efeito, so pode ser redutor e produzirobjectivacoes, uma vez que supoe que os factos culturais eintelectuais se manifestam de imediato em objectos passfveis deserem contados, ou devem ser captados nas suas expressoes maisrepetitivas e menos individualizadas, ou seja, reconduzidos a umconjunto fechado de formulas de que ha apenas que estudar afrequencia desigual consoante os locais ou os meios. E con-tra uma tal reducao, que estabelece correlates demasiado sim-

11 P. Ricoeur, Temps et Recit, III, Paris, Semi, 1985, p. 279. E a estelivro que tomamos de emprestimo o ticulo desca parte.

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pies entre mveis sociais e indicadores culturais, que foi propostaa perspectiva de uma historia cultural diferente, centrada maisnas praticas do que nas distributees, mais nas producoes designificagoes do que nas repartigoes de objectos. A nocao de serienao e necessariamente expulsa de uma tal historia — porexemplo, no sentido em que Foucauit falava de «series dediscursos», tendo cada uma os seus principles de regularidadee os seus sistemas de condicionamentos — mas encontra-se ai in-falivelmente emancipada da definicao imposta pela construcaodas series economicas, demograficas ou sociais, necessariamentebaseada no tratamento estatistico de dados homogeneos e repe-tidos.

O segundo problema diz respeito a articuiacao das diferentes«series» identificadas numa determinada sociedade. A solucaoconsistiu durante muito tempo em reparti-las entre «nfveis» ou«instancias» que supostamente estruturam a totalidade social —uma divisao herdada do marxismo e que pode reforcar umaleitura das duracdes braudelianas, hierarquizando a longa dura-gao dos sistemas economicos, as conjunturas menos dilatadas dasevolugoes sociais e o tempo curto dos acontecimentos politicos.Tal concepcao, que supoe uma definicao estavel das diferentesinstancias, identiflcaveis em qualquer sociedade seja ela qual for,que implica uma ordem das determinacoes e que postula que os.funcionamentos economicos ou as hierarquias sociais sao produ-tores das representag5es mentais ou ideologicas, e nao produzi-dos por elas, ja nao e aceitavel, nem aceite. Em modalidadesdiversas, a investigacao historica tentou pensar de outro modoa leitura das sociedades, esforcando-se por penetrar no labirintodas tensoes que as constituem a partir de um ponto de vistaparticular, que pode ser um acontecimento importante ouobscuro, a trajectoria de uma vida, ou a historia de um grupoespeciflco. Dai muitas das formas da historia dos nossos dias,bem diferentes das evocadas por Foucault nos anos 1968-1970: amicrostoria em Italia, o anthropological mode of history praticado porcertos historiadores americanos, o regresso ao estudo do aconteci-mento em Franca, Em todos os casos, trata-se de ir ate asestruturas, nao atraves da construcao de diferentes series, depoisarticuladas umas com as outras, mas a partir de uma apreensao

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simulcaneamente pontual e global da sociedade considerada,dada a compreender por meio de um facto, de uma existencia,de uma pratica. O programa explicitado por Foucault («determi-nar que forma de relacao pode ser legitimamente descrita entreas diferentes series») encontra-se incontestavelmente formuladoem termos novos, exigindo que sejam elaboradas novas questoesna fronteira da pratica historica e da reflexao filosofica. Saoalgumas destas que passaremos agora a evocar.

4. Do objecto historico ou a querela dos universal*. «A his-roria e a descncao do individual atraves dos universais» 12: a afir-macao de Paul Veyne designa claramence uma das rensdes maisimportantes com a qual se defronta o conhecimento historico,habituado a mane jar, como se elas fossem evidences, categoriasaparentemente estaveis e invariaveis. Os objectos historicos,qualsquer que sejam, nao sao «objectos naturais» em que apenasvariariam as modalidades historicas de existencia. Nao existemobjectos historicos fora das praticas, moveis, que os constituent,e por isso nao ha zonas de discurso ou de realidade definidas deuma vez por todas, delimitadas de maneira fixa e detectaveis emcada situacao historica: «as coisas nao sao mais do que asobjectivacoes de praticas determinadas, cujas determinacoes enecessario crazer a luz do dia» l3. E apenas ao identificar aspartilhas, as exclusoes, as relates que constituem os objectosem estudo, que a historia podera pensa-ios, nao como figurascircunstanciadas de uma categoria supostamente universal, mas,pelo contrario, como «constelacoes individuals ou rnesmo parti-culares» 14.

A este respeito, dois comentarios. O primeiro para assinalarque o constatar dessa variacao das objectivacoes historicas naodeve ser confiindido com uma avaliacao dos conceitos dos his-toriadores, considerados necessariamente ilutuantes porque«sublunares». Reconhecer a mutabilidade das configuracoes que

12 P. Veyne, Comment on ecrit I'bistoire, 1971, Paris, Semi, 1978,p. 87.

13 P. Veyne, «Foucault revolutionne rhistoire», texto publicado nasequencia da reedi^ao de Comment on ecrit I'histoire, Paris, Seuil, 1978,

14 Ibid., p. 231-232.

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constroem de maneira especifica dominios de praticas, economi-as discursivas, formas sociais, nao e forcosamente postular que osconceitos utilizados para os designar — com a condigao dedelxarem de ser os conceiros genericos, ou universais, do repor-torio historico classico — sao por essencia falsos e fluidos.

Segunda observagao: o conceito principal de rodas as analisesde Norbert Ellas, o de Figuration (traduzido em frances porfiguragao, ou melhor, por configura$ao, comtela^ao, dispositivd) temtambem como alvo a suposta invariancia dos objectos historicos,a universalidade postulada da economia psiquica, das categoriasde pensamenro, da estruturacao sociali5. Para Elias e a modali-dade propria das rela^oes de inrerdependencia, que ligam osindividuos uns aos outros numa dada formacao, que define aespecificidade irredutlvel dessa formagao ou configuracao. Dai asfiguras singulares das formas de dominacao, dos equilfbriosentre os grupos,. dos principles de organizagao das sociedades.Dai tambem a variabilidade das categorias psicologicas e dapropria estrutura da personalidade, irredutfveis a uma economiauniversal da natureza humana, mas moldadas de forma diferencia-da pelo modo de dependencias reciprocas que caracteriza cadaformacao social. Dai, por fim, o recorte «concreto», objective,das proprias formas sociais, pelo cruzamento de praticas inter-dependences. - ---,:: . , ... - . - . , , . , . - . . , , .

Enrre Elias e Foucault sao grandes as diferencas que seprendem fundamentalmente com a oposigao entre o pensamentoda duragao, onde as formas sociais e psicologicas deslizam deuma para outra numa continuidade longa — o que Elias designapelo termo «figurarional changes* —, e um pensamento de des-continuidade, que considera essenciais as rupturas entre asdiferentes formas sociais ou discursivas. Todavia, ambos fazemapelo a uma «revolu5ao» na historia, ao obrigar esta disciplinaa pensar de outra forma os seus objectos ou os seus conceitos.Desprender-se tao radicaimente dos automatismos herdados, dasevidencias nao :questionadas, nao e tarefa faciJ, e as certezasantigas so dificilmente dao de si. Mesmo entre os mais bemintencionados, os falsos objectos naturais regressam natural-

15 Cf. Cap. III.

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mente, como se a primeira evidencia de uma existencia intem-poral do Estado, da medicina, da loucura, constituisse oobstaculo principal que impede de construir, na sua variabili-dade, as objectivagoes historicas como correlativas das praticas.

Dessas resistencias, nao e a menos duradoura a que distin-gue a realidade do social (boa para o historiador) daquilo queadvem do discurso, da ideologia ou da ficcao. Era ela queFoucault pretendia destruir numa mensagem que visava, emprimeiro lugar, os historiadores: «E necessario desmistificar ainstancia global do real como rotalidade a restituir. Nao existe«o» real que se atingiria com a condic.ao de falar de tudo ou decertas coisas mais «reais» do que as outras, e que nao sealcancaria, em proveito de abstraccoes inconsistentes; se noslimicassemos a fazer surgir outros elementos e outras relagoes[...] Um tipo de racionalidade, uma maneira de pensar, urnprograma, uma tecnologia, um conjunto de esforcos racionais ecoordenados, objectos definidos e prosseguidos, instrumentospara o atingir, ere., tudo isto faz parte do real, mesmo que naoprerenda ser «a realidade» ela propria, nem «a» sociedade noseu todo» I6. Contra «a ideia bem fraca do real», utilizadageralmente pelos historiadores, que a assimilam ao iimiar socialdas existencias vividas* ou das hierarquias restituidas, e assimafirmada a equivalencia fundamental de todos os objectos his-toricos, nunca discriminados pelos niveis de realidade diferen-tes daqueles em que eles sao considerados relevantes. O essen-cial ja nao esta, pois, em disting-uir entre esses graus derealidade — o que durante muito tempo fundou a oposicaoentre uma historia socioeconomica que atingia o real atravesdos materiais-documentos e uma historia dedicada as producoesdo imaginario —, mas em compreender como a articulagao dosregimes de pratica e das series de discursos produz o que elicito designar como a «realidade», objecto da historia.

5. Da narrativa ou as armadilhas do relato. Das questoes

na ordem do dia entre os historiadores, a das formas da propria

16 M. Foucault, «La poussiere et le nuage», in L'impossible prison.Recherches sur le systems penitent iaire au XIXs siecle, org. Michelle Perrot, Paris,Seuil, 1980, pp. 29-39, cita^ioi pp. 34-35.

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escrita historica e sem duvida uma das mais vivas e tambemuma daquelas que a referenda filosoflca pode ajudar a consti-tuir com maior pertinencia. O debate esta aberto pelo dia-gnostico que quis caracterizar a historia nas suas tendenciasmais recentes como um regresso ao relato, a narragao, econsequentemente como um abandono da descricao estruturaldas sociedades 17. Dois postukdos estao na base desta constata-cao: primeiramente, que esse retorno a narrativa significa umarenuncia as explica^oes coerentes e cientificas — particular-mente as fornecidas pelas causalidades economica e demografica— e, em segundo lugar, que essa escolha de um modo parti-cular de escrita historica — a qual «consiste em organizar amateria de acordo com a ordem continua da cronologia e emaperfeicpar a imagem de tal maneira que, pela convergencia dosfactos, o material narrado se-lo-a de um so foiego e com umaunica sequencia, mesmo quando existirem intrigas secunda-rias» 13 —- indica ao mesmo rempo uma deslocagao dos objectos(que ja nao sao prioritariamente as estruturas sociais, mas ossentimentos, os valores, os comportamentos), dos tratamentos(cedendo os processes quantitativos peranre a investigagao dasparticularidades) e da compreensao historica (substituindo osmodelos deterministas pelo «principio de indeterniina^aow).

-Urn diagnostico desre,tipo, que pode ser contestado na. suapropria validade (sera a historia dos nossos dias assim tao«narrariva» como se afirma?), parece duplamenre apressado.For um lado, onde se pensa identificar um regresso do relato auma historia que o teria desqualificado e abandonado, e neces-sario reconhecer, com Ricoeur, o inverso, isto e, a plenapertenc.a da historia, em todas as suas formas, mesmo as maisestruturais, ao dominio da narrativa. Toda a escrita propria-mente historica constroi-se, com efeito, a partir das formulas

17 L. Scone, «The Revival of Narrative. Reflections on a New OldHistory.., Past and Present, 85, 1979, pp. 3-24 (trad. fr. «Retour au redeou reflexions sur une nouvelle vieille histoire», Le Debat, 4, 1980, pp.116-142). Para as respostas a L. Stone, cf. E. Hobsbawm, «The Revival ofNarrative. Some Comments*, Past and Present, 86, 1980 (trad. fr. «Retourau recit? Reponse a Lawrence Stone», Le Debat, 23, 1983, pp. 153-160).

18 L. Stone, art', cit., Le Debat, p. 117.

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que sao as do relate ou da encenacao em forma de intriga.Existem varias formas'de transigao que remetem as «estruturasdo conhecimento historico para o trabalho de configuracaonarrativa» e que aparentam num e noutro discurso a concepcaoda causalidade, a caracterizacao dos sujeitos da accao, aconstrugao da temporalidade 19. Em virtude deste facto, ahistoria e sempre relato, mesmo quando pretende desfazer-se danarrativa, e o seu modo de compreensao permanece tributariodos procedimentos e operacoes que asseguram a encenacao emforma de intriga das accoes representadas20. ;

Mas — num segundo ponto — esta pertenca da historia anarrativa que funda a identidade estrutural entre relato deficcao e relato historico, nao exciui.inteligibilidade. E demasia-do simples a oposicao que pretende per em contraste asexplicates sem relato e os relates sem explicates: a compreen-sao historica e constrmda no e pelo proprio relato, pelos seusordenamentos e-pelas suas composi<;6es. Ha, porem, duasmaneiras de entender. uma tal assercao. Ela pode significar,antes de mais, que a encenacao em forma de intriga e em simesma compreensao — e, portanto, que existem tantas com-preensoes possfveis como intrigas construidas e que a inteligi-bilidade historica so se ayalia em funcao da plausibilidadeoferecida, pelo relato. «Aquilo a que se chama explicacao eapenas a maneira do relato se organizar em intriga compreensi-vel»2i , escrevia Veyne, considerando ao mesmo tempo quecontar e sempre, dar a compreender, e, consequentemente,explicar em historia nao e mais do que desvendar uma iatriga.Todavia, a proposta que liga narracao e explicacao pode ter umoutro senrido, se elaborar os dados colocados na inrriga comovestigios ou indicios que permitem a reconstruct sempresubmetida a controlo, das realidades que os produziram. O co-

19 P. Ricoeur, Temps el Recit, tomo I, Paris, Seuil, 1985, especial-mente capitulo «L'intentionnalite historique», pp. 247-313.

20 Cf. a leicura feita por P. Ricoeur de La Mediterranee de Braudel,onde a propria noc,ao de longa durac.ao e apcesentada como sendo derivadado aconcecimento, tal como ele e conscruido pelas configuragoes narcarivas,Temps et Recit, tomo I, op. cit., pp. 289-304.

21 P. Veyne, Comment on ecrit I'histoire, op. cil., p. 67.

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nhecimento historico e assim inscrito num paradigma do saberque nao e o das leis matematicas nem tao pouco o dos relatesverosimeis . A encenagao em forma de intriga deve serentendida como uma operacao de conhecimento que nao e daordem da retorica mas que considera fulcral a possivel inteligi-bilidade do fenomeno historico, na sua realidade esbatida, apartir do cruzamento dos seus vestigios acessiveis.

Uma vez revogada a falsa antinomia entre conhecimentohistorico e configuracao narrativa, resra o problema da aplica-gao, pela historia, de diferentes modos de escrita narrativa dediferentes registos de relato. A escrita de La Mediterranee [deBraudel], de maneira evidente, nao e a de Montaillou [de LeRoy Ladurie], a da micro-historia nao e de forma nenhuma a dahistoria social; a de uma curva de precos nao e a da historia deuma vida. Pode ter sido tentador explicar esses distanciamentosquer considerando-os como tecnicas de observacao inteiramentecompati'veis, como a manipulacao do microscopio e do telesco-pio, quer relacionando-os com as proprias mutacoes que afecta-ram as tecnicas dos relates de ficcao, em texto e em imagens,no decurso deste seculo. Mas ha sem dtivida outras razees paraa escolha desta ou daquela maneira de narrar, e em particularpara a traducao de representa^oes diversas, ate mesmo contradi-torias, do social, que ja nao e pensado como uma totalidadeestruturada ern instancias, definitivamente hierarquizadas, mascomo uma teia de relacoes complexas, onde cada individuo seencontra inscrito de multiplas formas23, as quais sao todasculturalmente construidas. Fica claro que as escolhas feitasentre as diferentes escritas historicas possiveis — e que relevamdo genero narrative — constroem modos de inteligibilidadediversos de realidades historicas pensadas de maneira diferente.E e indubitavelmente atraves desses contrastes, pelos quais sedistinguem as encenacoes do material historico, que se for-

C. Ginzburg, «Spie. Radici di un paradigma Indiziario», in Cristdella ragione. Nuovi modelli net rapporto tra sapere e attivila umane, a cura diA. Gargani, Turirn, Einaudi, 1979. pp. 56-106 (crad. fr. «Signes, traces,pistes. Racines d'un pacadigme de l'indice», LeDebat, 6, 1980, pp. 3-44).

C. G i n z b u r g e P o n i , «I1 nome e il come» , QuaderniSforici, 40, 1979, pp.. 181-190 (tradugao porcuguesa em preparacao numarecolha inedita do primeiro autor, para a coleccao «Memoria e Sociedade»).

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mulam hoje — nas proprias praticas de anaiise e nao noenunciado didactico de teorias da historia — as grandes cliva-gens que separam os historiadores e que so parcialmente re-trac.am as posigoes herdadas e institucionalizadas.

6. History versus Story ou as regras do relato veridico. Relatoentre outros relates, a historia singulariza-se, porem, pelo factode manter uma relacjio especifica com a verdade, ou antes, poras suas constructs narrativas pretenderem ser a reconstituigaode um passado que existiu. Esta referenda a uma realidadesituada fora e antes do texto historico, e que este tem porfungao reconstituir a sua maneira, nao foi dispensada pornenhuma das formas do conhecimento historico, melhor ainda,ela e aquilo que constitui a historia na sua diferenga mantidacom a fabula e a ficcaov Ora e justamente esta partilha queparece ser menos segura,, por dois conjuntos de razoes. Por umlado a reinscricjio da escrita historica no campo da narrativapode levar a apagar praticamente a fronteira que a separa dorelato de ficcjio e a fazer com que seja considerada um «literaryartifact*, uma «form of fiction-making», aplicando as mesmascategorias narrativas e as mesmas flguras retoricas que os textosde imaginagao 24. Dai uma mudanc.a de criterios de identiflca-c,ao dos modos de discurso, classificados segundo os paradigmasde encenacao em forma de intriga que os articulam, e ja naosegundo a relac,ao que se supoe manterem com a realidade. Daiuma mudanga paralela da propria -defimcao da explicatehistorica, entendida como o processo de identificac.ao e dereconhecimento dos modos e formas do discurso posto em praticapelo relato, e ja nao como a explicac,ao do acontecimento pas-sado. Mesmo se, em tal perspectiva, o objectivo referencial dahistoria nao e negado ou abandonado (caso contrario, comoconstituir a historia como especifica?), a enfase encontra-se noutrolugar, nas identidades retoricas fundamentals que assemelhamhistoria e romance, representac.6es e ficgao,

24 H. White, Metabistory. The Historical Ifnagination in XlXth CenturyEurope, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1973, "Introduction:The Poetics of History", pp. 1-42, e Tropics of Discourse. Essays in CulturalCriticism, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1978.

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Por outro lado, e para parafrasear Ricoeur, e o proprioconceito de«realidade» aplicado ao passado que e hoje em diadificil de problematizar. As aporias ou ingenuidades historicasnesta materia prendem-se sem duvida com a confusao perpetua-da entre uma dlscussao metodologica, tao antiga quanto ahistoria, sobre o valor e o significado dos vestigios que permi-tem um conhecimento mediatizado, indirecto, dos fenomenosque os produziram, e uma interrogac.ao de tipo epistemologico,geralmente evitada por historiadores, talvez porque paralizassea sua pratica, sobre o estatuto de correspondencia proclamada,reivindicada, entre os seus discursos, os seus relatos, e arealidade que eles pretendem reconstituir e tornar compreensi-vel.

«A questao da prova continua mais do que nunca no centroda investigagao historica» 25, mas o que e «provar» em historia?A questao sugeriu durante muito tempo uma resposta de tipofilologico, ligando a verdade da escrita historica ao correctoexercicio da critica documental ou ao devido manejo das tecnicasde anaiise dos materials historicos. Esse exercicio ou esse ma-nejo podem ser sujeitos a controlo, verificando ou desqualiflcan-do, numa base inteiramente tecnica, os enunciados historicosque produzem. Apoiada deste modo nos seus processes maisobjectives, a historia pode, ao mesmo tempo, ser diferenciadada fabula ou da ficgao e ser validada como reconstituigaoobjectiva do passado conhecido atraves de indicios, isto e, darealidade reconhecida a partir dos seus vestigios. «Essa recon-stituicao pode ser considerada como verdadeira se puder serreproduzida por qualquer outra pessoa que saiba por em praticaas tecnicas necessarias para o efeito»26: ainda que as modalida-des das encenac,6es em forma de intriga possam variar, aindaque a escrita historica releve do artefacto licerario, portanto da

25 C. Ginzburg, «Prove e possibiliua*, in N. Z. Davis, // ritorno diMartin Guerre. Un caso di doppia identita nelle Francta del Cinqmncento,Turim, Einaudi , 1984, pp. 131-154, cita^ao p. 149 ( textoincluido numa recolha inedita de Carlo Ginzburg que saira brevemence nacolec^ao «Memoria e Sociedade»)

K. Pomian, «Le passe: de la foi a la connaissance», Le Debat, 24,1983, pp. 151-168, citagao p. 167.

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criac,ao singular, os proprios alicerces do conhecimento histori-co escapam a essas variances e a essas singularidades, pois a sua«verdade» e garantida por operates controlaveis, verificaveis,renovaveis27.

Sirua-se af o condicionamento principal do discurso histori-co, reconhecido mesmo por aqueles que sao menos inclinados aconsiderar tal discurso como cientiflco. Abandonar as imposi-goes a que este esta sujeiro seria destruir a propria ideia desaber historico. Contudo, a experiencia de cada urn indicaclaramente que nao basta assegurar a objectividade das tecnicasproprias de cada disciplina — sejam elas fllologicas, estatisticasou informaticas — para eliminar as incertezas inerentes aoestatuto do conhecimento que ela produz, apelidado de «indi-recto, indiciador e conjectural* 28. A questao com que sedefronta a historia nos dias.de hoje e a da passagem de umavalidagao do discurso historico, fundado no controlo das ope-rac.6es que estao na sua base — nada menos do que arbitra-rias —, a um outro tipo de yalldagao, permitindo encarar comopossiveis, provaveis, verosimeis, as relates .postuladas pelohistoriador entre os vestigios documentais e os fenomenos in-diciados por eles.ou, noutros termos, as representagoes manipu-laveis hoje em:dia e as praticas passadas que elas designam.Formular assim o. problema da historia como relato veridico ecolocar simultaneamente, todo um conjunto de questoes quedizem respeito canto a pertinencia e a representatividade dosvestigios acessiveis (problema que talvez nao seja suficientepara regular um conceito paradoxal como o de «excepcionalnormal»)29, como a maneira de articular a relac,ao entre repre-sentac,6es das praticas e praticas de representac,ao.

27 Cf. a posicjio de A. Momigliano, «L'histoire a 1'age des ideologies»,Le Debat, 23, 19S3, pp- 129-146 e «La recorica della scoria e la storia dellaretorica: sui tropi di Hayden Whice», in Sttt fonctamenti della storia antica,Turim, Einaudi, 1984, pp. 456-476, onde indica que-o que distingue «aescrita historica de qualquer oucro cipo de literacura e o facto de ela sersubmetida ao controlo dos factos» (p. ,466) — i, e. as disciplinas necessariasda critica e da interpcetac.ao dos documentos.

28 C. Ginzburg, «Signes, traces, pistes», art. cit., p, 19-29 A noc.ao vem de E. Grendi, «Micro- anal is i e scoria sociale»,

Quaderni Stories, 35, 1972, pp. 506-520.

CAPITULO II 87

Todos os debates desenrolados, sobretudo em Italia, aproposito do «paradigma do indfcio», seus meritos ou insuces-sos30, parecem-nos remeter para a dupla operacao que fundaqualquer discurso historico:

1, constituir como representac,6es os vestigios, sejam deque tipo forem — discursivos, iconograficos, estatisticos, etc.,— que indicam as praticas consritutivas de qualquer objectiva-^ao historica;

2. estabelecer hipoteticamente uma relagao entre as seriesde represenrac.6es, constnifdas e trabalhadas enquanto cais, e aspraticas que constituent o seu referente externo.

Donde, todo um conjunto de consequencias. As primeirassao relativas ao tratamento dos discursos que constituem nao ounico, mas o mais massivo dos materiais da historia. Nenhumdeles pode ser manipulado sem ser submetido ao duplo questio-nario, crftico e genealogico, proposto por Foucault, tendo emvista veriflcar as suas condi^oes de possibilidade e de produ^ao,os seus principles de regularidade, os seus condicionamentos eapropriagoes31. A tarefa consiste em inscrever no centre dacritica documental, que constitui a mais duravel e a menos con-testada das caracterfsticas da historia, o questionario e as exi-gencias do projecto de analise dos discursos tal como foiformulado em articulac,ao «com o trabalho efectivo dos historia-dores», sendo o seu objecto, flnalmente, os condicionamentos eos modos reguladores das praticas discursivas da representagao.

Por outro iado, pensar o trabalho historico como um traba-lho sobre a rela^ao entre representa^oes e praticas — alar-

30 Cf. os debates desenrolados em torno de dois livros que se reclamamda microstoria e do paradigma do indicio. Sobre o de C. Ginzburg, Indagimsu Piero, II battesimo, il cido de Arezzo, la Flagellazione di Urbino, Turim,Einaudi, 198 1 (trad. fr. Enquete sur Piero della Francesca. Le Bapteme, le cycled'Arezzo, la Flagellation d'Urbino, Paris, Flammarion, 1983), vd. o dossier«Scoria a storia dell'Arte: per uno statuto della prova indiziariaw, QuademiStorici, 50, 1982, pp. 692-727, com uma critica de A. Pinelli e umaresposta de C. Ginzburg; sobte o de P. Redondi, Galileo eretico, Turim,Einaudi, 1983 (trad. fr. Galilee heretique, Paris, Gallimard, 1985), cf. oartigo de V. Ferrone e M. Firpo, «Galiieo tra Inquisitori e microscorici»,Rivista Storica Italiana, 1985, 1, pp. 177-238 e a resposta de P. Redondi«Galileo eretico», Rivista Storica Italiana, 1985, 3. pp. 934-956.

3 1 M. Foucault, L'ordre du discours, op. cit., em especial pp. 62-72.

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88 FILOSOFIA E HISTORIA

gando o referido questionario aos outros tipos de representagoesmanipuiaveis pelo historiador — significa considerar, em prin-cfpio, que entre umas e outras so existem relacoes conjecturais.Querer opor as certezas da ciencia filologica, que reconstituio «verdadeiro» ou o «real» a partir de uma critica documentalcorrecta, as incertezas das reconstructs hipoteticas ou arbi-trarias do trabalho sobre indicios e perfeitamente ilusorio. Aquestao pertinente, com efeito, e a dos criterios que permitemconsiderar possfvel a relagao institufda pela escrita historicaentre o vestigio representante e a pratica representada (paraparodiar o vocabulario de Port-Royal)32. Essa relacao pode serconsiderada aceitavel, diz Carlo Ginzburg, se for plausfvel,coerente e explicariva. Que nenhum destes termos seja facil-mente fundamentado ou definido, ninguem tern duvidas —sobretudo relativamente a propria noc.ao de «explicac.ao». Noentanto, - eles indicam os lugares dos controlps possiveis dequalquer enunciado historico: no campo da sua objecrividade,encendida, de acordo com a formula de Mandelbaum, como«excluindo a possibiiidade _de que a sua negacao possa serigualrnente verdadeira» 33; rio campo da sua possibilidade, istoe,, da sua compatibilidade com os enunciados produzidos emparalelo ou previamente. Escreyer a historia com tais catego-rias, admitindo uma margem de incerteza irredutivel e renun-ciando a propria !nogao de proya, parecera talvez decepcionantee um recup- relativamente ao proposito de verdade que consti-tmu a propria discipliaa. Contudo, nao existe outra via, a naoser postular - — o que poucos se propqem fazer, segundo creio— quer o relativismo absolute de uma historia identifica-da com a -_ficc.ao, quer as .certezas ilusorias de uma historiadefmida -como ciencia positiva.

32 A cituio de^exemplo,.vd. a discussao do livro de R. Darncon, TheGreat Cat Massacre and Other Episodes in French Cultural History, Novalorque, Basic Books, 1984 (trad. fr. Le Grand Massacre des Chats. Attitudes etCroyances dans I'ancienne France,. Paris, Editions Robert Laffont, 1985) in R.Chattier «Text, Symbols and Frenchness» Journal of Modern History 57, 4,1985, pp. 682-695 e P. Benedict e G. Levi, «Robert Darnton e il massacredel gatti», Quademi Storici, 58, 1985, pp. 257-277.

33 M. Mandelbaum, The Anatomy of Historical Knowledge, Baltimore,The Johns Hopkins University Press, 1977, p. 150, cicada por P. Ricoeur,in op. tit,, romo I, p. 248.

CAPITULO II 89

7. Historia e ftlosofia. Para um historiador, pensar a relacjioentre as duas disciplmas e antes de mais colocar uma questaointeiramente pratica e util: em que e como a reflexao fllosoflcapermite elaborar melhor os problemas para os quais aponta nosnossos dias todo o trabalho historico concreto e empfrico? Ainterrogacao epistemologica sobre a historia sofreu sem duvidapelo facto de durante muito tempo nao passar de um discursohistorico geralmente normative, enunciando aquilo que a his-toria devia ou nao ser, ou explicative, indicando o modo comoeia procedia perante o documento (ou, pelo menos, como elajulgava proceder). Dai o abandono de quest5es que, contudo,sao essenciais para a constituic.ao da propria disciplina; as dadelimitacao dos seus objectos, das suas formas narrativas, dosseus criterios de validac.ao. Conceptualizar tais problemas supoeum convivio necessario e proveitoso com a filosofia tanto maisque esta obriga a increver os debates metodologicos relatives aiegalidade ou a pertinencia das tecnicas historicas, num questi-onario epistemologico sobre a relagao existente entre o discursoproduzido por essas operates e o referente que ele pretendereconstituir. A tarefa supoe sem duvida o abandono de certasposturas naturais em cada tradigao disciplinar: a contenc.ao doempfrico, identificado com o historico, por um lado, e, poroutro, a ostentacao de um real bem «real», considerado palpa-vel como um documento, legfvel como um arquivo aberto.

Abalar estas certezas, por vezes fortemente reivindicadas,mas a maior parte das vezes aceites espontaneamente, requer,para comecar, que seja constituida a historia comparada da suainstituigao — ou seja, a do estabelecimento das identidadesdisciplinares — e, seguidamente, que sejam constrmdas histo-ricamente as questoes de filosofia — comec.ando pela da suapropria historia — e elaboradas filosoficamente as dificuldadesda pratica historica.

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CAPITULO III

Forma^ao social e «habitus»; uma leitura de Norbert Elias

1. Pode parecer paradoxal proper uma leitura historica deDie hofische Gesellschaft [A Sodsdade de Corte] de Norbert Elias,uma vez que este livro se inicia com uma cn'tica radical a abor-dagem historica. Na sua introduclo Elias opoe, passo a passo, asociologia tal como ele a concebe e pratica, produtota de umsaber seguro, rigoroso, cumulavel, a historia, perdida nos becossem safda do relativismo. Para ele, a abotdagem historica dosfenomenos encerra tres fraquezas fundamentals: atribui geral-mente um caracter unico aos acontecimentos que estuda; postu-la que a liberdade do individuo e fundadora de todas as suasdecisoes e acgoes; telaciona as evolugoes maiores de uma epocacom as livres intengoes e os actos voluntaries daqueles quepossuem poder e dominio. A historia assim praticada, repro-duz, niuna perspectiva que pretende ser de conhecimento, aideologia das sociedades em estudo onde era considerada centrala vontade do ptincipe a qua! tudo devia obedecer e todosdeviam submeter-se. Mesmo apoiada na exploragao documentale nas tecnicas exigentes da erudicao, tal forma de procederapenas pode ptoduzir um saber atbitrario, constitufdo por umasucessao de juizos contraditorios que sao, todos eles, o reflexodos interesses e preconceltos dos historiadores que os pronunciam.

E contra tal abordagem que" Elias define o seu proprioprojecto, qualificado como sociologico. A sua divergencia rela-tivamente a historia nada tern a ver com a situacao cronologicados fenomenos considerados: a sociologia nao consiste, ou naoconsiste apenas, no estudo das sociedades contemporaneas,antes devendo dar conta das evolu^oes de lohga, e mesmomuito longa dura^ao, que permitem compreender, por filia^aoou por diferenca, as realidades do presente. O seu objecto einteiramente historico, no sentido em que se situa (ou pode ser

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92 FORMA$AO SOCIAL E «HABITUS»

sltuado) no passado, mas a sua perspectiva em nada e historica,uma vez que nao se prende com individuos, supostos comolivres e unicos, mas com as posigoes que existem independente-mente deles e com as dependencias que regulam o exercicio dasua liberdade. Estudar nao um rei em particular, mas a funcaode rei, nao a acgao de um principe, mas a rede de condiciona-lismos em que se inscreve: tal e o proprio principio da analisesociologica segundo Elias, e a especificidade fundamental que adistingue da abordagem historica.

Os cragos que Norbert Elias atribui a historia, consideradacomo perspectiva unica, sempre identica a si mesma, nao saoaqueles atraves dosv quais os historiadores destes ultimos vinteou trihta anos gostariam de ver caracterizar a sua pratica. Comos Annates, e nao so, a historia afastou-se, efectivamente, doscredos classicos recordados e criticados por Elias. O estudo dasseries, sejam demograficas ou economkas, fez desviar a atengaodo acontecimento unico para o facto repetido, do excepcionalda accjio, politica oujnilitar para os ritmos cfclicos dos movi-mentos conjunturais. A analise das sociedades, por seu turno,propos uma histona das estruturas que ja nao e a dos indivi-duos e onde- contain, ^ antes de mais, as posicoes dos gruposrelativamente uns aos outros, os mecanismos que asseguram amobilidade , (pu a reproduc.ao) social, os nincionamentos naoapreendidos .pelos sujeitos sociais e sobre os quais a sua accaovoluntaria nao tern qualquer influencia. A evolucao da proble-matica historica mais recente produziu-se em termos que vaoao encontro de Elias, estudando com rigor as determinacoesque pesam sobre os destinos pessoais, os fenomenos que nenhu-ma vontade -—.nem mesmo a do principe — seria capaz detransformar. Os reis foram assim destronados das preocupacoeshistoricas, e com eles a ilusao do caracter todo-poderoso dasintengoes indiyiduais.

Significara isso que o proposito da introducao de NorbertElias perdeu toda a pertinencia e que, em nossos dias, a socio-logia que ele pratica e a historia tal como ela e nao sao mais doque uma mesma coisa? Isso seria sem duvida ir dernasiadolonge, e ignorar a licao sempre actual de uma obra cujo vigorinovador o tempo nao apaga. Tome-se como exemplo o proprio

CAPITULO HI 93

assunto do livro: pode ser entendido como o estudo da cortedos reis de Franca entre Francisco I e Luis XIV. Um assuntohistorico bem classico, e mesmo algo arcaico em comparacaocom os inceresses recentes dos historiadores, preocupados comas maiorias, as sociedades provincials, as existencias populates.Mas por detras dessa aparencia, o projecto de Norbert Elias ecompletamente diferente. Nao se trata, para ele, de apreender acorte somente ou prioritariamente, como o lugar de ostentacaode uma vida colecciva, ritualizada pela etiqueta, inscrita nofausro monarquico. O objecto do livro e a sociedade de corte— na dupla acepcao do termo. Por um lado, ha que considerara corte como uma sociedade, isto e, como uma formagao socialonde se deflnem de maneira especifica as relacoes existentesentre os sujeitos sociais e onde as dependencias reciprocas queligam os individuos uns aos outros engendram codigos e com-portamencos originais. Por outro lado, ha que considerar asociedade de corte no sentido de sociedade dotada de uma corte(real ou principesca) e organizada inteiramente a partir dela.Constitui, portanto, uma forma particular de sociedade, a tratardo mesmo modo que outras grandes formas, como a sociedadefeudal ou a sociedade industrial. A corte desempenha ai um papelcentral, uma vez que organiza o conjunto das relacoes sociais,tal como os lacos de vassalagem na sociedade feudal ou a produgaomanufactureira nas sociedades industrials. O proposito de Eliase, pois, o de compreender a sociedade de Antigo Regime a partirda formacao social que pode qualifica-la: a corte.

Nao a corte, portanto, mas a sociedade de corte. E e preciseacrescentar, nao uma sociedade de corte particular — ainda quea analise se desenvolva a partir do exemplo frances, que, sobLuis XIV, propoe a forma mais acabada de corte de AntigoRegime. Para Elias, o estudo de caso permite atingir o essencial,ou seja, evidenciar as condicoes que tornam possivel a emergen-cia e perpetuam a existencia de tal-forma social. Dai a duplaestrategia de investigate aplicada no livro. Por um lado,trata-se de considerar uma situagao historica especifica e, conse-quentemente, de por a prova dados empfricos, factuais, umcorpo de hipoteses e de conceitos. «As teorias sociologicas quenao sao verificaveis por um trabalho de sociologia empirica nao

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servem para nada», escreve Elias, estabelecendo assim o seudistanciamento relativamente a uma sociologia mais tentada pelaconstrugao de taxionomias de validade universal do que pela«analise intensiva» de casos historicos determinados. A tipologiaweberiana das formas de dorninac,ao, para que remeteriam todas assituagoes concretas possiveis, Elias opoe uma outra abordagem,que estabelece as leis de funcionamento das formas sociais a partirdo exarne minucioso de uma das suas actualizagoes historicas.

Mas para tanto, deve. atender-se a uma segunda exigencia; ada analise comparativa. Esta tern de ser entendida a tres escalas.A primeira permite detector funcionamentos diferentes da mes-ma forma social no interior de sociedades comparaveis e contem-poraneas. E assim que, por diversas vezes, Elias confronta asociedade de corte da Franca de Antigo Regime com a situagaoinglesa, em que a corte regia nao e o unico centro da autoridadesocial (p. 49. pp. 87-88)*, ou corn a situac.ao prussiana, onde0 emprego dos nobres como funcipnarios do Estado impediu odesabrochar da cultura de corte alimentada em Franga por umanobreza sem actiyidade.profissional (pp. 207-208). Mas as cortesde principes nao _sao proprras da sociedade ocidental entre osseculos XVI e XVIII, e Elias trac,a putras comparacpes a maiordistancia —~ como a que aproxima o. papel desempenhado pelascortes das sociedades asiaticas • do papel das cortes europeias.Aqui, o importante e, mostrar os efeitos identicos da mesmaforma social no seio de sociedades muito afastadas no tempo e noespago. A «curializaciao» dos guerreiros, isto e, a transformac,aode uma aristocracia militar em,nobreza.de corte, e um dessesfenomenos gerados, em toda a parte pela existencia das cortes deprincipes, e que em tqda a parte parece estar na otigem do«processo de civilizacao», entendido como a pacifica^ao dascondutas e o controlo dos afectos (La Dynamique de {'Occident,pp. 225-227)**. Ppr.fim, comparar, para Elias, e tambern porem contraste as formas e os funcionamentos sociais. O contrato-

* Quando nao precedidas de um titulo, as referencias encre patentesesreportam-se todas a edic.ao francesa de Die hb'ftsche Gesellschaft de que opresents texto constitui o prefacio. (Vd. notas 1, 2 e 6 do presente capitulo,para uma referenda completa a esta obra).

** Vd. noca 5 .

CAPITULO III 95

da sociedade de corte e, assim, dado pela sociedade burguesados seculos XIX e XX, que difere daquela pela etica economica(pp. 47-48), pela actividade profrssronal dos seus membros,pela constituigao de uma esfeta do privado separada da exis-tencia social (pp. 112-113). As divisoes tidas actualmentecomo evidentes (por exemplo, entre vida publica e vida priva-da), as condutas consideradas como sendo apenas racionais (porexemplo, o ajustamento das despesas familiares aos rendimen-tos dispomveis), podem ser assim despojadas da sua supostauniversalidade e reconduzidas ao estatuto de formas temporari-amente circunscritas, segregadas por um novo equilfbrio socialque nao era o das sociedades de corte.

2. E para justificar o que pode ser o estudo sociologico deum fenomeno vulgarmente considerado como historico queNotbert Elias redigiu o prefacio do seu livro, a pedido dos di-rectores da colecgao em que foi publicado em 1969 '. Mas estadata nao devera induzir em erro: A Sociedade de Corte e um livtoque foi determinado, pensando e, no esssencial, concluido muitoantes, quando Elias era assistente de Karl Mannheim na Universi-dade de Frankfurt — posr^ao que ocupa a partir de 1930. A obraconstitui a sua tese de aptidao, uma tese nunca defendida de-vido a tomada do poder pelos nacionaisr-socialistas e a sua ,par-tida para o exr'lio, rnicialmente para Paris, depois para Lon-dres2. Somente trinta e oito anos apos a sua redact, ao e que oHvro foi publicado, acrescido do prefacio.

Ainda que frequentemente esquecida pelos historiadores, adata do livro — isto e, infcios dos anos 30 — tern uma grande

' Norbert Elias, Die hoflsche Gesdlschaft. Untersuchungen zur Soziologie desKiJnigsfums und der Mfischen Aristokratie mil einer Einleinlung; Soziologie tindGeschichtswissenschaft, Neuwied e Berlim, Hermann Luchterhand Verlag,Soziologische Texce, Band 54, 1969, reedi^ao em 1975, com a chancela deHermann Luchterhand, Darmstadt e Neuwied, e em 1983 na SuhtkampVerlag, stw 423. (Referenda as tradu^oes desta obra na nota 6 do presentecapitulo).

2 Norbert Elias, Die hofische Gesellschaft. Untersuchungsn zur Soziologie deiAdels, des Konigstums und dss Hofes, vor ailem in prankreicb des XVII tenJabrbunderts, Habilitationschrift em sociologia, Universidade de Frankfurt,1933, dactilografado.

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importancia para a sua compreensao. Ela explica, antes demais, a sua base referencial, percepti'vel atraves dos autoresdiscutidos e das obras utilizadas e citadas. Em A Sociedade deCorte, as referencias pertencem a tres registos diferentes. Ha,em primeiro lugar, os textos franceses dos seculos XVI, XVIIe XVIII, que constituent o material documental analisado. Emprimeiro piano encontramos Saint-Simon, citado umas vintevezes, ora em frances, ora em versao alema, a Encyclopedic, cujosartigos e quadros dedicados a hierarquia das residencias forne-cem, juntamente com as obras de Jombert e Blondel, a materiado capitulo «Estruturas e significado do habitat» (em alemao,«Wohnstrukturen als Anzeiger gesellschaftlicher Strukturen»),La Bruyere, Marmontel pelo artigo «Grands» da Encyclopedic,Gracian na traducao francesa de Amelot de la Houssaie,Brantome, o As tree e os poetas renacentistas estudados nocapitulo «Curializac.ao e romantismo aristocratico».

Segundo conjunto de referencias: os classicos da historiogra-fia francesa do seculo XIX e do primeiro , terc.o do seculo XX.A informacao sobre a qual trabalha Elias e dai retirada, dasgrandes sinteses da historia, nacional, dos instrumentos detrabalho, dos estudos de historia social. A.s.0rigznes de I'AncienRegime de Taine e os volumes de Lavisse, redigidos por Lemon-nier, Mariejol e pelo proprio Lavisse, e relatives ao reinado deLuis XW, pertencem a primeira categoria; o Dictionnaire des.institutions, de Marion, publicado em 1923, a segunda; o livrode Avenel Histoire de Ja _ fortune fran^aise (1929), o de Seetraduzido para o alemao em 1930 com o titulo FranzosischeWirtschaftsgesckichte, os de Normand sobre a burguesia no seculoXVIII e de Vaissiere sobre os fidalgos da provmcia, a terceira.Algumas obras historicas alemas completam esta bibliografia,sendo a mais citada, de longe, a Franzosische Geschichte de Ranke.Destas obras historicas, todas anteriores a 19303, Elias apenas

3 Unica excep^ao: a men$ao feita ao livto de D. Ogg Louis XIV,Londres, 1967. Apenas se encontram duas outras refer&ncias, em todo olivro, a cextos posteriores a 1930, nomeadamente uma conferencta de A. W.Southern, 1961, cicada no prefacio, e o livro de W. Lepenies Melancholic undGesellscbaft, Frankfurt-am-Main, 1969.

CAPITULO III 97

retira fragmentos de analise, sempre muito parciais, utilizando--os sobretudo como comodas recolhas de textos antigos quepermitiam completar os compulsados em primeira mao.

Para organizar os dados historicos coligidos ao longo dassuas leituras, Elias constroi um modelo de interpretagao socio-logica que pretende demarcar daqueles que dominavam a socio-logia alema nos inicios dos anos 30. As referencias permicemaqui identificar quais os interlocutores privilegiados. O quesurge com maior frequencia e evidentemente Max "Weber: o seulivro Wirtschaft und Gesellscbaft, publicado em Tubingen em1922, e citado por quatro vezes, e Elias discute ou glosa variasdas suas teses centrais, seja a teoria dos tipos ideais, a oposicaoentre os modos de racionalidade ou a tipologia das formas dedominacjio, que distingue e opoe dominagao patrimonial edominagao carismatica (p. 121). Elias pensa tambern com econtra Werner Sombart — cuja intuigao quanto a importanciapolitica e cultural das cortes de prfncipes retoma (p. 174) —e Thornstein Veblen, cuja obra de 1899 Theory of the LeisureClass parece, a seu ver, passar ao lado do respective objecto,ao avaliar a etica economica da aristocracia a luz dos criteriosda sociedade burguesa (pp. 48-49). Weber, Sombart, Veblen:sao essas as referencias sociologicas de Elias em 1933, pelomenos as que para ele parecem contar e e necessario discutir.Acresce, de passagem, uma alusao a Marx, de quern Eliascritica a maneira, segundo ele inteiramente hegeliana,de i'dentificar as descontinuidades historicas em termosde transicao do quantitative para o qualitative (pp. 261--263).

Pela sua redaccao, pelas suas referencias, pela sua informa-C;ao, A Sociedade de Corte e, pois, um livro antigo, que revestiuuma forma quase definitiva em 1933. O facto tern a sua im-portancia para compreender em que universo intelectual foiconcebido, o de uma sociologia dominada pela figura de Webere de uma historia que e ainda a do seculo XIX. O facto tern,tambem, a sua importancia para o situar na propria obra deNorbert Elias. Muito embora so publicado em 1969, A Socieda-de de Corte e, com efeito, um livro anterior a obra maxima deElias, Uber den Prozess de Civilisation, publicada em 1939 em

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Basileta4. E7. pois, necessario considerar A Sociedade de Cortecomo uma primeira formulac,ao dos conceicos e das teses quedesenvolverao, em grande escala, os dois coinos de 1939. Masem contrapartida, -compreender plenamente o livro supoe o co-nhecimento da problematica global que Ihe confere um sentidoe que inscreve a corte como figura central da constituic,ao doEstado absolutista e, ao mesmo tempo, do processo de civiliza-c.ao que transforma radicaimence a economia psiquica doshomens do^ Ocidente entre os seculos XII e XVIII. Ler Eiiascomo ele deve ser lido, isto e, articulando uma com a outra assuas duas obras mestras e relacionando-as com o momento dasua concepc,ao e escrita — a Alemanha de Weimar com Diehofische Gesellschaft, o exilio com Uber den Prozess der Zivilisation— supoe por ordem nas suas traduc,6es, tardias e muitopublicitadas. As duas obras publicadas separadamente em fran-ces com os titulos La-Civilisation des moeurs (1973) e LaDynamique de I'Occident (1975) sao na realidade as duas partesindissociaveis do mesmo livro, Uber den Prozess der Zivilisation 5.Die ho'fische'' Gesellschaft,. traduzido para Frances em 1974 ereeditado com o seu prefacio, e, como ja vimos, simultanea-mente anterior, pela "sua redacgao, e posterior, pela sua publi-cac,ao," aos dois tomos de Uber den Prozess der Zivilisation6.

'"'' InscritO'intelectuaimente no seu tempo, pelas suas referend-as, o livro e-o tambem de uma outra forma. Com efeito, e di-

. ;- 1 -Uber- den Prozess der Civilisation. Soziagenetische uns PsychogenetischeUntenuckungen, Basileia, Haus zum Faikeo, 1939- O livco foi reeditado em1969, com um importance pcefacio, pela Verlag Francke AG, em Berna, eem 1978/1979 pela Sukrkamp Verlag, sew 158-159, em Frankfurt.

-••-s Norbert1 Elias, La Civilisation des moeurs, traduzido do alemao porPierre Kamnitzer, Paris, Calmann-Levy, 1973, e La Dynamique de ['Occident,traduzido do alemao por Pierre Kamnitzer, Paris, Caimann-Levy, 1975.Mais recente, a traduc.ao inglesa foi revista pelo pr6prio Norbert Elias,cf. Norbert ,= EHas,,- The Civilizing Process. Sociogenetic and PsychogeneticInvestigations, vol.. I, The History of Manners, e vol. II, State Formation andCivilization, traduzido por Edmund Jephcott com notas e revisao do autor,Oxford, Basil Blackwell, 1978 e 1982.6 Norbert Elias, La Societe de Cour, trad, do alemao por PierreKamnitzer, Paris, Calmann-Levy, 1974, reedic.ao acrescida do prefacio,Paris, "Flammarion («Champs»), 1985; em ingles, The Court Society, trad,por Edmund Jephcott, Oxford, Basil Blackwell, 1983; [em portugufes, ASociedade de Corte, trad. Ana M. Alves, Lisboa, Escampa, 1986 — segue aprimeira edic.ao francesa].

CAPITULO III 99

ficil ler as paginas em que Elias opoe a dominagao do rei abso-lute a do chefe carismatico (pp. 121-128) sem se pensar queelas foram escritas no proprio momento em que um desses che-fes se aproximava e depois se assenhoreava do poder. A carac-teriza^ao do «grupo central carismatico» como lugar de umapossivel promo^ao social, a sua defmic.ao como grupo necessa-riamente unificado em torno de um objective comum (a tomadado poder), a insistencia na importancia da autoridade e dainiciativa individual do chefe que nao dispoe de qualqueraparelho de dominapio fora do seu proprio grupo: varies tracesque podem descrever o nacional-socialismo na sua fase deascensao. Do mesmo modo que a corte de Luis XTV e um lugarprivilegiado onde podem ser reconhecidas as propriedades ge-rais das sociedades de corte, parece-nos que Elias idenrificouimplicitamente no partido hitleriano as que carac'terizam a do-minagao de qualquer chefe carismatico «quando o observamosdurante o periodo de ascensao» — a que correspondia, no piorsentido, a situac,ao da Alemanha dos inicios dos anos 30. Numapendice redigido apos a leitura de um arrigo que o historiadorHans Mommsen publicou em Der Spiegel em Marc,o de 1967,Elias retoma, desta vez explicitamente, o tema da ditaduranacional-socialista. Sob o titulo «A proposito da ideia segundoa qual pode exisur um Estado isento de conflitos estruturais»,Elias afirma que as concorrencias e tensoes existentes no Estadohitleriano constituem um mecanismo necessario a perpetuac.aodo poder dicatorial — e nao, como muitas vezes pensarn os his-toriadores, um sinal da sua incoerencia ou o indicio da suaqueda. Ao instalar-se no poder, o chefe carismatico devemanter uma unidade ideologica ideal, cimentada na fase deascensao e transferida do grupo dos seus fieis para toda aNac,ao, e, simultaneamente, fazer uso das rivalidades efectivasque atravessam o circulo dirigente que governa o Estado.Trata-se, portanto, de distinguir claramente a ideologia unifi-cadora da diradura e a sua realidade social, que perpetua ne-cessariamente os conflitos entre aqueles que a exercem.

3. Situar a obra de Elias no seu tempo nao significa, muitopelo contrario, retirar-lhe a forga inovadora, ainda intacta actual-

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mente. Essa forc.a tern a ver, antes de mais, com os conceitosfundamentals aplicados a nivel da analise e cuja lista Elias indica,de passagem (p. 234). Trata-se das nocoes, «que ainda hoje nosparecem estranhas», de formacao [Figuration], interdependencia[Interdependent], equilibrio das tensoes [Spannungsgleichgeivichtou, noucros locals, Spannungsbalance], evoiucao social[Gesellscbaftsentwicklung] ou evoiucao das formac.6es [F'iguration-sentwicklung]. E o manuseamento destes diferentes ucensfliosincelectuais que permite pensar o proprio objecto da sociologia:«A questao de saber de que maneira e por que razoes os homensse ligam entre si e formam em conjunto grupos dinamicosespeciflcos e um dos probiemas mais importantes, para nao dizero mais importance de toda a sociologia» (p. 232). E e atraves deuma formulacao identica que Elias, num livro publicado em1970, Was ist Soziologie? (contemporaneo, portanto, da edicao deDie bofische Gesellschaft e da redaccao do importance prefacioescrito para a reedic.ao de Uber den Prozess der Zivilisatiori) define«o objecto de escudo da sociologia»: isto e, «as redes de inter--relacoes,-as 1 interdependencias, as .conflguragoes, os processesformados pelos- homens interdependentes» 7.

O principal conceito e, aqui, o de Figuration, traduzido querpor formagao,. quer por configuragao. Ern Was ist Soziologie?, Eliasexplicita o seu significado: uma Figuration e uma forma^ao socialcujo famanho pode ser muito variavel (os jogadores de um jogode cartas, a tertulia de um cafe, uma turma de alunos de umaescola, uma aldeia, uma cidade, uma nacao), em que os indivi-duos estao ligactos uns aos outros por um modo especifico dedependencias reciprocas e cuja'reproducao supoe um equilibriomovel de' tensoes*. E notorio que as noc,6es de formacao, deinterdependencia "e d£"~equilibrio das tensoes se encontram estrt-tamente ligadas umas as outras, permitindo deslocar varias dasoposigoes classicas, herdadas da tradigao filosofica ou sociologica,

7 Norbert Elias, Was ist Soziologie?, Munique, Juventa Verlag, Grund-fragen der Soziologie,"-Band I, 1970; tradu?ao francesa: Qu'est-ce que lasociologies*, craduzido do alemao por Yasmin Hoffman, Pandora, 1981;[cradugao portuguesa, Introduqao a Sociologia, tradugao de Maria Luisa RibeiroFerreira, Lisboa, Edigoes 70, 1980].

* lntrodu$ao a Sociologia, tit., pp. 140-145.

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e em primeiro lugar a estabelecida entre Hberdade. e determi-jgismo. Recusando o terr^rKL.da.imejaJ|sica — que deixa apenasa opcao ntte^l^fmagiS^dallBeraade absoluta do Homem e asua total determinacao, segundo o modelo de uma causalidadefisica indevidamente transferida para o piano historico — Eliasprefere pensat a «liberdade» de cada individuo como estandoinscrita na cadeia de interdependencias que o liga aos outroshomens, limitando o que Ihe e possivel decidir ou fazer. Contraas categorias idealistas do individuo em si [Individuum an sich]ou da pessoa absoluta [nine Person], contra uma representacaoatomista das sociedades, que apenas as considera como a agre-gacao de sujeitos isolados e a soma de comportamentos pessoais,Elias atribui um papel central as redes de dependencias recipro-cas que fazem com que cada accao individual dependa de todauma serie de outras, que modificam, por seu tutno, a propriafigura do jogo social. A imagem que pode representar esteprocesso permanente de relacoes em cadeia e a do tabuleiro dexadrez: «Como no xadrez, toda a accao efectuada com umarelativa independencia representa um golpe no tabuleiro social,que desencadeia infalivelmente um contragolpe de um outroindividuo (no tabuleiro social, trata-se na realidade de muitoscontragolpes executados por muitos indivfduos)» (pp. 152--153).

Para Elias, e a modalidade variavel de cada uma das cadeiasde interdependencias, que podem ser mais ou menos longas,mais ou menos complexas, mais ou menos condicionadoras,que define a especiflcidade de cada formacjio ou configuracaosocial, situe-se esta na escala macroscopica das evolucoes histo-ricas (como a sociedade de corte ou a sociedade feudal) ou naescala, mais diminuta, das formacoes, de dimensoes diversas,detectaveis numa mesma sociedade. Dai a possibilidade deultrapassar a oposicao entre o hornem considerado como indivi-duo livre e sujeito singular, e o homem considerado como serem sociedade, integrado em solidariedades e em comunidadesmultiplas. Dai, igualmente, um modo de pensar as relacoesinter-subjecrivas, nao com categorias psicologicas que as su-poem como invariaveis e consubstanciais a natureza humana,mas nas suas modalidades historicamente variaveis, directa-

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mente dependences das exigencias proprias de cada formacaosocial. Dai, finalmente, a aboligao da distincao que vulgar-mente designa como «concretos» ou «reais» apenas os indivi-duos de carne e osso e trata como abstracgoes as formas sociaisque os ligam uns aos outros. Para Elias tal divisa£> nao eaceitavel, e para fazer compreender este facto, torri'a. comoexemplo um jogo de cartas: o jogo nao tern ai existenciapropria fora dos jogadores que o jogam, masf em contraparti-da, o comportamento individual de cada um dos jogadores eregulado pelas interdependencias que implica essa formagao ouconfiguracao especifica que e o jogo de cartas. Donde aconclusao: «Nem o "jogo" nem os "jogadores" sao abstraccoes.O mesmo se diga da configuragao que formam os quatrojogadores a volta da mesa. Se o cermo "concrete" tern sentido,pode dizer-se que a configuracao formada por esses jogadores etao concreta como os proprios jogadores. For cbnfigurac.ao_ enecessario entender a figura global em constante mutacao queformam os jogadores; ela inclui nao apenas o seu intelecto, mastoda a sua pessoa, as accoes e as relagoes reciprocas»*. Contrauma concepcao empobrecedora do «real» -muitas vezes encon-crada no meio dos historiadores, e que so tern em conta oconcreto de existencias individuals bem identificaveis, Eliaspropoe uma ourra maneira de pensar, que considera de igualmodo reais as relates, evidentemente invisiveis, que associamessas existencias individuals, determinando assim a natureza daformagao social em que elas se inscrevem.

Em cada formac.ao, as interdependencias existentes entre ossujeitos ou os grupos distribuem-se em series de antagonismos,instaveis, moveis, equilibrados, que sao a propria condic.ao dasua possivel reproducao. Segundo Elias, ha ai uma propriedadeuniversal, estrutural, de todas as formac,6es sociais — mesmose, claro esta, o equilibrio das tensoes, apresenta um desenhomuito especifico em cada uma delas: «No seio das configura-c,6es em mutac.ao ou, por outras palavras, no centra do" processode configurac.ao, estabelece-se um equilibrio flutuante dastensoes, um movimento pendular de equilibrio das forgas, que

* Introdu^o a Saciologia, at., p. 142 (diferen^as de tradu^ao).

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se inclina ora para um lado, ora para o outro. Esse equilibrio deforgas flutuantes conta-se entre as caracteristicas estruturais detoda a configuracao» *. E por isso que se torna necessarioidentificar os seiis termos, tanto na sociedade de corte francesado seculo XVII como no Estado ditatorial do nacional--socialismo. Quando o equilibrio das tensoes que permitia aperpetuacao de uma formagao social se encontra quebrado —quer porque um dos adversarios/parceiros se tornou demasiadopoderoso, quer porque um novo grupo recusa a sua exciusao deuma partilha estabelecida sem ele —, e a propria formacao quee posta em perigo e, no fim, e substituida por uma outra, queassenta num novo equilibrio das forcas e numa figura ineditadas interdependencias. Para alem da sociedade de corte, foiuma ruptura do primeiro tipo que remodelou toda a organiza-gao social a partir da preeminencia conquistada pelos reis,tornados soberanos absolutos a custa dos seus concorrentesfeudais. Em seu abono, pelo menos em Franca, refira-se que foia pressao de camadas excluidas das posigoes de dominagao,porum equilibrio de tensoes imobilizado numa forma antiga queproduziu a Revolugao, instauradora de uma nova configuragao— a da sociedade burguesa.

A tarefa do sociologo e, pois, antes de mais, identificar ecompreender as diferentes formagoes sociais que se sucederamao lorigo dos seculos: e esse trabalho que Elias designa pelotermo Figurations Analyse, O seu quadro referencial e dado peladistingao operada entre tres modos e ritmos da evolugao dassociedades humanas: a evolugao biologica \biologische Evolution],a evoluc,ao social [gesellschaftliche Evolution] e a evoluc,ao vivida aescala da historia individual [Geschichte, para Elias]. A cronolo-gia propria da analise sociologica e a da evolucao social,caracterizada pelo encadeamento de formac,6es sucessivas quesao temporarias, comparadas com a estabilidade da organizacaobiologica da especie humana, mas que parecem imutaveisquando em confronto corn as existencias individuals. Estadistingao de tres «correntes de evolucao» nao tem por fungaoconstituir nas suas diferenciagoes um conceito operatorio da

* Introdugao a Sociologia, cit., p. 143 (diferen^as de tradu$ao).

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temporalidade historica. Pretende sobretudo realgar duas pro-priedades fundamentals, estruturais, das formacoes socials: oem;primeiro lugar, que as posicoes e relates que as especificamexistem independentemente dos individuos que sucessivamenteocupam as primeiras e se encontram inseridos nas segundas:seguidamente; que, ao contrario das sociedades animais, associedades humanas se transformam sem que para tal se verifi-que uma necessaria modificacao da constituicao biologica dosindividuos, o que coloca o problema das proprias razoes pelasquais uma configurac.ao social aparece ou cede o lugar a umaoutra. O proposito de Elias nao e, portanto, articular numaanalise sincronica, a maneira de um historiador, os rres temposque ele indentifica, mas situar a duragao e os ritmos propriosda evolucao das formac.6es sociais, uma durac_ao e um ritmo quenao sao perceptiveis pelos sujeitos de uma dada formacao.A sua sociedade parece-lhes, com efeito, um sistema tanto maisimovel e imutavel quanto a sua escala existencial da mudanga eimpotence para medir — excepto talvez em epocas de crise —as modificac,6es do equilibrio social.

Ora sao justamente estas modificacSes as unicas que podemexplicar a reproducao ou o desaparecimento das formacoes — enao a accao voluntaria dos individuos, ainda que fossemdotados de um poder absoluto. Pensar correctamente os meca-nismos que explicam a eyolugao das configuracoes sociaisimplica, pois, uma exigenda conceptual que deve traduzir-seno lexico. E pot esse.motivo que.EH^recusa'toda uma serie de.,nogoes que'lhe parecempbliterartpjessencial, a saber,, o realcar^das^interdependencias cqnflituais en:dasjtens6es, .em,: equilibriot;que caracterizamVde.,maneirarpropria cada formacao social. Oantigo vocabulario da historia intelectual, por exemplo a nogaode «espirito do tempo» [Zeitgeist] utilizada por Burckhardt, olexico mais recente da historia social que emprega termos como«condicoes sociais», o de uma sociologia do comportamentoque utiliza «acgao» ou «interaccao», parecem-lhe igualmentecondenaveis. Seja por supor uma dissociacao entre os indivi-duos e a sociedade, como se esta fosse um «meio» ou um•«ambiente» que existisse por si so, e nao constituido pela rededas posicoes ocupadas por aqueles. Seja ainda por relacionarem

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implicitamente as evolugoes sociais com a accao voluntria deum ou de varies individuos, ao passo que essas evolucoes sao oresultado do equilibrio instaurado, perpetuado ou quebrado,entre os diferentes grupos de uma sociedade, e isso devido apropria existencia das interdependencias necessarias que osligam. Ao modelar um certo numero de conceitos novos, quedevem ser entendidos num sentido rigoroso, Elias propoe defacto uma maneira inedita de apreender as formagoes sociais —qualquer que seja a sua escala — e as evolugoes historicas,criadotas ou destruidoras dessas configurates sucessivas.

4. A configuracao formada pela sociedade de corte encon-tra-se indissoluvelmente ligada a construcao do Estado abso-lutista, caracterizado por um duplo monopolio do soberano:o monopolio fiscal, que centraliza o imposto e da ao principe apossibilidade de retribuir em numerario (e ja nao em terras) aosseus fieis e servidores, e o monopolio da violencia legitima, queatribui unicamente ao rei a forca militar, tornando-o portantosenhor e garante da pacificacao de todo o espaco social. Estamonopolizac.ao fiscal e militar, que despoja a aristocracia dosfundamentos antigos do seu poderio e a obriga a viver naproximidade do soberano "dispensador de rendas, pensoes e gra-tifica^oes, resulta de dois processes estudados em pormenor porElias no segundo volume de Vber den Prozess der Zivilisation.

Antes de mais, a afirmagao do poder do rei absoluto marcao termo de uma competicao plurissecular que opunha, numdado espaco, varias unidades de dominagao. A hegemonia damais poderosa de entre estas implica, com efeito, a eliminagaoprogressiva de todos os seus potenciais concorrentes, reduzidosao estado de dependentes. Elias formula a lei que rege esse pri-meiro mecanismo da monopolizacjio [Mechanismus der Monopol-bildung] a partir da observagao das evolucoes economicas doseculo XX: «Quando, numa unidade social de certa extensao,um grande numero de unidades sociais mais pequenas, que atra-ves da sua interdependencia formam a grande unidade,dispoem de um forca social mais ou menos igual e podem porisso livremente — sem serem incomodadas pelos monopolios jaexistentes — rivalizar na conquista das oportunidades de do-

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minio social, e em primeiro lugar dos meios de subsistencia ede produc.ao, existe forte probabilidade de umas sairem vence-doras, e as outras vencidas desse combate \Konkurrenzkampf\ ede as oportunidades acabarem por cair nas maos de um peque-no numero [de unldades sociais], enquanto as outras saoeliminadas ou socobram a vitoria de algumas» (La Dynamique

de I'Qccident, p. 31).Esta lei e aplicada por Elias as unidades politicas em luta

pela hegemonia num. cenario em que_ as conduces territorialsforneceram ao processo de monopolizacao a sua forma mais«pura»: a Franca dos seculos XI a XVI. A livre competicaoreduziu af prog res sivamente o numero de pretendentes: noinicio do seculo XIV, nao sao mais do que cinco — o rei deFranca, o rei de Inglaterra, os duques da Borgonha e daBrecanha e o conde da Flandres. Com a consolidacao do poderiodos capetingios e, depois, dos Valois, esta primeira competicaoe duplicada por uma outra, no proprio seio da casa reinante,e que opoe o rei aos seus parentes, fortalecidos pelo desmem-bramento do dominio real em terras doadas. Apos a eliminacaodo seu rival ingles e a reducao dos seus concorrentes fami-liares, o rei de Franca estabelece por fim a sua dominacaoterritorial e polftica, o que se yerifica desde os comecos doseculo XVI. . . . . - - . - ; - •

A medida que vai submetendo os seus concorrentes, ex-ternos ou infernos, a unidade de dominacao tornada hegemoni-ca transforma-se a partir do interior: o senhor central [Zen-tralberr], qualquer que seja o seu titulo (rei, principe, autocra-ta, etc.), apodera-se pessoalmente do rnonopolio da dominacao.Tal confiscacjio nao depende apenas da sua vontade politica,mas sobretudo do equilfbrio mstitufdo entre os grupos sociaismais poderosos no Estado: «Numa sociedade com alto nivel dediferenciacao, aproxima-se a hora de um poder central fortequando a ambivalencia dos interesses dos grupos funcionaismais importantes e tao acentuada, quando os centres degravidade se repartem de modo rao igual entre si, que nao podehaver, seja de que lado for, nem compromissos, nem combates,nem vitoria decisiva» (La Dynamique de 1'Occident, p. 115).E assim que em Franca, entre a aristocracia e a toga, entre a

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nobreza de espada e os titulares de oficios, o equiKbrio dastensoes e tal que constitui a condicao mais favoravel a constru-gao do poder absoluto. Suficientemente interdependentes esolidarios para nao porem em perigo a formagao social queassegura a sua dominacao, os dois grupos dominances sao aomesmo tempo Suficientemente rivais para que a sua aliancacontra o soberano seja impossivel. Mais fraco do que o conjuntoda sociedade se esta se coligasse, o rei e, portanto, sempre maisforte do que cada urn dos grupos considerados isoladamente.Dai a sua vitoria: «Um equilfbrio tao marcado por tensoes —que dava as duas ordens direitos mais ou menos iguais e naopermitia que nenhum dos grupos antagonicos se elevasse acimado outro —, oferecia a um rei legitimo, que se mantinhaaparentemente a igual distancia de uns e de outros, a oportuni-dade para agir como pacificador, para assegurar a calma e a paztao desejadas as partes em causa» (pp. 181-182).

O antagonismo existente entre os grupos sociais dominantese, em primeiro lugar, o resultado da diferenciacao das fiingoessociais que reforcou o poder de uma burguesia de oficios e deadministracao ao lado do poder, tradicional, da aristocraciafundiaria e militar. Mas essa rivalidade, condicao propria dopoder absoluto, pode e deve ser perpetuada pelo soberano, queao jogar sucessivamente um grupo contra o outro, reproduz «oequilfbrio de tensoes» necessario a forma pessoal do rnonopoliode dominacao. Donde, num primeiro tempo, a consolidacaoparalela do Estado monarquico e da burguesia de toga, para aqua! sao reservados os cargos de justica e de flnancas a fim deatender as pretensoes nobiliarias. Donde, em seguida, a vonta-de real de proteger e de controlar simultaneamente a aristocra-cia, contrapeso indispensavel do poderio dos oficios. Para oefeito, a corte torna-se a instituicao essencial: por um lado,garante a vigilancia pela proximidade, e assegura o controlo dorei sobre os seus mais perigosos concorrentes potenciais; poroutro iado, permite, pelo jogo dos favores monarquicos, aconsolidacao das fortunas da nobreza, postas em perigo naoapenas pela depreciacao monetaria mas tambem por uma eticaeconomica que regula as despesas, nao relativamente aos rendi-mentos, mas as exigencias da condicao — o que Elias designa

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por «status-consumptions ethos». A corte e, assim, uma pec.afundamental na estrategia nionarquica de reproduce das ten-soes: «O equilibrio entre os varios grupos socials com umafore, a social mais ou menos equivalente e a atitude ambivalentede cada um desses grupos face ao senhor central, atitude quedecorre desse equilibrio, tudo isso nao e certamente criac_ao deum decerminado rei. Mas quando 0 jogo das interdependenciase das tensoes sociais da lugar a uma situacao deste tipo, e devital interesse para o senhor central mante-la na sua instabilida-de» (La Dynamique de I'Occident, p. 148). Ao preservar a aris-tocracia como grupo social distinto, ao mesmo tempo que asubmete ao principe, a corte constitui o principal mecanismoque permite aos reis Franceses perpetuarem o seu poder pessoal.O monopolio fiscal, o monopolio milhar e a etiqueta de cortesao, portanto, os tres instrumentos de dominagao que, conjun-tamente, defmem essa forma social original que e a sociedade

d e .corte. i , - - . ; , .- ., Tal analise pode suscitar dois comentarios. Ela sublinha

que as relates entre os grupos sociais nao devem ser entendi-das.exclusivamerite como lutas de classes (pp. 194-195). Dis~tanctando-se ,quer em relacao a historiografia liberal do secuioXIX, quer ao mandsmo, Elias pretende mostrar a ambivalenciade cada relacao social: a rivalidade existente entre a nobreza eos oficiais supoe o interesse comum em manter uma configura-c,ao social que Ihes assegura posic,6es privilegiadas, o apoio damonarquia na burguesia de toga implica ao mesmo tempo queseja preservada a superioridade aristocratica, e a proximidadeentre a nobreza de corte e o rei, o primeiro entre os nobres,passa pela submissao da segunda ordem ao soberano absolute.E assim recusada qualquer perspectiva que fac.a do Estadoabsolutista o simples instrumento de uma classe designadacomo dominante — no caso, a aristocracia. A «monarquiaabsoluta» e-o ptecisamente porque o rei nao se encontra demodo nenhum dependenre de um dado grupo social, mas emposicao de manipular o equilibrio das tensoes que esta napropria origem do seu poder.

Essa manipulacao de antagonismos que ele nao criou e jus-tamente aquilo que define o espac.o proprio deixado a acgao

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pessoal do soberano, o exercicio pelo qual ele pode individuali-zar, bem ou mal, a rungao de rei. Esboga-se aqui uma pro-blematica de future sobre a influencia reciproca existente entreas caracteristicas ptoprias desra ou daquela posicao social e aspropriedades especfficas dos diversos individuos que as ocu-pam, ou, por outras palavras, entre o cargo e os atributosestruturais, o habitus e as suas disposic.6es particulares. E assimque a «mediocridade» conservadora de Luis XJY e tratada porElias como uma propriedade inteiramente pertinente para umpapel que, nesse momento da evolucao da monarquia, exigiaapenas, mas necessariamente, que fossem perpetuadas e regula-das as tensoes existentes (pp. 128-136) e que o proprio reiaceitasse as regras condicionadoras do instrumento de domina-cao curial instaurado para manter e signiflcar a sua dominagaoabsoluta (pp. 141-144);

: 5. A instauragao do poder absoluto do principe, que esimultaneamente o resultado e o principio de novo equilibriosocial, faz-se acompanhar de grandes evoluc5es, designadas porElias como constitudvas do processo de civilizagao. No Oci-denre, entre os seculos XII e XVIII, SsT?sernsibiliclacles7>e;t6s?'

.]cffnipQrtafneritoS: |ao, com efeito, profundamente modificadospor cfois^factps^fundamentais: a - moriopolizacao estatal-'da: vio-jencia^que, obriga ao dommio das pulsoes e pacificaf assim, o^espa^p social; p estreitamentp das relacoes interindividuais, queimplica -forcosainente um controlo' mais rigido "das'' emocoes e'}

dos]afectos. A progressiva diferenciacao das runcoes sociais, quee condicao inerente a formacao do Estado absolutista, multipli-ca as interdependencias e, consequentemente, da lugar aosmecanismos de aucocontrolo individual que caracterizam ohomem ocidental da era moderna. Elias enuncia assim o que esem duvida a tese essencial de toda a sua obra: «A medida queo tecido social se vai diferenciando, o mecanismo sociogeneticodo autocontrolo psiquico \Sebstkontrollapparatur] evolui igual-mente no sentido de uma diferenciacao, uma universalidade euma estabilidade maiores [...]. A estabilidade particular dosmecanismos de autocondicionamento psiquico [Selbstzwang--Apparafur] que constitui o trac.o tipico do habitus do homem

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'civilizado' esta estreicametlte ligada a monopolizac.ao do condi-cionamento fisico e a solidez crescente dos orgaos socialscentrals. E precisamente a formacao dos monopolies quepermite o estabeiecimento de um mecanismo de 'condiciona-rnento social' gracas ao qual cada indivfduo e educado nosentido de um autocontrolo rigoroso. E ai que se situa a origemdo mecanismo de autocontrolo individual permanente cujoruncionamento e, em parte, automation (La Dynamique de{'Occident, pp. 193-194). O processo de civilizacao consiste,antes de mais, na interiorizacao individual das proibic.6es que,anteriormente, eram impostas do exterior, numa transformacaoda economia psfquica que fortalece os mecanismos do autocon-trolo exercido sobre as pulsoes e emoc.5es e que faz passar docondicionamento social \GeseltschaftHche Zwang] ao autocondi-cionamento \Sellbstzwang}.

Nesse processo de longa duracao, que, pelo menos tenden-cialmente, diz respeito a todos os individuos das nacoes ociden-tais, a sociedade de corte — entendida aqui na sua acepcao deconfiguracao social especifica, distinta do resto da sociedade —constitui um dispositive central, que e simultaneamente labo-ratorio de comportamentos ineditos e lugar de ekboracao denovas normas. Neste papel das cortes, Elias identifica doismomentos essenciais: o seculo XVII, que da uma forma acaba-da, pelo 'tnenos em Franca, a sociedade de corte monarquica,organizada para e pelo rei absolute, e o seculo XII, queassinala, corn a-c.onstituic.ao das grandes cortes feudais, umaprimeira etapa no processo de civilizacao. A primeira configu-racao e mesmo o objecto de Die hofische Gesellschaft, e a segunda.fprnece a materia de algumas paginas do segundo volume deUber den Prozess der Zivilisation*. Nestas, Elias mostra como

8 Essa parte da obra nao foi, infelumente, craduzida para frances.Pode ser lida em alemao, em N. Ellas, Uber den Prozess der Zivilisation,Zweicer Band, op. tit., Suhrkamp, 1979, «Zur Soziogenese des Minnesangsund der courtoisen Umgangsformenw, pp. 88-122, ou em ingles, em N.Elias, The Civilizing Process. State Formation and Civilization, op. cit., BasilBlack-well, 1982, «On the Sociogenesis of Minnesang and Courtly Forms ofConduct*, pp. 66-90.

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a cortesia [courfoisie] designa um primeiro conjunto de trans-formacoes nos comportamentos, expresses pela poesia dosMinnesanger* e dos trovadores, e caracterizado pelo respeito porconvengoes mais condicionadoras, por um controlo melhorassegurado das condutas, por relacoes menos brutais entrehomens e mulheres. No interior de uma sociedade guerreiraainda pouco pacificada e policiada, as cortes feudais — queconheceram uma primeira diferenciacao das runcoes de governoe uma primeira consolida^ao das interdependencias — consti-tuem, portanto, pequenas ilhas de «civilizacao» onde se esbocaum novo :&afaitus®

A sua modelacao definitiva supoe uma outra etapa daevolucao social e do processo de civilizacao — a da sociedade decorte que caracteriza o Estado absolutista —, bem comoexigencias mais rfgidas quanto ao dommio dos afectos — as da

"civili'dade'. Dessa nova formagao social, Elias desmonta,L paracomegar, os fiindamentos. Estes podem ser enunciados comotres principles paradoxais. Antes de mais, a sociedade de eortee: uma configuracao onde"0 maior "distanciamento social se?manifes'fa na maiof proximidade espaciaL E o que^se verifica nopalacio aristocratico onde ombreiam e se cruzam as existenciasdos senhores e dos criados. E o que se verifica na propria cone,onde o rei afirma a absoluta distancia que o separa da suanobreza, ao mesmo tempo que vive, em cada instante, no meiodela. Dai um dos tragos fundamentals e originais da sociedadede corte: isto e, a confusao existente entre vida privada e vidapiiblica, ou melhor, a ausencia nas praticas e nos pensamentosde tal distin^ao. Para o rei, na sua corte, como para o nobre, nasua residencia, todos os gestos e todas as condutas que seraoconsiderados na formac.ao social burguesa como pertencentes aesfera do intimo, do secreto, do privado, sao de facto vividos emanipulados come tantos outros signos que dao a let a ordemsocial — uma ordem onde as formalidades publicas indicam olugar de cada um na hierarquia das condigoes.

Donde o segundo principio da sociedade de corte: o ser so-cial do indivfduo e totalniente identificado com a representac,ao

* Trovadores, em alemao, lieeraimente: cantores do Amor (N. da T.).

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que dele e dada por ele proprio ou pelos outrqs. A «realidade»de uma posi^ao social nao e mais do que aquilo que a opiniaoconsidera que ela e: «Era o reconhechnento, pelos outros, daqualidade de membro dessa sociedade que, em ultima analise,decidia sobre essa mesma qualidade» (p. 87). Essa «representa-C.ao da posicao pela forma» tem varias implicates importantes:fundamenta uma economia aristocratica da ostentac.ao queregula as despesas atendendo as exigencias da posicao que sequer ocupar; constitui as hierarquias da etiqueta corno o rnodode aferic.ao dos distanciamentos sociais; faz dos diferentespapeis e lugares no cerimonial de corte o desafio essencial dacompetic.ao social. Numa forma^ao como esta, a construcao daidentidade de cada indivfduo situa-se sempre no cruzamento darepresent ac.ao que ele da de si mesmo e da credibilidadeatribuida ou recusada pelos outros a essa representagao. Nestejogo, o rei tem o maximo peso, ja que, ao modificar as posicoesno cerimonial, pode nao apenas jogar com um equilibrio detensoes favoravel a sua dominacao, como tambem determinar aposicao social «real» —. isto e, apreendida e aceite — de cadacortesao. A concorrencia pelos sinais de prestigio e assim, aomesmo tempo, uma luta pelos attibutos e yantagens do poderiosocial —=r a que E Has chama Ma cbtchancen *.

vUltimotfundarhento "paradoxal :da sociedadeHe,c6irte: a supe^-i-ta-K—*•" - - , _ ' • * - "- - hiCiUi-- --*•-—™.-*«4.*J.4~-',. . _ ^ - - - f r - L -

riorida.de sociaj^.afirma-se- ai^ela^subinJssaorpolitica^e simbplica.'E somente ao aceitar a sua domesti_cac.ao pelo soberano e a suasujeicjlo as formalidades condicionadoras da etiqueta de corteque a aristocracia pode preserver a distancia que a separa da suaconcorrente pela dominagao: a burguesia dos oficiais. A <16gicada corte e, portanto, a de uma distin^ao pela dependencia: «Pelaetiqueta, a sociedade de corte precede a auto-representagao, cadauni distinguindo-se do outro, e distinguem-se todos em conjun-to das pessoas estranhas ao grupo, administrando cada um etodos em conjunto a prova do valor absolute da sua existencia»(p. 97). O rei nao escapa a esta logica, e e somente devido aofacto de ele proprio se submeter a etiqueta imposta aos corte-saos que ele pode utiliza-la como um instrumento de domina-

* Literalmente: oportunidades de poder (N- da T,) ,

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C,ao, O que explica o titulo dado por Elias a um dos seuscapitulos, Die Verkettung des Konigs durch Etikette und Prestige-chancen* no qual pretende salientar como o proprio rei seencontra amarrado, ligado a «mecanica» (o termo e de Saint--Sirnon) que assegura o seu poder.

."Inscrevendo assim a distincao na proximidacle, a realidade na,aparencia,- a -superioridade na' dependencia, - a vida de Jcorferequer dos quefnela participam propriedades psicologicas especi-

|ficas, que nao sao comuns a todos os homens: e o caso da arte.de?qbseryar os putros e de se observar a si .proprio, ajcensura dosv

Vsentimento5,'o-dommio das paixoes, a incorppragao das discipli-^nas :que ;regulam. a"civilidade;. Uma tal transformacao naoniodifica apenas as maneiras de pensar, mas toda a estrutura dapersonalidade, a economia psiquica que Elias designa por umterrno^aritigo.tlQ.-H^VaJi/tp. 278). O processo de curializagaoe tambem um processo de rernodelagao da afectividade-'' [Affekf-modellierung\ que submete p homem de:..corte.\-a iirnarrede^apertada^; ,de^autocontrplos automaticos que; refreiam ^todos,, os*irnpulsps.^espontaneos,: todos os movimentos imediatos. Este

rjw^/'j^iriedito produz. uma forma de racionalidade-inteiramehte?especffica,:- '_dita hofische Rationalitat(R.acionalidade de corte), quedeve.-adequar,.exactamente cada eonduta^a. relagao onde eia seinscreye^efadapt;ar,cada comportamento a finalidade que ele devepermitir > atingir

. Tal habitus encerra igualmente o que Elias designa pelotermo «romantismo aristocratko» e que e a vaiorizacao nostal-gica ou utopica de uma vida de nobreza antiga, livre, indepen-dente, natural. No peniiltimo capitulo do seu Hvro, Eliasestuda cuidadosamente e com brio as diferentes etapas e expres-soes dessa idealizacao de uma existencia cavaieiresca e pastoral,que enuncia a resistencia da nobreza relativamente as novasdependencias e aos novos condicionamentos que a vida da corteimpoe. Nessas paginas, em particular as consagradas a umaleirura de Astree, onde se exprime ao mesmo tempo a aceitacaodas regras ineditas da civilidade e a recusa da sociedade de corte

* Literalmente, «O aprisipnamento do rei pela etiqueta e pelas oca-sioes de prestigio» (cap. IV de Die hofische Gesellschaft).

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114 FORM.AGAO SOCIAL E «HABITUS»

que as forja, Elias esboga o que poderia ser um relacionamentodas formas esteticas com as estruturas psicologicas. Entre umase outras e possfvel estabelecer correspondencias, mas com acondicao de ser identificada a formacao social especifica queproduz as propriedades que Ihes sao comuns. Sao, assim, asexigencias proprias da sociedade de corte que estabelecem osparencescos entre a tragedia classica e a racionalidade de corte(p. 109). Sao, ainda, os modos de existencia de uma nobreza— «ja parcialmente curializada» mas ainda ligada aos valores e,comportamentos cavaleirescos —, que fazem do romance pasto-ral ou sentimental, como o Astree, a expressao das frustratessocials e afectivas de um grupo que perdeu o jogo face ao rei(pp. 279-284). Sao a urbanizac,ao e a curializagao crescentes daaristocracia, separada fisicamente e, mais ainda, mentalmente,do campo, que transformam o papel da paisagem na pinturafrancesa «de Poussin a Watteau» (p." 259)--— Watteau taoapreciado por Norbert Elias e a quern consagrou um estudoinedito. De maneira discreta, e assim proposta uma leiturahistorica das'obras, que, antes de-.mais, tern por objectivodecifrar, nas suas formas, as caracterfsticas de uma conflgurac,aopsicologica especifica e, consequentemente, a sua inscric.ao naformacao social que gera essa economia psiquica.

Die hofische Gesetlschaft e, pois, urn livro consagrado essen-cialmente ao estudo da genese e das propriedades, tanto sociaiscomo psicologicas, de uma formacao que tern as suas raizes naIdade Media, nas grandes cortes feudais, que define progressi-vamente as suas formas no Renascimento, antes de encontrar,no seculo XVII, as suas caracteristicas definitivas — ou seja,a fixac.ao de uma vasta populac.ao num"unico local, umadiferenciac,ao e uma hierarquizac,ao- acencuada das fun^oes nacorte, a constituic,ao de uma cultura nobiliarquica especifica,depurada de qualquer elemento feudal. Olproblema deixado.de-lado na :obra:eVo ,,da';difusaop noutras^camadas^sociais; dosmodelos .de comportamerito>-ej:dos>:dispositivos:,psicoI6gicos

"elaborados na sociedaderde corte: Estamos:peraritepuma' "questaocentral se se admitir que o; processor de civilizac.ao consisteprecisamente na generaliza^apr^ toda^ a sociedade, das rproibi-

, censuras e cdntrolos "em tempos"distintivos da maneira

CAPITULO HI 115

de ser dos homens da corte. Pensar este processo e, portanto,um ponto essencial no projecto de conjunto de Elias, e eleconsagra-lhe o penultimo capitulo da longuissima conclusaodo seu livro de 1939, intitulado «Esbogo de uma teoria doprocesso de civilizac.ao» (La Dynamique de {'Occident, pp. 281--303).

Nessas paginas, Elias constroi uma interpretagao total-"mente original da circulagao dos modelos culturais, que colocano seu centre a tensao entre distinc.ao e divulgac.aoV A generali--zagao dos comportamentos^ e condicibnamentos propriosj>emprimeiro lugar da sociedade de corte nao deve ser entendidacomo uma simples difusao, atingindo progressivamente todo ocorpo social a partir da elite que o domina. E l a e antes ,o?resultado de .uma luta _concorrencial que leva as camadasburguesas a imitarem as maneiras de ser aristocraticas e que,por seu turno, obriga a nobreza da corte a aumentar asexigencias da civilidade, no intuito de voltar a atribuir-lhe umvalor discriminative. Esta cornpetic.ao pela: apropriagao ou,contrariamente, a confisca^aovperpetuada da distinc,ao>, e^.o-motor principal do processo"~de civiliza^aO; uma vez que conduzao aumento dos requintes do savoir-vivre, a multiplica^ao dasinterdi^oes, ao agravamento do nfvel das censuras.

• A 7circuiac.ao dos modelos de. comportamentof reprodntora^das distancias culturais no proprio interior de, um processo de^imitagao e de difusao social7,deve ser.pensada.no mesmo;

horizonte conceptual de «circulac.ao de condicionamentos* evo-cada por Elias no final de La Societe de Cour (p. 304). Tambemaqui se rrata de evitar todas as noc.6es — por exemplo, a depoder [Herrschaft] ou de autoridade [Autoritat] — que possamlevar a supor que o condicionamento social nao existe senao nosentido de cima para baixo. Do mesmo modo que a atracgaoexercida pela civilizagao de corte sobre as camadas inferiores dasociedade nao deixa de tornar mais exigente essa mesmacivilizac.ao, os condicionamentos que os grupos dominantesfazem pesar sobre o resto do corpo social nao deixam deproduzir efeitos de retorno, que reforgam nos poderosos osmecanismos de autocondicionamento, Ao caracterizar cadaformagao ou configuragao social a partir da rede especifica das

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116 FORMACAO SOCIAL E «HABITUS»

interdependencias que nela ligam os indivfduos uns aos outros,Elias propoe-se igualmente compreender, na sua dinamica e nasua reciprocidade, as relacoes que mancem os varies grupos e,desse modo, -evitar as representac.oes simpiistas, umvocas eimutaveis da dominac.ao social ou da difusao cultural.

Em Franca, a luta concorrencial encre aristocracia de corte eburguesia de offcios dura tanto como a formacao social que Iheda existencia. E por esse motivo que Elias encerra Die hofischeGesellschaft como urn ultimo capitulo, «Zur Soziogenese derRevqlution», onde trac,a o esboco do processo que conduziu adestrui^ao da sociedade absolutista de corte. Caracterizam-nodois tragos fundamentals. O equilfbrio de tensoes mantido emanipulado por Luis XIV imobiliza-se tanto quanto o cerimo-nial de corte sofre um esclerosamento: ao perder toda aplasticidade, o dispositive de dominacao ja nao pode integrarnovos.parceiros sociais, mas apenas repetir os conflitos entre osantigos — a saber, o rei, a aristocracia de corte, os parlamen-tos. Qra,7 no final do seculo XVIII, a consolidagao social decamadas burguesas ate entao exclufdas da partilha da domina-£ao instaura uma ruptura entre a repamcao aparente do poder,confiscado pelas elites tradicionais, e a realidade do novoequilfbrio de forcas. Dai a impossibilidade de conservar aformacao' social antiga e, tambem, a sua impossfvel reforma.Dai a instaurac.ao, pela forc,a, de nova configurac.ao, que traduza nova distribuicjio das posicoes sociais. Esce esboco, necessaria-mente-rapido, tern um duplo merito. Nao reduz o processosocial concluido pela Revolucao a uma simples oposigao entrenobreza' e burguesia, pois estas, nas suas formas de AntigoRegime, sao tao solidarias quanto rivais (e solidarias justa-mente porque rivais). Nao interpreta a Revolugao como asimples vitoria de uma das camadas dominantes da antigasociedade, mas como a instalagao de uma forma^ao socialinedita, onde aquilo que mudou nao foi somente a identidadedos dominadores mas a pr6pria forma do equilfbrio das tensoesentre os grupos e as cadeias de interdependencia entre os indi-vfduos. E, pois, necessario pensar em termos novos a ultimaetapa do processo de civilizac.ao, etapa determinada nos seculosXIX e XX por uma sociedade marcada pela obrigacao geral do

CAPITULO III 117

rrabalho, por uma separagao rigorosa entre o foro privado e avida publica, por uma hierarquia dos valores que da a primaziaao sucesso economico.

6. No seu livro publicado em 1939, Norbert Elias apela-va a constitui^ao de uma ciencia que ainda nao existia, a«psicologia historical (La Dynamique d& I'Ocddent, p.256). Afdefine o seu objecto contra a historia das ideias e contra as in-vestigagoes psicanaliticas, uma vez que ele deve set «o habitushumano no seu conjunto», «o todo da economia psfquica», istoe, simultaneamente os controlos conscientes do ego, produtoresdas ideias claras e dos pensamentos apreendidos como tais, e oscontrolos inconscientes, automaticos, das pulsoes. A historiadas ideias, Elias critica acima de tudo o facto de considerar queas transformac.oes — que afectam as proprias estruturas dapersonalidade humana — se reduzem a transformac,6es ideolo-gicas, expressas em plena consciencia pelos proprios sujeitos.Situa-se af a sua critica fundamental a Burckhardt e aos seussucessores (pp. 277-278), acusados de confundir indevidamenteas inovacoes detectaveis nos conteudos dos pensamentos com asmodificacoes das disposic.6es psicologicas dos indivfduos. .

A psicanalise, e a Freud nunca mencionado, Elias critica ofacto de constituirem um inconsciente «sem historia* comoinstancia dominante e invariavel da estrutura psfquica. Ora,para ele, nao se trata de categorias nem de economia universaisdo psiquismo, mas dos dispositivos variaveis, modelados na suapropria defini^ao e articulagao pelas relacoes de interdependen-cia originais que caracterizam cada formagao social. Eliasenuncia-o num texto fundamental onde marca a sua distanciarelativamente ao lexico e aos conceitos freudianos: «O quedetermina o homem tal como ele nos surge no concreto nao e oId [Es], o Ego [Ich] ou o Super-Ego \lJberich]t mas sernpree fundamentalmente o conjunto das relagoes que se estabelecementre as camadas funcionais do autocontrolo psiquico, algumasdas quais se combatem reciprocamente, ao passo que outrasconjugam os seus esforgos. Ora essas relagoes no interior decada ser humano e, com elas, a estrurura do seu controlopulsional, do seu Ego e do seu Super-Ego, evoluem conjunta-

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118 FORMACAO SOCIAL E «HABITVS»

mente ao iongo do processo de civilizacao, na sequencia datransformacao especlfica das inter-relacoes hurnanas, das rela-coes sociais» (La Dynamique de I'Qccident, p. 261). Donde oprograma definido em 1939: «proceder ao exame simulcaneoda mudanca das estruturas psfquicas e das estruturas sociais noseu conjunto» (Ibid., p. 262).

Desde 1933, para ,uma formacao social especiflca — asociedade de corte — Elias tinha conduzido bem tal projecto,aplicando conjuntamente as duas abordagens que dariam o sub-titulo ao livco em 1939, a saber, a abordagem sociogenetica, quecem por objective identificar os mecanismos de formacao e osprinciples de estruturacao de uma dada configurac.ao social, e aabordagem psicogenetica, que tenta fechar o circulo em torno damodelacao e da economia do habitus psiquico engendrado poressa configuracjio. Em atnbos os casos, trata-se de analisar a_to-talidade de urn dispositivo, social ou psicologico; eJ5;atnbos oscasos^ttata-se^defapreender urn'processo com'.os seus equili-^brjosT iristaveis^:e "as: suasltens6es-;m6veis. : i

E notorio que por detras da nocao de «psicologia historica»Elias define urn objecto que excede largamente aquilo a queconvencionalmente • se chama a historia das mentalidades. Ahistoria tal como e hoje em dia, nas suas aquisicoes dos uitimoscinquenta anos como nas suas investigagoes actuals, ja nao tem,e certo, muita coisa>em comum com a que Elias conhecia, cri-ticava ou utilizava no inicio dos anos 30. Devera daf concluir--se, por tal motivo, -que os seus livros perderam a sua forgainovadora, a sua capacidade de provocar? Claro que nao, e porduas razoes. Numa' epoca em ^que, a^historia.restringiuJaextensao dos seus campos de estudo^privilegiando.a mondgra-fiay ojestudo de'caso bu a «micro-historia»;"^eles fazem>recor-dar,-com alguns-outros, que certas ev6iuc6es-fundamentais,,s6sao .compreensfveis em-farga escala^ na-Ibnga^ duracao dasiicessao das forrna^oes sociais e das'transformacoes das estrutu^ras psicologipas. E numa epoca em que a hist6ria fragmentou assuas abordagens, compartimentou os seus objectos, a obra deElias sublinha o risco de tal esfarelamento ao colocar comoproblema essencial o elo existente entre as formas sociais, oshabitus psiquicos, as produgoes esteticas. Die hofische Gesell-

CAPITVLO Ul 119

schaft, praticamente concluido ha mais de cinquenta anos, e,pois, um livro que tem ainda muito para nos ensinar. Enecessario le-lo, como aos classicos, inscrevendo-o no seutempo, escutando-o simultaneamente no presence.

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CAPITULO IV

Textos, impresses, leituras

Este texto propoe-se, acima de tudo, tragar um projectointelectual e um espago de investigate. O fundamento comuma ambos decorre da aparente contra.dic.ao em que se encontraenvolvida toda a historia, ou coda a sociologia da leitura: querse considere o caracter todo-poderoso do texto, e o seu poder decondicionamento sobre o leitor — o que significa fazer desapa-recer a leitura enquanto pratica autonoma —; quer se considerecomo primordial a liberdade do leitor, produtor inventivo desentidos nao pretendidos e singulares — o que significa encararos actos de leitura como uma colecc,ao indefinida de experien-cias irredutiveis umas as outras. Transformar em tensao operato-ria aquilo- que poderia surgir como uma aporia inultrapassavel eo desfgnio, a aposta, de uma sociologia historica das pracicas deleitura que tern,por pbjectivo identificar,fpara cada epoca e para;cada^meio, as modalidades^ partilhadas do ler — as quais daoforrnas e sencidos^aos ,gestos individuais:_—, e^que coloca nocentro da^sua interrogagao os processos pelos quais, face a umtexto, e historicamente produzido um sentido e diferenciadl-mente construida .uma^significa^ao:-

Para explicitar esta perspectiva, muitas vezes arriscada,escolhemos como suporte urn velho texto espanhol, nao muitoposterior aos primeiros tempos da imprensa, porque delimitabem, a sua maneira e na sua linguagem, o lugar de um traba-Iho a realizar entre textos, objectos impresses e maneiras deler.

No Prologo que escreve para a Celestina tal como e publicadaem Saragoga em 1507, Fernando de Rojas interroga-se sobre asrazoes que podem explicar o porque de a sua obra cer sidoentendida, apreciada e utilizada de rnodos cao diversos desde a

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122 TEXTOS, IMPRESSOS, LEITURAS

sua primeira publicac.ao, em 1499, em Burgos1. A questao esimples: como e que um texto que e o mesmo para todosaqueles que o leem pode tornar-se um «instrumento de lid ocontienda a sus lectores para ponerlos en diferencias, dandocada una sentencia sobre ella a sabore de su voluntad»? E apartir desta interrogac,ao de um autor antigo sobre um velhotexto que gostariamos de formular as propostas e as hipotesesessenciais que estao na base de um trabalho empenhado, sobdiversas fbrmas, na historia das praticas de leitura, entendidasnas suas relates com os objectos impresses (que nao sao todosos livros, longe disso) e com os textos a que servem de suporte.

Para Rojas, os contrastes na recepc.ao do texto que elepropos ao publico tern que ver, em primeiro lugar, com osproprios leitores, cujos juizos contraditorios devem ser inscritosna diversidade dos- caracteres e dos humores («tantas y tandifferentes condiciones»), e tambem na pluraiidade das apti-does e das expectativas. Estas diferenciam-se consoante o esca-lao etario: 'ninos,' mozos, mancebos, e viejos nao manipulam domesmo modo 'a materia escrita, uns por nao saberem le-la eoutros por nao quererem ou nao o poderem fazer. Tambem sediferenciam de acordo com os usos bem di'stintos feitos domesmo texto. Da tragicomedia, Rojas detecta pelo menos tresleituras. A primeira,"que nao presta atenc.ao a historia no seutodo, mas somente a alguns dos seus episodios, desligados unsdos outros, reduzindo o texto ao estatuto de um cuento decamino, de uma historia boa1 para "riarrar e feita para passaro tempo, como a contada por Sancho ao seu senhor no capituioXX da primeira parte de Don Quijote. Uma outra atitude soretem da tragicomedia as formulas facilmente memorizaveis,esses donaires y reframs que fornecem lugares-comuns e expres-soes feitas, coligidos ao longo de uma leitura que nao estabele-ce qualquer relac.ao fntima, qualquer relagao individualizadaentre o leitor e aquilo que ele le. A estas utilizac.oes quemutilam a obra e passam ao lado do seu verdadeiro significado,

1 O texto de Rojas e citado de acordo com a edi$ao bilingue LaCelestina. Tragicomedia de Caiisto y MelibealLa Celestine o«_ Tragicomedie deCalixte et Melibee (atribuida a Fernando Rojas), Paris, Aubier-Flammarion,1980, pp. 116-119-

CAPITULO IV 123

o seu autor opoe aquilo que e a leitura correcta e proveitosa damesma, a leitura que capta o texto na sua totalidade complexasem o reduzir aos episodios da sua intriga ou a uma colectaneade senten^as impessoais. Os bons leitores da comedia «coligenla suma para su provecho, rien do donoso, las sentencias ydichos de fllosofos guardan en su memoria para transponer enlugares convenibles a sus actos y propositos». Eles poem empratica uma leitura plural, que distingue o comico e o serio,que retem os sentidos morais de uma historia capaz de orienrara existencia individual, que sabe entender na primeira pessoaaquilo que e proposto a todos.

.--A sua maneira, o prologo de Rojas indica a tensao centralde .toda a historia da leitura. Por um'lado, a~ leitura"'e, praticacnadora, actividade produtora de sentidos singulares, de signi-fica^oes de modo nenhum redutiveis as inten^oes dos autores detextos ou dos fazedores de livros: ela e uma «cac,a rurtiya», nodizer de MicrTelTde Certeau2. Poriputro'.lado^ o-.leitor e,sempre, pensado^pelp: autor, pelo coirientador e pelo_ editorcomo^devendo ficar;sujeito a^um sentido ,unicd,va"uma com-preensao correcta; >a. ;uma leitura autorizada. Abordar a leiturae, portanto,, considerar, conjuntamence, a irredutivel liberdadedos leitores e os condicionamenros que pretendem refrea-la.Esta tensao fundamental pode ser trabalhada pelo historiadoratraves de uma dupla pesquisa: identificar a diversidade dasleituras antigas a partir dos seus esparsos vestigios e reconheceras estrategias atraves das quais autores e editores tentavamimpor uma ortodoxia do texto, uma leitura fbrc.ada. Dessasestrategias, umas sao explidtas, recorrendo ao discurso (nosprefacios, advertencias, glosas e notas), e outras implicitas,fazendo do texto uma maquinaria que, necessariamente, deveimpor uma justa compreensao. Orientado ou colocado numa arma-dilha, o leitor encontra-se, sempre, inscriro no texto, mas, porseu turno, este inscreve-se diversamente nos seus leitores. Dai anecessidade de reunir duas perspectives, frequentemente sepa-radas: o estudo da maneira como os textos, e os impresses que

2 M. de Certeau, «Lire: un braconnage», in Uinvention du quotidien, 1,Arts de Faire, Paris, Union Generates d'Editions, 10/18, 1980, pp. 279-296.

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124 TEXTOS, IMPRESSOS, LEITURAS

Ihes servem de suporte, organizam a leitura que deles deve serfeita e, por oucro lado, a recolha das leituras efectivas, captadasnas confissoes individuais ou reconstruidas a escala das comuni-

dades de leitores.Assim, para Rojas, as opinioes diversas sobre a.'Celestina tern

de ser reporcadas a pluralidade das competencias, das expectati-vas e das disposigoes dos seus leitores. Dependem iguaimentedas maneiras como estes «leem» o texto. Resulca claro que Rojasse dirige a um leitor que le o prologo para si mesmo, emsilencio, no retire da sua intimidade. Mas nem todos os leitoresda tragicomedia sao dessa natureza: «Asi que cuando diezpersonas se juntaren a ofr esta coinedia, en quien quepa estadiferencia de condiciones, como suele acaecer, <;quien negara quehay a contienda en'cosa que de tantas maneras se entienda?».Dez ouvintes, reunidos em torno do texto lido em voz aha: a«leitura» e aqui audigao de uma palavra leitora. A pratica pareceser frequente, ja que numa edicjio de 1500 o "corrector de laimpresion» diz como o texto deve ser oralizado. Um dos acres-centos a obra nesta edic^io intitula-se «Dice el modo que se ha detener leyendo esta tragicomedia». O «lector» que ele visa devevariar o torn, encarnar todas' as persoaagens, reproduzir osapartes falando "entre-dentes, mobilizar «mil artes y modos» deler com o fim de captaf a atenc.ao daqueles que o escutarn, «losoyentes». A Celestina e outros textos, como as novelas pastoraisou os romances de cavalaria, sao os objectos privilegiados dessasleituras ern que, para um pequeno numero, a palavra propoe oescrito aos que poderiam le-kx !

As observances de Rojas abrem varias pistas de pesquisa. Emprimeiro lugar, sobre as'sociabilidades da leitura, contrapontofundamental da privatizac.ao do ler, recolhido na intimidadesolitaria. Do seculo XVI ao seculo XVII, subsistem as leituras emvoz aha, na taberna ou na carruagem, no salad ou no cafe, nasociedade selecta ou na reuniao domestica. E precise fezer a suahistoria3 . Segunda pista: a analise das rela^oes entre

3 Cf. R. Charcier, «Les pratiques de l'ecrit», in Histoire de la vie privee,sob a direcgao de P. Aries e G. Duby, t. Ill, De la Renaissance aux Lumieres,volume dirigido por R. Chartier, Paris, Editions du Seuil, 1986,

CAPITULO IV 125

textualidade e oralidade. E certo que entre a cultura do conto eda narragao e a cultura da escrita as diferen^as sao grandes, ebem caracterizadas por Cervantes no capitulo XX da primeiraparte de Don Quijote4. Para passar o tempo, numa noite devigilia de armas, Sancho decide narrar contos ao seu senhor.Mas a maneira que tern de o fazer, interrompendo frequente-mente o relato com comentarios e divagagoes, multiplicando asrepetigoes, projectando o narrador na historia e relacionando-acom a situac.a.0 do momento, impacienta ao mais alto grau oseu ouvinte: «Si desa manera cuentas tu cuento, Sancho — dijoDon Quijote —, repedendo dos veces lo que vas diciendo, noacabaras en dos dias; dilo seguidamente, y cuentalo comohombre de entendimiento, y si no, no digas nada». Homem dolivro por excelencia, para la dos limites da loucura, DornQuixote irrita-se com um relato onde nao encontra as formasque geralmente le, e gostaria, no fundo, que a narrac,ao deSancho obedecesse as regras da escrita linear, objectiva, hierar-quizada. Entre esta expectativa do leitor e a pratica oral, talcomo Sancho a aprendeu, a distancia e intransporuvel: «De lamisma manera que yo lo cuento — respondio Sancho — secuentan en mi tierra todas las consejas, y yo no se contarlode otra, ni es bien que vuestra merced me pide que haga usosnuevos»._Resignado, Dorn Quixote aceita de mau grado ouviresse texto tao diferente do que contem os seus preciosos li-vros: «Di como quisieres — respondio Don Quijote —; quepues la suerte quiere que no pueda dejar de escucharte, pro-sigue».

E grande a distancia entre o relato pronunciado e a escritaimpressa. Contudo, ela nao deve fazer esquecer que sao nume-rosos os seus lac.os. Por um lado, levam a inscrigao, nos textosdestinados a um vasto publico, das formulas que sao precisa-mente as da cultura oral, A escrita de certos «occasionnels»

pp. 113-161 e "Leisure and sociability. Reading aloud in Modern Europe»,in Urban Life in the Renaissance, sob a direc^ao de S. Zinmerman e R.Weissman, The University of Delaware Press, no prelo.

4 Miguel de Cervantes, El Ingemoso Hidalgo Don Quijote de la Mancba,Edicion de John Jay Allen, Madrid, Catedra, 1984, t. I, pp. 237-239-

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126 TEXTOS, IMPRESSOS, LEITURAS

[textos de ocasiao] — demarcando as maneiras de dizerdos contadores, ou as variantes introduzidas nos contos defadas, a partir de elemencos fornecidos pelas tradicoes folclori-cas — constitui um bom exemplo desses aflotamentos do oralno impresso5. For outro lado, a manutengao dessa dependenciaassegura o regresso a oralidade de multiples textos, lidos emvoz alta, tanto os da justi^a e da administrac.ao regia como osda pregac.ao clerical, tanto os do divertimento letrado como osdo ensino familiar.

Mas para Rojas existe um outro motive que pode tercomprometido a compreensao do texto que propos aos leitores:a intervengao desastrosa dos proprios impressores. Com efeito,Rojas deplora os acrescentos que eles julgaram poder fazer,contra a sua vontade e contra as recomendac.6es dos Antigos:«Que aun los impresores han dado .sus pinturas, poniendorubricas o sumarios al principio de cada acto, narrando enbreve lo que dentro.contenia: una cosa bien escusada, segun loque los antiguos escritores usaron».

Esta observac,ao pode estar na base de uma distingaofundamental' entre texto e impresso, entre o trabalho de escritae a fabricate do livro. Como precisamente o afirma umbibliografo americano: <<Taca1:rfTorquV"fi2eremv-os:"autores--»rfb

iy - a~--T --i-Ji . v->-T •-•.*:«>* S.V ,.j_ „-, -^ •„,-,-...;. ,. " .j

escrevem - livroS', Os.livros nao sao de modo nenhum escritos.Sao manufacturados por escribas e outros artesaos, por meca-nicos e outros engenheiros, e por impressoras e outras maquinas» 6. Contra a representagao, elaborada pela propria litera-tura, do texto ideal, abstracto, estavel porque desligado de qual-

s Cf. o estudo de R. Chartier «La pendue miraculeusement sauvee.Etude d'un occasionnel» e o de C. Velay-Vallancin «Le miroir des conces.Perrault dans les Bibliotheques bleues», in Les usages de I'imprime (XVs--XlXssfale), sob a direcc,ao de R. Chattier, Paris, Fayard, 1987, pp. 83-127e 129-155-

6 Em ingles, no original: « Whatever they may do, authors do notwrite books. Books are not written at all. They are manufactured by scribesand other artisans, by mechanics and other engineers, and by printingpresses and other machines*, R. E. Stoddard, "Morphology and the Bookfrom an American Perspecrive», comunicacao apresentada no coloquio Needsand Opportunities in the History of the Book in American Culture, Worcester,American Antiquarian Society, 1984.

CAPfTULO IV 127

quer materialidade, e necessario recordar vigorosamente que nao.existe nenhum texto fora do supprte que o da a lee, que nao hacompreensao .de-urn escritp, qualquer que ele seja, que nao.dependa das formas atraves das quais ele chega ao seu leitor. Daia necessaria separac,ao de dois tipos de dispositivos; os quedecorrem do estabelecimento. do texto,; das estrategias de es-crita, das inten^oes'do «autor»; e os dispositivos que resultamda passagem a Hyro ou a impresso, produzidos pela decisaoeditorial ou pelo trabalho da oficina, tendo em vista leitores ouleituras que podem nao estar de modo nenhum em conformida-'de.com os pretendidos pelo autor. Esta distancia, que constitui0 espa^o no qual se constr6i o sentido, foi muitas vezesesquecida pelas abordagens classicas que pensam a obra em simesma, como um texto puro cujas formas tipograficas nao ternimportancia, e tambem pela teoria da recepc.ao que postulauma rela^ao directa, imediata, entre o «texto» e o leitor, entreos «sinais textuais» manejados pelo autor e o «horizonte deexpectativa» daqueles a quem se dirige.

Parece-nos haver ai uma simplifica^ao ilegitima do processoatraves do qual as obras adquirem sentido. Reconstitui-lo exigeconsiderar -as rela^oes estabelecidas entre tres polos: o tex-to, p objecto^que Ihe serve de suporte e a^pratica que dele se

• apodefa. Das 'variances desre relacionamento triangular depen-dem, com efeito, mutuacoes de significado que podem serorganizadas naigumas figuras. Tomemos, em primeiro lugar, ocaso de um texto estavel dado a ler em formas impressas que sealteram. Ao estudar as variacoes da passagem a objecto impres-so das pegas de William Congreve entre os seculos XVII e XVIII,D. F. Mac Kenzie pode mostrar como transformac.6es tipografi-cas aparentemente diminutas e insignificantes tiveram efeitosrelevantes no estatuto dado as obras, nas maneiras de as ler, atemesmo no modo como o proprio Congreve as considerava7. Damesma maneira, parece-me que a historia editorial das comedi-as de Moliere e da maior importancia para a reconstruc.ao da

7 D. F. Mac Kenzie, «Tipography and Meaning: the case of WilliamCongreve», in Buch und Buchhandsl in Europa im achtzehnten Jahrhundert,Vortrage herausgegeben von G. Barber and B. Fabian, Hamburgo, Dr.Ernst Hauswedell and Co., 1981, pp. 81-126.

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128 TEXTOS, IMPRESSOS, LEITURAS

sua compreensao. Relativamente a George Dandin, por exem-plo, devem ser tidas em conta quatro alteragoes: 1.° a passa-gem das edigSes separadas da pega, sob a forma de pequenosHvros estreitamente ligados as representagoeS; a sua publicagaono seio de edigoes colectivas, factidas ou de paginagao conti-nua, que a inscrevem num corpus, onde o seu sentido se en-contra contaminado pela proximidade de outras comedias; 2.° aceatralizacao do impresso, que, gradualmente, a partir de1682, multiplica as indicacoes cenicas, em especial no meiodas replicas, o que permite conservar a memoria dos jogos decena pretendidos por Moliere numa leitura desligada do sentidoimediato da representacao; 3-° a introdugao da imagem,tambem na edicao de 1682, que obriga a uma serie de escolhas(quanto a cena a ilustrar, quanto a representacao das persona-gens, quanto ao respeito pelas indicacoes cenicas) e constituium protocolo de leitura para o texto que acompanha; 4.° aedicao conjunta, apos 1734, da comedia, do texto da pastoral,no qua! aquela se inseria, e da relacao da festa de Versalhesonde todas se inscreveram em 1668 — como se no inicio doseculo XVIII a pega, situada a uma distancia historica, tivessede ser reconstituida no contexto da sua primeira representacao.O texto, estavei apos as suas primeiras edigoes de 1669, mudaporque se alteram os dispositivos que o dao a ler8.'

Segunda figura: quando a passagem de um texto dum objec-to impresso a outro impoe transfbrmacoes na sua propria letra.E o caso, por exempio, dos titulos que constituem o catalogoda Bibliotheqtte bleue*. Esta figura deve ser definida como umaformula editorial que visa atingir os leitores mais numerosos emais populates entre os com.ec.os do seculo XVII e os meados doseculo XIX As caracteristicas comuns~ as edigoes que estaformula propoe sao, antes de mais, materiais e comerdais.Materials: trata-se de livros brochados, com capa de papel azul(mas tambem vermelho ou cor de marmore), impresses corn ca-racteres desvanecidos e mal distribufdos, ilustrado's com gravu-

8 Temos presentemente em preparac,ao um estudo sobre esta comedia,com o titulo Le social em representation. Lectures de George Dandin, Paris,

Editions Odile Jacob, no prelo.* Colecc,ao de livros de cordel (N. da T.)

CAP1TULO IV 129

ras de refugo e nos quais, na pagina do titulo, a imagem surgemuitas vezes no lugar da marca do impressor. Comerciais:ainda que a extensao das obras seja variavel, os seus pregospermanecem sempre modestos, muito inferiores aos produzidosnum outro mercado de livros mais cuidados e, consequente-rnente, mais caros. A Bibliotheque bleue exige, pois, pregos decusto. calculados a risca a fim de proporcionar um prego devenda muito baixo.

Os textos que compoem o seu fundo nao foram escritos paratal fim editorial. A polftica dos inventores da formula, a saber,os impressores de Troyes, imitados depois em Rouen, Caen,Limoges ou Avignon, consiste em retirar do reportorio dostextos ja editados aqueles que Ihes parecem convir as expectati-vas e competencias do vasto publico que pretendem atingir. Daiduas consequencias essenciais: os textos passados a livros de cordelnao sao «populares» por si mesmos, pertencendo antes a todos osgeneros, a todas as epocas, a todas as literaturas; e todos eiestiveram, antes da sua edigao popular, um primeiro percursoeditorial, mais ou menos extenso, nas formas classicas da produ-gao livreira. E o que acontece com a literatura de devogao e deexercicios religiosos, com os romances e contos de fadas, com oslivros de praticas. Entre o estabelecimento do texto e a passagema.livro .de> cordel pode haver uma grande ,distancia, que eassinalada por uma serie de edigdes que nada tern de «popu-lares». '

. A especificidade cultural dos materiais editados no conjuntodas obras de cordel prende-se, portanto, nao com os propriostextos, eruditos e diversos, mas com a intervengao editorial quetem por objective adequa-los as capacidades de leitura doscompradores que tern de conquistar. *EsteItraBalhqitde"jadaptagap^ocKfiea^o7 texto relatiyamente ao rnodq como. e apresentado- najedigaq,anterior, que serve de copia para os impressores de livros«populares» e^orientado pela representagao que estes tpm.das,.competencias e das expecrativas culturais de leitqres^gara.quem oliyro.naose algp:de familiaf^Essas transformagoes sao de tresespecies. Encurtam os textQsJsuprimem os capftuios, episodiosou divagagoes .considerados .superfluos,"" simplificam, ,os enuncia-dos. aliviando as frases" das oragoes relativas e\ihtercalafes. Divi-

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130 TEXTOS, IMPRESSOS, LEITURAS '

dem os textos criando novos capitulos, multiplicandd os para-grafos, acrescehtando' tirulos e" resumes. Censuram as alusoestidas por blasfematorias ou sacrilegas, 'as describes consideradaslicenciosas, os termos escato!6gicos ou inconvenientes. A logicadeste trabalho de adaptacao e dupla: tern'por fim controlar os'textos, submetendo-os as exigencias da religiao e da moral daContra-Reforma, e pretende torna-los mais facilmente decifraveis

por parte de leitores inabeis.A leitura implicita suposta e visada por tal trabalho pode ser

caracterizada como uma leitura que exige sinais visiveis deidentificac.ao (como e o caso dos titulos antecipadores ou dosresumes recapitulativos, ou ainda das gravuras, que funcionamcomo protocolos de leitura ou lugares de memoria do texto),uma leitura que so se sente a vontade com sequencias breves efechadas, separadas umas das outras, uma leitura que parecesatisfazer-se com uma coerencia global minima. Ha ai umamaneira de ler que nao e de modo algum a das elites letradas,familiarizadas com o livro, habeis na decifracao, dominando ostextos no sen todo. Mais do que a erudita, essa leitura rudimen-tar pode suportar as imperfeigoes deixadas nos textos devido assuas condigoes de fabrico, apressadas e baratas (por exemplo, asinumeras gralhas, as folhas mal cortadas, as confusdes de nomese de palavras, os multiples erros). A leitura dos leitores de livrosde cordel (pelo menos a maioria-deles, ja que os notaveis naodesdenham a sua compra, por prazer, por curiosidade ou paracoleccionar) parece ser uma leitura descontinua, salteada, que seacomoda as rupturas e as incoerencias.

Essa leitura e, igualmente, um reencontro, no livro, comtextos ja conhecidos, pelo menos em pane, e de maneira apro-ximada. Muitas vezes lidos em voz alta por um leitor oralizador— nao apenas ao serao — os textos de cordel podem sermernorizados por ouvintes que, uma vez confrontados com olivro, os reconhecem mais do que os descobrem. Mais geral-mente para la dessa audicao directa — pela recorrencia das suasformas muito codiflcadas, pela repeticao dos seus motivos, pelassugestoes das suas imagens (mesmo que estas nao tenhamoriginariamente qualquer relacao com o texto que ilustram) —,os livros para a maioria remetem para um pre-saber facilmente

CAPITULO IV 131

posto em pratica no acto da leitura, mobilizado para produzir acompreensao daquilo que e decifrado — uma compreensao quenao esta necessariamente conforme a pretendida pelo produtordo texto ou pelo fabricante do livro, nem a compreensao queuma outra leitura, bem mais habil e informada, poderiaconstruir. E, pois, nas particularidades formais — tipograficas,no sentldo lato do termo —, das edicoes de cordel e nasmodificacoes que estas impoem aos textos apropriados que enecessario reconhecer a leitura «popular», entendida como umrelacionamento com o texto distinto da cultura letrada.

Dessa relacao entre texto, livro e compreensao, surge umaoutra figura, quando um texto, estavel na sua letra e fixo na suaforma, e objecto de leituras contrastantes. «Um livro muda pelofacto de nao mudar enquanto o mundo muda», declara PierreBourdieu9 -— ou, para tornar a proposigao compativel com aescala mais diminuta que e a do nosso trabalho, «enquantomuda o seu modo de leitura».

Dai a indispensavel identificacao das grandes partilhas- quepodem articular uma historia das praricas de leirura, portanto,dos usos dos textos, isto e, dos empregos do mesmo texto): porexemplo, entre leitura em voz alta, para si ou para os outros, eleitura em silencio, entre leitura do foro privado e leitura dapraca publica, entre leitura sacralizada e leitura laicizada, entreleitura «intensiva» e leitura «extensiva», para retomar a termi-nologia de R. Engelsing. Para alem das clivagens macroscopi-cas, o trabalho historico deve ter em vista o reconhecimento deparadigmas de leitura validos para uma comunidade de leito-res, mom momento e num lugar determinados — como a leiturapuritana do seculo XVII, ou a leitura «rousseauniana», ou ainda,a leitura magica das sociedades camponesas do seculo IX. Cadauma destas «maneiras de ler» comporta os seus gestos especifi-cos, os seus proprios usos do livro, o seu texto de referenda(a Biblia, a Nouvelle Heloise, o Grande e o Pequeno Alberto), cujaleitura se torna o arquetipo de todas as outras. A sua caracteriza-

9 P. Bourdieu e R. Chartier, «La lecture: una pratique culturelle», inPratiques de la lecture, sob a direc^ao de R. Chartier, Marseiha, Rivages, 1985,pp. 217-239.

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132 TEXTOS, IMPRESSOS, LEITURAS

C.ao e, portanto, indispensavel a toda a abordagem que visereconstituir o modo como os textos podiam ser apreendidos,

compreendidos, manejados. -As ultimas observances de Rojas no prologo da Celesttna

dizem respeito ao proprio genero do cexto: «Otros ban litigadosobre el nombre, diciendo que no se habi'a de llamar comedia,pues acababa en tristeza, sino que se llamase tragedia. El primerauctor quiso dar denommacion del principio, que fue placer, yllamola comedia. Yo, viendo estas discordias, entre estosestremos parti agora poc medio la porfia, y llamela tragicome-dia». Esre reparo pode levar a duas series de reftexoes. Antes demais, chama a atencao para as identificac,6es explicitas, quedesignam e classificam os textos, criando em relagao a elesexpectativas de leitura, antecipacoes de compreensao. O mesmosucede com a indicagao do genero, que aproxima o texto a ler deoutros, ja lidos, e que aponta ao leitor qua! o pre-saber ondeinscreve-Io. E igualmente o caso.de indicadores puramentefocmais ou materials: por exemplo, o formato e a imagem. Dosfolios aos tamanhos pequenos, existe uma hierarquia que combi-na o formato do livro, o genero do texto, o momento e o modode leitura. No seculo XVffl, Lord Chesterfield e disso testemu-nha: «Os grandes in-folios sao os homens de negocios com quernconverse durante a manha., Os in-quartos sao as companhiasmais diversiflcadas com que me reuno depois do almoco; e osmeus seroes, passa-os na cavaqueira amena e muitas vezes frivolados pequenos in-octavos e in-duodecimos» 10. Tal hierarquia e,alias, directamente herdada dos tempos do livro copiado a mao,fazerxdo a distincao entre o livro de bancada, que tern de serpousado para ser lido e que e liyro de universidade e de estudo,o livro humanista, mais manuseavel no seu tamanho medio, eque da a ler textos classicos e novidades, e o livro transportavel,o libellus, livro de bolso e de cabeceira, de multiplas utilizacoes

10 Em ingles, no original: «Solid folios ate the people of business withwhom I converse in the morning. Quartos are the easier mixed company withwhom I sit after dinner; and I pass my evenings in the light, and oftenfrivolous chit-chat of small octavos and duodecimos*, citado poc R. E.

Stoddard, in art. cii.

CAPITULO IV 133

e com ieitores mais numerosos n. Do mesmo modo, a imagem,no frontispfcio ou na pagina do titulo, na orla do cexto ou na suaultima pagina, classifica o texto, sugere uma leitura, constroium significado. Ela e protocolo de leitura, .indicio identificador.

Mas Rojas leva igualmente a pensar que a historia dos gene-ros, textuais e tipograficos, poderia fornecer uma base de apoioao projecto de historia dos discursos tal como Foucault aformulou. Compreender as series de discursos na sua "desconti- 'huidaHe,'desmontar os principles da sua regularidadc, identificafas suas racionalidades particulares,'supoe em nosso entendef ter?em-'-conta os .condicionamentos e .exigencias "que advem'dasproprias "formas nas quais sao dados a lerljDbnde a necessariaatenc.ab as leis de prodiigab5 e''abs indispensaveis' dispositivos 'queregem cada classe'ou serie de textos trahsfbrhiados" em livros, asvidas ~de/santos xomo bs"livros deTh6ras^os'livrbs' de'^ocasiad'como Qs'-livres 'bleus* bs folbetos' de'"corcklj* co"ni6'"os '$apbooks~,'-Q§-livros de"emblerrias como os -livros"de ehtrada... Donde igual-mente a identificacao indispensavel das migra^oes de um generopara o outro quando determinada forma se encontra investida decaracteristicas que Ihe sao habitualmente estranhas ou de textosque geralmente se encontram noutros locais e sob outras formas.O"- estudo 'critico"e "genealogico dos discursos em "series: pode1,pois,' apbiar-se no'projecto que, visa cruzar para;jcada:-textoi oueada conjunto de 'textos considerado,^-a historia das varia^oes cla-sua letra" e a das transformagoes"da suau'passageni a objectd;'

' impresso.Estas hipoteses de trabalho apoiam-se num certo numero de

revalidacoes criticas que representam distanciamentos face acertezas e habitos da historia cultural francesa12. As primeirasdizem respeito aos empregos classicos da nocao de cultura

1 ' A. Petrucci, «Alle origini del iibro moderno: Hbri da banco, librida bisaccia, libretti da mano», in Libri, scrittura e pubbltco nel Rinasdmento.Guida storica e critica, a cura di A. Petrucci, Roma-Bari, laterza, 1979, pp.137-156,Te «I1 libro manoscrito», in Letteratura italiana, 2, Produzionee consumo, Turim, Einaudi, 1983, pp. 499-524.

* Em portugues, no original (N. da T.)12 R. Chattier, «Volkskultur vs Gelehrtenkulturen. Ubetpriirung ei-

ner Zweiteilung und einer Periodisierung», in Epocheswellen and Epo-chemtrukturen in der Diskurs der Literatur — und Sprachbistorie, herausgegeben

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I134 TEXTOS, IMPRESSOS, LEITURAS

popular. Esta nao parece poder resistir a tres duvidas fundamen-tais. Antes de mais, deixou de ser sustentavel prerender estabe-lecer correspondenclas estritas entre clivagens culturais e hierar-quias socials, reclacionamentos simples entre objectos ou formasculturais particulares e grupos socials especifkos. Pelo contrario,q. que. e necessario reconhecer sao as circulacoes fluidas, aspraticas partilhadas, que atravessam qs horizontes sociais. Nume-rosos sao os exemplos de empregos «populares» de objectos, deideias, de codigos nao considerados como tais — pensemos nasleituras de Menocchio, o moleiro friulano13 — e tardia e arejeic,ao, pelos dominantes, das formas enraizadas da culturacomum. For outro lado, tambem nao parece ser possfvel identi-ficar a absoluta diferenc.a e a radical especiflcidade da culturapopular a parrir de textos, de crengas, de codigos que Ihe seriamproprios. Todos os materials portadores das praticas e dos pen-samentos da maioria sao sempre rm'stos, combmando formas emotives, invencao e tradic,6es, cultura letrada e base folclorica.For fim, a oposicaq macroscopica entre popular e letrado perdeua sua pertinencia. A_essa divisao massiva — que muitas vezesdefinia o povo, por defeito, como o con junto daqueles que sesituavam fora do modelo das elites —, prefete-se o inventariodas divisoes multiplas que- fragmentam o corpo social.. O seuordenamento obedece a varies principles que manifestam as dis-tancias ou as oposicoes entre homens e mulheres, citadinos erurais, protestantes e catolicos, e tambem entre as geracoes, asprofissoes, os bairros. A historia soeiocultural aceitou durantemuito tempo (pelo menos em Franca) uma definic.ao tedutora dosocial, confundido exclusivamente com a hierarquia das fortunase das condigoes, esquecendo que outras diferencas, fiindadas naspertencas sexuais, territoriais ou religiosas erarh tambem plena-mente sociais e susceptiveis de expllcar, tanto ou melhor do que

von H. U. Gumbrecht und U. Link-Heer, Frankfurt-am-Main, Suhrkamp,stw 486, t985, pp. 376-388 e J. Revel, «La culture populaire: sur les usageset les abus d'un outil historique*, in Culturas populares, diferencias, divergencias,conflictos, Madrid, Casa de Velasquez/Universidad Complutense, 1986, pp.

223-239-13 C. Ginzburg, // farmaggio e i vermi. II cosmo di urn mugnaio del' 500,Turim, Einaudi, 1976.

CAPITULO IV 135

a oposicao entre dominantes e dominados, a pluralidade daspraticas culturais. For ignorar emprestimos e intercambios, pormascarar a multiplicidade das diferencas, por determinar a prioria validade de uma delimitacao que esta precisamente por estabe-lecer, o conceito de cultura popular — que esteve na base dosprimeiros e pioneiros estudos sobre o livro de venda ambulante— deve ser agora posto em diivida.

Deve, igualmente, ser posto em diivida o contraste durantemuito tempo reconhecido entre todas as formas orais e gestuaisda cultura dita tradicional e a area de circulacao da escrita,manuscrita e depois impressa, delimitando uma cultura diferen-te, minoritaria, reservada. A divisao levou a compartimentar asabordagens destas duas formas de aquisi^ao e de transmissaoculturais e a separar a antropologia historica — que, emboratrabalhe com textos, se ligou ao sistema de gestos, aos usos daspalavras, aos disposirivos rituais — de uma historia culturalmais classica, dedicada a escrita, a sua producao e a suacirculacao. Ora, formulada deste modo, a oposicao traduz muitomal as situacoes do periodo entre os seculos XVI e XVIII, onde seimbricam meios de comunicacao e multiplas praticas.

Destas imbricates, umas associam a palavra e a escrita, querse trate de uma palavra dita que se flxa na escrita (foi o que severiflcou aquando da redaccao dos cadernos de agrayos para osEstados Gerais) quer, inversamente, de um texto que regresse aoralidade pela mediac.ao de uma leitura em voz aha. Outrasimbricacoes articulam os escritos e os gestos. Com efeito,numerosos-textos,tem por obiectivo anular-se enquanto discurso

S-.j.-!!- ••-- - _ ' r- -•' • "' • - - -•'-' - • - • * » • > •- ^ ... , a

e prqduzir na prarica, comportamentos ;,ou.condutas. tidos porlegitimos e uteis. As, artes.^de bem morrer, os. tratados"de/civilidade,. os Hvros .de praticas.sap exemplos, entre,outros,desses^ generosi!.que pretendem incorporar nosvindividuos, bsgestos necessaries ou convenientes. Por outro lado, a escritaencontra-se instalada no proprio cerne das formas mais centraisda cultura tradicional; e o caso da festa — habitada pelasinscricoes e pelas bandeirolas, comentada nos pequenos livrosque explicam o seu sentido — e, ainda, dos rituais eclesiastkosque exigem frequentemente a presenca do objecto escrito, manu-seado, lido, transmicido, A" historia das praticas culturais ,deve"

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136 TEXTOS, IMPRESSOS, LEITURAS

considerar necessariainente essas intricac.6es e reconstituir trajeotorias complexas, da palavra proferida ao texto escrito, da escri-,ta'lida aos'gestos feitos, do livro impresso a palavra leitora.

iParatal, uma noc.ao parece seifutil, a noc,ao de'apropriagao:porque permire pensar as diferenc.as na divisao, porque postula a ">invenc,ao criadora no proprio cerne dos processes de recepgao. |Uma sociologia recrospectiva, que durante muito tempo fez dadistribuic.ao desigual dos objectos o criterio primeiro da hierar-quia cultural, deve ser substitmda por uma outra abbrdagem,que centre a sua atengao nos empregos diferenciados, nos usoscontrastantes dos mesmos bens, dos mesrnos textos, das mesmasideias. Tal perspectiva nao renuncia a identificar diferenc,as (ediferenc,as socialmente enraizadas) mas desloca o proprio lugar dasua identiflcagao, dado que ja nao se trata de qualificar social-mente corpus tornados no seu todo (por exemplo, a literatura decordel), mas de caracterizar praticas que se apropriam de mododiferente dos materials que circulam em determinada sociedade;

A abordagem estatistica que, em tempos, pareceu dominar ahistoria cultural ftancesa — que tinha por objectivo avaliar adesigual repartic,ao social de objectos, de discursos, de actosadequados para por em series — nao e suficiente. Ao pressuporcorrespondencias demasiado simples entre niveis socials e hori-zontes culturais, .ao captar os pensamentos e as condutas nas suasexpressoes mais repetitivas e mais redutoras, tal perspectiva falhano essencial, que e a maneira conttastante como os grupos ou osindivlduos fazem uso dos motivos ou das formas que partilhamcom os outros. Sem, akandoharas medigoesL'e as'series^'a historiados textos ~e~dos livtbs deve sef^antes'de mai's* -reconstituic.ab dasdistancias'nas pcatica|. togo uma-historia do,actb."de ler.

Pensar deste modo as apropriac,6es culturais permite tambemque nao se considerem totalmente eficazes e radicalmente acultu-rante os textos ou as palavras que pretendem moldar os pensa-mentos e as condutas. As praticas que deles se apoderam saosempre criadoras de usos ou de representac.oes que nao sao deforma alguma redutiveis a vontade dos produtores de discursos ede notmas. O acto de leitura nao pode de maneira nenhuma seranulado no proprio texto, nem os comportamentos vividos nasinterdic.6es e nos preceitos que pretendem reguia-los.

CAPITULO IV 137

C.ao das mensagens e dos modelos opera-se sempre atraves deprdenamentos, de desvios, de reempregos singulares que sao o,objecto fundamental .da historia cultural.,?

A nocao de apropria^ao nao e encarada aqui no sentido queIhe da Foucault em L'ordre du discours, que e o de fazer da«apropria<;ao social dos discursos* um dos processes de controloe um dos dispositivos que limitam a sua distribuigao, conside-rando tal no<;ao como um dos grandes sistemas de subordinac.aodo discurso 14. A'nossa perspectiva e diferente;- sem ser contradi-toria, atentando nao nas exclusoes por conflscagao, rhas nasdifereric.as"do uso partilhado tal como "as identifica Pierre Bbur-dieu/^ «Q 'gostb;* a ptopensab e a aptidao para a apropriagab(material e/ou simbolica) cle uma determinada classe de objectos:ou de praticas classificados e classificadores e ;a formula geradoraque se ehcbntra no'pfincipio do estilo de vida, con junto unitariode preferencias distintivas^que exprimem, na logica especffica" decada lim^dos sub-espa^os simbblicos, a mesma inten^ab expressi-va» ls. O.que equivale a'dizer/'simultaneamente, que as praticascontrastantes devem ser entendidas como' concorrencias, que assuas "diferengas sao organizadas pelas estrategias" de distingao ou'de iinita^ao e que os empregos diversos dos1 mesmos"bensculturais se enraizam nas disposigoes do habitu's de cada grupo.

Dai a seleccjio de dois'modelos "detompreehsao para explicaros textos, os livros e as suas leituras. O primeiro poe emcontraste rdiscipliha~e inven^ao, considerando estas duas categori-as nao como antagonicas, mas como sendo geridas a par. Todo odisposifivo que visa criar controlo e condicionamento segregasempre tacticas que o domesticam ou o subvertern; contraria-rhente, nao ha ptodugao cultural que nao empregue materiaisimpostos pela tradigao, pela autoridade ou pelo mercadb e quenao esteja submetida a$ vigilancias e as censuras de quern tern'poder 'sobre as palavras ou"os: gestos^ A oposigao e demasiadosimples entre espontaneidade «popular» e coer^oes das institui-

ou dos dominantes: b que e preciso reconhecer e o rnodo

14 M. Foucault, L'ordre du discours, Paris, Gallimard, 1971, pp. 45-47.P. Bourdieu, La distinction. Critique socials du jugement, Paris, Editions

de Minuit, 1979, p. 193.

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138 TEXTQS, IMPRESSOS, LEITURAS

como se articulam as liberdades condicionadas e as disciplinas

derrubadas.Disciplina e invenc.ao mas tambem distinc,ao, e divulgac.ao.;

Este segundo par de nogoes solidarias permite propor umacompreensao da circulac,ao dos objectos ou dos modeios culturaisque nao a reduz a simples difusao, pensada geralmente como ummovimento descendente na escala social. Os processes de imita-cao ou de vulgarizacao sao mais complexes e mais dinamicos edevem ser entendidos, antes de mais, como lutas de concorrenciaonde toda a divulgac.ao, concedida ou conquistada, produzimediatamente a procura de uma nova distin^ao. Por exemplo,quando o livro se torna um objecto menos raro, menos confisca-do, menos distintivo pela sua simples posse, sao as maneiras deler que.se encarregam de mostrar as distancias, de manifestar asdiferenc,as socialmente hierarquizadas. As representac.6es sim-plistas e imoveis da dominac,ao social ou da difusao culturaldevem ser substituidas, na esteira de EUas16 e Bourdieu, poruma maneira de tas entender que reconhece a reproduc.ao dasdistancias no proprio interior dos mecanismos de imitac,ao,_ asconcorrencias no seio das partilhas, a constituicjio de novasdistinc.oes em virtude dos proprios processes de divulgac.ao,

E com estas hipoteses e noc,oes que foi tentado o estudo daspraticas do impresso na sociedade antiga. Com efeito, elas fize-ram uma boa entrada na cultura dos seculos XV a XIX, por duasrazoes. Por um lado, flxam ou sao portadoras da palavra,cimentam as sociabilidades e prescrevem os comportamentos,atravessam o foro privado e a praca publica, levam a crer, a fazerou a imaginar: revolvern a cultura na sua totalidade, compondocom as formas tradicionais da.comunica^ao, instaurando novasdistingoes. Por outro lado, permitem uma circulacao da escritanuma escala inedita, tanto porque a impressao baixa o custo defabrico do livro, doravante repartido por todos os exemplares deuma mesma tiragem, e ja nao suportado por uma unica copia,como porque ela encurta os prazos da produgao, muito longos

16 N. Elias. fiber den Prozess der Zivilisation. Soziogenetische undpsychogerie-thche Untersuchiingen, Frankfurt-am-Main, Suhrkamp, stw 158-159, 1979,Zweiter Band, pp. 3 12-454. (Vd. notas 4 e 5 do Capitulo III do presentelivro, para uma ceferencia precisa a esta obra.)

r

CAPITULO IV 139

nos tempos do livro manuscrito. Apos Gutenberg, e toda a cul-tura do Ocidenre que pode ser considerada uma cultura do im-presso, pois os produtos dos prelos e da composicao tipogtafi-ca nao sao de modo nenhum reservados, como na China ou naCoreia, ao uso das administrac.6es e dos cleros, irrigando, pelocontrario, todas as relagoes, todas as praticas. Donde uma duplaambic.ao e um duplo trabalho. Numa pequena escala, compreen-der os usos multiplos, diferenciados, confrontados, do impresso,pois as autoridades concorrentes acreditaram nos sens poderes eos leitores manejaram-no consoante as suas competencies ou assuas expectativas17. E, numa visao mais larga, reinscrever a ,inova^ao tipografica na longa historia das formas do livro ou dossuportes dos textos (do volume ao codex, do livro ao ecran) e ;na7historia dos modos de ler, inscritos na trama que vai da leituranecessariamente otalizada a que pode ser.feita pelos olhos e emsilencio18. •

17 Vd. os estudos reunidos in R. Chartier, Lectures et lecteurs dans laFrance d'Ancien Regime, Paris, Seuil, 1987, e os Capi'tulos V e VI do presenteHvro.

18 P. Saenger, «Silent Reading: its Impact on late Medieval Script andSociety*, Viator, Medieval and Renaissance Studies, vol. 13, 1982,pp. 367-414.

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CAPITULO V

Praticas e representagoes: leituras camponesas

em Franca no seculo XVlll

Para os letrados das Luzes a leitura camponesa e uma leituraperdida, ocultada na cidade pelos ritmos desenvokos de leitoresdemasiado avidos. For detras da imagem, pintada na tela oilfeita literatura, sera possivel detectar os habitos e praticas doshabitantes dos campos, que nao sao de modo algum os dasnostalgias citadinas, mas os de carne e osso que povoam o paiscomum? E certo que alguns pegaram na pena para contar ahistoria da sua vida e, ao faze-lo, recordam os seus primeirosencontros com os livros. E o caso de Louis Simon, estamenheirono Maine, que cornega em 1809, cinco anos apos a morte da suamulher amada7 a escrever «os principals acontecimentos ocorri-dos ao longo da minha vida». Recordando a sua juventude, faznotar o seu gosto pela leitura, alimentado gramas a bibliotecado padre da paroquia que Ihe empresta livros, graces tambem,sem diivida, a um vendedor ambulante tegressado a tegiao:«Passava, pois, o meu tempo a desfrutar o prazer de tocarinstrumentos e a ler todos os livros que conseguia arranjar sobretodas as historias antigas, as guerras, a geografia, as vidas desantos, o Antigo e o Novo Testamento e outros livros sagados eprofanos; gostava tambem muito das can^oes e dos canticos» l.Porem, tais testemunhas sao raras e laconicas. As mais elo-quentes, como Jamerey-Duval, encontram-se muito distantes dasua infancia quando escrevem, e, ao narrar a forma de aquisi^aoda cultura, e o homem das Luzes que fala, ajuiza e pensa, e naoo pastor de outrora. O testemunho deve, portanto, ser decifradoem primeiro lugar como uma apresentac,ao de si mesmo, molda-

1 A. Fillon, Louis Simon, etaminier 1741-1820 dans son village du Haut--Maine, Universice du Maine, 1982 (cese de 3.° ciclo).

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da a uma enorme distancia social e cultural, ligada a umatrajectoria excepcional. 2. Embora seja possivel reconhecer aitrac.os que sao sem duvida validos para todas as educatesautodidaccicas, nao se pode, por outro lado, indicar os usoscomuns do impresso, das maneuas correntes de let. Muito raras,pouco loquazes, produces de circunstancias particulares, as histo-rias de vida nao bastam para reconscituir as leituras camponesasdo seculo- XVIII. Dai,, o valor de um conjunto documentaldiferente: os textos dirigidos ao abade Gregorio em resposta assuas questoes «relativas ao patois e aos costumes das genresdo campo». Enviado a 13 de Agosto de.1790, o questionario doparoco de Embermenil, deputado a Assembleia Nacional,comporta tres perguntas prometedoras para uma historia daleitura popular: «35. Tern [os senhores parocos e vigarios] umconjunto variado de livros para emprestar aos seus paroquianos?36. As gentes do campo tern gosto pela leitura? 37. Queespecies de livros se encontram mais frequenremente nas casasdeles ?» Tres perguntas precisas, pois, sobre a presenga do Kvronos campos e sobre as_ leiruras preferidas dos seus habitantes.

Os livros de que se trata aqui sao obras em Frances, ja que osescritos em patois devem ser mencionados nas respostas dadas asperguntas 21 a 25 — em especial a vigesirna rerceira: «Tempubiicac.6es em patois, impressas ou manuscritas, antigas oumodernas, como direito consuetudinario, actos publicos, croni-cas, orac_6es, sermoes, livros asceticos, canticos, cancoes, almana-ques, poesias, tradugoes, etc.?». A iniciativa de Gregorio surge,assim, como o inquerito mais antigo sobre as praricas culturais(ou, pelo menos, de leitura) dos Franceses e como um inventarioinesperado da biblioteca rural do seculo XVIII, nos comegos daRevoluc.ao. O exame das respostas deve, rodavia, matizar umpouco o entusiasmo. O seu numero acaba por ser restrito, umavez que so existem quarenta e tres, conservadas na biblioteca

2 V. Jamerey-Duval, Memoires, Enfance el education d'un paysan au XVlll*siec/e, introducjio de J.-M. Goulemot, Paris, Le Sycomore, 1981, e J.Hebrard, «Comment Valentin Jamerey-Duval appcic-il a lire? L'autodidaxieexemplaire», in Pratiques de la lecture, sob a direc^ao de R. Chartier,Marselha, Rivages, 1985, pp. 23-60.

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da Sociedade de Port-Royal e na Biblioteca Nacional3. Paraalem disso, na maioria dos casos nao retomam o conjunto dasquarenta e tres perguntas formuladas por Gregorio, ignoramalgumas dessas respostas (em particular onze de entre elas,relativamente as perguntas que nos interessam), dao uma unicaresposta a varias perguntas ou compoem um texto muito afasta-do do questionario.

Finalmente, quern responde nao sao os proprios leitoresnirais, rnas homens distantes da cultura camponesa. Por umlado, a sua posicao social distingue-os fortemente do povo rural.Para obter respostas ao seu inquerito, Gregorio apoiou-se emvarias redes de correspondentes: homens com quern mantinhauma amizade letrada, alguns dos seus colegas da AssembleiaNacional, e por fim as Sociedades dos Amigos da Constituigaofiliadas no Clube dos Jacobinos. Mas todos os que Ihe escrevem,e cujas respostas se distribuem entre Agosto de 1790 e Janeirode 1792 (com a grande maioria entre Novembro de 1790 e Fe-vereiro de 1791) tern fortes pontos comuns: sao citadinos, sao«clerigos» que pertencem a Igreja, a administragao ou a justica,as profissoes liberais — isto e, a todas as «togas» da antigasociedade —, sao burgueses esclarecidos empenhados no mundoda Republica'das letras. Esra primeira distancia, objectiva,relativamente ao.campo e aos seus habitantes,, e duplicada poruma outra, voluntaria, que se encontra no proprio fundamentoda descricao. O corte afirmado em relagao ao povo campones,esse «outro» a descobrir com o questionario, e a condigao paraque sejam claramente separados no interior da comunidade deprovincia os hotaveis citadinos, em posigao de observadores, e ocampo, objecto selvagem da sua observac.ao. O que relatam os

3 29 respostas fbram publicadas por A. Gazier, Lett-res a Gregoire sur lespatois de France, Paris, 1880; tr£s por M. de Certeau, D. Julia e J. Revel,Une politique de la langue. La Revolution fran$aise et les patois, Paris, Galli-mard, 1975; 11 sao ineditas, 10 delas conservadas na colectanea daBiblioteca Nacional, Ms. Nouvelles Acquisitions fran^aises 2798, e aultima na da'Sociedade de Port-Royal, Ms. Revolution 222. Agradec.o aDominique Julia, que me comunicou o texco dessas cams inedkas. Asrespostas as perguntas 35, 36 e 37 do inquerito de Gregorio sao rapida-mente utilizadas no artigo de N. Richter, «Prelude a la bibliothequepopulaire. La lecture du peuple au siecle des Lumieres», Bulletin desbibliofheques de France, t. 24, n.° 6, 1979, pp.. 285-297.

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correspondences de Gregorio nao e o resultado de inqueritosno terreno, apoiados numa intenc,ao etnografica, mas umamistura complexa de saber e de familiaridade, de estereotiposantigos e de imagens a moda, de coisas vistas e de textos lidos.E preciso ter isso presente quando se toma conhecimento dassuas respostas.

«As gentes do campo tern gosto pela leicura?» A -pergunta,formulada no vocabulario novo do seculo, suscita respostascontraditorias. Para alguns, tai aspirac.ao e impossivel para quernnao sabe ler: «Estao ainda, na maioria, entregues a mais crassaignorancia: nao sabendo ler, nao podem ter gosto pela leitura»(Amigos da Constitui^ao de Agen, 27 de Fevereiro de 1791);«As gentes do campo nao tern de maneira nenhuma gosto pelaleitura porque mal sabem ler» (resposta anonima, regiao deMaconnais e de Bresse); «Nao sabendo tres quartos das gentesdo campo ler, seria inutil ter livros para Ihes emprestar»(Jean-Baptiste de Cherval, 22 de Setembro de 1790). Paraalguns, a propria pergunta pacece desprovida de sentido. Lequi-nio di-lo mobilizando a sabedoria latina: «As gentes do camponao tern de modo nenhum o gosto pela leitura, ignoti nullacupidoy>\ outros fazem-no mais bruscamente, como os Amigos daConstituicao de Mont-de-Marsan, que respondem simplesmentea pergunta: «Eh! Como e que poderiam ter?»

Em sentido oposto, varias respostas insistem no apetite deleitura campones, durante muito tempo maltratado, mas subita-mente revelado pela Revoluc.ao. E o caso do abade Rochejean,que responde por Salins e pela sua regiao: «Por toda a parte opovo comeca a ler; trata-se de manter o impulse dado. Nasclasses mais ignorantes da sociedade, encontram-se homensdignos de possuir instruc.ao que mais nao pedem do que serensinados. Sei que o povo e muito apatico; porem, sei que o emenos de dia para dia, e que comporta um numero suficiente dehomens avidos de instruc.ao para que o gosto, mais ou^ rnenoslentamente, se torne universal (15 de Marge de 1791). E o casodo conego Hennebert em Artois: «Observe que desde a Revolu-c.ao eles adquiriram um certo gosto pelos escritos a ela relatives*(26 de Novembro de 1790). O facto leva, alias, a que algunsmodifiquem inteirarnente a sua opiniao. O abade Andries,

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professor no colegio de Bergues, respondera ironicamente apergunta 36, ridicularizando a «estiipida vaidade» dos homensdo campo flamengos, que se gabariam de tudo saber sem nuncaler nada: eles «nao encontram de modo nenhum em suas casaslivros suficientemente bem escritos que possam anima-los ouleva-los a apreciar a leitura: por isso nunca os abrem». Mas, emnota, acrescenta a proposito da sua resposta: «A nora seguinte,embora comica, nao era menos verdadeira ha seis meses atras:presentemente, os camponeses estao apaixonados pela leitura,conhecem melhor a Constituigao do que as nossas gentes dascidades que desprezam os decretos.» A Revoluc.ao deita, portan-to, por terra as situac.5es antigas e revela, em toda a sua forga,aspirac.6es que se julgara de modo demasiado apressado seremestranhas ao povo campones.

Infelizmente, esta expectativa nova e confronrada com doisobstaculos ainda por contornar. Em primeiro lugar, a mediocrecirculac,ao dos livros nos campos: «O povo teria sem duvida ogosto da leitura e se tivesse livros consagrar-lhes-ia muitosmomentos que nao pode consagrar aos seus preciosos trabalhos»,escreve o abade.Fonvielhe, paroco constitucional de Dordogne(20 de Janeiro de 1791). E uma prova a contrario e fornecida porBernadau, advogado de Bordeus: «Reparei que um campongs,quando tern um livro a sua disposic,ao, num dia de festa,- preferea sua .leitura ao cabaret, embora o seu uso Ihe seja bastantefamiliar nos dias de descanso» (21 de Janeiro de 1791). Segundoentrave a leitura desejada: a impossibilidade da instruc.ao, emvirtude da falta de professores. «As gentes do campogosram muito da leitura, e, se nao mandam educar os seusfilhos, e porque nao tern quaisquer professores primarios»(Bernardet, paroco de Mazille na diocese de Macon, 28 deDezembro de 1790). E Jean-Baptiste de Cherval acrescenta:«A facilidade com que se pode ler, o desejo de adquirir algunsconhecimentos, o fruto que se retira da leitura, e geralmenteaquilo que Ihe da o gosto e desde que se mostrem aos campone-ses estas vantagens, nao duvido de que gostarao tanto da leituracomo os homens policiados.» Ideia que Lorain, presidente domunici'pio de Saint-Claude, resume numa formula soberba: «A

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instrucao e necessaria para se ter sede de instrucao» (14 deNovembro de 1790).

O povo dos correspondentes de Gregorio e como que des-pertado para si mesmo pelo novo nimo politico. O amor pelaleitura, a avidez de instrucao pertencem bem a sua natureza,mas tinham sido abafados pela sujeicjlo cultural na qual eramantido. Os Amigos da Constituicao de Auch proclamam-no:«A£irma-se autorizadamente que as gentes dos campos tem naalma o gosto pela leitura e o que mais desejam e instruir-se.»O primeiro dever da Revoluc.ao e, portanto, de os tornarconscientes dessas aspiracoes que residem neles. Podera ela, nestatarefa, apoiar-se na Igreja, de que sao membros muitos daquelesque respondem ao questionario? Ai, mais uma vez, o diagnos-tico e contraditorio. Para uns, os parocos sao adversaries decidi-dos da leitura camponesa. For um lado, pretendem preservardesse modo a sua mediagao necessaria entre os fieis e a Bfblia,como escreve o abade Aubry, ele mesmo padre, a proposito dasArdenas: «Os parocos e os vigarios [...] nao emprestam nenhumlivro aos seus paroquianos, a quern e proibido ler as SagradasEscrituras. Alem disso, ha poucos camponeses que tenham gosropela leitura.» For outro lado, temem que a difusao da leituraperturbe a escala das condigoes ou subverta a ordem entre ossexos. O advogado Bernadau refere ter ele proprio deparado comtal hostilidade quando quis introduzir na escola da aldeia aleitura e a distribuic.ao aos melhores alunos de obras uteis parao «governo das familias»: «O paroco sustentava que inspirar ascriangas o gosto pela leitura era procurar dar-lhes, relativamenteaos seus compatriotas, uma superioridade contraria a modestiacrista, e que as raparigas leitoras eram mulheres maldosas.»Classico con junto de imagens do seculo, que representa a lutaentre o clerigo, preso as ideias da tradic.aof adversario daeducacao do povo, fonte de desordem, e o homem das Luzes,preocupado com o progresso domestico e publico.

Contudo, se os cl£rigos resmungam com a educacao dopovo, a Igreja, enquanro institui^ao, nao deixa de ser a unicaa incitar a leitura, O ex-capuchinho Francois Chabot, de Saint--Genies, observa-o pela negativa: «A preguica dos parocos e dosvigarios estende-se a todos os seus paroquianos: eles so leem

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enquanto estao nos bancos, isto e, ate a primeira comunhao»(4-8 de Setembro de 1790). E de igual modo, Lorain, emSaint-Claude: «Uma minoria le os seus livros de horas e e tudo.As excepc,6es encontram-se infinitamente dispersas.» Esta con-tradigao remete para a posicao ambigua dos padres de paroquiano discurso dos correspondentes de Gregorio. For um lado, su-blinha-se por diversas vezes a sua propria indigencia: elesmesmos nao passam de reles leitores. Amigos da Constituicao dePerpignan: «Poucos, muito poucos deles tem livros»; abadeFonvielhe: «O povo le, pois, muito pouco e os parocos (ex-ceptuando o facto de agora lerem as noticias) leem geralmentetao pouco como ele.» Desta situagao, o responsavel e claramenteo sistema de beneffcios que obriga os parocos a uma vidademasiado avarenta que os prende ao seu estado, sem esperangade muda-lo. Morel, procurador em Liao: «Como seria possivelque os parocos com proventos mesquinhos arranjassern umaprovisao variada de livros para os emprestat aos seus paroqui-anos?» (2 de Novembro de 1790); Amigos da Constituicao deAuch: «Quando tivessem introduzido na cabeca a ciencia de todaa Sorbona, o facto nao os levaria nem a uma abadia, nem a umadignidade no seu capftulo, nem a uma paroquia melhor. E hamais, e que o titulo de paroco era uma exclusao para toda aespecie de grau, sobretudo por parte da eofte.»

No entanto os parocos veem atribuir-se-lhes um papelessencial na necessaria acultura^ao do povo. A propria formula-c.ao da trigesima quinta pergunta o sugere, na sua referendaimplicita a biblioteca de emprestimo estabelecida por Gregoriona sua paroquia de Embermenil antes da Revolucao — o que eratalvez retomar, para uso nos campos, uma pratica dos parocosjansenistas parisienses. Alguns dos correspondentes decifram areferencia: «Uma provisao variada de livros que deveriam ter ossenhores padres para emprestar aos seus paroquianos e uma ideiadigna de ter sido concebida e executada pelo autor destasperguntas» (abade Rochejean); «Esta pergunta so pode serproveniente de um filosofo suficientemente amigo da humanida-de para ja ter ele proprio posto em pratica um uso ou uma modaque ele gostaria de ver estabelecer-se em rodo o Imperio»(Amigos da Constituigao de Auch). Nesta epoca dos comegos da

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Revoluc.ao, o clero, reformado e regenerado, e o educadorpatriota que esta encarregue de comunicar a instruc.ao, dedifundir as Luzes, de revelar o povo a ele proprio. Com asnovas autoridades civis, tern de trazer a luz do dia o desejo deleitura que se encontra escoadido na sua propria alma. EmMaio de 1794, quando Gregorio aptesenta perante a Convenc,aoo relatorio saido da sua pesquisa «sobre a necessidade e osmeios de eiiminar o patois e de universalizar a utilizac.ao dalingua francesa», os tempos mudaram, e nao ha entao lugarpara os parocos emprestadores de livros4.

A Bibtioteca rural segundo os correspondences do- Abade Gregorio

\. Consideramos aqui apenas as respostas que menciona-vam pelo menos uma «especie de livros» em resposta apergunta 37 do questionario. Estao numeradas de acordo com alista fornecida em M. de Certeau, D. Julia e J. Revel, Unepolitique de la langue. La Revolution franfaise et les patois: I'enquetede Gregoire, Paris, Gallimard, 1975, pp.-175-178.

2. As obras mencionadas, pelos seus generos ou pelos seustitulos, foram agrupadas nas seguintes categorias:

1. Biblias, versoes abreviadas e historias da Biblia.

2. Livros de horas.3. Catecismos.4. Recolhas de canticos.5. Recolhas de loas de Natal.6. Saiterios.7. Livros de orac,6es, breviarios, paroquiais.8. Vidas de santos >9. Obras de devoc.ao e de piedade.

10. Colecc,ao de livros de cordel [Btbliotheque blem\

11. Contos.12. Almanaques.13. Livros de feitic,aria.

4 O cexto deste relatorio esca publicado por M. de Certeau, D. Julia eJ. Revel, op. cit., pp. 300-317.

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«Que especies de livros se encontram mais frequentementenas casas deles ?» A trigesima setima pergunta do questionariode Gregorio incita os seus correspondences a trac.ar os contornosda biblioteca dos seus compatriotas camponeses. Eles respon-dem, mas nao como poderia desejar o historiadot em busca dedados precisos e objectives. Com efeito, contentam-se na maiorparte dos casos com alguns titulos ou indicates muitp globais,e, sobretudo, e bem claro que a sua escolha tern na yerdade afunc.ao de ilustrar e validar a sua propria representac.ao dasdisposic,6es culturais ou das propriedades psicologkas que em-prestam ao povo campones. E certo que estes observadoresprudentes nacTinventam, e bs livros que eles" mencionamencontram-se sem diivida nas casas camponesas, mas fazemtriagens, generalizam, e talvez omitam de modo a tornarsensivel, pelo conjunto dos titulos considerados, aquilo que e aruralidade — pelo menos a do seu encendimento. O levanta-mento sistematico das «especies de livros» cicadas em cadaresposta agrupadas em creze categorias, nove religiosas, qlaatrolaicas, nao constitui um inventario a maneira notarial, masum «tipo ideal» da biblioteca camponesa, constmido no cruza-mento da experiencia com a imagetica, indicio simultanea-rnente de um conhecimento do campo, visitado, percorrido, edos arquetipos partilhados da rusticidade. :

Nesta representagao, o livro do povo agricola e em primeirolugar religioso. Todas as respostas, que mencionam livros, comexcepgao de tres apenas (as dos Amigos da Consrituicjio deMont-de-Marsan e de Perpignan e a do conego Henneberc),indicam a presenga de obras de piedade ou de livros da Igreja.A Biblia e cicada, mas muitas vezes atraves de versoes resuhii-' " /das ou de adaptagoes: «Enconcra-se entretanto em casa dealguns a versao abreviada do Antigo Testamento de Royau-mont, o Evangelho e a Imitation de J.-C.; mas isso e muitoraro» (Amigos da Consticuigao de Agen); «Eles gostam muitodas historias das Vidas de Santos e da Bfblia» (Abade Boui-llotte, Borgonha). NesCe ponco, o contrasce entre procestantese cacolicos e sublinhado por alguns, como Colaud de LaSalcette, no departamento de Dr6me: «Os parocos t^m poucoslivros, e os camponeses gostam pouca da leicura; os calvirustas,

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muito numerosos, sao muito certos a procurarem a Bfblia»(18 de Fevereiro de 1792). Citados mais frequentemente doque as bfblias em Frances ou os seus sucedaneos: os livros dehoras — «As gentes do campo que sabem ler so leem os seuslivros de horas» (Morel 1'Aine, Lyon). Nos finais do seculoXVIII, os correspondentes de Gregorio retem a familiaridadeperpetuada com o livro de horas, que dois seculos antes era omais divulgado de codos os livros5. A literatura nova dareforma catolica minimizou a sua importancia para os maisletrados ou os mais devotos, mas permanece uma pubiicacjiopopular, de utilidade mulcipla, propondo ao mesmo tempotexcos dos offcios e fragmencos da Biblia. Mas para os patriotasesclarecidos que escrevem a Gregorio, os livros de horas nao saona realidade livros, e le-los nao e verdadeiramente ler. OsAmigos da Constituic,ao de Auch dizem-no a sua maneira numpequeno apologo do campones que le mas que nao e leitor: «Ojovem que ia a escola em casa do paroco, que o fazia ler umavez ou mais por mes, embora os pobres pais se privassemdiariamente dos pequenos services que Ihe teria prestado o seufilho; esse jovem, diziamos, assim que entrou na posse do livrode horas da diocese, passou a ce-lo constantemence na suaalgibeira durante o trabalho, e nas suas maos nos momentos dedescanso. Lia durante todo o tempo, e morreria sem nunca tersabido ler». Saber ler e outra coisa, que nao e apenas-poderdecifrar um linico livro, mas mobilizar, com utilidade ou porprazer, as multiplas riquezas da cultura escrita.^

No reportorio do livro devoto tracado pelos interlocutoresde Gregorio, se figuram textos anrigos como a Imitaqao da Vidade Cristo (citado pelos Amigos da Constitui^ao de Agen e pelosde Carcassonne), aparecem tambem titulos mais recentes, pro-duzidos pela reforma catolica e incluidos no catalogo dosimpressores de obras de grande difusao, em especial os instala-dos em Troyes, Bernadau menciona assim «Les Sept Tempetes,obra ascetica de um genero lamentavel», que e Ler Sept Trompettesspirituelles pour reveiller les pScheurs do franciscano Solutive,

5 Cf. A. Labarre, Le tivre dans la vie amienoise du XVle siede. L'enseigne-ment des inventaires apres deces 1503-1576, Paris-Lovaina, Nauwelaerts, 1971,pp. 164-177.

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e Francois Chabot, Les Chemin du del ou La vote que doivent tentrles enfants pour arriver au del e Pensez-y bien ou Reflexion sur lesquatre fins dernieres de I'Homme — tendo os dois primeirostirulos sido varias vezes reeditados ao longo do seculo pelosimpressores de Troyes. A sua presenca nos campos, tal comodessas publicacoes Hturgicas que sao os breviaries, os catecis-mos, as recolhas de canticos e de oracoes, resulta de um duplofacto. E o efeito, em primeiro lugar, de uma politica diocesanado livro, feita, pelo menos em certos locais, de distributees asescolas e as familias. Como acontece na diocese de Saint--Claude, no dizer do advogado Joly: «O falecido bispo mandoudistribuir nas paroquias muitos livros». Por outro lado, nosuitimos vinte anos da antiga monarquia, o regime novo dasautorizacoes simples instituido em 1777, que permite reeditarlivremente todos os tirulos cujos direitos expiraram, multipli-cou de maneira consideravel o numero dos livros de religiao emcirculate. O total destes exemplares ascende a 1 363 700entre 1778 e 1789 (isto e, 63% de todos os que forarn publi-cados a coberto da nova autorizacao). Tres categorias dominamesra producao religiosa de fim de seculo: as obras de liturgiae de pratica (45% dos exemplares), os livros de horas (20% dosexemplares), os livros de piedade da reforma catolica —,e,entre eles, o Cbemin du del ou o Pensez-y hzen6. E precise,portanto, dar aqui credito as observances dos correspondentesde Gregorio que registam com fidelidade a nova disposicao domercado do livro em vesperas da Revolucao.

A par dos livros de piedade, encontram-se os da Bibliotkequebleue [literatura de Cordel]. Esta so surge, todavia, em cincorespostas quer no singular — Bernardau menciona a presenca de«algumas publicacoes da colecgao de livros de cordel^ —, querno plural — o abade Aubry, paroco de Bellevaux, nas Ardenas, in-dica por seu turno: «Os livros que se encontram habitualmentenas casas deles sao Vidas de Santos, Hvros de oracdes e ascolecgoes de livros de cordel^, fazendo ralvez alusao as diferentes

6 J. Brancolini e M.-T. Bouissy, «La vie provinciale du livre k la finde 1'Ancien Regime^, in Livre et Societe dam la France du xviue j«c/e,,,sob adir. de F. Furec, Paris-Haia, Moucon, 1970, t. II, pp. 3-37.

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cidades que imprimem tais publicacoes. A recolha dos titulosindividualmente citados e fraca: a Histoire des quatre fiis Aymonpelos Amigos da Constituigao de Mont-de-Marsan e pelos deCarcassonne, a Histoire de la vie, grander voleries et subtilttes deGuillen, por estes ultimos, a Histoire de la vie et du proces dufameux Dominique Cartouche e a Histoire de Loius Mandrin peloconego Hennebert. Portanto, um romance de cavalaria, classicoda coleccao de livros de cordel, e os tirulos que no seculo XVIIIasseguram o exito popular da figura nova e ambigua do«bandido de grande coracao7». Para os correspondentes deGregorio, os contos pertencem ao mesmo horizonte. Chamam--se de diversas maneiras: «contos de fadas, de nigromantes,Barba-Azul» para os Montois, «os antigos Contes de ma merel'0ie» para Hennebert, «contos de cordel» para o loreno DeMirbeck. Em todos os casos trata-se de referencias a escritos, alivros aparentados com os do reportorio de cordel, e nao deaiusoes as tradicoes orais do povo dos campos, aparentemenremal conhecidas pelos nossos observadores ciradinos. O( seutestemunho fornece duas informacoes preciosas: por um lado,atesta que a denominacao de coleccao de livros de cordel naoinclui os livros religiosos, que no entanto sao impresses nasmesmas formas e pelos mesmos edirores — o que e confirmadopelos catalogos de Troyes, que a reservam para os «livrosrecreativos — apelidados geralmenre de coleccao de livros decordel»\ por outro lado, manifesta a difusao generalizada a todoo reino, incluindo as provincias meridionals, dessas historiasque ja nao sao pubiicadas apenas pelos editores de Champagneou de Ruao 8.

Oito respostas colocam os almanaques enrre os livros doscamponeses. Tres delas contentam-se com essa expressao gene-rica, precisando apenas «qualquer desses maus almanaques»,como o abade Fonvieihe; outros cinco designam com mais

7 Cf. Figures ck la gueuseris, cextos apresencados por Roger Chartier,Paris, Moncalba, 1982, pp. 83-96 e Hisloires curieiises et veritable^ deCartouche et Mandrin, cextos apresencados por H.-J. Ltisebrink, Paris,Moncalba, 1984, pp. 21-45.

8 Cf. o capiculo-VI, «Textos e edi^oes: a liceratura de cordel.»

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precisao os aimanaques de que falami.Bernadau cita o Almanackdes Dieux (talvez o Dieu soit beni ou Almanack fickle), os Amigosda Constituic.ao de Perpignan enumeram os de Liege, deLarrivay (na realidade de Delarivey, de Troyes) e o Messagerboiteux, Frederic-Ignace de Mirbeck refere, para a Lorena, oAlmanack de Bale, isto e, o mesmo Messager botteux, e o abadeAndries, para os distritos de Bergues e de Hazebrouck, osaimanaques flamengos «que se debitam aqui, mas que vem doestrangeiro a dois soldos por cada exemplar [...]. Os campone-ses tern em relac.ao a eles um excesso de avidez, no que dizrespeico a prognosticos do tempo, que nunca deixam de figuraraf». Duas constata^oes, portanto: a predominancia dos aimana-ques impresses no estrangeiro relativamente aos do velho fundode Troyes, e a circulagao dos mesmo titulos do Norte ao Sul doreino, mesmo que venham da Suic.a ou dos Paises-Baixos.

Sobre a biblioteca rural assim constituida, o diagnostico edos mais negatives. O universo deflnido pelos seus titulos e odas crengas supersticiosas, das fabulas inuteis, dos preconceitosandgos. E- realmente essa a impressao que deve dar a suaenumerac,ao seguida, erri resposta a trigesima setima pergunta.Retomemos a dos Amigos da Constituicjlo de Perpignan, cujoselementos isolamos ate aqui: «Les Quatre Fils d'Aymon, livros defeitic,aria, opiniao muito acreditada na nossa terra entre o povodas ddades e dos campos, o que atesta a sua profunda ignoran-cia; contos de fadas, de nigromantes, Barba-Azul, etc». Oromance de cordel, o conto, o livro de magia: e essa mesma serieque Gregorio denuncia no seu relatorio a Convengao, quandoestigmatiza «os contos pueris da coleccao de livros de cordel,comadres e reunioes nocturnas de bruxas» que constituem ocentro das conversas camponesas. Contra esses livros «quepodem embrutecer», segundo Lorain, os homens esclarecidosdevem impor aqueles que ensinam e educam. O mesmo Loraindeclara: «Propus a nova obra de Berquin (a Bibliotheque desmilages) a alguns presidentes de municipios do campo que naoprestaram qualquer atenc.ao», e vem a memoria os esforc,os deBernadau para adoptar como livro de escola La Science duBonbomme Richard e distribuir aos rapazes merecedores um Avisau people sur sa sante, bem como um Manuel du Cultivateur,

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e, as raparigas ajuizadasj' para alem do Novo Testamento, oAvis aux bonnes menageres. Em 1794, Gregorio retoma, a escalanacional, uma poKtica semelhante, propondo a redac^ao e adifusao «de opiisculos patrioticos que hao-de conter no^oessimples e luminosas, acessiveis ao homem de compreensao len-ta e cujas ideias sao obtusas» — por exemplo, sobre a meteoro-logia, a ffsica elementar, a politica ou as artes —, e tambem«bons jornais» de que indica a leitura publica: «Ve-se o in-teresse das vendedoras no mercado, os operarios a cotizarem-separa os comprar, e, por combinagao, executarem a tarefadaquele que esta a Ier9».

As leituras correntes das genres dos campos sao desqualifi-cadas pelos que as relatam a Gregorio, porque, longe de ins-truir e de ajudar, de informar e de despertar, alimentampreconceitos e supersticoes bem vivos. No entanto, algunsapercebem-se de diferengas entre os leitores da provincial oscamponeses e os notaveis nao leem os mesmos livros. Mas estasdistancias reconhecidas podem comprovar valores contraditori-os. Para uns, as leituras perigosas das elites rurais podem deigual forma corromper o povo cultivador. E o caso de Joly deSaint-Claude, que faz apelo a sua experiencia pessoal: «O oficiode juiz, que exerci durante muito tempo, proporcionou-meestadias no campo [trata-se indubitavelmente de um cargo dejuiz senhorial]. Eu via os seus livros nos mementos em queinterrompia as minhas ocupacoes; vi muitas vezes livros depiedade. O contacto com certos autores celebres, que mancha-ram e aviltaram a sua pena no final da sua carreira [sem diividaVoltaire e Rousseau], esrabelecido atraves de brochuras perigo-sas para os costumes e para a religiao, introduziu e alimentou aperturbac,ao e a anarquia em Genebra. Eu encontrava essaspublicac,6es no estabelecimento de um comerciante que estavaseduzido». A esta primeira imagem do povo virtuoso e religio-so amea^ado pelos escritos libertinos, o conego Hennebert opoeuma outra, contraria, que reconhece a presenc,a da literatura le-

9 Cf. F. Parent, «De nouvelles pracciques de lecture*, in Histoire deVedition franqam, sob a dir. de H.-J. Martin e R. Chartier, c. II, Le LivreIriomphant 1660-1830, Paris, Promodis, 1984, pp. 606-612.

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gitima apenas em casa dos mais afortunados («Os honesroslavradores leem relates de viagens, os romances do abadePrevost e outros desse genero»), ao passo que os mais desprovi-dos permanecem vptados a «grosseiras rapsodias, livros dbsce-nos, antigas lendas fabulosas, os antigos Contes de ma mere I'Oie,as vidas de Cartouche, de Mandrin, etc». Encontra-se, portan-to, formulada uma dupla questao: como eyitar que a comipc,aopelo saber nao substitua aquela de que e portadora a ignoran-cia? Como fazer com que o livro seja fonte de exemplos imita-veis, e nao de novas depravagoes? A divisao entre as obras uteise patrioticas e aquelas que nao sao, o assumir da responsabili-dade da sua distribuic.ao pelos homens esciarecidos ou peloproprio Estado sao as respostas sugeridas de que se fara eco orelatorio de Gregorio.

Alguns daqueles que respondem ao inquerito nao se limi-tam a observar secamente a presenc.a de estas ou aquelas«especies de livros» nas casas dos camponeses: dizem algo maissobre a sua circulac,ao, a sua leitura, o seu uso. Atestam, emprimeiro lugar, a existencia da yenda ambulante de livros:«Aqueles que de entre as gentes do campo deste distrito sabemler gostam bastante da leitura e, a falta de outra coisa, leem oAlmanack des dieux, a colecc.ao de livros de cordel e outrasfrivolidades que os vendedores ambulantes transportam anual-mente pelos campos» (Bernadau). A realidade designada e a dovendedor ambulante transportador ou comerciante de feira,com carroc,a e parelha de animais, realizando grandes trajectose possuindo um fundo bem fornecidoI0., Em contrapartida,nenhum dos correspondentes de Gregorio menciona um comer-cio mais modesto, o dos bufarinheiros ou retroseiros que fazerna venda ambulante dos livros transportando-os as costas ou emtabuleiros pendurados ao pescoc.o, que e entao talvez ,maiscitadina do que rural. Mas os vendedores ambulantes nao sao osunicos a introduzir os livros junto dos camponeses: outros fa-zem-no tambem, mas com diferentes mercadorias: «Ate uma cer-

10 A. Sauvy, «Noel Gille dit la Pistole marchand forain libraireroulant par la Frances, Bulletin des bibliotheques de France, 12.° ano, n.° 5,1967, pp. 177-190.

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ta idade so se encontram nas suas maos os livros de que se falouatras (livros de devoc,ao emprestados ou dados pelos parocos).Mais avan^ados na idade, entusiasmam-se com algumas folhasou brochuras, que os viajantes ou comerciantes introduzem nassuas aldeias e que frequentemence sao muito perigosas para oscostumes e, mais ainda, para o sossego publico» (Amigos daConstituicao de Amberieu, 16 de Dezembro de 1790). Reen-contra-se aqui a oposic.ao ja tra^ada pelo advogado Joly encreo campones e o comerciante,,-0 natural e o forasteiro, a piedadee a virtude naturals dos campos e a corrupgao vinda de fora, dacidade. E dificil dizer em que literatura precisamente pensamos parriotas de Bresse, talvez nos romances pornograficos queimprimiam entao fora das fronteiras as sociedades tipograficasestrangeiras, talvez nos pequenos folhetos obscenos citados potMorel na sua respqsta — Les Lettres bougrement patriotiquesdu veritable pere du Chene, Le Trou du cul du pere du Cbene,Le Mouchoir. des_ aristocrates. Em todos os casos, as suas respos-tas matizam um pouco o quadro convencional de leiturascamponesas muito ocupadas com os livros de horas, o almana-que ou.-O livro - d e cordel. Em certos locais, pelo menos, oscampos sao tambem irrigados pelos livros da epoca, proibidosou pol£micos — «essas brochurasmanchadas de lubricidade oude impreca^oes convulsivas que exaltam as paixoes ,em lugar deiluminar a razao», condenadas por Gregorio quatro anos maistarde., ( < Sobre as praticas de leitura em si, os amigos de Gregoriosao pouco eloquentes. Dois aspectos, todavia, retem a aten^aode alguns deles. For um lado, uma maneira de ler camponesaque nao e a sua: «Eles tern a mania de pegar vinte vezes nessasmiserias, e, quando falam delas (o que fazem muito natural-mente), recitam, por assim dizer, palavra a palavra, os seuspequenos livros». Para Bernadau, o advogado letrado e polfgra-fo, tal leitura — constkuida pela releitura repetida do mesmoalmanaque ou do mesmo livro de cordel, que faz conhecer decor, ou quase, esses textos familiares e que se transformafacilmente em recitac,ao — pertence a singularidade campone-sa, no mesmo pe do que as crenc,as supersticiosas ou a ignoran-cia da moral. Por outro lado, a leitura camponesa e caracteriza-

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da como comunitaria e familiar, como audigao de uma palavralida. Citemos dois testemunhos: Segundo Bernadau, «Os livrosdos camponeses estao sempre em mau estado, pois sao cons-rantemente manuseados. Eles sao transmitidos em heranc,a,Nos longos seroes de Inverno, ler-se-a durante uma meia hora,com o lar todo reunido, alguma vida de urn santo ou umcapitulo da Bi'blia»; segundo Joly, «As genres do campo naotern falta de gosto pela leitura, mas dao uma justa preferenciaas publicac.6es do seu estado. Principalmente no Inverno, leemou mandam let aos seus filhos, em familia, livros asceticos».As duas describees trac,am, portanto, uma mesma cena, a doserao, quando, na estac.ao do Inverno, ern volta do livro lidoem voz alta pelo filho ou pelo pai, se encontra reunida a casainteira. Assim, as respostas a Gregorio parecem confirmar duasdas caracteristicas atribuidas pelos historiadores as leiturascamponesas antigas: o habito da leitura em voz alta por ocasiaodos seroes, considerada como a forma principal de difusao daescrita impressa nas sociedades onde os analfafetos, numerosos,tern de ouvir o livro11; e a pratica de uma leitura dita«intensiva», definida pelas frequentes releituras de um reduzi-dfssimo numero de livros, pela memorizac,ao dos seus textos,facilmente mobiiizaveis, pelo respeito ligado ao livro, raro,precioso, sempre mais ou menos carregado de sacralidade12.

No entanto, levanta-se uma duvida. Sao pouco numerosasas testemunhas que descrevem estes usos camponeses, e temosde depositar confianc.a na mais perspicaz de entre elas, PierreBernadau, o advogado de Bordeus. Ora o ultimo paragrafo dasua ultima carta a Gregorio, com data de 21 de Janeiro de1791, introduz a duvida: «Os livros que encontrei mais frequen-temente em casa dos camponeses foram os livros de horas, umc^ntico, uma vida de santos, em casa dos grandes lavradores,que deles leem algumas paginas aos seus trabalhadores depois daceia. Lembro-me a este respeito de alguns versos de uma pu-

1 1 R. Mandrou, De la culture populaire aux xvil* et XVUie siecles. LaBibliotbeque Bieue de Troyes, Paris, Stock, 1975, pp. 20-22.

12 R. Engelsing, «Die Perioden der Leserforschung in der Neuzeit.Das statitische Ausmass und die soziokuiturelle Bedeutung der Lektute»,Archiv fur Geschichte des Bucbwessens, vol. X, 1969, pp. 945-1002.

CAP1TVLO V 159

blicagao sobre a vida campestre que fazia concorrencia, ha seteanos, com a ecloga Ruth, do sr. Florian. As leituras ao serao emcasa dos camponeses eram ai bem descritas; nao o sao commenos energia na Vie de mon pere, do sr. Retif». A leitura aposa ceia, em voz alta e em familia, pertence a um reportorio derepresentagoes comum a poesia bucolica, a fabula autobiogra-flca13, e tambem a pintura ou a estampa, do Paysan qui faitla lecture a ses enfants, exposto por Greuze no Salao de 1755,ao frontispfcio do segundo tomo da primeira edi^ao do texto deRetif publicado em 1778. A fungao de tal imagetica e dupla:apresentar a sociedade rural como patriarcal, fraterna, corauni-taria, em contraste com a sociedade corrompida e deslocada dasgrandes cidades; desenhar nessa decifra^ao aplicada e nessaescuta vigilante («Nao poderia recordar sem ternura a atencjiocom que essa leitura era escutada», escreve Retif) o investimen-to inteiro dos individuos naquilo que estao a fazer, sendo esteenvolvimento encarado como o contrario da frivolidade da' 14epoca .

Para Bernadau e Joly, o motive do serao de leitura consti-tui uma componente obrigatoria da representagao do mundocampones —— ou, pelo menos., de uma das suas representac,6es.Esta imagem, feita toda ela de simplicidade natural, mostra asua maneira a transparencia perdida que seria necessario reen-contrar^em todo o lado, cruzando contraditoriamente a imagemque faz dos campos o bastiao temfvel dos preconceitos e dasignorancias, e uma terra de missao para os homens esclarecidose os filosofos educadores. Na resposta de Bernadau, as duasvisoes estao sobrepostas, como se pertencessem a registosdiferentes, como se o autor reunisse, sem perturbagao, osestereotipos principais que, para as 'elites citadinas, encerrama verdade incerta da sociedade rural, modelo ou escandalo.A descrigao da leituia piedosa, em famflia, a noite, nao possui,portanto, estatuto de observagao etnografica, mas permite umaencena^ao conforme a urn dos fopoi dominantes da cultura

13 G. Benrekassa, «Le cypique ec le tabuleux: histoire et romain dansLa vie de mon pere», Revue des sciences humaines, n.° 172, 1978, pp. 31-56.

14 M. Fried, Absorption and Theatricality. Painting and Belholder in theAge of Diderot, Berkeley, University of California Press, 1980.

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camponesa. Bernadau talvez tenha visto que livros eram«cons tan temente manuseados» nas casas camponesas, mas o seutestemunho sobre os seroes (do mesmo modo que o do advoga-do Joly, que defende a inocencia dos costumes camponeses) naopoderia admitir a frequencia das leituras no seu seio, ja que talpratica nao e claramente acestada nem nas condenac.6es eclesias-ticas dos seculos XVII e XVIII, nem nas pesquisas folcloristas doseculo XIX. Quando o serao e ai mencionado, e sempre comolugar do trabalho em comum, do jogo e da danc.a, dos contos edas cancoes, da confidencia e dos mexericos, praticamentenunca como espac.o da leirura comunitaria em voz alta15.Consrruido em referenda a leitura familiar da Biblia em casados partidarios da reforma (precisamente quando a propriaBiblia e raramente mencionada ente os livros cirados), o motivodo serao revela mats as nostalgias ou as expectativas dosletrados de finais do seculo XVIII do que os piroprios gestoscamponeses.

O mesmo sera valido para o conjunto das observancescontidas nas resposras a Gregorio, que nao teriam entao valor«objectivo» para uma historia das leituras camponesas? Talveznao. Com efeito, se todos os correspondentes ajeitam as suasobservances de modo a realgar uma figura ideal ou reprovada dapersonalidade camponesa e, sem mesmo o calcularem conscien-temente, propoem, em todos os dominios, os indicios apropria-dos ao retrato que prerendem tracer, a sua demonstrac.ao deveconfrontar-se com as realidades, nem familiares, nem estra-nhas, dessa ruralidade selvagem mas proxima. Aquiio quedizem e uma rmstura composita, com proporc.6es desiguais evariaveis consoante os casos, as coisas vistas, as observancesfeitas no terreno — enquanto juiz, paroco, ou viajante —, comcoisas Kdas, reminiscencias literarias, lugares-comuns em,voga.Nao se trata tanto de separar uns e outros elementos, atenden-do a que formam um sistema de percepc.ao coerente, dandoforc.a de realidade ao campo assim apreendido, mas antes decompreender cada indicagao factual no porque do seu enun-ciado e de a relacionar com aquilo que e possfvel saber sobre a

15 Cf., em anexo, «A leitura ao serao: realidade ou mito?».

CAPITULO V 161

circula^ao e a utilizagao do impresso no mundo rural no seculoXVIII. Com essa condigao, os testemunhos reunidos por Grego-rio ensinam, por um lado, como os lerrados de provfnciarepresentavam, para si ou para os outros, os leitores campone-ses, e por outro, nessa mesma representagao — com as suas leise motives proprios, e que traduz, mutila, transforma —, quaiseram algumas das praticas populates do impresso.1 A caracteristica mais penetrante da sua descric.ao e semduvlda a consciencia, ainda confusa, de que a Revolugao esta aderrubar os habitos culturais mais enraizados. O acontecimentodesencadeou um desejo de leitura, de informagao atraves doimpresso, que torna obsoleta a antiga biblioteca rural. Algunspensam a mudanga em termos de simples transferencia, com aspraticas antigas a apoderarem-se dos textos novos. Porem, coma irrupgao de uma lireratura efemera e panfletaria — cujo unicovalor esta na sua rela^ao com a actualidade polirica, movel,nervosa —, e toda uma antiga maneira de ler, presa asrepetigoes das mesmas formulas em livros sempre identicos a simesmos (os livros de horas, os aimanaques, as historias decordel) que surge ja moribunda. Dai a fluidez temporal denumerosas respostas a Gregorio que descrevem no presente umacultura camponesa desmantelada e que s^brepoem, por cima datrama empalidecida das leituras antigas, os novos enrusiasmosde leitores camponeses que ja nao sao os do imaginario dasLuzes.

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162 LEITURAS CAMPONESAS

ANEXO

A leitura ao serao: realidade on mito?

Tera o serao campones constiruido no secuio XVIII umlugar pnvilegiado da ieitura em voz alca dos pequenos livrospopulares, em particular os da colecc.ao de livros de cordeltContra a opiniao classica, nao o pensamos, porque os indfciosinvocados nao sao nada convincentes e tambem porque podemapresentar-se outras provas, inteiramente contrarias.

1. Em primeiro lugar, e claro que os estatutos sinodais edecretos episcopais que condenam os seroes nao mencionamentre os seus perigos ou habitos a leitura, seja ela em voz ahaou silenciosa, colectiva ou solitaria. E o caso dos decretosepiscopais para a diocese de Chalons-sur-Marne em 1693,citados por Robert Mandrou (De la culturepopulaire.,., op. cit,,p. 2), que denunciam a entrada dos rapazes nos seroes ondemuiheres e raparigas trabalham juntas para «brincar e danc,ar»

— mas nao para ler.2. Quando o escrito se introduz nos seroes femininos, no

infcio do secuio XVIII, e por iniciativa de certos padres, muitasvezes convertidos ao jansenismo, que pretendem assim trans-formar praticas antigas, estranhas a leitura, e conquistar osfieis. Por ocasiao do seu processo perante a oficialidade deVence, em 1,709, Jean-Baptiste Deguigues, paroco de Tourret-tes, e duplamente acusado, do seguinte modo: pelas testemu-nhas, devido a sua participate em assembleias onde «se canta,se ri, se diverte como fazem geralmente as pessoas que fazemamor»; pelo seu bispo, por ter distribuido nesses seroes «ora-C.6es e oficios» que ele nao tinha de modo algum autorizado.De facto, os depoimentos assinalam que ele se dirigia as assem-bleias «com um livro debaixo do brac.o» e que fazia «a leiturade alguns livros» (cf. M.-H. Froeschle-Chopard e M. Bernos,«Deguigues, prStre janseniste du diocese de Vence em 1709 ou1'echec de I'interinediairew, in Les Intermediaires culturels, Publi-cations de 1'Universite de Provence, 1981, pp. 59-70, e «Entre

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peuple et hierarchic: 1'echec d'une pastorale», in Dix-HuitiemeSiede, n.° 12, 1980, pp. 271-292).

3. O memorando de 1744 consagrado as «Ecreigms»camponesas («casas escavadas na terra e coberras de estrume,onde as raparigas vao fazer o serao»), citado por R. Mandrou(op, cit., pp. 21-22) e cujo estatuto etnografico deveria serverificado, nao menciona de forma alguma a leitura entre asactividades das mulheres reunidas. Estas estao totalmente ocupa-das com o trabalho em conjunto, com as conversas e as confi-dencias, as historias contadas, as cancoes — com uma culturade oralidade, portanto, que nao se baseia na presence da escri-ta, impressa ou manuscrita, lida por uma as outras.

4. No secuio XIX, na diocese de Annecy, quando o serao edescrito pelos padres da paroquia em resposta ao questionarioque se Ihes dirigiu em 1845 o seu bispo, Monsenhor Rendu (oque acontece em 31 de 122 paroquias, ou seja numa de cadaquatro), as suas actividades sao precisamente as mencionadas e,nalguns casos, condenadas, nos seculos XVII e XVIII: o trabalhoem conjunto (tecer, preparar o canhamo, partir nozes, cottarmadeira), as conversas qualificadas na ocasiao como «sujas emaldizentes», os jogos de cartas, a danc.a. Apenas rres parocosfazem alusao a leitura, um deles para dizer que a dos «mauslivros» nao se verifica nos seroes da sua paroquia (Chatel),-osoutros dois para indicar que «algumas vezes» ou «raramente» efeita a leitura do catecismo aquando das reunioes nocturnas dosseus paroquianos (Duingt e Saint-Nicolas-la-Chapelle) (cf.Moeurs et Coutumes de la Savoie du Nord au XIXs siecle. L'enquSte deMgr. Rendu, apresentado e publicado por R. Devos e C.Joisten, Annecy, Academic salesienne, e Grenoble, Centrealpin et rhodanien d'ethnologie, 1978, p. 181, 261 e 293).

Se e certo que o serao e realmente uma pratica da sociabili-dade aldea (mas talvez menos universal em Fanga do que sepensou), em contrapartida, parece bastante duvidoso que tenhasido um local corrente da leitura.

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CAPITULO VI

Textos e edi$oes: a «littratura de cordel»

Entre as leiruras camponesas tal como as descrevem os cor-respondentes do abade Gregorio, os titulos da Bibliotheque bleue[Literatura de cordel] tern o seu lugar. Esta formula editorial,inventada pelos Oudot em Troyes, no seculo XVII — que fazcircular pelo reino livros de baixo preco, impressos em grandenumero e divulgados atraves da venda ambulante — conhece oseu apogeu entre a epoca de Luis XTV e aquela em que osamigos de Gregorio constatam o seu exito. Nesse periodo,aumenta o numero dos editores de Troyes especializados nogenero, o reportorio dos textos passados deste modo a livroscresce consideravelmente e a sua difusao atinge um publicocada vez maior.

O fenomeno nao e, alias, exclusivamente frances: em Ingla-terra ou em Espanha, e tambem nos seculos XVII e XVHI que semulciplicam os pequenos livros de grande circulacao, destina-dos a um publico que, na sua maior parte, e popular. EmInglaterra, os cbapbooks (ou livros de venda ambulante) saovendidos a um preco irrisorio (entre dois e quatro pence)e impressos as centenas de milhar: em 1664, por exemplo, umlivreiro londrino, Charles Tias, tem em deposito perto de100 000 exemplares, o que representa um exemplar por umafamilia inglesa em cada quinze. Ora Tias nao e o unico editorespecializado no comercio que, na decada de 1680, se encontradividido por uma quinzena de livreiros '. Em Espanha, e noseculo XVIII que os pliegos de cordel encontram a sua forma clas-sica, a de pequenos livros de uma ou duas folhas, e uma difusao ma-cic.a, assegurada em parte pelos vendedores ambulantes cegos

1 M. Spufford, Small Books and Pleasant Histories. Popular Fiction and itsReadership in Seventeenth-Century England, Londres, Methuen, 1981.

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166 LITERATURA DE CORDEL

que cantam os seus textos em verso antes de os venderem2.A Bibliothdque bleue nao e, pois, uma originalidade francesa:inscreve-se, com as suas formas e os seus conteudos proprios,entre as publicacoes que os editores europeus, em diferentesespa^os nacionais destinam a maiocia.

Durante muito tempo considerado (erradamente) como es-pecifico, o corpus de Troyes, na primeira geragao dos estudossobre o assunto, foi duplamente situado: pela identificac.ao doseu publico, considerado popular e rural, e pelo inventario dostextos que o compoem, divididos entre ficc.ao de entretenimen-to, conhecimentos liteis e exercicios de devogao. Esta descrigaopioneira, em que se baseia ainda o nosso saber, suscita agoradlversas interrogates que aqui encontrarao eco e que tern porobjective rever a assimilac,ag demasiado apressada entre colec-C, ao de venda ambulante e cultura popular de Antigo Regime3.

0 corpus de cordel

Primeira constatacao: os textos editados a baixo prec.o e comcapa azul pelos impressores de Troyes nao foram de modonenhum escritos para tal flm editorial. A pratica dos Oudot,como a dos Garnier, seus rivals, consiste em seleccionar de entreos textos ja editados aqueles que Ihes parecem convir ao vastopublico visado, isto e, aqueles que Ihes parecem compati-veis com as expectativas ou capacidades da clientela a atingir.Dai a diversidade extrema do reportorio de Troyes, que vaibuscar elementos a todos os generos, a todos os periodos, a todosas literaturas. Dai, igualmente, a distancia entre a escrita dotexto e a sua forma editorial; de modo nenhum pensado naperspectiva de uma edic.ao barata e de uma circulac_ao popular,cada um dos textos de que se apodera a coleccao de livros de

2 J. Marco, Literatura popular en Espana en los sigtos XVIII y XIX. Unaaproximacion a los pliegos de cwdel, Madrid, Taurus, 1977.

3 Cf. o capitulo III, "Strategies editoriales et lectures populaires(1530-1660)» In Histoire de I'edition frangaise, tit., c. I, pp. 585-603 (textoretomado em Lectures et lecleurs dam la France d'Ancien Regime, Paris, Seuil,1987, pp. 87-124).

CAPITULO VI 167

cordel visa um leitor implicito que nao coincide necessaria-mente, longe disso, com o comprador em que pensam os im-pressores de Troyes. Resulta claro que o reportorio dos peque-nos livros de Troyes nao e em si mesmo «popular», pois ecomposto por textos de origens diversas e que cada um visauma eficacia, uma leitura, um publico particulares.

Desse reportorio da testemunho o inventario do {undo deEtienne Gamier, elaborado em Janeiro e Fevereiro de 1789 apedido da sua viiiva, Marie-Louise Barry, e do curador dos seusfilhos menores4. O total dos exemplares em deposito, comple-tes ou por alcear, e de 443 069: os livros de religiao consti-tuem cerca de metade (42,7%), ultrapassando largamente ostextos de ficgao (28,8%) e as publicacoes dirigidas para aaprendizagem e para a pratica (26,8%). Uma classificacao maisminuciosa define a hierarquia dos generos mais vendidos acabe^a, as obras de instruc,ao e de edificacao religiosa, ou seja,guias para a conduta e a devocao (12,7% dos exemplares),seguidas pelas Sagradas Escrituras, com o texto dos Evangelhose ainda com os extractos do Livro dos Salmos ou as narrativasbiblicas (12,5%), vindo depois os canticos e as loas de Natal(9,2%), a literatura romanesca e jocosa (8,8%), as vidas desantos (8,3%), os romances de cavalaria (8%), os contos defadas (6,5%) as relacoes de fait-divers e as pegas satiricas sobreas condicoes e profissoes (5,8%). Nenhum dos outros generoschega a ter 5% dos exemplares, excepto se se agruparem todosesses Hvros de aprendizagem que sao abecedaries e silabarios,civilidades e aritmeticas, tratados de ortografla e caligrafia, queconstituem 9% do fundo.

Esta distribuigao, estabelecida com base nos exemplaresrealmente presentes, em dada ocasiao, numa das tipografias deTroyes, e bem diferente da trac^da a partir das edi^des conserva-das e identificadas por A. Morin. Os textos de ficcao assumem ai

4 Arquivo Departamental de Aube, 2E, minutas Robbin, Inventario datipografia, da fiindigao e das mercadorias impressas de Etienne Gamier,28 de Janeiro-21 de Fevereiro de 1789, analisado por H.-J. Martin, «Cultureecrice et culture orale, culture savante et culture populaire dans la Franced'Ancien Regime*, in Journal des savants, Julho-Dezerabro de 1975, pp.246-247.

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o primeiro lugar, com 41,4% das edicoes, muito a frente dasobras de instrugao (28,3%) e dos livros religiosos (28,1%).Tomando como referenda este corpus, os best-sellers sao laicos,uma vez que a literatura romanesca e jocosa (13,2% das edicoes)e os romances de cavalaria (12,7%) vem a cabeca, antes mesmodos canticos e das loas de Natal (11,6%). Assim, as contagensfeitas das edicoes conservadas minimizam a importancia dospequenos livros de grande uso, em particular as publicacoesreligiosas, que tinham as tiragens maiores e que talvez tenhamdesaparecido em maior nurnero — o que pode levar a ignorarcompletamente edicoes inteiras. Qs inventarios dos fiindos daslivrarias corrigem esta deformagao e recordam que a colec.ao delivros de cordel constituiu um auxiliar poderoso da reformacatolica, ao longo de todo o seculo XVIII, dado que o fundo deEtienne Gamier nas vesperas da Revolu^ao e absolutamentecomparavel ao de Jacques Oudot e da sua viiiva, inventariado emJunho e Julho de 17225. Os iivros religiosos encadernadoscontam-se ai em numero de 33 421 (a que se juntam milharesde publica^oes ainda em folhas soltas, mas que nao sao isolaveisdos titulos profanes do catalogo de cordel), e nas publicagoessortidas sao as vidas de santos (1087 duzias), os livros de horas eos salmos (557 duzias), as orac.6es e as cancoes de peregrinacao(376 duzias) que tem o ,maior peso. Os editores de Troyesimprimiram em grandes quantidades, e talvez a melhor prego doque os seus concorrentes, todo um material de devo^ao em nadaespecifico, mas que alimenta a piedade da maioria numa Francatransformada pela reforma catolica em Estado de cristandade.

Textos letrados

A apreensao dos grandes equilibrios do corpus de Troyes deveser acompanhada por uma genealogia dos textos que ocompoem. Ora esta, na maior parte das vezes, remonta a umtexto de tradic.ao erudita, o que se verifica qualquer que seja

5 A. D. Aube, 2E, minutas Jolly, Inventario das mercadorias de JacquesOudot, 18 de Junho-17 de Julho de 1722.

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a categoria de obras considerada. O mesmo sucede com todauma parte da literatura de devogao e de exercicios religiosos invpressa em Troyes, que retoma os titulos de sucesso da reformacatolica: entre outros, as Sept Trompettes sprituelles pour reveiller lespecheurs et pour les induire a fain penitence, do franciscano Solutive,a Guerre spirituelle entre I'ame raisonnable et les trois ennemis d'icelle,le diable, le mond et la chair, de Louis Richeome, e os textosjesuitas Accusation correcte du vrai penitent ou I'on enseigne la manierequ'il faut eviter et celle qu'il faut suivre en declarant ses peches ausacrement de confession, do Padre Chaurend, ou a Preparation a lamort do Padre Crasset.

O mesmo e valido para os textos de ficc.ao. Tomemos doisexemplos, a partir dos romances de cordel. Se seguirmos a historiatextual de cinco deles, escolhidos tanto por causa das suasnumerosas reedicoes como pelo facto de pertencerem a diferentesepocas e formas, e bem patente que os editores de Troyes dosseculos XVII e XVIII publicam sempre um texto ja impresso eque circula (as vezes durante muito tempo) em edicoes que nam a i o r p a r t e dos casos nada tem de p o p u l a r 6 .A Histoire de Pierre de Provence et de la belle Maguellone, editadaem Troyes, no inicio da seculo XVII, por Nicolas I Oudoc, e umromance anonimo da primeira metade do seculo XV, impressopela primeira vez em Lyon em 1490 e frequentemente reedita-do no seculo XVI. A Histoire des aventures heureuses et malbeureusesde Fortunatus, que entrou para o catalogo de cordel no fim doseculo XVII, tem sem duvida como origem um exemplum alemaode fins da Idade Media, inserido numa recolha de contosedificantes a pregacao; o texto e conhecido em Franca a partirde uma tradugao do espanhol, da autoria de Vion d'Alibray,publicada em Lyon em 1615, porem as edicoes de Troyes naoretomam essa traducao, mas uma adaptacao, publicada emRouen em 1626. Igualmenre em finals do seculo XVII, osOudot publicam as Chroniques du roy Gargantua cousin du tresredoute Galimassue, directamente inspiradas num pequeno livro

6 L. Andries, «L'imaginaire et le temps dans la Bibliotheque bleue»,in Les Conies bleus, texcos apresentados por G. Bolleme e L. Andries Paris,Montalba, 1983, pp., 48-62.

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andnimo impresso em Lyon em 1532, dois anos antes da edigaodo texto de Rabelais, e que parodia os romances de cavalaria.Nestes tres casos, se a origem e a circulagao eruditas dos textosnao suscica duvidas, uma primeira divulgac.ao nas edic.6es queprefiguram as de Troyes (em Lyon, a viuva Chaussard editaGargantua e, em Paris, a viuva Trepperel da a escampa umaedicjio da Histoire de Pierre de Provence) assegurou-lhes no seculoXVI uma primeira popularizac.ao.

Nao sucede o mesmo com os outros dois romances queconhecem, gramas aos impressores de Troyes, a sua primeiraedic,ao a baixo prec.o. O primeiro, Innocence reconnue, e urnromance edificante escrito por urn jesuita, o Padre Rene deCeriziers, publicado em Paris em 1634, introduzido no catalo-go de Troyes por Nicolas II Oudor em 1655, frequentementereeditado no seculo XVIII. O segundo, Histoire dejean de Calais^e ^uma novela de Madame.de Gomez, inicialmente publicadaem Paris em 1723, no segundo tomo das suas Joztmees amusantesdediees au ray, "Aposvarias reimpressoes parisienses, o textoentra :no catalogo de corde/~numa. edic.ao de Jean Garnier,publicada .com uma aprovac.ao e uma autorizacao de • 1758.Cinco' romances,, pois, e-.em cada um deles uma origemerudita, proxima ou Ipnginqua, moralizante ou divertida. Paracertos textos,-as tipograflas de Troyes retomam o fio de edigoesantigas, de Lyon ou de Paris, ja com grande circulac.ao; paraOutros, asseguram, yinte ou trinta anos apos a primeira edic.ao,uma ,divulga£ao a uma escala mais-alargada.

, Segundo exemplo: os contos de fadas. Tambem ai os edi-tores de Troyes vao buscar muito material aos Hvros em cir-culagao, trate-se das recolhas de contos dos anos 1690-1715,das edicoes isoladas que sao feitas dos contos de fadas apos 1730ou das grandes coleccoes, de.fim do seculo, como a Bibliotbequeuniversel'le_des romans do marques de Paulmy, inkiada em 1775,ou o Cabinet des fees (41 volumes, 1785-1788)7. Antes daRevolucjio, os editores de Troyes encontram o seu mana em tres

7 R Robert, Les Contes de ffo litteraires m Prance de la fm du Wll'smle ala fin du XMIF stick, Nancy, Presses aniversitaires de Nancy, 1982, pp.22-30 e 291-325.

CAPITULO VI•171

autores. Em primeiro lugar, Madame d'Aulnoy, que publica emParis, em 1697, os tres primeiros tomos dos seus Contes de fees e,em 1698, o quarto, bem como os quatro tomos dos Contesnouveaux ou les Fees a la mode. Destas recolhas, reeditadasseparadamente, a primeira em 1710 e em 1725, a segunda em1711 e em 1725, e juntas em 1742, Jean-Antoine Garnierextrai Cbatte Blanche suim de Blanche Belle (autorizacao de 1758),a viuva de Jean IV Oudot, Oiseau Bleu, Prince Marcassin,Prince Lutin et Fortunee (autorizacao de 1758), um outro Garnier,La Princesse Belle Etoile et le Prince Cheri. Publicada igualmenteem Paris em 1697, reeditada em 1707 e em 1724, a recolhade. Perrault Histoire ou Contes du temps passe avec des moratitez,alimenta tambem, quarenta ou cinquenta anos mais tarde, ocatalogo. de Troyes. A obra Les contes des fees, Par MonsieurPerrault. Avec des Moralites, que retoma o conjunto dos contosdo volume de Perrault, e editado, com efeito, em 1734 porJean Oudot (autorizacao de 13 de Marc.o de 1723), em 1737por Pierre Garnier (autorizacao de 23 de Julho de 1723), em1756 pela viuva de Jean Oudot, e por Garnier-o-Novo acoberto de.uma autorizagao de Maio de 1735. Terceira fonteexploravel para os editores de Troyes: os Contes de fees e osNouveaux contes des fees da condessa de Murat, publicados em1698 por Barbin, o editor de Perrault, e reeditados em 1710,e em 1724. Jean Garnier, em meado do seculo XVIII, retomatres desses contos, saidos em Troyes em edic.oes separadas;

Jeune et Belle+~Le Parfait Amour e Le Palais de la ven-geance.

... Esta estrategia de apropriac.ao ira continuar durante aRevoluc,ao e no inicio do seculo XIX, fazendo entrar nas edi-goes de Troyes, gramas sobretudo a «Madame Garnier*, esposaseparada do segundo Jean-Antoine Garnier, e a Baudot, oscontos anteriorm'ente deixados de lado. E o de Madamed'Aulnoy La belle aux cheveux d'or ou Belle Belle et le ChevalierFortune, da condessa de Murat La Fee Anguillette ou Le RoiMagicien, publicado em 1698, da recolha do cavaleiro deMailly, Les lllustres Fees. Os contos de fadas publicados pelosimpressores de Troyes sao textos letrados, emanados dos meiosaristocraticos e afectados no momento do maior entusiasmo pelo

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genero a. Mesmo se as suas intrigas e os seus motivos imitam ouse cruzam com os dos contos camponeses9, nao deixam de sertextos letrados, produzidos no ambito da cultura feminina dossaloes e da Corte.

Os livros de praticas da colecc.ao de livros de cordel sao, domesmo modo, edic.6es sob uma nova forma e para um piiblicoalargado de textos editados inicialmente para a clientela habi-tual dos livreiros parisienses ou da rjrovincia. E o que sucede,por exemplo, com o Cuisinier frarfyois, enseignant la maniered'apprSter et assaisonner toutes sortes de viandes grasses et rnaigres,legumes et patisseries en perfection, etc., de la Varenne. Nicolas IIOudot apodera-se do titulo em 1661, quando expira o privile-gio obtido por dez anos, em 165 1, pelo seu primeiro editor, olivreiro parisiense Pierre David. Naquela data, haviam ja sidopublicadas oito edigoes parisienses do livro. Gragas aos editoresde Troyes, a obra enceta uma segunda e duravel carreira, noprecise momento do seu abandono pelos parisienses, comquatro edigoes no seculo XVII e cinco no seculo XVIII— a ultima por Jean Gamier, em meados do seculo. O titulotornou-se, assim, uma especialidade da provincia, cujas edigoessao partilhadas entre Troyes (9 edigoes), Lyon (5 edic.6es) eRouen (10 edic,6es)10. A mesma politica editorial, visandoreimprimir em Troyes livros de praticas no momento da expi-ragao do seu privilegio, faz entrar no corpus dos livros de cordelLe Patissier fran$ais em 1662 (a primeira edigao parisiense datade 1653), Le Confiturier fran$ais em 1-664 (primeira edic,ao emParis no mesmo editor, Jean Gaillard, em 1650) ou Lejardinierfranqals em 1723, que conhecera uma primeira edic.ao parisiense

8 D. T. Thelander, «The France of Louis XIV as Seen through theFairy tale»-, in Journal of Modern History, n.° 54, 1982, pp. 467-496.

9 Sobre esta questao, cf. M. Soriano, Les Contes de Perrault. Culturesavante et traditions poputaires, Paris, Gallimard, 1968, pp. 73-213; R~Darnton, Le Grand Massacre des chats. Attitudes et croyances dans I'ancienneprance, Paris, Laffont, 1985, «Contes paysans: les significations de Ma merel'0ye», pp. 14-72.

10 J.-L. Flandrin, P. e M. Hyman, «La cuisine dans la litterature decolportage», in Le Cuisinier frangois, textos apresentados por J.-L. Flandrin,P. e M. Hyman, Paris, Montalba, 1983, pp. 62-95, e Inventario, pp.100-107.

CAPITULO VI 173

e de 1651, tendo-se seguido uma diizia de edigoes na segundametade do seculo XVII11.

Para todas as rubticas do seu catalogo, os impressores deTroyes vao buscar material ao reportorio dos textos disponiveis.Por vezes, e grande a distancia entre a primeira publicac.ao dotexto e a sua entrada na colecc.ao de livros de cordel, mas naoexiste uma regra geral e nada seria mais falso do que ler oreportorio da livraria de venda ambulante como estando orien-tado na totalidade para os textos antigos, dados ao povo porquerepelidos pelos notaveis. Os editores de Troyes sao avidos denovidades e apoderam-se facilmente dos titulos em voga, umavez expirado o. privilegio do seu primeiro editor. A sua politicaeditorial nao pode, de modo nenhum, ser definida pela qualifi-cagao social dos textos que editam (estes nao sao «populares»nern na escrita, nem no seu destino primeiro), como nao o podeser pelo genera ou pela intengao dos textos, pois, como vimos,pettencem a todos os, registos da elaboracao letrada. Queretaisto dizer que a edigao de Troyes e semelhante as outras edic,oesda provincia e que os impressores de Champagne se contentam emreproduzir os textos tal como caem no dominio publico?

A marca dos editores ,

Nao completamente, e claro. Antes de mais, embora parec,aheterogeneo, o catalogo dos livros de cordel nao e feito ao acaso.Sao^todos escolhidos, porque parecem poder ser comprados porurn -vasto .publico. e, portarito, susceptiveis de,.responder^a umaexpectativa -partilhada,. seja. ela. da ordem da devocao,, dautilidade;.ou do imaginarip. .Dai.-a ,escolha. dos textos -que,alimentam as piedades mais comuns ou orientarn as formas decelebrar.so. quotidiano-.-Dai^'emmateria de ficc,ao, a preferenciadada as. historias, romances ou contos, que obedecem a certas

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estriituras narrativas, apt mesmo ternpo^descontinuas e repetiti-vas, que.spbrepoem- os fragmentos,. .empregam varias yezes:os

11 Le Livre dans la vie quotidienne, Paris, Bibliotheque Nacional, 1975,n.os 129-131.

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mesmos motives, ignoram as intrigas complicadas que reque-rem uma memorizac.ao exacta dos acontecimentos ou das perso:

nagens. E sem duvida a afinidade das estruturas textuais, maisdo .que os pr6prios temas; 'muito diferentes, que explica aescolha dos impressores de; Troyes, onde investem implicita-rnente a ideia que tern das competencias culturais do seupublico. ^ - - : ' :

E e com base nessas semelhanc.as formais que se constituenttanto a unidade da colecgao de venda ambulante, como asrelates dos textos entre si. Os editores de Troyes propoem aoseu publico textos que originam series, quer pela identidade doseu genero (vidas "de santos, contos de fadas, romances decavalaria, etc.), quer pela unidade do campo de pracicas emque sao utilizaveis (exercicios de devoc.ao,Tecolhas de receitas,livros de aprendizagem, etc.), quer ainda pela sua tematicareencontrada em formas diferentes (literatura de vagabunda-gem, discursos sobre as mulheres, parodias dos generos e daslinguagens, etc.). Sao-assim criadas redes de textos, que porvezes remetem explicitamente uns para os outros, que-traba-Iham sobre os mesmos motivos; "reproduzidos, alterados ouinvertidos, e cujas relates nao sao de modo algum fundamen-talmente diferentes das que existem, no interior de um dadotexto, entre os seus di versos fragmentos. Alem destes corpusespontanea e progressivamente compostos, se cada urn dosescritos da coleccjio de livros de ~cordel pode ser reconhecidocomo pertencente a um con junto que,-tern a sua unidade, ofacto deve-se certamente as semelhanc.as encontradas na propriaestrutura dos textos, qualquer que seja o seu genero.

O trabalho operado nos textos peios impressores de Cham-pagne tem em vista reforgar tudo o que pode torna-los pareci-dos. E certo que este trabalho nao se veriflca em todos os casose que certos textos nao sao modificados em nada com a suaentrada na formula de cordel: e o que se passa com o Cuisinierfrangois, semelhante nas edic.oes de Troyes e de Paris,-bemcomo na maior parte das edic.6es dejean de Calais. No entanto,os editores de Troyes dao uma nova disposigao aos textos queseleccionararh para imprimir, fazendo-o em func.ao dos leitoresque desejam ou pensam atingir. A sua interven^ao e de tres

CAPITULO VI 175

tipos. Em primeiro lugar, tem por objective remodelar apropria apresentacao do texto, multiplicando os capitulos,ainda que essa divisao nao resulte de qualquer necessidadenarrativa ou iogica, e aumentando o numero de paragrafos — oque torna menos densa a distribuicjio do texto na pagina. E certoque os livros de cordel nao sao os unices que, nos seculos XVII eXVIII, dividem o seu texto em unidades mais pequenas, masessa pratica e neles mais acentuada, como atesta a comparac.ao>relativamente a um mesmo texto, entre as suas edigoes de cordele as que estas imitam ou que sao suas contemporaneas. Hanesta divisao, que fracciona o texto com titulos de capitulos ouparagrafos — como a inscri^ao, no livro, daquilo que oseditores pensam ser a sua leitura — uma leitura que nao e deforma alguma virtuosa nem continua, mas que pega no livro eo larga, que so decifra facilmente sequencias breves e indepen-dentes, que exige identifica^oes explicitas. Dai, tambem, amultiplicagao, nos textos do corpus de Troyes, das recapitula-C,6es e dos resumes que permitem voltar a ligar o fio d& umaleitura interrompida 12.

Segunda interven^ao editorial nos textos: uma estrategia dareduc.ao e da simplificagao. Na sua maioria, com efeito, asedi^oes de Troyes encurtam o texto que reproduzem, fazendo-ode duas maneiras. A primeira consiste em desbastar d texto^ emabreviar alguns dos seus episodios, em efectuar cortes por vezesdrasticos. Nos romances passados a livros de cordel^ tais redu-C.6es amputarn os textos de relatos julgados superfluos, e sobre-tudo das describees das caracterfsticas sociais ou dos estadospsicologicos das personagens, consideradas como inuteis para odesenrolar da acc.ao 13. Um segundo conjunto de transformac.6esredutoras situa-se a escala da propria frase, com a modernizac,aode formulas envelhecidas ou dificeis, a contracgao das frases,depuradas das suas orac,oes relativas ou intercalates,a supressaode numerosos adjectivos ou adverbios. A leitura implicita pos-

12 G. Bolleme, «Des romans egares», in Les Contes bleus, op. at,, pp.11-14.

13 L. Andri&s, art, cit., pp. 62-65, e A. Chassagne-Jabiol, Evolutiond'un roman medieval a trovers la literature de colportage; «la Belle Helene deConstantinople*, xVIe--X!X*- steles, Paris, Ecole des Chartes, 1974 (tese).

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culada atraves de tal trabalho e uma leitura capaz de apreenderapenas enunciados simples, lineares, concisos. As distancias,aparenremente insignificantes, entre os textos das edigoes decordel e os das edicoes letradas, que eles retomam, traduzem amaneira como os impressores de Troyes (ou os que para elestrabalham) concebem as capacidades Iexicais, limitadas e parti-ciilares, do grande numero dos sens leitores potenciais.

Mas muitas vezes a reescrita reducora dos textos obedecetambem a outras exigencias. Tomemos o exemplo do Buscon.Enrre as edicoes parisienses da traducao do texto e as versoes de

« Troves, -os cortes "sao~drasticos,, mas de maneira nenhuma feitos, J ' fctf -.' -..*..' - i , . . - < " * . . . . -- ^ , .. a. .

ao acaso. Ipbedecem' a\duas logicas. Trara-se, .enuprimeiro ,•lugar^de retirar,do;textp todos os-vestigios da cultura da zonado baixo ventre^para retomar a expressao de Bakhtine, a saber,o, yocabuiaria escatplpgico, as-alusoes as, funcpes^ naturals*, ;asevocacoes das , actiyidades * sexuais,^ Trata-se,^ em seguida,' de/censurar :rigorosamente todas as referendas, jocosas.ou. nao, a rreligiao e de; depurar:-o;-relatp de-Ltudb quanto surge-combblasfernatprio. Tal trabalho possui daramentei:a marca de,umacensura eligiosa, certamente interiorizada em autocensura;'que-pretende libertarjps. 4textos das ,suas inconveniencias. Devidoprecisamente a sua violencia escatologica e blasfematoria, oromance de Quevedo conscitui urn exemplo Hmite da censurade Troyes 14. Contudo, a mesma intencao moralizante orienta otrabalho de adaptacao dos outros textos, em especial os roman-ces de que sao proscritas as alusoes ao,.corpo e ao sexo, assimcomo as descri^oes demasiado sensuais. Os • impressores^-deTroyes participant, portanto, da^reforma.catolica, ^nao so-edi-tando manuais, de, devo^ao .e exercicio de:piedade^ como ai;ndadepurando ps textos de. ficcao ^dos sacrilegios e-imoralidades:

Saber quern sao os artesaos exactos deste trabalho de adapta-cao e de revisao nao e tarefa facii. Os impressores e os seuscolegas de oficio tern ai o seu papel, como atesta o exemplo dosalmanaques, mas certamente tambem clerigos, letrados e nota-

14 Cf. R. Charcier, «Figures litteraites ec experiences sociales: lalicterature de la gueuserie dans la Bibliotheque bleue», in Figures de lagueuserie, Paris, Montalba, 1982, pp. 54-64.

CAPITULO VI 111

veis de Champagne. O seu proposito e duplo: moralizar os tex-tos que o necessitam e criar para tpdos os livros de cordel asconduces de uma nova legibilidade, simplificando e talhando o.texto original. Mas feito apressadamente e de maneira poucocuidada, 0 trabalho parece conduzir frequentemente ao resulta-do contrario: os cortes efectuados nas descricoes tornam-nasmuitas vezes diffceis de compreender, a constitui^ao dos para-grafos faz-se por vezes a custa do sentido, cortando em duas amesma frase, e as negligencias de copia ou de composic,aomultiplicam as incoerencias. A opacidade dos textos e introdu-zida pelo proprio processo que pretende tornar mais facil a sualeitura. Para explicar esta contradicao, e claro que podemevocar-se necessidades comerciais da edicao barata que pressu-poe baixos pregos de revenda, e consequentemente poucasexigencias quanto a preparacao do exemplar ou a correcgao dostextos impresses. Mas ha sem duvida outras razoes. A relacjioentre o texto de cordel e o seu comprador talvez nao seja amesma que Hga os leitores tradicionais aos seus livros. O livrode cordel nao e necessariamente comprado para ser lido, ou pelomenos para ser lido numa leitura minuciosa, precisa, atenta aletra do texto. Mesmo fora do corpus literario, as aritmeticas docatalogo de Troyes deixam adivinha-lo, uma vez que, feitas asverificac.6es, os exemplos de caiculos sao quase sempre viciadospor gralhas tipograficas, e ainda por cima por erros de racioct-nio, completamente incapazes de contribuir para caiculos reaisda vida quotidiana. Esta inutilidade nao reverte em seu desabo-no, como se a posse e o manuseamento de urn livro consideradocomo encerrando saber sobre numeros tivesse mais importanciado que a sua eficacia pratica. No caso dos romances ou doscontos, uma leitura aproximada, que associa unidades elemen-tares, pode contentar-se com uma coesao minima do texto enao atribuir demasiada importancia as suas incoerencias, iden-tificadas certamente como simples rupturas entre outras, que sopor instances detem uma decifracao linear e de maneira nenhu-ma global.

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Uma formula editorial

A colecao de livros de cordel e, antes de mais, um reportoriode textos dos quais e necessatio tragar a genealogia, ciassificaros conteudos, seguir as transformac,6es. E tambem uma formu-la editorial que da ao objecto formas proprias, que organiza ostextos" de acordo com - dispositivos tipograficos especificos.--Compreender bs' significados' destes pequenos livros de grandecirculagao implica claramente que se regresse ao proprio impre-sso, "na'.sua material idade/ Pot um lado, como se obsetvou, nocaso do reportorio de cordel, aquiio que e contemporaneo doleitor; do seu horizonte de expectativa, nab e b texto1, mais oumenos antigo, mas'a forma impressana'qual ele e dado a ler.Pot outto lado, ^aquikC'que e «popular» num catalogo dessetipo, tambem nao sao os textos, que pertencem a todos osgeneros da literatura letrada, mas os'objectos tipograficos quelhesr servem'de supbrte, entedados na dupla exigencia do maisbaixo prec_o e de uma leitura que nao e necessariamentevirtuosa. *

Dessas caracteristicas fotmais dos livros de cordel, a extensaonao e a mais homogenea. Com efeito, nao podem ser identifica-dos livros de venda ambulante com textos curtos. Tomemos, atitulo de exemplo,-o caso dos romances. Se a Histoire de Pierre deProvence ou a Histoire de Jean de Calais sao geralmente editadasno seculo XVIII in-octavos de 48 paginas (isto e, ttes folhas detipografia), a Innocence reconnue, tambem'em-formato in-octavo,tern 80 ou 112 paginas, e a Histoire des aventures heureuses etmalheureuses de Fortunatus atinge 176 paginas in-octavo, ou seja,11 folhas — o que torna este livro parecido com esses outroslivros gordos do corpus de cordel que sao a Histoire des quatre filsAymon ou a Histoire de Huon de Bordeaux, que tern respectiva-mente 156 e 144 paginas nas edic.6es in-quarto da viuva deJacques Oudot e do seu filho Jean. Ao contrario dos pliegos decordel espanhois, impresses na maior parte das vezes numa ouduas folhas (isto e, 8 ou 16 paginas no formaco in-quarto queIhes e habitual), os livros da Bibliotheque bleue variam muito nasua extensao de um titulo para outro, que pode ser bastanteconsideravel.

CAPITULO VI 179

Variavel, tambem, e o lugat da imagem 1S. Numerosos saoos pequenos livros que tern uma imagem na pagina do titulo,que substitui desse modo as marcas dos impresses geralmenteencontrados nas outras edi^oes. Tal ilustrac.ao pode ter um duplosignificado: diminui a parte da pagina do titulo consagtada aidentidade editorial, como se nas publicac,6es de cordel o facto naovalesse a pena; explicita, duplicando-o com uma imagem-sim-bolo, codificada e fixada, o proprio titulo. E o caso do presepioda Grande Bible des Noels tan vieils que nouveaux, nas suasdiferentes e numerosas edic,6es, a crucifica^ao ou a flagelacjio doDtscours tragique en vers beroiques sur la Passion de Notre SeigneurJesus-Crist selon I'Evangile Saint Jean, editado por Pierre Garniere depois por Jean-Antoine Garnier, ou ainda os quatro musicosmortos da Grande Danse macabre des hommes et des femmes, publica-da pelos Oudot e por Jean-Antoine Garnier. Pondo de parteessas ilustrac,6es da pagina do titulo, bastante frequentes, onumero dos pequenos livros com imagens nao e de modo algumelevado: em 332 titulos diferentes do catalogo dos livros de cordeldataveis dos seculos XVII e XVIII, somente 38% tern ilustragoes,possuindo metade destes apenas uma.

Se a imagem e unica, encontra-se quase sempre ou nas pri-meirissimas paginas do livro, ou na ultima de todas. Instaura-seassim uma rela^ao entre a ilustra^ao e o texto no seu todo, e deforma nenhuma entre a imagem e esta ou aquela passagem par-ticular. Colocada a cabega, a ilustrac,ao induz uma leitura,fornecendo uma chave que indica atraves de que figura deve serentendido o texto, quer a imagem leve a compreender a totali-dade do livro pela ilustrac,ao de uma das suas partes, quer elaproponha uma analogia que ira orientar a decifrac,ao. E o caso,nas edic.6es do seculo XVII, do livro Le Jargon ou Langage deI'Argot reforme, onde a imagem inicial isola um personagem, oGrande Coesre ou rei dos vagabundos, representado simbolica-mente, mobilizando o efeito da inversao, quer como senhor opu-

15 Sobre esce tema ma! conhecido, seguimos aqui as sugestoes de F.Blondel, Les Lieux de /'image dans la Biblioth&que bleue de Troyes au XVlIe et aitXVIII* siecles, Universice Paris-I, 1983 (tese de DEA). Cf. tambem sobre osmodelos erudites das gravuras de madeira de Troyes S. Le Men, LesAbecedaires frangais illustres dtt XlXe. siecte, Paris, Promodis, 1984.

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lento, quer como guerreiro antigo. Colocada na ultima pagina, aimagem tern outra fiincao, urna vez que permite fixar e ctistali-zar, em torno de uma representagao unica, aquilo que foi umaleitura enttecortada e muito fraccionada. Fornece, assim, amemoria e a moral do texto. Mesmo que nao sejam empreguespela primeira vez e a sua escolha tenha sido aleatoria, tributariada gama das gravuras em madeira na posse do imptessor, asimagens unicas dos livros de cordel tern muita importancia para aleitura dos textos, relativamente aos quais indicam, no inicio ouin fine, uma compreensao possfvel.

Quando surgem em serie, as ilustrac,6es dos livros de Troyesligam-se mais estreitamente as diferentes sequencias do texto eencontram o.seu lugar no proprio corpo do livro. Em certoscasos, como os titulos indicam, a serie de imagens vem emprimeiro lugar e o texto impresso nao passa de um comentario: eo que sucede em La Grande Danse macabre des hommes et des femmeshistories et renouvellee de vieux gaulois en langage le plus poli de notretemps, editada com 60 gravuras de madeira por Jacques Oudot ecom 59 por Jean-Antoine Gamier; e tambem o caso das Figuresde la Saint Bible avec une explication tres utiles sous chaqm figureimpressas com 82 gravuras de madeira por Jean-Antoine Gamier,Noutros casos, as imagens. vem Hustrar um texto ja estabele-cido e impresso, o que faz, aumentar a sua seducao, e tprnatambem mais explicitos e decifraveis os seus contornos, comopor exemplo no caso das edicoes da Histoire des quatre fits Ay-mon,tres nobles et vaillans chevaliers. Ou sont.adjoustees les figures surchacun chapitre. Finalmente, noutros livros, a serie de imagenspode emancipar-se do texto e comportar outras praticas que naoa da leitura. Com efeito, pode pensar-se que as trinta e cincofiguras contidas no Exercice de devotion contenant les prieres du matinet soir, I'entretien durant la messe, et les prieres pour la confession et lasainte communion. Avec les tableaux de la Passion de N.-S. Jesus-Cristselon les actions du pretre celebrant la sainte messe (publicado porPierre Gamier e depois por Jean Gamier, com uma aprovac.ao de1716 e uma autorizac,ao de 1750) puderam acompanhar pensa-mentos e exercicios espirituais, quer por ocasiao do ritual damissa, quer na intimidade da piedade domestica. Aqui, aimagem, tal como nos cartazes das confrarias ou nos folhetos

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relatives a peregrinates, torna-se o suporte sensivel de umafamiliaridade devota com os ensinamentos da Igreja.

Aquilo que, por fim, melhor unifica o conjunto das publica-C,oes de Troyes e a sua aparencia e o seu prec.o. Tomemos, atitulo de exemplo, o fundo de Jacques Oudot e da sua viuva,inventariado em 1722. Os livros «encadernados em papel azul»ou «com capa de papel azul» sao os mais numerosos — o queda, deste modo, uma unidade imediatamente visivel aos titulosdo catalogo de Troyes. Contudo, e de notar que a capa azul naoe de maneira nenhuma unica: certo numero de edigoes, tantoMiroirs de la confession e Arithmetiques como Contes de Fees, saoencadernados «em papel de cor marmoreada», 40 diizias deabecedarios tern «capas de papel vermelho» e os livros de horas,na maior parte das vezes, sao encadernados em carneira. Em1789, o mventario da oficina de encadernagao de EtienneGarnier e da sua viuva menciona «tres resmas de seis paimos depapel de cor para capas», sem precisar a cor, O livro da coleccaode livros de cordel distingue-se dos outros antes de mais pelo seuaspecto fisico: e um livro geralmente brochado, geralmente comcapa _de_ papel, e de um papel que, na maioria dos casos (masnem sempre), e azul. Distingue-se tambem pelo seu preco. Em1789, na «loja dos livros brochados» da viuva Garnier, o in-ventario enumera 199 titulos calculados a diizia: 66 deles, ouseja, um terco, valem menos de cinco soldos cada duzia, e 46 ouseja, :Cerca de um quarto, entre cinco e nove soldos. A grandemaioria das publicacoes de Troyes vale menos de um soldo porexemplar, e um grande numero menos de seis dinheiros. Aindaque o prec.o real de venda, pelo vendedor ambulante ou pelolivreiro, seja ligeiramente mais elevado do que esse prego deinventario, o livro de cordel nao deixa por isso de ser um objectobarato, ao alcance de todos, bem menos caro, de qualquerforma, do que os livros comuns mais baratos, os quais, comoatesta o inventario dos livros do estabelecimento da viiivaGarnier, valem geralmente entre dez e vinte soldos por exemplar.

Entre os meados do seculo XVII e o fim do Antigo Regime,controlarao os impressores de Troyes, sozinhos, a producaodesses livros baratos e de grande difusao? A seu favor tern aantiguidade na pratica de tal forma de edicao, iniciada nos

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primeiros anos do seculo XVII, e o numero. Com efeito, damorte de Nicolas II Oudot, em 1679, a da viuva de EtienneGamier, em 1790, sao duas gerac.6es de Oudot (a principioJean III e Jacques, filhos de Nicolas II, e depois Nicolas III eJean. IV, filhos de Jacques) e tres gerac,6es de Gamier (primeitoPierre, a seguir Jean, depois os seus filhos Jean-Antoine eEtienne) que se sucedem. De notar igualmente o papel dasviiivas que concinuam a actividade editorial apos a morte dosseus maridos: e o caso de Anne Havard, viiiva de JacquesOudot, frequentemente associada ao seu filho Jean IV, ou deJeanne Royer, viiiva de Jean IV, ou ainda de ElisabetheGuilleminot, viiiva de Pierre Gamier. Dominantes, os editoresde Troyes nao possuem, todavia, o monopolio dos livros decordel. Em varias cidades do reino, outros impressores imitama formula e fazem-lhes concorrencia: em Rouen, os Oursel e osBehourt, depois Pierre Seyer, que retoma em 1763 o fundoBehourt16; em Caen, a partir de meados do seculo, os Chalo-pin17; em Limoges, os Chapoulaud18 e, fora do reino, emAvignon, na primeira metade do seculo, Paul Offray ouFortunat Labaye19. Esboga-se assim uma partilha das zonasa abastecer, atribuindo a cada tipografia produtora de livrosbaratos uma clientela regional. Como prova, a localizac.ao doscorrespondentes — devedores da viuva de Jacques Oudot em1722 20 e da viiiva de Etienne Garnier em 1789, centrada emChampagne e estendendo-se a oeste a Picardia, a Paris e ao valedo Loire, a leste a Lorena a Borgonha e*ao Franche-Comte — oque deixa toda a zona ocidental do reino aos editores de Rouen

e de Caen.

1 S J. Queniart, L'lmprimerie et la Librairie a Rouen au XVIII6 siecle, Paris,Klincksieck, 1969, pp. 136-138.

17 A. Sauvy, «La librairie Chalopin. Livres et livrets de colportage iiCaen au debut du XIXe sicle», in Bulletin d'bistoire moderns et contemporaine,n.° 11, Orientations de recherche pour I'histoire du livre, Paris, BibliotequeNational, 1978, pp. 95-141.

18 P. Ducourtieux, Les Almanacks populaires et les Livres de colportage a

Limoges, Limoges, 1921.19 R. Moulinas, L'lmprimerte, la Librairie et la Prene a Avignon au XVlle

siecle., Presses universitaires de Grenoble, 1974, pp. 165-166.20 R. Mandrou, De la culture populaire aitx XVII' et XVUF siecles. La

Bibliotbeque bleiie de Troyes, Paris, Stock, 1975, p. 41.

CAPITULO VI 183

Leitores e leituras

Sera que a clientela da colecgao de livros de cordel semodiflca ao longo do seculo XVIII? No infcio, com os doisprimeiros Oudot, o seu publico parece ser antes de maiscitadino (e acima de tudo parisiense) e de modo nenhumimediatamente caracterizavel como exclusivamente popular.Entre 1660 e 1780, esta sociologia evolui, levando a umapopularizac.ao e a uma ruralizagao dos livros de prego reduzido.As provas de tal deslocagao sao bem nitidas21. Atentemos emduas delas, nos dois extremes do seculo XVIII. A primeira edada pelas Memoires de Valentin Jamerey-Duval. Nascido em1695 em Arthonnay, na regiao de Tonnerre, filho de umsegeiro, Jamerey-Duval, apos uma infancia fugaz e errante,torna-se pastor numa aldeia da Lorena, Clezantaine, perto deEpinal. Tern entao quase quinze anos e pede aos amigos queIhe ensinem a ler: «Levei os meus confrades da vida bucolica aensinarem-me a ler, o que fizeram de boa vontade a troco dealgumas refeigoes campestres que Ihes prometi. O acaso pro-porcionou-me este comecimento acraves da inspecgao de umlivro de fabulas, em que os animais, que Esopo introduz parainstruir aqueles que julgam ser os portadores da razao, eramrepresentados em belissimas gravuras de talhe-doce: A impossi-bilidade de compreender os seus dialogos sem o auxilio de uminterprete deixou-me irritado com a ignorancia em que euestava imerso, de forma que resolvi deitar mao a todos os meiospara dissipar as trevas. Os meus progresses na leitura foram taorapidos que em poucos meses os actores do apologo ja nada denovo tinham para mim. .Percorri com extrema avidez todas asbibliotecas da aldeola. Folheei todos os seus autores e denttoem pouco, gramas a minha memoria e ao meu pouco discerni-mento, vi-me em posicao de contar as maravilhosas proezas deRicardo Sem Medo, de Roberto-o-Diabo, de Valentin e Orsone dos quatr'o filhos Aimon» 22.

21 J.-L. MaraJs, «Litrerature et culture 'populaire' aux XVlle et XVIII6

siecles. Reponses et questions^, Annales de Bretagne et dss Pays de I'Quest,1980, pp. 65-105.

22 V. Jamerey-Duval, Memoires, Enfance et education d'un paysan au

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No inicio do seculo XVIII, as edicoes de Troyes chegaram,pois, as aldeias da Lorena: servem af de material de aprendiza-gem da leitura e sao o suporte de praticas culturais multiplas,da decifracjio colectiva e pedagogica a leitura individual, damemorizac.ao a recitacao23: «Quando, por meio de um exercf-cio frequence, valorize! a minha memoria com todas as ficcoesgaulesas que contagiam o espirito do povo, passei a considerar--me pelo menos tao sabio como o paroco da aldeia. Convidavajovens de quern tinha sido discipulo a receber a paga das suasinstrugoes e, subindo a uma tribuna, declamava-lhes, com aenfase que tao bem caracteriza a ignorancia, as mais belaspassagens de Jean de Paris, de Pierre de Provence e da mara-vilhosa Mehisine». Mais adiante, no seu texto, Jamerey-Duvalprecisa o uso campones dos livros de 'cordel por ocasiao doregresso critico a uma das suas leicuras da adolescencia: «Eraum desses Hvrecos que em Franca constituem a chamadaBibliotheque bleue, que tinha como tit'ulo La Vie de Jesus-Crist etcelle de Judas Iscariote, impresso em Troyes, em Champagne,numa edic.ao da viuva de Jacques Oudot. Aqueles que, comoeu, sabem que esse pernicioso romance tinha sido difundido namaior parte das provincias de Franca e que os habitantes docampo o sabem de cor, pondo-o nas maos dos filhos para'elesap~renderem a: ler, perguntarao talvez que ideia tinha do cristia-nismo o alto clero deste reino e se,vnesse tempo, ele tinhadeixado de ser pago para impedir que o povo confundisse asverdades sagradas do Evangelho com ficcoes de igual modotriviais e profanas» 24. Com a dupla distancia do tempo(Jamerey-Duval inicia as suas Memoires na decada de 1730) e daposicjio sociocultural (tendo-se tornado professor e biblioteca-

XVTII*: siecle, prefacio, incrodu^ao, notas e anexos por J.-M. Goulemot, Paris,Le Sycomore, 1981, pp. 191-193. Todos os titulos cicados por Jamerey--Duval sao identificaveis no reportorio de A. Morin, Catalogue descriptif de laBibliotheque blew de Troyes (Almanachs exclus), Genebra, Droz. 1974.

23 J. Hebrard, "Comment Valentin Jamerey-Duval appric-il a lire?L'autodidaxie exemplaire», in Pratiques de la lecture, sob a dir. de R. Chartier,Marselha, Rivages, 1985, pp. 23-60.

24 V. Jamerey-Duval, op. tit.p. 195.

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rio), o antigo pastor da um testemunho da circulacao rural,pelo menos na zona oriental do reino, em regioes de antiga eforte alfabetizac.ao, dos livros impresses em grandes quantida-des pelos editores de Troyes.

No inicio da Revolucao, os correspondentes do abadeGregorio cestemunham dois factos25: em primeiro lugar, a di-fusao no conjunto da Franca, incluindo as provfncias meridio-nais, dos livros de baixo preco; por outro lado, uma designagaorestritiva da coleccao de livros de cordel, que inclui unicamenterelates de ficc.ao, romances, contos e historias. Este facto ia aoencontro de uma definigao que parece ter sido a dos proprioseditores de Troyes, pelo menos a partir do seculo XVIII, comoindica o «Cataiogo dos livros que se vendem na loja da viuvado livreiro Nicolas Oudot», que distingue os «livros recreati-vos — geralmente designados por Bibliotheque bleue» de todosos outros, pequenos livros de horas chamados longuettes, ma-nuais de civilidade, alfabetos e livrinhos de devo^ao para uso dasescolas, livros de piedade, loas de Natal e canticos, miscelaneas,etc. No fim do catalogo, a identidade entre coleccao de livrosde cordel e contos de ficgao e mesmo reforcada pela mengao:«Aumenta~se tambem a coleccao de livros de cordel canto coma investigate das antigas Historias como pelas Hisrorietasnovas» 26. Embora a gama dos titulos passados a livros de cordelseja, como vimos, bastante extensa, a expressao «colecc.ao delivros de cordel* tende, no seculo XVIII, a designar sobretudo oscontos e os romances que atingem as zonas rurais.

Como chegam eles ai? Alguns vendedores ambulantes abas-tecem-se mesmo em Troyes, directamente junto dos Oudot edos Gamier, tal como indica um memorando dos almotaces dacidade, redigido em 1760 em defesa da viuva de Jean IVOudot, entao em disputa com o Parlamento de Paris: «A maiorparte do comercio de retrosaria da cidade de Troyes e feita comos bufarinheiros que aqui vem abastecer-se de livros de cordel.

25 Cf. 0 capitulo V «Praticas e represenca^oes: leituras camponesas emFranca no seculo XVIII».

26 Sobre este catalogo, cf. H.-J. Martin, Livres, Pouvoirs et Societe aParis au XVW siecle (1598-1701), Genebra, Droz, 1969, t. II, pp. 956-958,e J.-L. Marais, art. cit., p. 69.

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Se a tipografia da viuva Oudot fosse encerrada, esse ramo decomercio da cidade de Troyes em breve murcharia e esgotar-se--ia; a tipografia do Senhor Gamier, que trabalha em concorren-cia com a da viiiva Oudot nesse tipo de publicac.6es nuncaseria capaz de fornecer as quantidades consideraveis que saoproduzidas todos os anos; os bufarinheiros, nao encontrando jatanta variedade na coleccjio de Hvros de cordel como anterior-mente, nao se desviariam propositadamente da sua rota, comofazem, para vir comprar a Troyes artigos de tetrosaria, queencontrariam igualmente em qualquer outro lugar» 27.

Porem, nem todos os revendedores de livros de cordel seabastecem em Troyes e nem todos sao vendedores ambuiantes.A venda sedentaria dos pequenos livros de prego reduzido nascidades e nos burgos continua a ser importante: e feita peloslivreiros, mencionados como devedores dos impressores deTroyes nos inventarios; e igualmente praticada por comerci-antes menos certos, como por exemplo Jacques Considerant, aomesmo tempo detentor de um bilhar, comerciante de encader-nac,6es e ferro-velho em Salins, e que tambem vende livros. Em1759, o iriventario do seu estabelecimento, feito a pedido dosseus credores, menciona, a par de carecismos e de oficios daVirgem, a presenga de «15 diizias de brochuras da colecc.ao delivros de cordel^ a dots soldos cada duzia» que perfazem umalibra e dez soldos no total28. E podera pensar-se que, nessaregiao do Jura, os numerosos retroseiros e vendedores ambuian-tes que negoceiam livros expoem a coleccao de livros de cordel apar dos livros de devoc.ao que constituem o essencial do seucomercio. Alguns deles abastecem-se junto dos tipografos deBesangon e de Dole — em especial os Tonnet, que editam emDole livros de piedade e titulos do reportorio de cordel —,outros junto dos grossistas, mais ou menos especializados nocomercio do livro, correspondentes dos editores de Paris, deTroyes ou helveticos — o que descontenta bastante os impres-

27 Citado por R. Mandrou, op, cit., pp. 41-42.28 M. Vernus, «Un libraire jurassien a la fin de 1'Ancien Regime:

Jacques Considerant marchand libraire a Salins (1782)», in Societe d'emula-tion dujura, Lons-!e-Saunier, 1981, pp. 133-167, em especial pp. 149-150.

CAP1TVLO VI 187

sores locais29. Como mostra este exemplo, a difusao dos livros decordel e feita por numerosos revendedores, estabelecidos ouitinerantes, que acabam por atingir todas as clientelas possfveis.

Em suma e certo que, entre 1660 e 1780, os textos dacolecgao de Hvros de cordel se tornam progress ivamente umelemento dessa cultura camponesa muito supersticiosa e rotineiraque as elites revolucionarias virao a denunciar. Leituras doscamponios, os livros de cordel sao assim desqualificados junto daselites que condenam os seus textos e desprezam a sua formadescuidada. Todavia, o contraste nao deve ser forgado. Por umlado, o reportorio dos livros de cordel nao e apenas constituidopor romances antigos fora de moda e desacreditados, mas pornumerosos textos que so esperam para passar das edic.6es vulga-res as edic.6es de cordel o tempo que dura o privilegio do seuprimeiro editor. Por outro lado, no seculo XVIII, os livros deTroyes ou os seus equivalentes nao sao ou nao sao ainda umaleitura exclusivamente camponesa. A sua circulacao na cidade,embora diflcil de documentor, continua indubitavelmente a serforte, e se os mais notaveis se desviam desses Hvros (exceptocomo coleccionadores), nao e esse o caso de todo um mundomediano das sociedades urbanas. Mais do que na estrita sociblb-gia do seu publico, e portanto no modo da sua apropriac,ao quereside a especificidade dos Hvros de cordel: a leitura que implicam -ou favorecem nao e de modo algum a das edigoes letradas e nasua aquisi^ao ou posse investem-se relacoes que a sua leituradecifrada nao esgota.

29 M. Vernus, «CoIporceuts ec marchands mecciers dans le Jura auXVIIIe siecle», La Nouvelle Revue franc-comtoise, n.° 72, 1980 pp. 210-221e n.° 73, 1980, pp. 25-33-

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CAPITULO VII

Cultura politica e cultura popular no Antigo Regime

1. Cultura «popular» e cultura politica de Antigo Regime.Tentar pensar esta relac.ao nao e tarefa facil, de tal modo ostermos parecem contraries. Com efeito, desde que comecaram aprocurar as formas proprias de uma cultura que poderia serconsiderada popular na antiga sociedade francesa, os historiado-res desenterratam textos e ritos, gestos e crenc.as, imagens erelates, numerosos, diversos, complexes, mas onde nada parecepoder ser entendido como propriamente politico. E o que sucedecom o mais famoso dos corpus que supostamente faculta asleituras populares dos seculos XVII e XVIII, o corpus das colecc.6esde livros de cordel.

Em Janeiro e Fevereiro de 1789, no inventario do fundo deEtienne Gamier, urn dos impressores de livros de cordel, os li-vros de religiao constituent cerca de metade dos exemplares emdeposito, ultrapassando largamente os textos de flccab e as obrasvotadas a aprendizagem e a pratica. Nas vesperas da Revolucao,numa editora vulgar, que em nada se distingue das suas con-generes — as quais imprimem livros para a maioria — nao havestfgio algum de uma literatura politica, qualquer que seja aacepgao dada a este adjectivo. A constatacao parece ser corrobo-rada por aqueles que respondem, entre 1790 e 1792, ao questio-nario do abade Gregorio sobre «o patois e os costumes das gentesdo campo». A pergunta n.° 37, «Que especies de livros seencontram mais frequentemente nas casas deles?», os correspon-dentes de Gregorio, tracando o quadro das obras em Francesencontradas nas casas dos camponeses antes de 1789, citam oslivros de horas, os livros de piedade da Reforma catolica, aBibliotheque bleue [livros de cordel], os almanaques, os livros defeiticaria, mas nao mencionam nunca titulos politicos, sejampara gloria ou para vergonha do rei. Para estes observadores —

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ao mesmo tempo distantes do mundo campones, mas familiari-zados com as suas realidades, as quais conhecem como juizes,parocos e viajantes —, a introduce da leitura politica noscampos esta estreitamente ligada ao acontecimento. E o queescreve Bernadau, advogado em Bordeus, em finals de 1790 ouno inicio de 1791: «Desde a revoluc.ao, os camponeses substitui-ram essas leituras pelas dos papeis do memento, que compramassim que a sua desactualizacao os coloca a precos acessiveis.A juventude tambem substitui os canticos por cancoes patrioti-cas». E Morel, procurador em Lyon, quando responde relativa-mente a provincia de Lyonnais em Novembro de 1790, mencionaentre esses novos titulos, que tern tanto exito, as Lettres bougrementpatriottques du vertueux Pere du Chene, o Trou du cul du Pere du Chene,o Mouchoir des Aristocrates. Para os correspondentes de Gregorio,a politica so chegou aos eampos com o rumo novo de 1789 queveio substi-tuir uma antiga biblioteca rural, arcaica, imovel,em proveito de uma literatura efemera, polemica, politica, aqual, com maior ou menor atraso, faz com que o mundo cam-pones particlpe na actualidade das lutas que dilaceram a cidade V

A nivel da longa duracao, a cultura impressa popular(entendida como sendo destinada a numerosos compradores queso minoritariamente pertencem a sodedade dos notaveis) parececonfer essa ausencia2. As imagens impressas, nas suas diversasformas, tern por objectivo recordar, massivamente, as verdadesda fe crista, mostrar a autotidade da Igreja Catolica, alimentaras praticas de devogao. Sao esses os papeis atribuidos as imagensvolantes, as sequencias feitas para serem coladas na parede, emvolta da cama ou da chamine, as imagens de confraria ou deperegrinacao, ou, nalgumas dioceses, as cartas de casamento.Por seu turno, os canards ou livros de ocasiao que precedema Eibliotheqm bleue, e que depois a acompanham durante algumtempo, utilizam um reportorio do qual estao ausentes os temas

1 Ver supra Capitulo V.2 R. Chartier, «Scrategies editoriales ec lecteurs populaires», in Histoirs

de ['Edition Fran$aise, sob a direc^ao de H.-J. Martin e R. Chartier, Paris,Promodis, t. I, Le livre conquerant. Du Moyen Age au milieu du XVW* siecle,1982, pp. 585-603. (texco retomado em Lectures et lecteurs dans la FrancecfAncien Regime, Paris, Seuil, 1987, pp. 87-124

CAPITULO VII 191

politicos: entre os 5 17 canards identificados para os cem anosentre 1530 e 1630, sao seis os motives que sobressaem, commais de trinta edigoes cada um: os crimes medonhos e asexecu^oes capitals (89 edigoes), as apari^oes celestes (86 edi^oes),os feiti^os e possessoes diabolicas (62 edigoes), os milagres (45edi^oes), as cheias (37 edic.6es), os tremores de terra (32 edic.oes).Os restantes pertencem ao mesmo registo, dando a ler historiasde monstros, de sacrilegios, de raios e trovoes.

Nos seus alicerces folcloricos e na sua base crista, a culturaritual da maioria tambem nao surge como politica, A caracteri-za^ao de uma religiao «popular», por muito discutida que tenhasido a noc,ao, bem como a identificagao de uma cultura carnava-lesca, considerada como matriz do conjunto das representac,5es«populares» dos mundos natural e social, foram levadas a efeitofora de qualquer referenda ao poder politico, aos ritos que0 exibem e as crengas que ele cristaliza, como se, no AntigoRegime, nada do que diz respeito ao Estado atingisse umacultura enraizada, fechada e coerente, apenas trabalhada pelaobra cristianizadora da Igreja. Dai, o divorcio mais ou menostotal (apesar de Les Rois thaumaturges), entre o estudo dos rituaisregios e o das praticas folcloricas; dai, tambem — uma vezreconhecido o lugar da instituigao eclesiastica no aparelhode Estado monarquico —, a autonomia postulada das crengas.«religiosas», licitas ou supersticiosas, censuradas ou autorizadas.O primeiro diagnostico e bem claro, pois nao reconhece nada depolitico, na cultura popular de Antigo Regime tal como foireconstituida atraves de materials que supostamente a moldaramou ataves das suas expressoes mais fundamentais.

2. Espago publico e politica popular. Tambem esta relagaoredunda numa antinomia. A constituigao, no seculo XVIII, deum espac.o publico definido como lugar do debate e da criticapolitica, foi pensada como excluindo qualquer participagao po-pular. Fundada na utilizac.ao publica da razao por pessoaspartkulares que abstraem, na discussae-, a desigualdade das suascondig5es, considerando que nenhum dominio deve ser subtrai-do a sua competencia, privilegiando as sociabilidades livres evoluntarias, mais ou menos reguladas, onde reina a igualdade

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192 CULTURA POLITICA E POPULAR

encre participantes escolhidos — o cafe, o dube, a loja mac,6-nica, a sociedade litetaria —, a cultura polfcica moderna quesurge inicialmente em Inglaterra, e depois em Franca, nao tenide modo nenhum que ver com o povo. A abertura de um novoespago para lim pensamento politico que nao reconhece nemlimites para o seu exercicio, nem submissao forc.ada a autoridadeherdada supoe uma divisao social rigorosa e severa, que constroi,relativamente ao pn'ncipe, uma opiniao que podera apelidar-sede publica, mas que, de facto, e produzida unicamente pelosesclarecidos3.

As defini^oes da palavra «povo» nos dicionarios de lingua dosecuio XVIII, que indicam as acepcoes mais comuns, atestam essecorte, muitas vezes pensado atraves da oposic.ao feita pelo latimentre populus e plebs. Como por exemplo no Dictionnaire deTrevoux, na sua edic.ao de 1771: «Povo. Esta palavra significafrequentemente a parte menos considerada de entre os habitan-tes... Assim, ha uma grande diferenc.a entre a palavra francesapovo e a palavra latina populus. Nesta acepc,ao, quer dizer aquiloa que os romanos chamavam plebs. Ha muito povo no bairro dosHalles. Neste sentido, corresponde a pwinho, a povo miudo, istoe, a arraia-miuda. Utiliza-se o termo mais ou menos no mesmosentido pot oposicjlo aos que sao nobres, ricos ou esclarecidos».Assim definido pot defeito (de nascimento, de fortuna ou deinstrucjio), o povo-plefa nao pode ser considetado como umsujeito politico. Furetiere, em 1727, caracteriza-o do seguintemodo, atraves de exemplos e lugares-eomuns: «O povo e povo emtodo o lado, isto e, tonto, remexido, amante das novidades. Opovo tern o costume de odiar nos outros as mesmas qualidadesque neles admira; tudo o que esta pata alem das suas regrasofende-o, e sofreria mais facilmente um vicio comum do queuma virtude extraordinaria, segundo Voiture. Nao ha de manei-ra alguma meio-termo no humor do povo. Se ele nao teme, e detemer; mas desde que estremega, pode-se despreza-lo impune-mente, segundo d'Ablancourt... Esse homem esta estragado comtodos os erros e opinioes do povo. Ele e a escoria do povo.

3 J. Habermas, L'espace public. Archeologit de la publicite comme dimensionconstitutive de la societe fourgeoise, 1962, Paris, Payot, 1978. [reimpressao,1986].

CAPITULO Vll 193

O povinbo, o povo miudo, o comum do povo e espertalhaoe sedicioso» — o que era fazer eco do enunciado do Dicionariode S/V^/e^inalterado desde a ptimeira edic.ao de 1680:«0 povtnho. E toda a rale de uma cidade. E tudo o que ha degentes que nao sao de qualidade, nem burgueses desafogados,nem aquilo a que se chama pessoas honestas (o povinho deLondres e ruim)».

Ruim, versatil, vil, excessive, o povo dos dicionarios naotern nada a vet com a coisa publica. O rei tern para com ele duasobrigac.6es, indicadas pelas abonac,6es dadas pelo Dictionnairede I'Academie em 1694: «aliviar a misetia do povo» e «manteto povo na linha do dever». Em contrapartida, pode dele esperarfidelidade e amor, como expressam tres frases escolhidas pelosAcademicos: «fazer-se amar pelo povo, ter as boas gramas, o favordo povo», «Um pn'ncipe que tern o corac.ao dos seus povos, aafei^ao dos seus povos» e «Esse tei era adorado pelos seuspovos». A representac.ao, que une indissociavelmente o monarcae o seu povo numa rela^ao onde ao constrangimento e a pro-tec^ao, por um lado, correspondem, pot outro, a fidelidade'e oamof, seta duravel: encontra-se, por exemplo, no artigo Peupleda Encyclopedic, redigido por Jaucoutt. E compteensfvel que aconstruc.ao de uma rela^ao nova com o poder sobetano, quesubmete a exame cn'tico tanto as suas acc.6es como os seusfundamentos, se realize com a exclusao do povo, no sentidosociologico de pkbs («Na massa do povo so testam os operariose os lavradores», escreve Jaucourt). Atravessada pelas imagensantigas e pelas referencias da tradigao, a poli'tica moderna na suaprimeira deflnic.ao e proscribe do popular. Uma proscri^ao maisdrastica do que os desprezos antigos, quando o publico visado,tanto pela propaganda monarquica como pelos ctfticos da politi-ca regia, era pensado a partir do modelo do publico de teatro,heterogeneo na sua composic.ao, hierarquizado nas suas posi^Ses,unificado pelo espectaculo que Ihe era dado ver4. O povo

4 C. Jouhaud, «Propagande ec action aii temps de la Fronde*, in Cultureet ideologie dans la gen$se de I'Etat modeme, Actas da mesa-redonda organizadapelo Centre national de la recherche sciencifique e a Ecole fran^aise de Rome,Roma, 15-17 de Outubro de 1984, Ecole francaise de Rome, 1985, pp.337-352.

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194 CULTURA POLITICA E POPULAR

dispunha ai de um lugar, acantonado mas bem definido, queperdera quando a politica se torna exercicio da razao por partedaqueles que podem formular uma opiniao esclarecida. O que eum motivo forte para postular nao apenas o distanciamento entrecultura polftica e cultura popular, mas taivez a sua propriacontradicao: a emergencia do espago proprio da politica, querequer a supressao do popular.

3. Nada de politico na cultura popular na sua longa dura-cao, nada de popular na cultura polftica nova da era das Luzes:esta dupla constatacao parece esvaziar de qualquer sentidoa tentativa de definicao de uma «cultura politica popular» deAncigo Regime. Mas coloca, sobretudo, a questao fundamentale diffcil do proprio significado dessa nocao para a sociedadeanterior a Revolugao. Sera necessario valida-la, entendendo-acomo a adesao das representacoes mentais da maioria as represen-tagdes objectivadas, espectaculares, cerimoniais, que o poderpropoe de si mesmo? A cultura polftica popular seria assimcomo que inscrita nas fbrmas que a produzem, e nada mais doque a justa percepcao ou a correcta compreensao das encenacoes,das passagens a rito, a imagem, a texto, do poder sobetano, dosseus atributos e dos seus detentores. Porem, o inventario dasformas que o dao a ver e a ler esta fora do nosso trabalho. A esserespeito, apenas duas observances.

A primeira propoe-se discutir a tese que caracteriza o seculoXVII como uma epoca de esgotamento, de abandono ou dedesnaturalizacao dos rituais publicos de Estado da monarquiafrancesa, substituidos pelo cerimonial privado e pelo culto regiotal como sao organizados na corte a partir de Luis XIV5. Se seconsiderar o ponto de vista dos sujeitos e dos povos, o contraststaivez nao seja tao claro como surge nessa tese. Por um lado,o recurso aos rituais publicos nao parece esgotado. ConV efeito,e no momento em que se esbate a pratica das entradas regias nasua formula medieval e renascentista que se multiplicam ascetebrac.6es de uma cerimonia nova, o Te Deum, que divulga portodo o reino a representacao do poder real na sua funcao

5 R. E. Giesey, «Modeles de pouvoir dans le rites royaux en France»,Annales E.S.C., 1986, pp. 579-599-

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guerreira. Com Luis XTV, multiplicam-se as ocdens de celebragaode Te Deum, ja que se contain 18 entre 1621 e 1642 e 22durante a sua menoridade, sendo 89 dirigidas as diversas autori-dades parisienses e da provincia entre 1661 e 1715-6. Por outrolado, parece excessivo apresentar a partida um corte demasiadoacentuado entre ritual «piiblico» e cerimonial «privado». Nume noutto caso, aqueles que assistem ou participam, na cidade ouna corte, nao passam de uma escassa minoria — o que e validomesmo pata as grandes cerimonias tradicionais. A eficacia ritualsupoe, contudo, a existencia de numerosas formas de transmissaoque, pela palavra, pela escrita, pela imagem, atingem mesmoaqueles que nao foram de modo algum espectadores ou que nun-ca virao a conhecer Versalhes. Para que a representacao do podersoberano nao se atenha ao momento e ao local da presencaefectiva da pessoa do rei, sao necessaries textos e imagenscapazes de tornar publica a vida ritualizada do principe tal comoo faziam relativamente a sua sagracao, as suas entradas ou as suasexequias. Em virtude deste facto, a celebragao na corte do cultoregio nao pode ser considerada como sendo da ordem doprivado, como nao o podem ser as regras e disciplinas impostas acorte, uma vez que estas tendem a definit, com um nivelmaximo de exigencia, as relagoes que cada um, quem quer queseja, deve doravante mantet com o soberano7.

Segundo ponto: essas representagoes do poder que devemforcar a adesao popular nao tern locais determinados e podeminscrevet-se em qualquer forma, em qualquer genero, colocadodeste modo ao service da persuasao monarquica. Tomemos doisexemplos, encontrados por ocasiao de investigates recentessobre impresses de grande circulagao. Em 29 de Outubro de1628, apos catorze meses de cerco e de bloqueio, a cidade

6 M. Fogel, «1620-1660: Constitution et foncdonnement d'un discoucsmonarchique sur la guerre. L'information comme ceremonie», in L'Etatbaroque. Regards sur la pensee polltique de la Francs du premier XVIIs siecle, textosreunidos sob a direcgao de H. Mechoulan, Paris, Vrin, 1985, pp. 334-352 e«Propagande, communication, publication: points de vue et demanded'enquete pour la France des XVle"XViie siecles», in Culture et ideologie dans lagenese de I'Etat moderne, op. at., pp. 325-336.

7 N. Elias, Ixs Societe de Cour, 1969, Paris, Flammarion, «Champs»;

1985, e supra Capitulo III.

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protestante de La Rochelle rende-se ao rei. Nas semanas que seseguem, o acontecimento e manifestado a todo o reino demaneira a exaltar a gloria e a clemencia do soberano. Paratanto, sao mobilizados diversos dispositivos. Os da imprensa,para comec,ar, com a edicjio de multiplas pegas: as cartas regiasque anunciam a vitoria, o texto dos artigos da paz, relac,6es docerco e da capitulacjio, elogios, poemas, panfletos que louvamo rei. Paralelamente, o rriunfo e dado a ver e a ouvir nos rituaispublicos, o Te Deum e a entrada. A que Luis XIII faz em Parisa 23 de Dezembro e acompanhada por numerosas publicac.6esimpressas, nao apenas peio livro oficial da entrada, que porme-noriza o programa desta e a sua ordem, mas tambem por variospequenos livros que expliciram as suas figuras ou conservam asua memoria8. Mas a celebrac.ao do monarca vitorioso utilizaigualmente generbs muito diversos: os anagramas, os prp-gnosticos, iado "ate a literatura de parodia 'que"alimenta ocatalogo dos editores dos livros de cordel. E assmVque-a tomadade La Rochelle e exaltada em Le Jargon ou Langage de I'Argotreforms comme il est a present en usage parmy les bons pauvres, fireet 'recueilly des plus fameux Argotiers de ce Temps. Compose par unpHlier de boutanche qui maquille en molancbe en la Vergne de Tours— um pequeno livro que faz uso da lingua suposta como sendoa dos mendigos e dos que falam calao para descrever, parodian-do, a sua monarquia e a sua sociedade. Impresso inicialmenteem Troyes por Nicolas Oudot, reeditado em Lyon (em 1630 e1632) e em Paris, retomado depois em Troyes pelo filho deNicolas Oudot, em 1656, e por Girardon, em 1660, Le Jargontermina com um poema em giria intitulado La resjouissance desArgotiers sur la prise de La Rochelle, no qua! da gramas a Deuspelo exito de «dabusche Louys», que Ihe pede «que conservesempre a nobre flor de lis», dando ao rei «boas alegrias», e seregozija pelo facto de que «a palerma, que andava perdida,acossada pela fome acabou por ser tomada». O pequeno livroque associa a tradic.ao carnavalesca das parodias de' linguagem,o tema em moda dos falsos mendigos, das suas voltas e do seu

8 C. Jouhaud, «La Rochelle a Paris*', in Les usages de I'imprime (XV--XIXs siecle), sob a direc?ao de R. Chartier, Paris, Fayard, 1987, pp. 381-438.

imperio, e o procedimento burlesco do tratamento nobre deassuntos triviais, nada tern de um texto politico. E daquelesque Etienne Garnier ainda vendera em 1789- Todavia, emtodas as suas edicoes do seculo XVII, ele lembra a gloria do rei,o verdadeiro, o «dabusche Louys», e nao a do «Grand Coesre»,esse soberano do escarnio que reina sobre a monarquia do calao 9.

O nosso segundo exemplo concerne a imagem impressa. EmLyon, no seculo XVII, o ritual do casamento exige que o esposo*entregue a sua mulrier, ao mesmo tempo que a alianc,a, umacarta nupcial, benzida pelo padre. O objecto, que tem no seucentre, num escudo, as palavras de compromisso e de dadivapronunciadas pelo conjuge na cerimonia, e decorado com ima-gens gravadas (em madeira, e posteriormente em cobre), fre-quentemente coloridas, que propoem uma iconografia bemreligiqsa, representando os Evangelistas, S. Pedro e S. Paulo,a Santissima-Trindade e duas cenas tratadas em contrastea tentac,ao de Eva e o casamento da Virgem. Nada de profanoe.menos ainda de politico no que diz respeko a esses objecrossaidos em quantidade dos prelos de produtores de imagens deLyon, possuidos por toda a genre, ja que o ritual a tantoobriga, conservados no domicilio durante toda uma vida.Contudo, tambem essas cartas se podem tornar o suporre dapresen^a figurada e multiplicada do rei. Numa das series assimimpressas, ele surge representado com a rainha, na ocasiao doseu casamento. O gravador precisou na moldura que cerca aimagem: «Esta carta forfeita no ano do Casamento do Rei LuisXIV, em 1660». Este motive parece rer feito sucesso — umavez que Luis XIV e Maria Teresa se encontram numa outra seriede cartas, que retoma o mesmo programa, associando a Santis-sima Trindade, os Evangelistas e o casal regio — e parece tertido longevidade, ja que as cartas que o ostentam sao aindautilizadas na decada de 1680. O monarca em gravura de metale assim instalado no foro privado de numerosos casais de Lyon,representado'num acto que e precisamente aquele que da a sua

9 Figures de la gueuserie, textos apresentados por R. Chartier, Paris,Moncalba, Bibliotheque bleue, 1982, pp. 30-46 (o Jargon, na sua edigao deTroyes de 1660, e republicado a pags. 132-180).

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razao ao objecto impresso, cuidadosamente guardado porqueesra investido de recordacao e de emoc,ao10.

E certo que as representagoes do poder soberano se insi-nuam era muitos dos textos e dos objectos que povoam o quo-tidiano da maioria, Pode pensar-se que sao eles, meihor do queas series de imagens mais convencionais ou do que os escritosde circunstancia, que modelam o amor dos povos pelos reis ecimentam a crenca na autoridade dos principes. O conjuntodestas representac,6es constitui sera duvida uma «cultura poifti-ca» de Antigo Regime, na defmigao minima desta, entendidacomo a adesao a majestade real, mostrada, explicada, exaltada.Mas estara o povo apenas votado a essa passiva submissao, aessa politica por defeito, toda ela feita de obediencia e depiedade filiais para com o rei protector, ajustada a formulaapresentada pelo Dictionnaire de Trevoux em 1771: «O povoFrances ama o seu Soberano e o Soberano ocupa-se da felkidadedo seu povo, dos seus povos. Chamar a urn rei pai do povo naosera tanto elogia-lo, mas chama-lo pelo seu nome»?

4. «Emocionar o povo ace a sedic.ao»: a Academia, numdos empregos exemplares da palavra, recorda uma outra reaK-dade, a da plebe agitada, rebelde, ma. E como contraponto daconstatac,ao do amor fiel dos subditos pelo. seu soberano (acom-panhada por um inventario dos textos e das imagens que osublinham), os historiadores atenderam a essa especie de politi-ca pelo excesso que e a revolta. Do extenso volume da historiadas revoltas populares, ja antigo, atravessado por conflitos'deinterpretacjio, profuso e muito conhecido; gostariamos de reteraqui uma questao: a da cultura das revoltas e da sua possivelqualificacao como popular e poluica, Precisemos, antes demais, que as revoltas — entendidas quer como levantamentosarmados e duraveis de varias comunidades de habitantes, quercomo motins mais limitados no tempo, no espaco ou quanto aparticipate — nao dizem respeito universalmente a todo oreino durance os tres seculos da Idade Moderna. A cronologia

10 R. Chartier, «Du rituel au for prive: les chartes de mariagelyonnaises au XVIIe siecle», in Les usages de I'imprimi (XV-X.IX* siede), op. cit,,pp. 229-251.

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dos grandes levantamentos que atingem varias provincias ouareas extensas e claramente delimitada, num extreme pelarevolta dos Pitauds na Aquitania em 1548 e, no outro, pela dosBonnets de Rouge da Bretanha (1675) e pela dos Tard Avises deQuercy (1707). As sedic.6es mais modestas, muitas vezes inscri-tas no interior de rebelioes de envergadura, conhecem a rnesmaperiodizacao, extinguindo-se apos 1675- A unidade dessasrevoltas, particularmence densa no segundo e no terceiro quar-teis do seculo XVII, provem de duas caracteristicas comuns. Porum lado, o seu alvo e quase sempre o imposto fiscal do Estado,assuma ele a forma do alojamento obrigatorio dos homens deguerra, dos constrangimenros pela cobranca do imposto, daderrama ou da introducao de novos direitos que recaem sobrea circulacao de mercadorias ou sobre a venda do vinho e do sal.O caracter fundamentalmente antifiscal de tais revoltas revela--se de maneira brutal na designacao unica empregue paraestigmatizar oficiais de diligencias e soldados, cobradores esargentos, todos eles violadores dos privilegios comunitarios,todos eles considerados como «fiscais da gabela» ou, por vezes,como «cobradores de impostos indevidos». Por outro lado, asrevoltas da era classica podem ser apelidadas de «populares» nosentido de mobilizarem o conjunro das comunidades que elasagitam e de se apoiarem em solidariedades de vizinhanga, semfazer disringoes a nivel social: os fidalgos, os padres, os oficiaistern af a sua parte e os seus papeis, lado a lado com oscamponeses e o povo miudo da cidade, erguendo-se todos elescontra os intoleraveis atentados levados a cabo contra os direi-tos ancestrais 11.

Delimitadas no tempo, as revoltas sao-no tambem no espa-C.o. Poupam quase inteiramente a «Franc.a do Rei», capetingiae parisiense, obediente e submissa, e sao raras na Franc.afiscalmente protegida (certas regioes de Estados). Em contra-partida, envolvem vigorosamente e por repetidas vezes umaoutra Franca, disposta em aureola em volca da bacia parisiensee que compreende a Bretanha, a Normandia e o MacicoCentral, com as suas terras de revoltas constantes que sao

"Y.-M. Berce, Histoire des croquants, Paris, Seuil, 1986.

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Limousin, Perigord, Quercy, Rouergue, a que e necessarioacrescentat Guyenne e Gasconha. Nessa Ftanca das comunas edos senhores, das isengoes e das imunidades (autenticas ouimaginadas), as exigencias fiscais do Estado de fmanca emconstruc,ao sao sentidas por todos como agressoes odiosas,destruidotas das liberdades publicas12.

As tevoltas antifiscais (e, pot isso, antiestatais) do seculoXVII tern alicerces numa cultura dos costumes profundamenteenraizada. Esta fotnece-lhes a sua legitimidade, que e a justadefesa dos privilegios e dos direitos antigos contra as intromis-soes iniquas de quem pretende aboli-los. A revolta e assimjustificada por um direito popular, tacito, tradicional, de que orei e o garante e que permite o levantamento contra asnovidades opressivas. «Viva o rei sem aposentadoria», «Viva orei sem irnpostos indevidos», «Viva o rei sem gabela»: saoestas as palavras de ordem dos revoltados que fazem da uniaodo tei justiceiro e do respeito pelos costumes o fundamento dasua rejeicao de todos aqueles que violam as liberdades eenganam (ou roubam) o soberano. A cultura dos costumes, asrevoltas vao tambem buscar as suas formas rituais, inscrevendoas violencias nas praticas festivas e folcloricas (o charivari, oprocesso de carnaval, as execucoes simbolicas, as penalizacoesde escarnio) e fazendo uso de mascaras, de trajes de disfarce,de ritos de inversao13. As revoltas pertencem realmente aomundo da cultura «popular», na condic.ao de nao defmir estacomo uma cultura propria dos mais desprovidos por oposicjio ados notaveis, mas como um reportorio de motives e de com-portamentos que sao partilhados pelo conjunto da sociedade (oque nao significa que sejam pensados ou manejados por todosda mesma maneira). Populares, pois, essas revoltas antigas;mas, por esse motivo, serao mesmo politicas?

O seu desaparecimento apos 1675 leva a uma constatacjioparadoxal. As rebelioes antifiscais dirigidas contra os agentes

12 Sobre estas tres ..Francas* de inicios do seculo XVII cf. ] Cornette,.Fiction «-rialice de 1'Etat baroque (1610-1652),, in L'Eu* baroque, op.

cit., pp. 7-87. . n, ,nfi^ ^ Y . - M . Becce, op. cit., em especial pp: ^u?-^wo.

CAPITULO VII 201

do Estado moderno sucede, no seculo XVIII, uma contes-tagao tenaz e obstinada mas que nao recorre a violencia aberta,antes se volta para as demandas judiciais, tomando por alvo ainstitui^ao senhorial e, ocasionaimente, a dizima. De umaforma de protesto a outra, a geografia inverte-se, ja que a maisviva luta anti-senhorial se verifica numa Franca do leste, poucorebelde um seculo atras 14. Ora e esta contestacao — que ja naotern como adversario a novidade estatal mas o senhor local, oparoco dizimeiro, o rendeiro empreendedor —, que foi qualifl-cada como «politizac,ao da aldeia», como se, contrariamente, asgrandes revoltas do seculo XVII, — com a sua nostalgia daidade do ouro, a sua mitologia antifiscal, a sua pulsao miiena-rista, o seu unanimismo comunitario —, estivessem fora daesfera politica, que pateceria, deste modo, pressupor a exis-tencia de desafios realistas, a expressao clara de interessesantagonicos, o regulamento dos conflitos locais no interior doaparelho administrativo do Estado de direito e policial. Talvezesta defini^ao (implfcita) daquilo que pode ser consideradocomo «politico» no Antigo Regime tenha alguns laivos deanacronismo. De qualquer forma, permite distinguit com niti-dez a epoca em que a cultura «popular» fornece uma matriz asrevoltas lan^adas contra a nova ordem estatal e aquela em que ascontestacoes «politizadas», a escala da aldeia, do bairro ou dacorporacao, ja nao recorrem as formulas da cultura costumeira.

5. Dessa «politizacao» dos espiritos populares e possfvel teruma medida comparando os agravos apresentados aquando dasduas ultimas convocac.6es dos Estados Gerais, em 1614 e em1789- Tome-se como exemplo o bailiado de Troyes, relativa-mente ao qual se conservaram (e foram publicados) os 250cadernos paroquiais de 1789 e 11 cadernos de castelanias e 54actas de assembleias primarias redigidas em 1614 (dado que aconvocagao do Terceiro Estado se fazia entao em tres niveis;paroquias, castelanias, baiiiado). Analisados com a mesma gre-Iha-de rubricas, e com identico processo de contagem, os dois

14 E. Le Roy Ladurie, «Revoltes ec contestations rurales en France de1675 a 1788*, Annales E.S.C., 1974, pp. 6-22.

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conjuntos de documentos podem, pelas suas diferencas, indicar amudanc,a das expectativas dos camponeses de Champagne e, paraalem disso, a modificac.ao da sua representagao do mundo sociale do Estado politico15.

Em 1614, tres conjuntos de queixas cristalizam as esperanc,ascamponesas: as reclamagoes quanto ao funcionamento da justigae ao estatuco dos oficios, a expectativa de uma reforma religiosa,a lamentacao contra a fiscalidade real. Nas paroquias, estas tresrubricas representam, respectivamente, 10%, 17% e48,5% dosagravos, modificando-se ligeiramente as percentagens a nivel doscadernos de castelania elaborados por uma assembleia que reuniaos representantes das aldeias da zona e os habitantes da sede,com 22%, 22% e 28,5%. A parte da queixa antifiscal — narealidade, 60% das queixas primarias, ja que e necessarioacrescentar as recriminagoes contra o imposto as deploracoescontra as calamidades ou a injusta reparticao do solo, quetornavam o seu pagamento impossivel — diminui a medida quese avizinha a convocacao. A sujeicao do quotidiano torna-sernenos acentuada para os habitantes desses pequenos burgos, quesao as sedes das castelanias, e permite-lhes conceder raaior lugardo que os rurais a preocupacao religiosa e a reforma da institui-cao judicial. Ao lado destas tres preocupac.6es (fiscal, crista ejudicial), o resto pouco conta, e em particular o agravo anti-senho-rial: 3,2% noscadernosdascomunidades, 3,9% nosdascasteianias.

Avancemos para cento e setenta e cinco anos mais tarde. Em1789, a relacao entre as rubricas sofre uma forte mudanca.E certo que a queixa fiscal e ainda a primeira, com 32,8%, e,sobretudo, e quase universal (99,5% das paroquias queixam-sedos impostos directos, 95% dos impostos indirectos), mas emseguida vem com urna importancia nova as reivindkacoes anti--senhoriais, presentes em 8 de cada 10 caderno, constituindo10,7% do conjunto das queixas, e 12,5% com as dirigidascontra a dfzima; seguem-se entao as queixas relativas a justica

15 Estes dados sao tirades de uma pesquisa da Ecole des Hautes Etudesen Sciences Sociales (investigacoes de J. Brancolini para 1789, de R. Chattiere J. Nagle para 1614), cf. Representation et vouloir politique, Autour des EtatsGeneraux de 1614, sob a direccao de R. Chattier e D. Richet, Paris, Editionsde 1'Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, 1982.

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e aos oficios (10%), ao passo que as que visam o clero nao vaoalem de 5,8%. De uma consulta para a outra, os agravos contraaquilo que depende mais directamente do rei — o imposto e ajustica — permaneceram aproximadamente no mesmo nivel; emcontrapartida, a preocupacao religiosa cedeu terreno, ocupadopelas reinvidicacoes contra o senhor ou o dizimeiro.

Como entender estas diferencas e, antes de mais, o recuo daqueixa religiosa? Em 1614, paroquias e castelanias exprimem aconsciencia aguda de urn subenquadramento eclesiastico. Enrai-zado em temores ansiosos, como o de morrer sem poder recebero derradeiro Sacramento, este sentimento faz desejar a fixacaodos parocos, a multiplicacao dos vigarios, a celebracao regular damissa, maior atencao e mais apoio aos fieis, atraves da pregagaoe da catequese. Aflora igualmente a consciencia da falta dequalidade moral e intelectual do clero, apos as Guerras deReligiao. Numa epoca de fragmentacao e de desordem religiosa,as comunidades esperam dos clerigos que eles restabelecam aordem e a unidade na fe. Para tanto, os cadernos poem ,emrelevo a diferenca fundamental entre o homem de Deus e osleigos, diferenca que deve ser traduzida pelo habito (a batinacomprida e o barrete quadrado), pelos costumes — em especial aascese sexual — e pela instrucao.

A reforma catolica modela este padre com um estilo novo,solidez de formacao e irrepreensivel quanto aos costumes.Os cadernos registam o facto: enquanto as queixas contra ascondutas dissolutas do clero atingiam 9,5% nas castelanias e 7%nas paroquias rurais, em 1789 representam menos de 1%,percentagem expressa em menos de um tergo dos cadernosprimaries. Os fieis ja nao tern razao de queixa do seu clero e e ocontrario que e verdadeiro. O olhar negative que os paroquianoslangavam em 1614 sobre o seu paroco tornou-se aquele que osparocos de finais Jo Antigo Regime lancam sobre o seu rebanho.Encontram-se af os mesmos tragos (a grosseria, a embriaguez,a imoralidade), testemunhando que o distanciamento, desejadopelas proprias populates em 1614, existe a tal ponto que oparoco dos fins do seculo XVIII se tornou quase um estranho noseio do mundo rural.

Relativamente a situagao material do clero, 1789 traz a

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novidade das queixas de um vigor inedito contra a dfzima. Em1614, os cadernos avancam dois principles: a Igreja deve viverdo que tern de seu, donde a preocupacao de melhor gestao dosbens temporais eclesiasticos; a Igreja deve viver do impostoinstituido pela Biblia, donde a ausencia de agravos contra adfzima. A hostilidade das comunidades vai contra as taxascuriais reclamadas por ocasiao dos sacramentos ou dos enterros econtra as pressoes exercidas pelos parocos junto dos moribundos,dado que a tradic,ao camponesa os autoriza a receberem ostestamentos. Em 1789, pelo contrario, manifesta-se a recusa dadizima tal como e cobrada. E certo que a queixa tern pouco peso(1,7%), mas e frequente, e encontra-se em perto de um em cadadois cadernos. Contudo, a critica nao significa vontade desupressao: apenas 15 cadernos exigem uma abolic.ao pura esimples, os outros ou se queixam dos delitos dos dizimeiros oudo coefkiente da dizima, ou propoem uma transferencia do seudestine (na grande maioria das vezes em beneffcio dos parocos),ou, ainda, requerem a supressao das dizimas especiais. Mais doque um sentimento anticlerical, os cadernos camponeses revelamaqui a aspirac.ao das populates a participarem nas decisoes queIhes dizem respeito. A dizima nao e, na esmagadora maioria dasparoquias, posta em causa no seu principio, mas as comunidadesgostariam de poder fixar as suas conduces de lancamento e deutiliza^ao, ou pelo menos discutir o montante. Em 1614, adizima, apesar do seu peso, e aceite, pois o essencial esta naexpectativa de uma Igreja mais presente-, mais exemplar; em1789, quando o clero ja nao e o alvo de numerosos agravos, acobranc.a da decima torna-se o objecto de uma reforma desejada.

O mesmo e valido para os dirextos senhoriais. No dealbar doseculo XVII, os cadernos das paroquias do bailiado de Troyes naoatribuem senao um pequeno lugar ao dominio senhorial e naoatacam nem o principio da cobranga, nem mesmo o seu peso. Ascomunidades deploram essencialmente a cac.a destruidora dascolheitas, as usurpac,oes de bens comunais e a coacgao queacompanha a cobranga dos direiros devidos ao senhor. Actuam,pois, em pleno as representac,des da sociedade das ordens e dosestados que justiflcam os direitos e os privilegios do senhor, coma condic.ao de ele cuniprir a sua func,ao « natural* de defesa e de

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proteccao — e talvez tambem o papel desempenhado pelosoficiais senhoriais no processo de consulta, que os coloca emposic.ao de influir sobre os agravos dos camponeses. Em 1789, ascoisas ja nao se passam assim: 82% das paroquias avanc.amrei vindicates contra a instituigao senhorial.- As prerrogativasmais amaldigoadas sao as que se prendem com a justiga senhorial(16,3% das queixas dessa rubrica), seguindo-se depois a hostili-dade em relacao aos direitos em geral, atacados na sua naturezaou na sua forma de cobranca (11,4%), a recusa dos tombos e daacc,ao dos feudistas (11,1%), as queixas contra o censo (9,2%), odireito de cac,a e os pombais (7,4%), os direitos banais (5,9%),as corveias (5,7%), os laudemios e vendas (3,7%). A frequenciado aparecimento das queixas pouco modifica esra escala daaversao, deixando a cabeca a justica, criticada em metade dasparoquias, colocando em seguida o censo (41% das paroquias),as corveias (25%), o direito de cac.a (24%), os tombos (23%), osdireitos banais (22%).

Perante os direitos, tres aritudes em 1789: a primeira,maioritaria, e reformadora, uma vez que se trata, em 45% doscasos, de «resgatar», «transferir», «reformar», «diminuir»,«simplificar»; aquem desse mimero, 32% das queixas naopassam de simples reclamagoes que nao encerram projecto al-gum; finalmente, a vontade de abolicao apenas°e expressa em21% das reivindicacoes. Ela so e frequente em tres dominios: ascorveias (rnais de metade das reclamac.6es a este respeito expri-mem um desejo de supressao pura e simples), o direito de cac;a eos direitos banais, sendo esta talvez a verdadeira hierarquia dosodios camponeses na regiao de Champagne nas vesperas daRevolucao. Porem, fora destes casos, a contestacao anti--senhorial aflrmada em 1789 nao e um vento de revolta abolicio-nista, mas antes uma solida e obstinada vontade de reforma,largamente partilhada e que poe em causa, a diversos niveis,todos os atributos do priviiegio dos senhores da terta. Tambemaqui, a expectariva de uma protec^ao (a do senhor contra ossoldados ou o fisco real) sucedeu a aspiracao a negociar, por meiodo rei e dos Estados, uma repartigao rnais justa dos encargos edos direitos.

Mas o inimigo principal, em 1614 como em 1789, e o im-

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posto real. A sua critica constitui a prirneira das reivindicagoes,pelo seu peso e pela sua unanimidade. Quase todas as paroquias,pot ocasiao das suas consultas, tern algo a dizer sobre o fardofiscal, De uma para a outra , o perfii das queixas modificou-seum pouco. Em 1789, os impostos directos sao os mais aracadose o essencial reside na reivindicagao igualharia, presence nas suasduas vertentes: a recusa dos privilegios fiscais, enconrrada em74% dos cadernos, e a reivindicagao da igualdade fiscal, recla-mada por 97% das comunidades. For outro lado, as censurasatingem a quase totalidade dos impostos existentes, mas tresdeles sao particularmente visados: a derrama, a vintena e acorveia real. Em 1614, a sensibilidade era diferente, dirigidacontra os aumentos da derrama, os processes de langamento dataxa e de verificagao das contas, a multiplicagao das isengoesconsentidas as cidades, aos falsos nobres, a multidao dos oficiais.A queixa nao se concentra de maneira alguma na desigualdadeplebe/nobreza, fulcral em 1789, mas orientada contra a extensaoindevida ou a usurpac.ao, por parte de quern nao tern o direitode um privilegio, considerado, inteiramente legitimo quandotern como contrapartida um servigo de defesa ou de>protecgao.Cento e setenta e cinco anos mais tarde, as comunidades dobailiado de Troyes trocaram esta hostilidade as isengoes —compativel com o respeito pelos privilegios justificados —, pelovoto, novo, da igual partilha da obrigagao fiscal.

A cornparac.ao das queixas exptessas em 1614 e 1789 pora adescoberto as transformagoes da cultura-politica popular — nocaso, camponesa — nos dois ultimos seculos da antiga socieda-de, entre o tempo das revoltas faiscantes e o das contestagoesprocessuais? E precise ter cuidado, pois a regiao de Champagnenao e todo o reino e o discurso dos cadernos de agravos surgenuma circunstancia excepcional e inscreve-se em textos redigidospor outros que nao aqueles que os enunciam. Contudo, oscontrastes entre os dois conjuntos de queixas atestam claramenteas diferengas entre duas maneiras de pe.nsar a sociedade na suarelagao com as institutes — o que talvez seja uma outradefinigao de politico. Em 1614, os efeitos das Guerras deReligiao sao ainda sensivels e, numa conjuntura de reconstrugao,as comunidades protestam contra as primeiras exigencias do

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Estado de finanga. A miseria material, real ou empolada poucoimporta, vem juntar-se o sentimento agudo de um abandonomoral e espiritual. Dai o respeito pelos enquadramentos tradi-cionais — por exemplo, o do sistema senhorial — e o desejo deuma cristianizagao, que e tambem clericalizac.ao, da sociedade.O ideal que traduzem os cadernos e entao o de tomar a cargo ocorpo social, por parte das autoridades, seculares e espirituais,as quais, em troca da defesa que proporcionam, podem desfrutarde direitos e privilegios considerados legftimos. Em 1789, aaspiragao e bem diferente, muito orientada para a critica daquiioque outrora era aceite de per si e para a exigencia de se tomar emconsideragao a opiniao popular. Em dois seculos, a Igrejapos-tridentina e a monarquia administrativa trouxeram a almeja-da seguranc.a — paga com o prego de pesados sacrificios,financeiros e culturais. E, pois, uma sociedade protegida eabrigada, enquadrada e pacificada, que debate reformas suscepti-veis de realizar a concordancia ente os seus desejos e a ordem domundo. As duas preocupagoes de utilidade social — a reformada cobranga senhorial e da decima, por um lado, da justigaatraves da igualdade fiscal, por outro —, sao as principalsreivindicagoes do pedido, senao de um controio, pelo menos deuma partilha das decisoes que regulam a existencia comum.Atraves do agravo apresentado contra «objectos particulares eproximos», segundo a expressao de Tocqueville a proposito doscadernos camponeses, le-se o acto de por em causa, ausente doisseculos antes, as instituigoes que gerem a sociedade. E certo quea sua existencia nao e tadicaLmente contestada, mas o seufuncionamento e pensado como devendo sofrer correcgoes pro-fundas, em conformidade com as propostas vindas do amago doreino. Talvez ai resida a politica, ou melhor, a politica popularno crepiisculo do Antigo Regime.

6. Mas existe outra maneira de entender a politizagao dopopular. Nos tempos do abalo da monarquia, diferentes gostos,habitos e procedimentos podem encontrar-se atravessados pelosdesafios do momento, que serao designados como politicos, eserem assim investidos de uma nova fiingao, que transforma os

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seus conteudos e desloca os seus objectos16. Sao estas transfe-rencias de pratica de um dorrunio ancigo (religioso, juridico,costumeiro) para o terreno politico que caracterizam a Liga e aFronda, sem diivida em maior medida do que o seu suposco ra-dicalismo. Afinal, a Liga talvez nao passe da expressao ultimade uma ideologia comunal e burguesa a antiga17, e.a Frondanada mais do que uma luta de partidos e de clientelas que estaode acordo no essencial, que e a aceitaclo da monarquia absolutae administrativa 18. Mas uma e outra conhecem, em sentidosdiferentes, uma «politizacao» viva daquilo que, antigamente,pertencia e era proprio do exercicio da devocjlo (por exemplo,durante a Liga, as procissoes e peregrinates)19, do regozijocivico (por exemplo, em ambos os casos, os programas festi-vos), ou ainda, da cultura do impresso (com o reemprego,durante a Fronda, pelas mazarinadas, de todos os generostextuais e tipograficos de grande circulac.ao e de leitura pii-

blica)20.Esta politizac.ao das formas e das condutas marca, no piano

factual das crises da monarquia, a transferencia de maiorenvergadura que realiza a passagem de uma organizacao forte-mente religiosa do corpo politico e social ao primado afirmadodo Estado e da sua razao. Ela produz a mobilizacao do povo(sobretudo citadino) — elevado para um terreno que nao Ihe ehabitual, nem sequer essencial (o das lutas peia dominacao)— pela repeticao de gestos correntes com uma carga designi£Icac,ao ineditas. A entrada do povo-de Antigo Regime napoiitica devera ser pensada menos como o resultado de opc.oesideologicas expressas com grande clareza ou de escolhas deter-

16 M. de Certeau, «La formalite des pratiques. Du systeme religieux i1'echique des Lumieres (XVIIe-XVIIIe siecle)», 1973, in L'ecriture de I'histoire,Paris, Gallimard, 1975, pp. 153-212, em especial pp. 164-1"/1.

17 R. Descimon, Qui etaient les Seize? Mytbes et realties de la Ligueparisienne, 1585-1594, Paris, Klincksieck, 1983.

18 H. Kossmann, La Fronds, Leyde, 1954.19 D. Crouzet, «Recherches sur les processions blanches, 1583-1584»,

Histoire, Economies, Societes, 1982, 4, pp. 511-563.20 C. Jouhaud, Mazarinades: la Fronde des mots, Paris, Aubier, 1985, e

a nota critica de M. de Certeau, «L'experimentation d'une methode: lesmazarinades de Christian Jouhaud», Annales E.S.C., 1986, pp. 507-512.

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minadas pelo inreresse social, do que como o efeito das transfe-rencias, manipuladas ou espontaneas, das praticas que Ihe saohabituais. Donde, indubitavelmente, a grande dificuldade emdiscriminar com nitidez.o que e politico daquilo que nao o e;donde, igualmente, a complexidade de comporramentos, dedispositivos, de objectos que impoem a politizacao, perpetuandoalgo do seu uso primeiro (folclorica, devota, judicial, etc.) e quepara uns sao imediatamente decifrados ou vividos como umatomada de partido, de posigao, enquanto para outros conservamo seu significado original.

7. Setembro de 1758: «O Senhor Mauriceau de la Motte,oficial de diligencias do hotel, cerebro inflamado, fanatico,e critico do governo, homem de cinquenta e cinco anos pelomenos, e que havia oito meses desposara a. sua amante, foiavisado, ha um ou dois meses,. para ir jantar numa estalagem, narua Saint-Germain-rAuxerrois, numa mesa de hospedes paradoze pessoas. Af, tendo levado a conversa para o terrivel caso deDamiens, ralou com arrebaramento sobre a maneira como tinhasido instruido o processo, contra o governo e mesmo contra o reie os ministros.» Denunciado, preso, encarcerado na Bastilha,submetido a interrogatorio, Moriceau de la Motte, acusado deter redigido pasquins hostis Jao rei e ao Parlamento,- e condenado«a retrarar-se publicamente diante da porta da igreja de Paris,de cabeca descoberta, em camisa, de corda ao pescoco, com umatocha acesa, e levando escrito a frente e arras: «autor depropositos sediciosos e atenratorios da autoridade real, etc., paraser depois enfbrcado na Praca de Greve, ficando os seus bensconfiscados.» O ritual da punicao para quern lesa o soberano,com palavras ou com actos, efectua-se nas formas habituaisiO espectaculo do castigo exemplar, deve, ao mesmo tempo,manifestar o poder absoluto do rei e fortalecer o respeito detodos pela sua intocavel pessoa. No entanto, nesse dia 6 deSetembro de 1758, o dispositivo avaria-se: «Havia uma grandeafluencia de povo a sua passagem e na Praga de Greve. Unsdiziam que nao se deve de maneira nenhuma matar as pessoaspor causa de palavras e simples escritos; outros esperavam queele obtivesse perdao; mas quis dar-se o exemplo com um

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burgues de Paris, homem que possuia um cargo, para reprimir odesregramento de um numero de fanaticos que falam do governocom demasiado atrevimento.» 21.

Podera considerar-se esse «desregramento» como o sinal deuma «politizacao popular» diferente da que e cransmitida peloscadernos de agravos camponeses — pratica, argumentadora,processual — e, antes deles, pelas acc.6es intentadas pelascomunidades contra senhores, rendeiros e dizimeiros? Sabe-seque foi colocada a hipotese de uma possivel dessacralizagao damonarquia, desinvestida da sua simbolica antiga nas ultimasdecadas do Antigo Regime — em especial sob o efeito da leituramultipiicada dos libelos e satiras que estigmatizam a sua imora-lidade e o seu despotismo22. De facto, os traces presen-tes na execuc.ao de Moriceau de la Motte nao sao singulares.A partir de meados do seculo (e talvez, mais precisamente, apartir do atentado de Damiens, cujo suplicio marcaria a ultimaexibic,ao do poder na sua plena pujanga, mas num momento queja conhece o esboroamento da crenga universal na transcendenciaregia), deixam de ser raros os ataques contra o rei, a sua pessoa'ea sua autoridade, o seu corpo sensivel e o seu corpo politico.1763, Fevereiro: «A 23 deste mes foi colocada a estatua equestredo rei sobre o pedestal que estava na nova praca, em frente daponte giratoria das Tulherias. Essa estatua levou tres dias paravir da oflcina, que ficava em Roule. Havia muita gente a assistira mecanica dessa operagao... O senhor governador de Paris, opreboste dos comerciantes e os almotaces;' que estavam-debaixode toldos; a senhora marquesa de Pompadour, o senhor duquede Choiseul, o marechal principe de Soubise e outros. Porem,como na afluencia do povo ha sempre provocadores e pessoas malintencionadas, diz-se que foram presas, quer no caminho, querna praga, varias pessoas que estavam a dizer coisas impropriassobre o facto de a estatua ir muito devagar. Um dizia que o reiia como o levavam; que seria dificil faze-lo ir alem do hotel dePompadour; que, para descer do pedestal, se encontrava entre

21 E. J. F. Barbier, Journal d'un bourgeois de Paris sous k regne de LouisXIV, Paris, Union Generate d'Editions, 10/18, 1963, pp. 279-280.

22 R. Darnton, Boheme litteraire et Revolution. Le monde du tivre au XVIIPsiecle, Paris, Gallimard/Le Seuil, 1983.

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quatro gruas, numa alusao aos ministros, e varies.outros discur-sos maldizentes.» 23.

Em 1768, no auge da politica de liberalizacao do comerciodos cereais, os ditos registados nos pasquins sao ainda maismaldizentes: «Com Henrique IV passou-se por uma carestia depao ocasionada pelas guerras mas entao tinha-se um Rei; comLuis XIV passou-se igualmente por varias epocas de carestia depao, produzidas ora por guerras, ora por uma penuria real tendopor causa a intemperie das estacoes, mas tinha-se ainda um Rei.No tempo presente, nao se pode atribuir a carestia do pao nemas guerras, nem a uma real penuria de trigo, pois nao se tem Reinenhum, porque o Rei e negociante de Ttigo». Mesmo se aviolencia do texto parece excepcional, e nao necessariamentepartilhada por aqueles que o leram, o certo e que em 1768 variaspessoas sao presas por «ditos condenaveis contra a pessoa dorei» 24. Por fim, em 1774, durante a doenca do rei, um homemteria declarado, na rua Saint-Honore, no dizer do livteiro Hardy:«O que e que isso me importa? Nos nao poderfamos estar piordo que estamos» 2S.

Esta distancia estabelecida em relacao ao rei sagrado etaumaturgo atesta as fissuras que sacodem todo o edificio antigodo «fazer-crer» politico. Elas surgem na critica crescente asexecucoes publicas, nos pedidos de perdao vindos,da multidao,e, ocasionalmente, na sabotagem dos instrumentos que infligema punicao ddTrei26. Inspiram, mesmo naqueles que permanecemsubditos fieis, respeitadores do seu principe, uma desconfiancaarisca relativamente a todas as autoridades, policiais e militares,administrativas e corporativas, judiciais e eclesiasticas. «O quee que isso me importa?» dizia o homem da ma Saint-Honore.Para muitos, o sentimento de incomensuravel distanciamentoque separa a sua vida quotidiana do mundo dos poderosos fleaassinalado por uma Vontade obstinada de independencia. Menetra,

23 E. J. F. Barbier, op. at., pp. 301-302.24 S. L. Kaplan, Le pain, te peuple et le Roi. La bataille du liberalisms sous

Louis XV, 1976, Paris, Librairie Academique Perrin, 1986, pp. 218-219.25 Cirado por A. Farge, La vie fragile. Violence, pouvosrs et solidarity a

Paris au XVU1* stele, Paris, Hachetcte, 1986, p. 205-26 Ibid., pp. 211-218.

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o vidraceiro parisiense, escreveu em seu lugar, enunciando —por detras de uma lealdade de conformidade, e talvez de sin-cendade — o desaflo permanence face a todos os que pretendiamvigiar e punir, disciplinar e constranger as existencias populares.Para escapar as autoridades minuciosas, ousadas, inoportunas, eprecise saber usar de astucia, aprender a arte de evirar e, as vezes,resistir27. E assim afirmada, no caracter imediato do gesto, umamoral polftica bem secular, emancipada das ades5es antigas asrepresencagoes da soberania, e onde imperam a preocupagao de simesmo, a defesa do interesse proprio (que pode juscificar cabalas,greves ou emocoes), e o desfrutar da liberdade. O que e um mododiferente de estar na politica.

8. Era uma vez um rei que «tinha uma corc.a branca a qualdera de comer e que gostava muito dele». Um dia, o rei «disseque queria mata-la, disparou sobre ela e feriu-a. A corga correupara o pe do rei e fez-lhe festas; mas ele fe-ia afastar-senovamente, disparou uma segunda vez e matou-a. Isto foiconsiderado muito cruel: e ainda se inventam historias seme-Ihantes sobre passaros que ele possui»28.

O pressagio e mau: anunda uma natureza bem feroz etempos ruins para os passaros, as corgas e os povos. O crimenao teve lugar numa qualquer floresta das Ardenas ou numreino mitico, mas no parque de La Muette, em 1722. O rei,menor, ainda nao reina. A sua maioridade, como em codas asregencias, e esperada com impaciencia,- mas a sua crueldadecausa apreensao, como se fosse portadora do anuncio dasdesgragas fiituras do Estado e dos seus subditos. Da fabula, amoral e dupla. Por um lado, da a ler a forga perpetuada derepresenta^oes antigas, enterradas, que decifram a ordem dopolitico com as chaves fornecidas por uma cultura habitadapelos signos, pelas correspondencias, peias alegorias. Os produ-tores das imagens dos faustos regies saberao apoderar-se delas,

27 Journal de ma vie. Jacques-Louis Menetra, compagnon vitrier a Parisan XVIII* siecle, apresencado por D. Roche, Paris, Montalba, 1982,pp. 389-394.

28 E. J. F. Barbier, op. at., p. 57.

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para as desviar, colocando-as ao servico da demonstracao dasoberania, mas esta perdura tambem numa auconomia que atorna leitora dos devires do Estado. Por ourro lado, a hiscoriado jovem pn'ncipe e da corca sacriflcada indica que a polfticapopular de Antigo Regime nao e apenas adesao ao poderexibido, protestos contra um destine infeliz, ou potencialparticipagao num novo espaco publico. De modo duravel, elapensa o destine cornum como parte de uma ordem global domundo que so se transmite aqueles que sabem compreende-lo.

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CAPITULO VIII

Constru^ao do Estado moderno e formas culturah.Perspectivas e questoes

Mais do que uma si'ntese, desejo propor neste capftulo umaleitura do coloquio «Cultura e ideologia na genese do Estadomoderno» *, feita a partir de um ponto de vista particular — ode um historiador da Epoca moderna mais familiarizado com aspraticas culturais do que com as formas politicas.

Para evitar qualquer ambiguidade, pretendo enunciar des-de ja a definicao que aceito de «Estado moderno» e indicar osmecanismos que me parecem construi-lo, no longo prazo. Exis-tem dois aspectos que talvez possam caracterizar a «modernida-de» do Estado na Europa Ocidental na epoca em que, progressi-vamente, se diferencia dos «Estados feudais» (para retomar aexpressao utilizada por Marc Bloch). O primeiro e o monopoliofiscal que centraliza o imposro e da ao soberano a possibilidadede retribuir em dinheiro, e ja nao em terras, aos seus fieise servidores. O segundo e o monopolio estabelecido sobre a vio-lencia legftima que atribui ao rei a forga militar, tornando-osenhor e garante da pacificagao da sociedade. E certo que esrasduas monopolizaooes nunca chegam a realizar-se completamenteentre os seculos XI e XVII: a par do imposto real, e emconcorrencia com ele, subsiste a tributac_ao senhorial, eclesiasticaou municipal, e apesar dos progresses da ordem imposta pelo reiperduram os exercitos dos nobres, as vingangas familiares, asviolencias reciprocas. Por outro lado, esses dois monopolies,fiscal e militar, nao sao certamente suflcientes para definiro Estado moderno, que supoe outras rransforma^oes — por

* Conclusao do encontro publicado com o ti'tulo: Culture et ideologic deI'Etat moderne, Roma, 1985 (cit. nota 4 do Capiculo VII). Conservou-se o seucarater circunscancial e e aqui proposco como um programa de trabalho nocmzamento da sociologia cultural com a historia poiicica.

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exemplo, a consdencia da sua propria historia e a organizacaodos instrumentos necessaries para que ela seja escrita, conserva-da, transmitida. Apesar destas restricoes e destes matizes, pareceser possivel propor como definicao minima do Estado moderno:a instauracao progressiva da fiscalidade piiblica e de uma ordemgarantida pelo poder de comando do soberano.

Dois mecanismos principais conduzem a uma tal mutacao doEstado. For urri lado, esta pressupoe que num dado espac_o,pouco a pouco defmido como nacional, se estabeleca a hegemo-nia de uma casa, de uma dinastia, de uma soberania, A genesedo Estado moderno pode ser deste modo entendida como umacompeticao entre varies pretendentes a hegemonia — e o quesucede em Franca no infcio do seculo XIV, com os reis de Francae de Inglaterra, os duques da Borgonha e da Bretanha, o condeda Flandres — alcancada pela vitoria de um deles. For outrolado, paralelamente a esta primeira evolugao, uma segundamodifica a propria forma da dominagao no interior da unidadeque se torna hegemonica, assegurando ao soberano um monopo-lio pessoal sobre os instrumentos, fiscais ou militares, de contro-lo social. Tornado possivel pelo antagonismo existente entre osgrupos socials mais poderosos, tal equilibrio de tensoes, quepermite o estabelecimento do poder do principe, deve serreproduzido para perpetuar em seu proveito a forma pessoal domonopolio de dommacao. Essa dupla evolucao e mais tendencialdo que absoluta e so encontra as formas mais acabadas nasgrandes monarquias nacionais, francesa ou inglesa. Contudo, ascaracteristicas ineditas que fornecem ao Estado estas duas evolu-coes encontram-se, com modalidades proprias, nas unidadespoliticas mais diminutas — tal como as cidades-estado — oumais vastas — como o Imperio — e nos Estados que nao saomonarquicos mas comunais ou republicanos.

Ter-se-a certamente reconhecido nesta maneira de pensar aconstrucao do Estado moderno e a evolucao socio-poh'tica doOcidente, entre os secuios XIII e XVII, o modelo global decompreensao proposto pot Nobert Elias em 1939 no segundotomo do seu livro Uber den Prozess der Zivtlisation. Mas poderaigualmente observar-se que os dois aspectos que nesta perspecti-va deflnem o Estado moderno sao aqueles que, para Marc Bloch,

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num livro publicado nesse mesmo ano de 1939, La societe feodale,estao na origem da «reconstituicao dos Estados» no decurso dosegundo periodo feudal, a saber, a instauracao de uma ordemsocial pacificada pelos poderes temporais, que assim dao corpo asaspiracoes exptessas pelas associates de paz, conciliares oujuradas, e a emergencia da supremacia financeira do principe,senhor fundiario mas tambem colector de impostos. Esta aborda-gem talvez possa evitar as discussoes, muitas vezes estereis, quepretendem fornecer defmigoes invariaveis de categorias univer-sais, com base nas quais se estudariam as modalidades historicasdiversas — por exemplo, «o Estado» ou «a burocracia». A pers-pectiva deve ser inversa e reconhecer, antes de mais, na suairredutivel especificidade, as formas originais, sucessivas oucontemporaneas, tanto da reparticao e do exercicio do poder,como dos equilibtios sociais em que se baseiam. O principalobjecto do ptogtama de investigacao proposto consistiria emcaracterizar, no seguimento de Marc Bloch ou de Norbert Elias,essa forma politica original, que podera ser qualificada de Estadomoderno, existente no Ocidente entre a epoca dos principadosterritoriais ou «Estados feudais» e a epoca dos Estados contem-poraneos da sociedade industrial. Mais do que o acordo sobrea definicao universal de uma categoria, importa fazer o diag-nostico comum que identifique uma delimkacao especffica, umequilibrio proprio, uma caracteriza^ao original do exercicio dopoder entte os secuios XIII e XVII.

A partir dai, o material riqufssimo das comunicacoes ediscussoes do coloquio pode ser ordenado em totno de tresquestoes: quais as condicoes culturais requeridas para se desen-volver e se perpetuar o Estado de flnanca e de justica, absolutee hegemonico? Quais as suas expressoes ideologicas, rituais esimbolicas? Quais os efeitos, sobre as formas de sociabiiidade e aeconomia psiquica dos individuos, destas transformacoes quedefinem a forma propria do poder do Estado?

Examinar as condicoes culturais do Estado moderno e, paracomecar, interrogar os lacos existentes entre o seu desenvolvi-mento e os progresses da alfabetizacao das populacoes. A questaoapresenta duas faces, e supoe uma primeira abordagem queestabeleca uma medida global, uma conjuntura longa, uma

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classificagao dos mareriais escritos produzidos pelos Estados— isto e, os principes, os juristas, as suas chancelarias, os seusagentes nas provmcias. Para tanto, e necessario tomar emconsideragao as rupcuras que afectaram os suportes materials ouos locals de produgao da «escrita de Estado», essa escrita dosrepresentantes da autoridade publica ou a eles dirigida. Tresgrandes rupturas modificaram profundamente a rnaneira como oEstado da a conhecer as suas vontades ou regista as dos seussubditos: a que substitui a declaragao oral pela fbcagao escrita(e o caso de Inglaterra, DOS seculos XII e XIII, com a multiplica-53.0 dos royal writs}, a que substitui o recurso ao notario pelodesenvolvimenro das chancelarias (o que representa uma evolu-gao essencial das cidades-estado italianas, tanto pela constituigaodas documentagoes administrativas como pela redacgao das cro-nicas), e por fim a que faz recuar o manuscrito perante o textoimpresso, alterando a escala da circulagao dos documentosoficiais e da literatura de justificagao e tambem dos escritoscriticos denunciadores do Estado moderno nos seus abusos ounos seus fundamentos. •- :

Estas novas praticas, escalonadas entre os seculos XII e XVI,nao devem fazer esquecer as resistencias tenazes das formasantigas de comunicagao e de administragao. Assim, na Inglaterrados seculos XU-X1II, apesar dos progresses quanto ao dominio daleitura e da escrita, mesmo em latirn, entre os cavaleiros e osoficiais do rei, apesar do constante recurso as cams, a palavraouvida e o gesto visto permanecem a expressao essencial dopoder de comando e de justiga. Mais tarde, mesmo nos Estadosonde os escritos sao familiares, o grito publico continua a sero primeiro meio de publicagao das vontades do principe. Alias,nas monarquias do seculo XVII, nao sao mobilizadas todas aspontencialidades do impresso para o servigo da administragao,nem para a unificagao das informagoes necessarias ao gbverno,nem para a reprodugao e divuigagao dos documentos reunidos

pelos que o exercem.Por outro lado, e necessario reconhecer a estreita imbricagao,

na escrita de Estado, entre o simbolico e o instrumental. Apresenga multiplicada ou monumental dos escritos e sempre, emsi mesma, a raarca de uma dominagao para todos tornada visivel.

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E o caso dos writs ingleses, investidos de uma forga significanteindependentemente do seu texto, pois o selo regio que osacompanha e o sinal, por excelencia, da soberania. O documentode Estado rem aqui um estatuto analogo ao de numerosas cartasprivadas, recebidas antes de mais como objectos simbolicos, enao como marcas documentais. E, igualmente, o caso dosprogramas epigraficos das cidades italianas nos seculos XV e XVI,onde o aparato das inscrigoes deve ser considerado quer como aafirmagao — legivel ou indecifravel — de uma dominagao, quercomo multiplicagao de textos de celebragao e legitimagao grava-dos para serem necessariamente lidos.

Por flm, qualquer analise da escrita de Estado entre osseculos XII e XVII deve ter em conta a mistura do publico e doprivado que caracteriza a sua produgao, a sua conservagao e osseus uses. O mesmo ja sucedia com os recenseamentos romanos;a indecisao da partilha entre publico e privado — talvez ausentedas mentalidades antigas — confere ambiguidade a operagoescomo a redacgao dos costumes, e da um estatuto simultanea-mente estatal e pessoal a documentagao administrativa dasmonarquias de Antigo Regime, Sera, portanto, necessario exa-minar de perto as politicas arquivisticas dos Estados modernospara compreender os criterios que Ihes permitiram discriminar oque deve ser conservado e o que pode ser destruido, e tambem oque resulta propriamente da continuidade dinastica — logoestatal — e o que pertence, privadamente, aos servidores doEstado. Se e legitimo associar o desenvolvimento do Estadomoderno ao recurso crescente ao escriro (manuscrito e, depois,impresso) na administragao dos homens e das coisas, e tambemnecessario sublinhar vigorosamente que essa ligagao se operasegundo modalidades especificas, que nao sao as dos EstadoscontemporaneoSj encontrando resistencias por parte das antigasmaneiras de pensar e de mostrar o poder.

Medir a produgao da escrita de Estado implica que se megamigualmente as competencias culturais das populagoes, agentes ousubditos do Estado, que exercem ou apreendem o poder decomando e de justiga por meio de textos que se destinam a serlidos. Para tal, e precise identificar as distribuigoes desiguais (deacordo com os periodos temporais, com as zonas geograficas,

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com os estatutos socials) das capacidades de leitura e de escritatal como sao encaradas, em termos macroscopicos, pelos estudossobre alfabetizac,ao construidos a partir de um indicador ambi-guo — a capacidade para assinar — que delimita uma populac.aode leitores que nao sabem todos escrever, longe disso, e que naotern em conta o numero de leitores que, nas sociedades deAntigo Regime, nao sabiam assinar. Para alem destas identiflca-C.6es de conjunto, devem ser analisadas as praticas culturais quese apoderam de modo diferenciado da materia escrita. Forexemplo, numa sociedade familiarizada com a leitura silenciosa,quais as razoes e as ocasioes em que e ainda necessaria a leiturapublica, em voz alta, dos textos emanados do Estado? Trata-sede fazer a recolha dos dados que podem indicar evolucoesimportantes nas taxas de alfabetizac,ao, bem como diferengasgeograficas que nao deixam de ter efeitos nas possibilidades e nasmodalidades da acc.ao do Estado, tao diferentes entre os Estadosda Europa da mais elevada alfabenzac.ao (Inglaterra, ProvmciasUnidas, Paises Baixos, Franca), os da Europa mediterranica,muito aquem na alfabetizacjio dos meios rurais, e finalmente osda Europa central e oriental, onde o poder publico tern de contarcom populates iletradas, a excepc,ao de urna estreita minoria.Mas trata-se, igualmente, de explorar os usos diferentes feitos deuma mesma competencia e. de constrmr uma historia das relagoescom a escrita de Estado, que nao sao forgosamente identicas asque existem com outras categorias de escritos, sagrados, praticos

ou de divertimento.Dai — segunda exigencia — a necessidade de constituir

series homogeneas desses «signos de poder»: sejam as insigniasque distinguem o soberano dos outros homens (coroas, ceptros,vestes, selos, etc.), os «monumentos» que, ao identificarem orei, identificam tambem o Estado, ate mesmo a nagao (asmoedas, as armas, as cores), ou os programas que tern potobjectivo representar simbolicamente o poder do Estado, comoos emblemas, as medalhas, os programas arquitectonicos, osgrandes ciclos de pintura. Destes ultimos, os repertories podiamser diversos: biblico e historico como na caredral de Albi,alegorico e mitologico como no palacio ducal de Mantua, ou emVersailles.

CAPITULO VIII 221

Compreender o significado historico dessas series de signos;numerosas, variadas, densas, exige, por flmv que se interro-guem as diferenciac,5es da sua decifragao. Cada uma delas e sus-ceptfvel de leituras plurals, que variam de acordo com acirculagao desigual.dos codigos e das chaves proprios de cadaformula de representagao, e tambem consoante os distancia-mentos dos saberes e das competencias dos diferentes publkos'colocados em posi^ao de^ver o poder atraves dos seus signosXTratar-se-ia, portanto, de construir uma problematica da varia-^ao historica e sociocultural da percepcuo e da compreensao dossignos do Estado a partir do modelo proposto para a leitura dostextos ou para a decifrac,ao dos frescos e quadras. Os signos dopoder nao tern as mesmas areas sociais de circulagao e naoimplicam as mesmas regras de mterpretacjio. Reconstituir essasdiferengas (no acesso ao signo como nas possibilidades da sua«leitura», mais ou menos conforme a intengao que o produziu)e uma tarefa diffcil, mas indispensavel, para apreender, nocampo da pratica, a eflcacia da simbolica do Estado.

Esta simbolica exprime-se tambem por meio de cerimonias,gestos e rituais. A sua maleabilidade e grande, o que tornapossivel a sua manipulate pelos diferentes poderes que sepermitem abandonar certas formas (e o que sucede em Franca,no inicio do seculo XVII, com as entradas na sua formulamedieval e renascentista) ou inventar outras (como os TeDettm), que podem igualmente transformar as sequencias, mo-dificar os itineraries, redistribuir a ordenagao de um mesmocerimoniai — por exemplo, nos cortejos civicos, nas procissoesgerais, nas entradas de principes. Por outro lado, tal como osescritos de Estado, os rituais politicos inscrevem-se facilmenteem formas, ciclos festivos ou cerimonias privadas, que inves-tem de um sentido novo, acrescentado ao antigo. O ritual docasamento nas cidades italianas da Idade Media ou os cortejoscarnavalescos nos seculos XV e XVI encontram-se assim comoque sobredeterminados por uma func,ao poli'tica, encarregues,tambem eles, de exaltar a gloria do soberano, de manifestar oseu poder. Porem, e claro que as cerimonias publicas naorepresentam apenas, mas tambem constroem as rela^oes entreos grupos sociais e o Estado. Ao proper uma apresentacjio de si

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7222 CONSTRU^AO DO ESTADO

mesmo, que implica sempre urna ordem particular, wlegiti-ma», da sociedade, o Estado moderno define o terreno ondepodem ser travadas lutas simbolicas entre os grupos — isto e,lutas onde a posic,ao cerimonial visivel e identificada com aposicjio social real, em que as distinc.6es manifestadas sao tidaspor desigualdades essenciais do ser social.

Gostaria, em ultimo lugar, de apresentar um problema deenvergadura: em que e como a construc.ao do Estado modernomodificou a maneita de os homens estarem em con junto, bemcomo a propria estrutura da sua identidade psicologica?Regressando a Elias, a questao poderia ser enunciada de outromodo: nao sera a corte uma forma social essencial do Estadomoderno, talvez mesmo aquela que o diferenciara mais forte-mente das formacoes socio-politicas que, no Ocidente, o prece-dem ou Ihe sucedem? Numa tal perspectiva, a nocao de socie-dade de corte deve ser, evidentemente, entendida numa duplaacepgao: por um lado, qualifica uma formacao social particular,fixada junto do prfncipe, regulada por convencoes e dependen-cias especificas; por outro, designa uma sociedade dotada deuma corte, uma sociedade organizada a partir da corte, que eum dispositive essencial para que se reproduza o equilibrio dastensoes necessarias a propria existencia do Estado moderno. Defacto, e sob diversas formas, a presence da corte acompanha emtoda a parte (ou quase) o desenvohdmento de uma forma novade Estado, dos Estados de principes feudais as realezas absolu-tistas, das cidades-estado as grandes monarquias nacionais. Ecerto que existem cortes antes da Idade Moderna (por exemplo,nos Estados helenisticos) ou fora da Europa (por exemplo, nosEstados africanos), mas talvez as funcoes e as exigencies dascortes do Ocidente entre os seculos XIII e XVII sejam suficiente-mente especificas para se considerar que definem uma^ formaoriginal de Estado. Reprodutoras das tensoes entre os gruposdorninantes, inculcadoras de novas normas de compottamento,exigidas pelo seu proprio funcionamento, as cortes ocidentaisencontram-se investidas de finalidades sem duvida muito dife-rentes das que marcam as formacoes sociais designadas pelomesmo termo noutras situacoes historicas. Tai como o Estadomoderno, a corte «moderna» deve ser defmida, antes de mais,

CAPITULO VIH 223

pelas propriedades especificas que caracterizam o seu funciona-mento.

Se se admitir que o Estado moderno se articula sobre umasociedade de corte (no duplo sentido do conceito), tornam-seessenciais dois campos de estudo. O primeiro diz respeito asproprias formas da vida de corte e as produces esteticasparticulares que dela emanam. Como mostra bem o exemplo damusica, a corte elabora instituic.6es, prefere generos, concedeestatutos aos artistas que nao correspondem aos da mesma artefora da corte. E, portanto, necessario compreender estas especifi-cidades esteticas na sua relagao com uma forma particular deexistencia social que supoe um sistema de valores, um modo deapresentac.ao de si, urna economia do tempo e do passatempo.Donde a segunda interrogacao: como e que a transformac.ao doEstado, por intermedio das norrnas mais exigentes da civilidadede corte, mas igualmente pela expulsao da violencia do espacosocial, modificou a estrutura psicologica, a economia psiquicaou, para utilizar um velho termo, o habitus do homem ociden-tal? Do constragimento Imposto ao constrangimento interioriza-do, do controlo social ao auto-conti;olo_p$iquico/o percurso^foibem:, identificado - por Norbert Elias^ Faltaria verifica-lo ou>fundamenta-lo e, atraves do estudo estrito de jnecanismos efecti--,vos, de instituicoes "particulares, dessas formas -a que Panbfsky;

chamava «habit-forming forces* ; mostrar o modo como se instalam/em toda' a sociedade censuras ineditas, regras constrangedoras/condicionamentos incotporados. Compreender'tal processo im-plica nao identific^r a circula^ao dos modelos culturais com umasimples difusao"(4o Estado'para a"sociedaHe,Tda. corte" para^acidade, dos dormnantes parados dominados) mas, pelo contrario,pensa-la comcr^uma tensao sempre a ser reprbduzida entre, porum lado, a constituicao de uma distingab pela diferenca e, poroutro, a sua apropriacao pela imitacao social ou pela imposicaoaculturante.

Dessas competencias e usos culturais, os proprios textospoliticos ou administrativos fornecem uma representacao, porvezes explicita, na maioria dos casos implicita. Todos elessupoem um destinatario, uma leitura, uma eficacia. Seria neces-sario rele-los sob esta perspectiva, detectando o modo como tern

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224 CONSTRUGAO DO ESTADO

em conta as capacidades supostas dos seiis destinatarios imagi-nados. Este material, tradicionalmente explorado pela suapropria letra, pelo seu conteudo documental e informative,tern de set questionado de outra maneira, atendendo as formasde discurso codificadas e regulamentadas que ai sao empregues,aos procedimentos retoricos de persuasao e de justificagao queai funcionam, aos dispositivos tipografkos — num sentidoalatgado que inclui a paginagao e os papeis desempenhados pelaimagem — que dao a let e a ver o texto. O exemplo da lite-ratura e das imagens panfletarias, dos pasquins, em particularas mazarinadas, sugere o que poderia ser tal abordagem,textual e formal, dos escritos de Estado, tepricos ou regulamen-tares, utilitarios o u polemicos. • . - - - - .

Apoiado na escrita, o Estado moderno exige uma formagaoparticular dos seus agentes. Deflmr essa formagao nas suasvariagoes cronologicas e geograficas e outra linha de investiga-gao fundamental. Esta linha implica varias series de pesquisase convida a duas investigagoes previas, tentando a primeiraapurar, para cada Estado e para cada momento do seu desenyol-vimento, o.numero dos seus agentes, e estabelecendo a segundauma tipologia diferencial dos lagos instituidos entre o principe(ou a repiiblica) e aqueles que o servem: o sangue,-a hornena-gem, a fidelidade, o oficio, a comissao, etc. Com efeito, e emrelagao as variagoes desse ntimero e das suas formas que^devemser entendidas as politicas voluntarias dos Estados que tem porobjective controlar ou transformar as instituigoes e os modos deformagao daqueles que se destinam a tornar-se seus agentes.Para tal, sao possiveis duas atitudes: ou utilizar, por yezesadaptando-as, as estruturas uniyersitarias existences (e assimque em Castela os seis colegios mayores de Salamanca, Valladoiide Alcala de Henares formam no seculo XVII dois tergos dos ofi-ciais da chancelaria e dos conselhos reais), ou fundar e apoiar, aolado das faculdades antigas, e muitas vezes em concorrencia comelas, novas instituigoes, caracterizadas geralmente por um pianode estudos modernizados, aberto aos saberes postos de parte pelasuniversidades e pelo exclusivismo nobiliario do seu recrutamento(como os seminaria nobilium em Italia, no seculo XVU, ou as escolasmilitares e tecnicas em Franca, no seculo XVIII). * ;

CAPITULO VIII

1

225

Para alem destas «polfticas escolares», a construgao doEstado mo'derno tem um peso determinante nas conjunturasestudantis. Com efeito, ao multiplicar cargos e oficios, elaproduz em muitos individuos a esperanga de uma carreira najustiga ou na administragao, levando assim a um aumento, porvezes acentuado, das matriculas e da obtengao de graus acade-micos nas universidades, e a um alargamento certo da areasocial do seu recrutamento. O crescimento do Estado faz pensarcomo possivel a conversao do grau academico em oficio, dotitulo em posigao — uma posigao superior em dignidade erendimentos relativamente a ocupada pelo pai. Seria conveni-ente relacionar, entre os seculos XIII e XVII, os avangos doEstado moderno e os aumentos dos efectivos estudantis, bemcomo detectar os desequilibrios assim produzidos, pois, pordiversas vezes, a saturagao do mercado das posigoes no Estadodeixa numerosos diplomados frustrados na sua esperanga, desi-ludidos na sua ambigao. Dai algumas transformagoes do pro-prio espago social, ja que as proftssoes ocupadas pelos titularesde graus academicos veem modificar-se, por esse mesmo facto,as suas propriedades. Dai, igualmente, certos efeitos ideologi-cos ou pollticos, pois os diplomados frustrados dirigem muitasvezes o seu ressentimento contra a sociedade ou contra oEstado, que consideram responsavel pelas suas ilusoes perdidas— e o que sucede na Inglaterra da Revolugao. A construgao doEstado moderno tem consequencias culturais que nao depen-dem apenas da sua acgao voluntaria sobre as instituigoes oupraticas designadas como tais. Ao transformar as propriaspercepgoes do devir social possivel, ao produzir escolhas educa-tivas ou proflssionais ineditas, essa construgao revolve a socie-dade nas suas profundezas, pois permite exitos anteriormenteimpossiveis embpra crie decepgoes indeleveis.

O Estado moderno entre os seculos XIII e XVII tem de estarsempre a reiterar a sua legitimidade, a reafirmar a sua ordem, arepresentar o seu poder. Para tal, actua em tres registos di-ferentes, que foram todos abordados no coloquio: a ordem dosdiscursos, a ordem dos signos e a ordem das cerimonias. Naprimeira destas ordens — onde o termo «discurso» e entendidono sentido comum de texto dito ou escrito — o facto mais

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226 CONSTRUGAO DO ESTADO

importante e indubitavelmente a raridade dos discursos utiliza-para afirmar ou criticar o Estado. Os «principios de

rarefac£ao» do discurso referidos por Foucault acruam tambemai, e Umitam o reportorio das formas que podem apresentar osenunciados teoricos, justificam a pratica ou denunciam os abusesda nova forma de poder. Esta raridade tern varias consequenciasde vulto. Antes de mais, obriga ao reemprego: e assim que areflexao politica investe formas, textuais ou tipograficas, cujodestino e, a partida, completamente diferente — por exemplo,os consilia juridicos, os discursos de defesa nos tribunals, osoccasionnels [relac,oes]. Num discurso que tern a sua runcao e assuas regras proprias, vein inscrever-se propostas sobre o Estado ea sua conduta que encontram ai formulas ja elaboradas, materiaisja familiares. For outro lado, a diversidade das series de discur-sos portadores de enunciados polfticos faz com que sejamclaramente distinguidas as situagoes de comunicac.ao e as estrate-gias retoricas- implicadas por cada um dos generos: nao serialicito, por exemplo, considerar do mesmo modo, numa aborda-gem puramente tematica, e ignorando as proprias formas utiliza-das para os comunicar, os enunciados polfticos encootradosnuma cronica, os de um tratado e os de um poema. Por fim, araridade e tambem a dos conceitos, dos exemplos, das citac.6es.O Estado moderno legkima-se, com efeito^a partir de um con-junto restrito de referencias, porque se define atraves do regressovoluntario ao corpus dos textos antigos, que fornecem modelos enoc,oes, e, simultaneamente, porque se cofistroi numa epoca dolivro raro, que e a do livro copiado a mao e, por mais algumasdecadas, a dos comedos do impresso, o que obriga a trabalharcom poucos textos, lidos e relidos, glosados e interpretados.

Tratar as series de discursos que acompanham a construc.aodo Estado moderno exige, ao mesmo tempo, o recurso a pro-cesses que valem para todos os discursos e uma atenc.ao parti-cular relativamente a problemas especificos. Um dos mais im-portantes prende-se com a situac,ao de pluralismo linguistico,existente na Europa medieval e renascentista, e que permiteescolher entre o emprego da lingua antiga, o latim, o da linguavernacula (por exemplo, o M.iddle English) ou ainda o de umalingua vernacula mas estrangeira, logo distintiva (por exemplo,

CAPI'TULO vm 227

o frances em Inglaterra). Cada uma destas tres opcoes remetepara o enraizamento sociocuitural de quern escreve, ou daqueiespara quem escreve, e ao mesmo tempo investe o seu texto deuma inteuc.ao particular, qualifica-o imediatamente pela linguaque ele utiliza. Perante os textos constituidos como teorizando,legitirnando ou descrevendo o Estado moderno, a analise deveter duas dimensoes: uma morfologica, ligada as mudangas dosconceitos (soberania, autoridade, Estado, etc.) e das figuras oulugares-comuns que os explicitam; a outra, sintetica, tendo porobjectivo definir na sua especificidade as normas, as regularida-des, as situagoes proprias de cada um dos conjuntos considera-dos. A dupla perspectiva, critica e genealogica, proposta porFoucault, poderia nesse caso articular a captacao do discurso doEstado, mostrando ao mesmo tempo os processes da sua diferen-ciacao e do seu controlo, e os principles da sua construgaoatraves de series diversas e descontfnuas.

Resulta claro que no domfnio do politico os discursos seencontram com frequencia ligados a outros meios de expressao.A propaganda politica durante a Liga fornece disso um exemploacabado, com os sermoes postos em folhetos, os cartazes queassociam texto e imagem, os panfletos que inspiram pregadorese produtores de imagens. Uma mesma circulagao dos motivespolfticos do oral ao escrito, do escrito a imagem,- encontra-se nadecada de 1610, marcada por dois acontecimentos que colocamem debate 0 proprio funcionamento do Estado monarquico: areuniao dos Estados Gerais e o assassinio de Concini. A escritaparece ser a companheira de todas as formas de propagandamonarquica: e assim que os programas decorarivos de Versalhessupoem sempre a existencia de textos que comentam, explici-tam, representam para aqueles que nao as vao ver as imagensalegoricas pintadas para gloria do rei; e assim que os Te Deummonarquicos, multiplicados em Franca entre 1660 e 1750, saoanunciados e justificados por uma carta do rei, frequentementeimpressa pelas autoridades locals, e depois comentados nasdescribees que deles faz a Gazette ou os outros periodicos.Entre textos e imagens, entre cerimonias e discursos escritos,os la^os sao estreitos, convindo nao separa-los dos diferentesmeios de expressao de comunicac.ao atraves dos quais o Estado

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228 CONSTRUEAO DO ESTADO

(ou aqueles que sao, ou pensam ser, os seus senhores) erepresentado.

O Estado moderno da-se a compreender nos textos, dando--se tambem a ver em signos. A sumula de Percy Ernst Schramm,os tres volumes de Herrscbaftszeichen und Staatssymbolik publica-dos entre 1954 e 1957, indicam o caminho a seguir para oscoligir e interpretar. Deyem ser satisfeitas aqui tres exigencias.^

_ Antes de.mais, como fez o proprio Schramm, distinguir as,definic.oes e os objectos,, e nao assimilar apressadamente. signose sfmbolos,'insignias e_ representac,6es. Com efeito, se algunssignos do poder sao realmente simbolos, implicando umarelac,ao de representac.ao entre uma imagem visivel e umconceito ou uma abstraccjio que ela manifesta, outros nao o saode forma nenhuma, pois supoem relagoes completamente dife-rentes entre os signos e as realidades que eles visam — como ossignos-indicios, que permitem uma identificac.ao, ou os signos--designa^ao, .que exprimem valorizac.6es e desqualificac,6es,honra e infamia. For isso e sem duvida necessario nao confun-dir as insignias ligadas a pessoa do prfncipe, os objectosproprios que tornam perceptivel e reconhecivel a sua soberania,e os materiais mais diversos que estao encarregues de represen-tar o poder nos lugares onde nao se encontra o principe, atravesda presenca multiplicada e perpetuada das personificac,6es ealegorias que mostram (e demonstram) a contiriuidade e aubiquidade do poder publico.

O programa ambicioso proposto para'os trabalhos do colo-quio supoe tluas el'ucidacoes. Ajprimeita e relativa a;maneira de'perisar,a relacao entre o reiigioso ,e o-.-politico,* o.sag.rado: e;o^Estado, as igrejas.e os.principe^-. Ha aqui uma hesita^ao — quenao se encontra claramente enunciada — entre duas concep-^oes. Ou ambos os dominios sao considerados como distintos— o que implica necessariamente qualquer formulagao quetenha em vista considerar os fundamentos religiosos do poderde Estado —, ou sao pensados como confundidos, utilizando asmesmas simbolicas (por exemplo, a flor de lis), aplicando osmesmos esquemas intelectuais, identicos nos tratados teologi-cos e nos escritos polfticos, produzidos pelos mesmos homens,simultaneamente servidores da Igreja e do Estado. Outras

CAPITULO Vlll 229

reflexoes deverao certamente clarificar essa relacao central naideologia do Estado nascido na Europa no seculo XII, mastalvez pensada segundo modalidades diversas (oscilando,tambem estas, entre a separacao e a identificagao) por parte dosseus soberanos e propagandistas. A segunda exige: «deixar deencarar o Estado unicamente sob as cores da realeza», comoescrevia Marc Bloch em La societe feodale. O mesmo e dizer queas mutac,6es principals defmidoras do Estado moderno nao seencontram apenas nas grandes monarquias nacionais, considera-das um cadinho na charneira dos seculos XIII e XIV. Massignifica, tambem, tomar em consideracao as especificidadessociopolfticas (por exemplo, na definicao e na traduc.ao doequilibrio das tensoes institufdo entre os grupos dominantes)dos Estados nao monarquicos, das cidades italianas as republi-cas protestantes. Podera, assim, Ser realizada a necessariaanalise comparativa de um trabalho sobre o Estado.

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INDICE DOS AUTORES

ALTHUSSER, 66.ANDRIES, 169.ANNALES, 14, 30, 31, 32, 39, 43, 46,

70, 75, 92.ARIES, 41, 124.ARNAULD, 21.AVENEL, 96.

BACHELARD, 51, 52.BAKHTINE, 56-57, 176.BARBEER, 210-211, 212.BENEDICT, 88.BENREKASSA, 159.BERCE, 199-200.BERNOS, 162.BERR, 32.BLOCK, 32, 39, 215, 216-217, 229.BLONDEL (C.), 41.BLONDEL (F), 179.BOLLEME, 169, 175.BOLTANSKI, 13, 23.BOISSY, 152.BOURDIEU, 13, 17, 35, 47, 51, 72, 131,

136, 138.BRANCOLINI, 152, 202.BRAUDEL, 38, 39, 44, 46, 82, 83.BURKHARDT, 35, 104, 117.

CANGUILLEM, 51.CANTIMORI, 29.CASSIRER, 19.CERVANTES, 125.CHARTER, 24-25, 41, 88, 124-126,

131, 133, 139, 142, 153, 155,166, 176, 184, 190, 197-198,202.

CHAUNU, 43-44.CHESTERFIELD, 132.

CONGREVE. 127.CORNETTE, 200.CROUZET, 208.

DARNTON, 30-31, 51, S8, 172, 210.DAVIS, 53, 85.DE CERTEAU, 59, 61, 123, 143, 148,

208.DESCARTES, 71.DESOMON, 208.DEVOS, 163.DUBY, 41, 124.DUCOURTIEUX, 182.DUPRONT, 42, 46, 48, 51.DURKHEIM, 18, 41.

EHRARD, 29, 48-49.ELIAS, 16, 22, 25, 79, 91-119, 109, 138,

195, 216-217, 222-223.ELSTER, 72.ENGELSING, 131, 158.

FAROE, 211.FEBVRE, 16, 25, 32-42, 46, 47, 51, 69,

70.FERRONE, 87.FIRPO, 87.FLANDRIN, 172.FOGEL, 195.FOUCAULT, 26, 65, 74, 76-80, 87, 136,

227.FREUD, 117.FRIED, 259.FROESCHLE-CHAPAKD, 162.FURET, 152.FURETIERE, 20.

GAZER, 143.

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232 HISTORIA CULTURAL

GEERTZ, 67.GIESEY, 194.GILBERT, 29, 58.G1LSON, 34-35.GINZBURG, 50, 53, 57, 83, 85-88,

134.GOLDMANN, 46-49, 52.GOMBRICH, 64.GOULEMOT, 62, 142, 184.GRENDI, 86.GUEROULT, 70-72.

HABERMAS, 192.HEBRARD, 142.HEGEL, 73-76.HIGHAM, 54.HOBSBAWM, 81.HOGGART, 60.HYMAN, 172.

JAMEREY-DUVAL, 141-142, 183-184.JAUSS, 61.JOISTEN, 163.JOUHAUD, 193, 196, 208.JULIA, 143, 148.

KANTOROWICZ, 20, 64.KAPLAN, 211.KOSSMANN, 208.KOYRE, 51-52.KRISTEVA, 61.KUHN, 64.

LABARRE, 151.LABROUSSE, 45.LA BRUYERE, 22, 96.LAVESSE, 96.LE GOFF, 41.LEIBNIZ, 71-73.LE MEN, 179.LE ROY LADURIE, 83, 201.LEVI, 88.LEVY-BRUHL, 36-38.LOVEJOY, 29.LUSEBRINK, 153.

MACKENZIE, 127.MALDIDIER, 13.MALEBRANCHE, 71.MANDELBAUM, 88.MANDROU, 41, 46, 158, 162-163, 182,

186.MANNHEIM, 95.MARAIS, 183, 185.MARCO, 166.

MARIN, 21.MARX(ISMO), 108.MARX(ISTA), 66.MARION, 96.MARTIN, 155, 167, 185.MAUSS, 18.MECHOULAN, 195.MEYERSON, 41.MILLER, 29.MOLIERE, 127-128.MOMIGLIANO, 86.MORIN, 184.MOULINAS, 182.

NAGLE, 202.NICOLE, 21.

PANOFSKY, 19, 35, 38-39, 47, 223.PARENT, 155.PASCAL, 21-22, 47.PASSERON, 60.PERRAULT, 56.PETRUCCI, 133.PINELLI, 87.POMIAN, 85.PONI, 83.PROUST, 50.

QUENIART, 182.

RABELAIS, 56.RACINE, 47.RANKE, 73.REDONDI, 87.REVEL, 32, 134, 143.RICHET, 202.RICHTER, 143.RICOEUR, 24-26, 76, 82, 85, 88.ROBERT, 170.ROBIN, 46.ROCHE, 212.ROJAS, 121-124, 126, 132.

SAENGER, 139.SAINT-SIMON, 96.SAUVY, 156, 182.SCHORSKE, 63-64.SCHRAMM, 228SEE, 96.SORIANO, 56, 172SPENGLER, 69.SPINOZA, 71.SPUFFORD, 165.STODDARD, 126, 132.STONE, 81.

TAINE, 96.THELANDER, 172.TOCQUEVILLE, 207.TOYNBEE, 69.

INDICE DOS AUTORES

VERNANT, 42.VERNUS, 186-187.VEYNE, 65-66, 78, 82.

233

VELAY-VALLANTIN, 126.VENTURI, 48-49.

WALLON, 42.WEBER, 94, 97.WHITE, 64, 84.

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INDICE TEMATICO

ANTROPOLOGIA, 15, 45; - histdrica,135; - simbo'lica americana* 19,55; anthropological mode of his-tory, 11.

APROPRIACAO, 24, 26, 27-28. 39, 50,58, 115, 136-137, 171, 187, 223;reapropriacao, 59; reemprego,226; apoderar, 127, 166, 172,220. (Vd. interpretagao, .leitura,recep<;ao.) ' ' ,

ARQUIVO(S), 44, 89; - de'actos nota-riais, 74, 218; inventario notarial,150; - portuarios, 74; - de registosparoquiais, 74, 76; - de registosde pre?os, 74, ^:76; polfticasarquivisticas, 219. (Vd- documen-tor indicios.)

ARTE - ESTETICA, producoes esteticas,118; [Relagoes entre formas esteti-cas e sociedade), 114, 122.

CONFIGURAgOES, - de dominios depraticas, 78-79; - intelectuais, 23,27; - textuais, 25-26. (Vd, social).

CONFLITOS, 53, 99; - de classificafoes,17; - de interpretagao, 198; com-petigao, 17, 105-106, 112, 115;concorrSncia, 17, 112, 137-138,186; luteu, 17, 31, 138, 190; - declasses, 108; - de partidos e declienteles, 208; - simb61icas, 222;antagonismo, 102, 108; afronia-mento, 17; oposigoes, 31; rivalida-de, 108; tensoes, 108-109; - entregrupos, 222; revalta, 198-201,206; contestoQoes processuais,206; frustrates socials, 114.

CONTROLO, 207; - social, 216, 223; - eautocontrolo, 109-110; - dos afec-tos, 94; proteger e controlar, 107.

CULTURA, - politica, 189-229, 198; -politica popular, 206; - popular,135, 166, 189; - camponesa, 187;- ritual, 191; - da oralidade, 163;- dos costumes, 200; - tradicio-nal, 135; - do impresso, 139, 208;- da escrita, 125, 151; - do baixoventre, 176; - carnavalesca, 196;- feminina dos saloes e da corte,172; - dos signos, correspodenciasalegorias, 212; culturat(ais), 137,217; competencias -, 174, 219,223; mpdelos -, 115, 134, 223;[oposigao e relacao: cultura popu-lar (camponesa)/ cultura letrada(61ites, not^veis, citadinos)], 54-58, 134-135, 143, 155, 200; [opo-sicao e rela9ao: cultura oral'(ges-tual)/ cultura escrita (impressa)],125, 135, 163, 218, 219, 226;[aculturagao], 60,- 136, 147, 223;[alfabetizagao], 217, 220.

DISCURSO(S), 17-18, 60, 66, 72, 78, 80,123, 135-136, 147, 211, 224-226;analise dos -, 76; tratamento dos-, 87, 227; series de -, 23, 77, 80,226; economia de -, 72; camposde - ou de prddcas, 65; - e reali-dade (estatuto de corresponde"n-cia), 85; - e referente, 89; condi-goes socials de producao e de re-cep^ao dos -, 72; relasao entre - eposigao social, 72, formas socias e

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236 HISTORIA CULTURAL

discursivas, 79; praticas discursi-vas, 27; modos de -, 84; dispositi-vos discursivos, 26, 60; intriga,82-84, 123, 174; relato, 81, 83-86,125; flcgao, 80, 84, 89, 173, 176,185, 189; - de entretenimento,166; textos de -, 167, I69;fdbula,84, 154, 212-213; conto, 125,153; narra$ao, 81, 125;narrativafs), 80-83; genera -, 83;categorias -, 84; formas -, 89; es-truturas -, 173; generos, ~ litera"-rios, 129, 166; - de obras, 148,167-168, 174, 226; - lextuais e ti-pogrificos, 208; - artisticos, 223;categorias, - de obras, 148, 169;- de escritos, 220; literatura reli-giosa, - artes de bem morrer, 135;- livras de horas, 151, 157; - lite-ratura de devogao e exercicios re-ligiosos, 129, 148, 152, 166-168,174, 176, 185-186; - vidas desantos, 174; literatura deficgao, -novela, 170; - novelas pastorals,124; - romance pastoral, 114; -romances de cavalaria, 124, 153,167-168, 174; - romances porno-grificos, 157; - contos de fadas,126, 129, 154, 167, 170-171, 174;bibiiotheque bleue (literatura decordel), 128, 152-153, 157, 165-187, 189-190; almanaques, 153-154, 157, 176; tratados de civili-dade, 135, 167, 185; literatura deconhecimentos • uteis, 166; - deaprendizagem, 167-174, 189; -livros de pratica(s), 129, 135, 167,172, 189; discurso politico - «es-crita de Estado», 218; - escritospoliticos, 228; - escritos produzi-dos pelos Estados, 218;,- escritosde Estado (te6ricos ou regulamen-tares, utilitaVios ou polernicos),224; - discursos para afirmar oucrincar o Estado, 218, 225-226; -textos teorizando legitimando oudescrevendo o Estado, 227; - tex-tos da justi$a e da administrac.aordgia, 126; - textos polfticos ouadministrativos, 223; documenta-c.6es administrativas, 219; - dis-cursos dos cademos de agravos,206.

DOCUMENTO, 44, 89, 202, 218, 219;conjunto documental, 142, mate-

rial documental, 80, 96, 223-224;crMca documental, 87-88; explo-rac,ao documental (e te"cnicas deerudijao), 91; diffcil dc documen-tar, 187; [textos «documentais»versus textos literanos], 62-63;[diferentes estatutos documentais],218-219; vestfgios documentais,85-87, 123; programas epigrdfl-cos, 219. (Vd, arquivo, indlcios.)

DOMINACAO, 17, 107, 112, 138, 208,218-219; - simb61ica, 22; formasde -, 79, 94, 216; instrumentos de-, 108-109, 112-113; dispositivede -, 216; posigoes de -, 103; uni-dades de -, 105; aparelho de -,99; - de chefe carismatico, 99;-territorial e politica, 106; mono-p<51io de -, 106-107, 216; mono-pdlio do soberano, 105; monopoli-zagao, 105-106, 109-110, 215; do-minante institucionalmente, 13,32; classe dominants ou dominan-tes, 108, 137; «vigiar, punir, disci-plinar e constranger», 212. .

ECONOMIA, [econ6micas demogrdficasou sociais] conjunturas ~, 74; es-truturas -, 72; series -, 72.

ELITES, 130, 134, 155, 159, 187.EPISTEMOLOGIA DAS CIENCIAS, 16.ESTADO, 47, 75, 80, 98-99, 105, 107-

108, 156, 191, 199-200, 207, 212-213, 215-229; rei, 99, 105, 209,112, 189, 193, 198, 200, 205, 216;- taumaturgo, 211; soberano, 103,105, 107, 209, 221; -do escamio,197; soberania, 213,. 216, 219,227-228; monarquia, 207, 208;[relac,oes entre o Estado e grupossociais], 221.

ESTRATEGIAS, 14, 16-17, 23, 59, 108,123, 127, 137, 175.

ETNOGRAFIA, observa?ao emografica,119; intencao etnograTica, 144;pesquisas folcldricas, 160; obser-vadores, 189-190.

FESTA, 135; programas festivos, 208;ciclos festivos, 221; espectdculodo castigo exemplar, 209; cortejosclvicos, procissoes gerais, entradasde prihcipes, 221. (Vd. rituais).

FILOLOGIA (ci&icias filoWgicas), 88.FILOSOFIA, 13, 16, 69-89.

INDICE TEMATICO 237

HABITUS, 16, 36,47, 109, 113, 117-118,137, 223; — on economia psiquica,114, 117, 217, 223; hablto mental,38; - de leitura, 158; obstdculoepistemologico, 52; categoriaspsicoldgicas, 101; equipamentointelectual, 45; utensilagem men-tal, 36, 38, 40, 47.

HERMENEUTICA, 24, 26.HIST6R1A, - como cpnstrucao, 75; -

global, 75; - total, 53; - universal,69, 73; - serial (quantitativa), 76;- das estraturas, 92; - de longadurac.ao, 25; microstoria, 77; mi-cro-hist<5ria, 83, 118; estudo decaso, 93, 118; anthropologicalmode of history, 77; formas de -(dos Antigos, dos cronistas, etc.),73; - individual, 103; - de vida,83, 142; - cultural, 15, 16, 23, 27,28, 45, 47, 77, 135, 136, 137; -sociocultural, 18,.30 46, 60, 134;- das prdticas culturais, 135; - dasideias, 16, 40, 46, 58, 117; historyof ideas, 29; - social das ideias,30, 48, 50, 52, 62; - intelectual,15, 27, 29, 30, 34, 39, 45, 70,104; intellectual history, 29; storyintelletuale, 29; geistesgeschidch-te, 29; - dos pensamentos, 53; -da leitura, 121, 123; - literaria,15, 16, 29; - socio!6gica da litera-tura, 48; - editorial, 127; - dostextos e dos livros, 136; textual,169; - das relagoes com a escritade Estado, 220; - das praticas deleitura, 122, 131; - da leitura po-pular, 142; - das mentalidades,13, 15, 19, 25, 28-30, 40, 45-46,58, 118; - «serial do terceiro ni-vel», 44; psicoSogia histfirica, 15,30, 117-118; psicogen^tico, 118;C- das utensilagens mentais, 14,18-19, 25); - da filosofia, 29, 70-73; filos6fica, 75; - filos6flca dafilosofia, 72-73; - da psicologia,42, 51; - da arte, 30; - social, 15,30-31, 45; - da sociedade, 28, 40;- econtfrnica, 30-31; - econdmicae social,, 14, 15, 44; - socioecon6-mica, 46, 80; - polltica, 30, 216.

IDEOLOGIA, 47, 208, 229; - e realidadesocial, 99; ideoldgico, 49, 53, 59,

208, 225; «visdo do mundox, 47.IGREJA, 55, 146, 181, 190, 204, 207,

228; clero, 148, 201; padres daparoquia, 147; pdroco da aldeia,134; instituicdo eclesidstica, 56;ritual da missa, 180; rituais ecle-sidsticos, 135; condenagoes ecle-sidsticas, 160; censura religiosa,176. (Vd. religiao.}

IMAGEM, 179-181, 190, 194-195, 197-198, 210, 212, 227.

INDfCIO(S), 88, 160, 162; «paradigma do-», 87. (Vd. arquivo, documento.)

INSTITUigAOfOES), 107, 137, 191,201-202, 204-207, 223-225; for-mas institucionalizadas, 23; insti-tucionalmente dominants, 13, 32;dispositivos institucionais, 60; «-que gercm a sociedadew, 207; -particulares, 223; corte elabora -,223; corte - essencial, 107; -judi-cial, 202; - eclesiastica, 56, 191; -culturais, 221; - de ensino, 224; -senhorial, 201, 205; direitos -,204; dornmio -, 204; sistema -,206.

INTERPRETACAO, 59; reinterpreta^ao,60; regras de -, 220. (Vd apro-priagao, leitura, recepgdo.)

LEITURA, 17, 25-26, 58, 71-72, 114,121-139, 165-187, 208, 210, 219,221, 223, 226; - camponesa, 141-163; protocolo de -, 128, 130; ler,59, 98, 99; maneiras de - 131,220; leitor, 24-25, 50, 74, 121-124, 130, 220; [relac.ao entre tex-to, objecto impresso e leitura],121-122, 127, 131, 137; [rela$aoentre texto e impresso], 126, 174-177.

LINGUfSTICA, 15; teoria da recepgao,127.

MEM6RIA, 180, 183, 196; fdrmulas fa-cilmente memoriz^veis, 122; me-moriza^ao, 184; «consciencia daprApria histdria do Estado», 215.

PODER, 17, 25, 115, 137; signos de -,220. (Vd. politica, Estado, Igreja.)

POLflTCA, cultura -, 189-229, 198; - po-pular, 191-213; polithaqao, 207-209, 210; - da aldeia, 201. (Vd-poder, estado, discurso politico.')

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238 HISTORIA CULTURAL

PRATICAS, 17, 27, 23, 26-28, 65, 78-79,80, 84-87, 111, 125, 135-138,163, 166.-175, 181, 190-191, 194,198, 209, 218; - culturais, 13, 46,135, 142, 215, 220, 225; - de lei-tura, 121-122, 127, 142, 157-158,180, 184.

PRIVADO, 197, 219; [oposic.ao: privado/publico (social)], 95, 111, 117,138, 195, 219; tntimo. 111, 122,134, 180. (Vd, publico.)

PSICANALISE, investiga9oes psicanaliti-cas, 117.

PUBLICO, espaso -, 191-194, 213.

RECEPCAO, 24, 49, 58, 62, 112; proces-sos de -, 136; teoria da -, 127;percepgao, 220. (Vd. apropriagdo,interpretac.ao, leitura.)

RELIGIAO, 75, 203; -'popular, 191; - epolitica, 228; - e moral da Contra--Reforma, 130; reforma catdlica,151, 168-169, 176, 203; Igrejapds-tridentina, 207; braxas, feiti-garia, 154; exercicios de devocao(procissoes, peregrinagoes), 208.(Vd. Igreja.) • - '-

REPRESENTACOES, 14, 17-21, 27-28,37-40, 50, 52-53, 57, 86-87, 112,116, 126, 128, 138, 150, 159, 191,194, 204, 212, 223; lutas de -, 17;- e realidade, 62-63, 112; - [dopoder], 194-195, 198, 218, 220,225, 228.

REVOLU£AO FRANCESA, 116, 142,144, 146-148, 152, 168, 170-171,185, 189, 194, 205.

RITUAL(AIS), cultura -, 191; dispositi-vos -, 135; formas -, 200; - poli-ticos re"gios, de Estado, 191, 194,221; faustos regies, 212; - ecle-si£sticos, 135; - da missa, 130,180; - de puni?ao, 209; rito(s),194; - de inversao, 200;cerim6nia(s), 194, 197, 221, 225,227; cerimonial de corte, 112,116; etiqueta de corte, 108, 112;[oposigao: cerimonial privado/ri-tual publico], 195.

SfMBOLOS, 19, 228; obj'ectos simboli-cos, 219; simbdlica; func.ao -, 19;forma -, 19; - da monarquia, 210;- do Estado, 221, 228; imbrica^aoentre - e instrumental, 218; sub-

missao polftica e -, 112; represen-tar simbolicamente, 220; signos,212, 220, 225, 228; - de poder,220-221, 228.

SOCIAL(AIS), 27, 33-34, 45, 47, 49, 116;formac,ao -, 25, 79, 100-105, 107,111, 114-118; configurac.ao -, 16,27, 31, 79 100-105, 108, 110,115, 118; forma -, 94-95, 102,118; formas - e psicologicas, 79;formas - e discursivas, 79; espac.0-, 16-17, 105, 109, 223, 225;areas -, 221; unidade -, 105-106;relates -, 14, 23, 66, 83, 93,101-102, 104, 108, 116-llS;-(oucadeias) de interdependencias, 79,100-105, 107-109, 116-117; equi-Kbrios -, 109, 217; equilibriosdas tensoes, 100, 102, 104, 107-108, 112, 116, 118, 206/229; redede dependencias recfprocas, 93,101; - das interdependSncias, 115-116; - de condicionalismos, 92; —das posigoes, 104; diferencia^do,46, 106-107, 109, 114, 221; par-tilhas, 131, 173, 183, 207, 211;distingao, 112-113, 115, 138, 223;reprodugao, 138; evolugao, 100,103; promoydo, 99; hierarquiza-gdo, -114; xprocesso de civiliza-gao*, 95, 110, 111, 114, 116, 119;«curializagao dos guerreiros», 95,113-114; urbaniza£do, 114; popu-larizagao, 183; ruralizagao, 183;

1 ordem social, 114; organizac,ao -,18; estrutura(s) -, 66; «m'veis» dasoctedade, 77; - estruturada eminstSncias, 83; defini^ao redutorado social, 134, 135; divisQes miil-tiplas do social, 134; adores, 19;agentes, 50; sujeitos, 93; grupo(s),18, 23, 39, 45, 105, 108, 116,221-222; - dominances, 107, 222,229; - mais poderosos, 106; -central carismitico, 99; - .de joga-dorcs, 100; «habitus» de cada -,187; classes, 17, 23; meios, 23,48; - aristocraticos, 171; tornados,114; - inferiores, 115; - burgue-sas;, 116; - dominantes, 116;grelha social e professional, 45;estatutos sociais, 219; corpo so-cial, 134, 215; corpo politico esocial, 208; comu-nidade(s), 23,101, 204, 206; - de leitores, 124,

INDICE TEMATICO 239

131; privilegios comunitaiios,199; ideologia comunal e burgue-sa, 208; solidariedades, 101, 199;sociabilidades, 138, 217; - daleitura, 124; - aldea, 163; - livres(caf^, clube, loja ma5<5nica, socie-dade literaria), 191-193; tertflliade caffi, 100; turma de alunos,100; aldeia, 100; aldeia, bairro,corpora?ao, 100; sociedade(s), -de cone, 22, 91-119, 195, 222; -feudal, 3, 101; Estados feudais,215-217; - de Andgo Regime, 20,93, 220; - antiga, 138; - das or-dens e dos estados, 201; - burgue-sa, 95; - industrial, 93, 217; -urbanas, 187; - das grandes cida-des, 159; - rural, 129; [redoes:joc/i3//cultural], grupos - e nlveiscuEturais, 45; agentes - e objectosculturais, 50; estrutura - e cultu-ral, 67; niveis - e indicadores cul-turais, 76-77; obras e sociedade,52; posigao ~ e discursos, 72; - erepresenta?ao, 112; - e posigaocerimonial, 222; posicdo (enraiza-mento) sociocultural, 184, 227;relagoes entre maneiras de pensara sociedade e instituigoes, 206;realidade social (construfda, pen-

sada, dada a ler), 17.SOCIOLOGIA, 13, 15, 18, 45, 183, 187;

- de Norbert Elias, 91-119; - his-t<5rica, 13; - histdrica das pra~ticasde leitura, 121; - retrospective,136; abordagem sociogenfitica,118; - do conhecimento, 104; -cultural, 548, 215; - da leitura,121; - do saber, 16; objecto da -,100; tarefa do sociOlogo, 103; es-tudo socioI6gico, 95.

TEATRO, 193-194; representac.6es tea-trais, 128.

TEMPO, - longo (longa dura5ao}, 25, 44,91, 110, 118, 190, 194, 219, 217;- curto, 44; acontedmento, 74,196; desconiinuidade(s), 65, 74-75, 79.

VIOLENCIA, - escatoI6gica e blasfema-t6ria, 176; - em formas rituais,200; - do texto, 211; vingangasfamiUares, - recfprocas, 215; -legitima, 105, 215; monop61io(monopolizagao) da -, 23, 105,109, 215; expulsao da -, 223;apagamento da -, 23; paciflca^aodas condutas, 94; - da sociedadde,215.

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Agradecemos aos editores a autorizacao para traduzir os cextos aquireunidos.

Capitulo I — Texto apresentado em 1980 num coloquio realizado na CornellUniversity, consagrado aos problemas da historia incelectual. Foi publicadoem ingles na colectanea Modern European Intellectual History, Reappraisals andNew Perspectives, sob a direccao de D. LaCapra e S. L. Kaplan, Ithaca,Cornell University Press, 1982, pp. 13-46, e em Frances na Revue deSynthese, III serie, n.os 111-112, Julho-Dezembco de 1983, pp. 277-307.

Capitulo II — Ensaio redigtdo para o coloquio «Histoire et Philosophic",organizado no Centro Georges Pompidou, em 1986, foi publicada nacolectanea Philosophic et Histoire, Paris, Editions du Centre Georges Pompi-dou, 1987, pp. 115-135.

Capitulo III — Introduc.ao a obra de Norbert Elias, foi publicada comoprefacio a uma reedic.ao de La Societe de Cour, Paris, Flammarion,(«Champs»), 1985, pp. I-XXVIII.

Capitulo IV — Texto apresentado ao coloquio «Conceitos, Metodos eObjecto em Historia da Cultura», realizado na Universidade do Porto em1986, e publicado na colectanea Problematical em Historia Cultural, Porto,Faculdade de Letras do Porto, Institute de Cultura Portuguesa, 1987, pp.193-207.

Capitulo V — Apresentado em serninario na Ecole des Hautes Etudes enSciences Sociales, este texto foi publicado na revista Dix-Huitieme Siecle, 18,1986, pp. 45-64, e retomado na obra do autor, Lectures et lecteurs dans laFrance d'Ancien Regime, Paris, Editions du Seuil, 1987, pp. 223-246.

Capitulo VI — Perspectiva de conjunto sobre o livro «popular» no AntigoRegime Frances publicada na Histoire de I'edition fran$aiset sob a direccao deH.-J. Martin e R. Chattier, t. II, Le Livre triomphant. 1660-1830, Paris,Promodis, 1984, pp. 498-511, e tetomada em Lectures et lecteurs dans laFrance d'Ancien Regime, cit., pp. 247-270.

Capitulo VII — Comunicac.ao a "Conference on the Political Culture of theOld Regime», realizada em Chicago em 1986. Esta publicada no volumeThe French Revolution and the Creation of Modem Political Culture, vol. I, ThePolitical Culture of (be Old Regime, sob a direccao de K. M. Baker, Oxford,Pergamon Press, pp. 243-258.

Capitulo VIII — Conclusao de uma mesa-redonda organizada era Roma, nomes de Outubro de 1984, pelo Centre National de la Recherche Scientifi-que e a Ecole Franchise de Rome. Esta publicada no volume Culture etideologie dam la genese de I'Etat modeme, Roma, Ecole Franc.aise de Rome//Palais Farnese, 1985, pp. 491-503-

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INDICE

Nota de apresentasao

Introduijao

Capitulo I

Capitulo EC

Capitulo El

Capitulo IVCapitulo V

Capitulo VI

Por uma sociologia historica das praticas cul-turais 13Historia intelectual e historia das mentalidades 29

Os primeiros Annales e a histdria inteiectual, 32. His-t(5ria das mentalidades /hist6ria das ideias, 40. Questio-'nar as delimitates, 54. Conclusao?, 63.

O Passado composto. Relagoes entre filosofiae historia 69

1. Filosofia e hist6ria, 69. 2. A filosofia da hist6ria dahisttiria da filosofia, 70. 3. Renunciar a Hegel, 73,4. Do objecto hist6rico ou a querela dos universais, 78,5. Da narrativa ou as armadilhas do relate, 80.6. History versus Story ou as regras dorelato escrito, 84.7. Hist6ria e filosofia, 89.

Formagao social e habitus: uma leitura deNorbert Elias 91

1. Uma leitura hist6rica, 91.2. Um modelo de interpre-tagao socioldgica, 95. 3. Conceitos fundamentais, 99.4. O monopolio da violencia, 105. 5. O processo decivilizagao, 109. 6. 0 autocontrolo, 117.

Textos, impressos, leituras 121Praticas e representa9oes: leituras camponesasem Franga no s£culo XVIII 141

Anexo — A leitura ao serao: realidade ou mito?, 162

Textos e edigoes: «literatura de cordel» 165O corpus de cordel, 166. Textos letrados, 168. A marcados editores,173. Uma fdrmula editorial, 178. Leitorese leituras, 183.

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244 HISTORIA CULTURAL

Capitulo VH Cultura politica e cultura popular no An-tigo Regime

1. Cultura «popular» e cultura politica, 1S9.2. Espaco piiblico e politica popular, 191.3. Cultura polftica popular, 194. 4. «Emocionaro povo at6 a sedii;ao»", 198. 5. Politizasao dosespiritos populares, 201. 6. Politizafao do popu-lar, 207. 7. Setembro de 1758, 209. 8. Era umavez um rei, 212.

189

Capftulo

Indice dos autoresIndice tematicoAgradecimentosIndice

Constru^ao do Estado raoderno e formasculturais. Perspectivas e questoes

As conduces culcurais, 217. As expressoes ri-tuais e simb^licas, 220. Economia psiquica eEstado moderno, 222.

215

231235241243