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VI Congresso Internacional de Cincias Jurdico-Empresariais
Os crditos laborais no processo especial de revitalizao: breves notas e
inquietaes1
Ana Ribeiro Costa
UCP-Escola de Direito do Porto, Advogada2
1. Introduo
O memorando de entendimento sobre as condicionalidades de poltica
econmica, apresentado em Maio de 20113, previa, sob o ttulo regulao e
superviso do setor financeiro, a alterao do Cdigo da Insolvncia e da
Recuperao de Empresas (CIRE), o que veio a ser concretizado pela Lei n. 16/2012,
de 20-04. A mais importante das alteraes consubstanciou-se na criao do processo
especial de revitalizao. Este processo tem incio num requerimento do devedor, que
manifesta a vontade de iniciar negociaes no sentido de alcanar a sua revitalizao,
atravs da aprovao de um plano de recuperao.
Sucede que, no que respeita aos crditos laborais, tm sido apresentadas
algumas propostas de pagamento em tais planos de recuperao que nos parecem de
duvidosa conformidade legal. De facto, alguns planos prevem o pagamento dos
crditos laborais com perodos de carncia, perdo de capital e juros, pagamento em
dezenas de prestaes e pretensa eliminao ou alterao das garantias legais dos
crditos laborais.
Ora, este tratamento dos crditos laborais reclama a necessidade de uma
reflexo sobre todo o sistema de tutela dos crditos laborais, erigido sobre o art. 59
da Constituio da Repblica Portuguesa (CRP). Em especial, importar analisar as
vrias formas de tutela legal dos crditos laborais, apreciando as consequncias do
1 O presente texto corresponde aos apontamentos que coligimos para a apresentao realizada no VI Congresso Internacional Cincias Jurdico-Empresariais , decorrido em 24-10-2014, na Escola Superior de Tecnologia e Gesto de Leiria, completados com algumas referncias jurisprudenciais e legislativas posteriores.
Agradecemos, desde j, a amabilidade da organizao que nos acolheu e destacamos a elevada qualidade tcnica e cientfica de todos os participantes no encontro.
2 A autora doutoranda e docente convidada da Escola de Direito do Porto da Universidade Catlica Portuguesa. advogada na sociedade Gama Lobo Xavier, Luis Teixeira e Melo e Associados, em Guimares, colabora com o Catlica Research Center for the Future of Law e Vice-Presidente da Associao de Jovens Juslaboralistas.
O presente texto ter em considerao a legislao, doutrina e jurisprudncia publicadas at 21-01-2015. As citaes de jurisprudncia sero todas pertencentes fonte informtica www.dgsi.pt, exceto quando expressamente se indicar que a deciso no se encontra publicada, caso em que a autora acedeu mesma no exerccio da sua atividade profissional.
3 Que pode ser consultado em https://infoeuropa.eurocid.pt/opac/?func=service&doc_library=CIE01&doc_number=000046743&line_number=0001&func_code=WEB-FULL&service_type=MEDIA, consultado em 21-02-2015.
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regime de garantia de tais crditos, distinguindo os crditos remuneratrios dos
indemnizatrios e, bem assim, dos compensatrios. Em consequncia, apreciaremos
se os mesmos so renunciveis ou disponveis e em que medida.
Impe-se, ainda, proceder a uma cuidada anlise da jurisprudncia que se tem
debruado sobre a matria. Na verdade, apreciando a legalidade dos planos de
recuperao sob a perspetiva do princpio da igualdade dos credores, a jurisprudncia
tem decidido de forma contraditria o relevo de tais particularidades dos crditos
laborais.
Assim, impe-se discutir o reflexo que o processo especial de revitalizao teve
sobre a tutela dos crditos dos trabalhadores e se a jurisprudncia tem resolvido os
problemas concretos com respeito pela natureza constitucionalmente consagrada a
tais crditos.
Cumprir, ainda, apreciar a articulao dos interesses subjacentes ao
processo especial de revitalizao com as garantias substanciais e procedimentais
caractersticas da legislao laboral, abordando algumas questes onde a coliso
entre tais princpios se poder verificar.
2. Garantias especiais dos crditos laborais
Dispe o art. 59 da CRP que Todos os trabalhadores, sem distino de idade, sexo, raa,
cidadania, territrio de origem, religio, convices polticas ou ideolgicas, tm direito: a) retribuio
do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princpio de que para
trabalho igual salrio igual, de forma a garantir uma existncia condigna; () 3. Os salrios gozam de
garantias especiais, nos termos da lei.
Assim, prev a CRP que os salrios gozem de especiais garantias.
A especial proteo destes crditos deriva do facto destes se afigurarem como
contrapartida do trabalho, sendo suporte da existncia do trabalhador e da
subsistncia da sua famlia. Reconhece-se, pois, uma dimenso social ou alimentar do
salrio. Finalmente, h quem lhe atribua, ainda, uma dimenso de instrumento de
poltica econmica, relacionando a sua determinao com a concertao social e a
contratao coletiva4.
4 Cfr. ANTNIO DE LEMOS MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra,
2010, p. 467.
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Tais garantias especiais dos crditos laborais encontram-se consagradas em
diversa legislao, com destaque para o CT. Entre elas, encontram-se as seguintes:
1) Regime dos arts 334 e 335 do CT, que refora a responsabilidade do
empregador pelo pagamento dos crditos laborais, estabelecendo a responsabilidade
solidria do empregador e da sociedade que com este se encontre em relao de
participaes recprocas, domnio ou grupo5 e a responsabilidade solidria dos scios6,
gerentes, administradores e diretores7/8;
2) Regime relativo prescrio dos crditos laborais, previsto no art. 337
do CT: impossibilidade de prescrio na pendncia da relao laboral, prescrevendo
os mesmos um ano aps a cessao da relao de trabalho9;
3) Previso da proibio da diminuio do salrio princpio da
irredutibilidade (art. 129, n. 1, alnea d) do CT);
4) Manuteno da retribuio mesmo sem trabalho efetivo
(designadamente, em feriados, casos de suspenso prolongada do contrato por
motivos relacionados com a empresa, certas faltas justificadas, crditos de horas por
motivos sindicais ou outros arts. 255, n. 1 e n. 2 a contrario, 364, n. 1, 408, n. 2
e 467, n. 1, do CT10);
5) Insusceptibilidade de cesso da remunerao (art. 280 do CT),
impossibilidade (em regra) de compensao e descontos durante a pendncia do
contrato (art. 279 do CT) e parcial impenhorabilidade da retribuio (art. 824, n. 1,
5 Arts. 481 e ss do Cdigo das Sociedades Comerciais CSC. 6 Art. 83 do CSC - desde que se verifiquem os pressupostos dos arts. 78, 79 e 83 do mesmo
diploma. 7 Quando se verifiquem os pressupostos dos arts. 78 e 79 do CSC. JOANA COSTEIRA, Os efeitos da
declarao de insolvncia no contrato de trabalho: a tutela dos crditos laborais, Almedina, Coimbra, 2013, p. 94.
8 BERNARDO DA GAMA LOBO XAVIER salienta que, nestes ltimos casos, a responsabilidade depende da alegao e prova dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual. Manual de Direito do Trabalho, Verbo, Lisboa, 2014, p. 626. Tambm JLIO MANUEL VIEIRA GOMES esclarece que se trata de responsabilidade subjectiva: Direito do Trabalho. Volume I. Relaes Individuais de Trabalho, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 902.
9 Esta interpretao, embora durante dcadas sustentada pelas doutrina e jurisprudncia maioritrias, parece comear a merecer alguma crtica, como a de BERNARDO DA GAMA LOBO XAVIER. O autor afirma que o regime do art. 337 do CT deve ser entendido como um complemento do sistema do Direito Civil, pelo que dever aplicar-se o prazo geral de prescrio de 20 anos e o de 5 anos previstos no Cdigo Civil (CC), devendo, ainda, estender-se tal regime prescricional aos direitos de impugnao. Prescrio dos crditos laborais, Revista de Direito e de Estudos Sociais (RDES), n.os 1-4, ano XLIX, 2008, pp. 254 e 255. O autor retoma o assunto em Prescrio nas relaes de trabalho (uma questo polmica), RDES, n.os 3-4, julho-dezembro 2012, 7-41.
10 BERNARDO DA GAMA LOBO XAVIER, Manual de Direito do Trabalho, cit., p. 619.
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alnea a) do Cdigo de Processo Civil)11. Note-se que o art. 62, n. 3, do revogado
Cdigo dos Processos Especiais de Recuperao da Empresa e de Falncia (Decreto-
Lei n. 132/93, de 23-04) refletia a ideia de indisponibilidade parcial dos crditos
laborais: qualquer reduo do valor dos crditos dos trabalhadores dever ter como limite a medida
da sua penhorabilidade e depender do acordo expresso destes12/13;
6) O pagamento da retribuio deve ser imediatamente aps o vencimento
da mesma ou at no dia til anterior (art. 278, n. 4, do CT);
7) O atraso no pagamento da retribuio configura mora do empregador
(art. 323, n. 2, do CT);
8) A falta de pagamento da remunerao no momento do seu vencimento
consubstancia contraordenao grave (art. 278, n. 6, do CT);
9) A falta de pagamento, nos termos legais, da retribuio de frias,
subsdios de frias e de Natal e retribuio de trabalho noturno consubstancia
contraordenao muito grave (arts. 263, n. 3 e 264, n. 4, do CT);
10) A falta de cumprimento dos requisitos legais quanto ao pagamento da
retribuio por iseno de horrio de trabalho, da retribuio por exerccio de funes
afins ou funcionalmente ligadas com retribuio mais elevada e do trabalho
suplementar, constitui contraordenao grave (arts. 265, n. 3, 267, n. 2 e 268, n.
4, do CT);
11) A falta de pagamento da retribuio pode, em determinados casos,
fundamentar a suspenso do contrato de trabalho (arts. 323, n. 3 e 325 e ss do CT)
ou a sua resoluo com justa causa (arts. 323, n. 3, 394, n. 2, alnea a) e 394, n. 3,
alnea c) do CT);
12) Impossibilidade de prtica de determinados atos que possam diminuir
patrimnio do empregador quando o empregador esteja em situao de falta de
pagamento pontual da retribuio (art. 313 ex vi do art. 324, n. 1, do CT);
11 Ibidem, p. 995. 12 Sobre este preceito, vd. ANTNIO NUNES DE CARVALHO, Reflexos laborais do Cdigo dos
Processos Especiais de Recuperao de Empresa e de Falncia, RDES, n.os 1-2-3, 1995, p. 84. 13 BERNARDO DA GAMA LOBO XAVIER entende que as posies inderrogveis so apenas quanto
aos direitos primrios prestao, sendo que sobre as pretenses de natureza patrimonial em caso de violao desses direitos (ou seja, as prestaes secundrias de carter indemnizatrio) podero recair confisso, transao, renncia e prescrio. Para mais desenvolvimentos, veja-se o Manual de Direito do Trabalho, cit., p. 996. Defende ainda o autor que possvel a renncia aps a extino do vnculo contratual, posio tambm manifestada por ANTNIO NUNES DE CARVALHO. Cfr. respetivamente Manual de Direito do Trabalho, cit., pp. 621 e Reflexos laborais do Cdigo dos Processos Especiais de Recuperao de Empresa e de Falncia, cit., p. 84.
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13) A prtica de determinados comportamentos (art. 313 ex vi do art. 324,
n. 1, do CT) pode consubstanciar infraco criminal (art. 324, n. 3, do CT);
14) Irrenunciabilidade de certos crditos laborais, como os que decorrem de
acidentes de trabalho e doenas profissionais: consagrao da nulidade de acordos no
mbito das prestaes decorrentes de acidente de trabalho (art. 12 da Lei n.
98/2009, de 04-09, que regulamenta o regime de reparao de acidentes de trabalho e
doenas profissionais LAT ) e natureza dos crditos derivados daquele diploma,
qualificados como inalienveis, impenhorveis e irrenunciveis (art. 78 da LAT)14;
15) Possibilidade de condenao para alm do pedido em processo do
trabalho (art. 74 do Cdigo de Processo do Trabalho), refletindo mais uma vez a
tendencial irrenunciabilidade aos crditos laborais;
16) O regime dos arts. 25 a 31 da Lei 105/2009, de 14-09: quando o
trabalhador for alvo de execues tendo crditos laborais vencidos e no pagos,
poder haver suspenso de execues fiscais, suspenso de venda de bens
penhorados ou dados em garantia, suspenso da execuo de sentena de despejo15).
Para alm das garantias supra referidas, as garantias mais significativas dos
crditos laborais esto previstas nos arts. 333 e 336 do CT e consistem nos
privilgios creditrios atribudos aos crditos laborais e, bem assim, na possibilidade
de acesso ao Fundo de Garantia Salarial (FGS)16.
Mas, afinal, que crditos esto abrangidos por esta tutela? Apenas os salrios,
como se diz no art. 59, n. 3, da CRP? Ora, entende-se atualmente de forma pacfica,
atenta a redao atual dos arts. 333 e 336 do CT, que no s os crditos emergentes
do contrato de trabalho, mas tambm os crditos decorrentes da sua violao e da
sua cessao esto abrangidos por esta tutela.
De facto, os trabalhadores podem ser credores da entidade empregadora,
detendo crditos referentes execuo do contrato de trabalho (remunerao,
14 BERNARDO DA GAMA LOBO XAVIER atenta que no h referncia expressa na lei a qualquer
indisponibilidade de posies jurdicas dos trabalhadores, embora no caso da retribuio a irrenunciabilidade resulte de todo o sistema legislativo laboral o trabalhador no pode renunciar previamente, ainda que parcialmente, aos crditos garantidos por lei ou instrumento de regulamentao coletiva de trabalho. Sobre esta matria, veja-se Manual de Direito do Trabalho, cit., pp. 620 e 994.
15 ROSRIO PALMA RAMALHO critica estas duas ltimas hipteses, porquanto fazem recair sobre terceiros as consequncias do incumprimento do empregador; a autora adianta, ainda, que poder haver inconstitucionalidade por quebra dos princpios igualdade e proporcionalidade. Tratado de Direito do Trabalho. Parte II. Situaes Laborais Individuais, Almedina, Coimbra, dezembro 2012, p. 606.
16 Nesta matria deve atender-se Diretiva n. 80/987 e Diretiva n. 2008/94, de 22 de outubro, referentes a proteo dos trabalhadores em caso de insolvncia.
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subsdio de alimentao, subsdio de frias e Natal, subsdio de turno, e mesmo
crditos excecionais como gratificaes extraordinrias, participaes nos lucros17,
prestaes decorrentes da LAT art. 78 LAT , entre outros), bem como crditos
atinentes violao ou cessao do contrato de trabalho.
Entre estes ltimos encontram-se, designadamente, os proporcionais de frias,
de subsdio de frias e de subsdio de Natal, os crditos indemnizatrios (que
derivam, designadamente, da indemnizao devida pela resoluo do contrato com
justa causa pelo trabalhador nos termos do art. 396 do Cdigo do Trabalho CT ,
ou os que resultam de indemnizao devida pela cessao do contrato de trabalho que
resulta de despedimento ilcito, prevista na alnea a) do n. 2 do art. 389 do CT, ou
ainda, devidos em substituio da reintegrao, a pedido do trabalhador, consagrados
no art. 391 do CT), e os crditos compensatrios (resultantes da compensao devida
por cessao do contrato por despedimento coletivo, extino do posto de trabalho,
despedimento por inadaptao arts. 344, n. 2, 345, n.4, 346, n. 5, 347, n. 5,
366, 372 e 379 do CT18).
Com o CT reforou-se este regime, estendendo estas garantias no s aos
crditos salariais, mas tambm aos crditos decorrentes da violao e cessao do
contrato.
2.1. Graduao: privilgios creditrios
Atualmente, os privilgios creditrios esto previstos no art. 333 do CT.
Recorde-se que os privilgios creditrios correspondem faculdade que a lei,
em ateno causa do crdito, concede a certos credores, independentemente do
regime, de serem pagos com preferncia a outros (art. 733 do CC).
Ora, dispe o CT que quer os crditos laborais (todos eles, como se viu)
beneficiam dos seguintes privilgios creditrios:
17 JOANA COSTEIRA, op. cit., p. 102. 18 Distinguindo os diversos crditos entre remuneratrios, indemnizatrios e compensatrios, veja-se
JOANA COSTEIRA, op. cit., p. 86. Todavia, parece-nos que nem sempre esta classificao poder coincidir ou sobrepor-se distino entre crditos decorrentes da cessao, violao ou cessao do contrato, respectivamente, j que, a ttulo de exemplo, os crditos decorrentes do direito reparao decorrentes da LAT podero ser considerados crditos indemnizatrios, embora decorram da execuo do contrato de trabalho e no necessariamente da sua violao nem certamente da sua cessao.
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a) Privilgio mobilirio geral19;
b) Privilgio imobilirio especial sobre bem imvel do empregador no qual o
trabalhador presta a sua atividade.
Note-se que, nos termos dos arts. 47, n. 4, alnea a) e 97 do CIRE, estas
garantias no se extinguem com a declarao insolvncia. Diramos que nos parece
evidente que tais privilgios tambm no extinguem com a situao de pendncia de
processo de revitalizao da empresa, mantendo-se tais garantias sobre os crditos
laborais mesmo em tal hiptese, independentemente de tal garantia ser ou no
expressamente referida no plano de recuperao da empresa20.
Estes privilgios configuram uma derrogao ao princpio par conditio
creditorum, que significa que, em princpio, os credores esto em p de igualdade
perante o devedor, pelo que ocuparo posio de paridade (art. 604, n. 1, do CC). A
ideia da criao deste princpio da igualdade dos credores, seria fazer solucionar
facilmente um problema distributivo complexo, fazendo ceder o princpio em face de
causas legtimas de preferncia21. Para outros autores, o princpio corresponde a uma
justia distributiva, a uma comunho de perdas ou comunho no risco22.
De qualquer forma, o princpio par conditio creditorum significa tratar igual o
que igual e diferente o que diferente. Assim, desde que justificada no caso
concreto, a discriminao resultante dos privilgios creditrios permite a realizao
da satisfao comunitria23. Como tal, entende-se que os crditos laborais so causas
legtimas de preferncia24, beneficiando, portanto, os credores laborais de um
tratamento desigual justificado.
Nesta matria, cumpre referir que o art. 17-H do CIRE, surgido aquando da
criao do processo especial de revitalizao e aditado ao CIRE pela Lei n. 16/2012,
19 MIGUEL LUCAS PIRES defende que este deveria ser um privilgio mobilirio especial, sobre
todos os instrumentos de trabalho afetos atividade do trabalhador, de modo a melhorar a graduao deste privilgio Garantia dos crditos laborais, in Cdigo do Trabalho. A Reviso de 2009, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, p. 392.
20 Assim, os crditos laborais sempre beneficiaro das garantias que acima melhor descrevemos, em especial dos privilgios creditrios do art. 333 do CT. Todavia, a possibilidade de eliminao e alterao da graduao de tais garantias foi discutida nos arestos do Tribunal da Relao de Guimares, de 17-12-2013, relatado por Paulo Duarte Barreto, e do Tribunal da Relao de Guimares, de 19/06/2014, relatado por Helena Melo, que abordaremos adiante, onde se debatia a hiptese de um devedor colocar em causa, por via do plano de recuperao, a persistncia e a graduao legalmente conferida aos privilgios creditrios dos trabalhadores.
21 JOANA COSTEIRA, op. cit.,, p. 107. 22 Ibidem, p. 108. 23 Ibidem, p. 112. 24 Ibidem, p. 109.
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de 20-04, prev que 1 - As garantias convencionadas entre o devedor e os seus credores durante o
processo especial de revitalizao, com a finalidade de proporcionar quele os necessrios meios
financeiros para o desenvolvimento da sua atividade, mantm-se mesmo que, findo o processo, venha a
ser declarada, no prazo de dois anos, a insolvncia do devedor.2 - Os credores que, no decurso do
processo, financiem a atividade do devedor disponibilizando-lhe capital para a sua revitalizao gozam
de privilgio creditrio mobilirio geral, graduado antes do privilgio creditrio mobilirio geral
concedido aos trabalhadores. Sendo assim, a nosso ver, este preceito coloca problemas
significativos de articulao com o regime que acima identificmos, j que a
graduao dos privilgios dos crditos laborais, constitucionalmente garantidos,
aqui alterada, dando-se prevalncia aos crditos do credor financiador.
CATARINA SERRA discute se estas garantias so constitudas apenas para
os credores financeiros stricto sensu, que disponibilizem meios financeiros ou capital
empresa25, ou se tambm abarca os trabalhadores, que so indispensveis para a
continuidade da empresa, sendo a autora da opinio de que estes esto tambm
abrangidos26.
Ora, no obstante reconheamos a bondade e justia material inerente a tal
posio, entendemos que o preceito no poder interpretar-se dessa forma, j que o
legislador mal ou bem27 , ao graduar expressamente aquela garantia antes do
privilgio mobilirio geral dos trabalhadores, quis beneficiar de forma especial
aqueles credores financiadores, distinguindo-os claramente dos trabalhadores.
Parece-nos que o legislador quis, precisamente, afastar a fora das garantias dos
crditos laborais. Com efeito, que o legislador se esqueceu da essencialidade dos
trabalhadores para a viabilidade e continuidade da empresa (tal como sublinha
CATARINA SERRA28) parece evidente, mas no podemos ir alm da letra e do
esprito da lei e tentar contornar os mesmos contrariando a expressa vontade do
legislador.
Ademais, CATARINA SERRA esclarece que este privilgio do 17-H do CIRE,
quanto aos crditos laborais, ser apenas aplicvel aos crditos relativos s prestaes
de trabalho efetuadas durante o PER, enquanto que os privilgios constantes do 333 do
25 CATARINA SERRA, Para um novo entendimento dos crditos laborais na insolvncia e na pr-
insolvncia da empresa Um contributo feito de velhas e novas questes, Questes Laborais, n. 42 - nmero especial comemorativo dos 20 anos da Revista, janeiro 2014, p. 202.
26 Sobre as vantagens desta interpretao, veja-se Para um novo entendimento, cit., pp. 203 e 204.
27 Mal, a nosso ver. 28 CATARINA SERRA, Para um novo entendimento, cit., p. 203.
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CT beneficiaro todos os crditos laborais, anteriores ao processo especial de
revitalizao e posteriores ao mesmo29. Todavia, entendemos que os crditos laborais
referentes execuo do contrato de trabalho durante o processo especial de
revitalizao devem equiparar-se s dvidas da massa em sede de insolvncia,
devendo, portanto, ser pagas preferencialmente (arts. 172 e 219 do CIRE), no
devendo ser includas no plano de recuperao, que abranger apenas os crditos
vencidos at ao recebimento do processo especial de revitalizao e nomeao do
Administrador Judicial Provisrio (AJP)30 ou, quando muito, at data do termo do
prazo para a reclamao de crditos31. Na nossa opinio, aquele o momento do
reset, em que se fixa o passivo da empresa que vai ser sujeito a reestruturao32.
Como tal, estes crditos remuneratrios no tm porque beneficiar de tal garantia
acrescida.
Alm disto, a autora afirma que a interpretao literal daquele preceito
afastaria da mesma os credores fornecedores que disponibilizam matria prima e os
credores trabalhadores que se dispem a prestar trabalho, ambos essenciais
continuidade da empresa33. Mais uma vez, reconhecemos a retido e justia do
pensamento subjacente a este argumento, mas a soluo dada corresponderia a uma
proliferao de credores financiadores com tal privilgio, passando estes a ter no
uma garantia excecional34, mas uma garantia comum a vrios credores, o que
afastaria a ratio da criao da mesma, que , no nosso entendimento, a de incentivar
determinados credores a assumirem o risco do financiamento de uma empresa em
29 Ibidem, p. 205. 30 Neste sentido, Acrdo do Tribunal da Relao do Porto de 05-01-2015, relatado por Fernanda
Soares. 31 Acrdo do Tribunal da Relao do Porto de 27-01-2015, relatado por Mrcia Portela, no
publicado. Neste sentido, referindo que os crditos constitudos aps o termo do prazo para a reclamao de crditos no so atendidos no processo especial de revitalizao nem afetados pelo plano, vd. NUNO SALAZAR CASANOVA e DAVID SEQUEIRA DINIS, PER o Processo especial de revitalizao. Comentrios aos artigos 17-A a 17-I do Cdigo da Insolvncia e da Recuperao de Empresas, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, p. 57. Ainda assim, os autores admitem que os crditos no vencidos possam ser reclamados, em determinadas circunstncias. Op. cit., p. 66.
32 Exceo feita para os crditos sob condio suspensiva que sejam reconhecidos pela prpria empresa, como veremos, como pode suceder se a empresa prev desde logo no seu plano de recuperao a realizao de um despedimento coletivo, prevendo, em consequncia, os valores de crditos laborais de que os trabalhadores sero titulares e prevendo uma forma de pagamento de tais crditos dilatada no tempo.
33 CATARINA SERRA, Processo especial de revitalizao contributos para uma rectificao, Revista da Ordem dos Advogados, abril-setembro 2012, p. 731.
34 FTIMA REIS SILVA salienta, precisamente, esta caracterstica da excecionalidade, para recusar conceder a este preceito uma interpretao extensiva como a que dada por JOO LABAREDA. Processo Especial de revitalizao. Notas prticas e jurisprudncia recente, Porto Editora, Porto, 2014, p. 76.
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situao financeira difcil, garantindo que para esse credor financiador que aparea
como salvador da empresa em processo especial de revitalizao haja um
tratamento realmente diferenciado caso o plano de recuperao no tenha sucesso.
2.2. Fundo de Garantia Salarial
O art. 336 do CT prev o pagamento de crditos decorrentes da execuo,
violao ou cessao do contrato de trabalho por parte do FGS, quando o mesmo no
possa ser concretizado pelo empregador por motivo de insolvncia ou situao
econmica difcil. O art. 12, n. 6, alnea o) da Lei preambular que aprovou o CT de
2009 (Lei n. 7/2009, de 12-02) manteve em vigor os arts 316 a 326 da
Regulamentao ao CT de 2003 (Lei 35/3004, de 29-07), que dispem sobre este
pagamento por parte do FGS.
O FGS funciona, pois, como uma ulterior garantia especial que atua no
cumprimento de uma obrigao que seria do empregador35.
Note-se, todavia, que este regime est prestes a ser alterado, estando
pendente uma alterao ao mesmo que prev o seu alargamento s hipteses de falta
de pagamento por parte do empregador devido pendncia de processo especial de
revitalizao36.
35 JOANA COSTEIRA, op. cit., p. 143. 36 Aprovado em Conselho de Ministros, conforme comunicado de 12-02-2015 disponvel em
http://www.portugal.gov.pt/pt/os-ministerios/ministro-da-presidencia-e-dos-assuntos-parlamentares/documentos-oficiais/20150212-cm-comunicado.aspx. Note-se que a proposta de Decreto-lei divulgada no Boletim do Trabalho e Emprego n. 6, de 05-12-2014, para apreciao pblica, nos coloca srias dvidas quanto forma como se vai executar este novo regime. De facto, o empregador dever prever no plano de recuperao o pagamento em prestaes aos trabalhadores ou ao FGS? Ser uma dvida a negociar de forma independente? Ou o FGS sub-roga-se nos direitos e tambm na posio dos trabalhadores no plano de recuperao que seja aprovado, submetendo-se e vinculando-se posio adotada pelo trabalhador? E se o trabalhador tiver votado favoravelmente reduo do seu crdito, o FGS pode pedir do empregador a devoluo do que pagou a mais ao trabalhador, ou s o poder reclamar ao prprio trabalhador? Ou independentemente de ter ou no pago a mais ao trabalhador, pode exigir ao empregador ou ter de reclamar do prprio trabalhador o valor da parte do crdito perdoado? E se o plano, mesmo sem o voto favorvel do trabalhador, for aceite com reduo do crdito laboral? O FGS fica sujeito s disposies do plano? Muitas so as inquietaes que nos coloca esta soluo, e que tentaremos aflorar em prximos estudos sobre a matria, consoante a redao final que o diploma venha a obter.
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VI Congresso Internacional de Cincias Jurdico-Empresariais
3. Particularidades do tratamento dos crditos laborais no
Processo Especial de Revitalizao
So vrias e profundas as divergncias que assolam a doutrina e a
jurisprudncia em matria de tratamento dos crditos laborais em sede de processo
de insolvncia. Diramos que, em regra, tais diferenas resultam de diferentes
entendimentos quanto a esta matria: uns mais prximos do direito insolvencial,
outros com tendncia mais social, tentando conciliar as particularidades de ambos os
ramos do Direito.
Assim, no foi com espanto que percebemos que, com a criao de um novo
processo no mbito do CIRE, novos problemas se levantaram, desta feita
relativamente ao tratamento dos crditos laborais em sede de processo especial de
revitalizao.
Com efeito, o memorando de entendimento sobre as condicionalidades de
poltica econmica previa o seguinte: A fim de melhor facilitar a recuperao efectiva de
empresas viveis, o Cdigo de Insolvncia ser alterado () para, entre outras, introduzir uma maior
rapidez nos procedimentos judiciais de aprovao de planos de reestruturao. O fito da criao do
processo especial de revitalizao seria, portanto, a obteno da recuperao do
devedor, privilegiando a sua manuteno no giro comercial.
Ora, como afirmmos a ttulo introdutrio, alguns planos de recuperao tm
previsto propostas de pagamento dos crditos laborais em termos que nos parecem de
duvidosa conformidade legal, concedendo-lhes um tratamento que nos parece
desadequado sua natureza e graduao. Assim, impe-se discutir o reflexo que o
memorando teve, nesta matria, sobre os trabalhadores.
De facto, alguns planos de recuperao que encontrmos, quer na nossa
prtica profissional, quer na anlise da jurisprudncia sobre a matria, prevem
para o pagamento dos crditos laborais solues como o perdo de dvida (de capital
e/ou de juros)37, o pagamento dos crditos em prestaes, o estabelecimento de
perodos de carncia (por exemplo, 30 meses aps homologao do plano38), e
nenhuma garantia de tal pagamento39.
37 A ttulo de exemplo, veja-se um perdo de dvida de 50% no Acrdo do Tribunal da Relao de
Guimares, de 17-12-2013, relatado por Paulo Duarte Barreto. 38 Cfr. o Acrdo do Tribunal da Relao do Porto, de 30-06-2014, relatado por Caimoto Jcome. 39 Nenhuma garantia adicional, acrescentaramos, j que, como adiantmos acima, os crditos
sempre beneficiaro dos privilgios creditrios do art. 333 do CT.
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Ademais, outros problemas se colocam quanto ao tratamento distinto que
dado aos contratos de trabalho que cessam e aos que se mantm.
Analisaremos de perto a jurisprudncia que encontrmos nesta matria, para
perceber as diferentes posies que se tm encontrado relativamente ao assunto.
Em aresto do Tribunal da Relao de Guimares de 18-06-2013, relatado por
Rosa Tching, em que se discutia o facto de os crditos da Segurana Social terem
mais garantias do que os crditos laborais e serem pagos sem perodo de carncia e
com juros, o que violaria o princpio da igualdade, o Tribunal entendeu no ocorrer
tal violao. Apoiou o seu entendimento no facto de que a Lei n. 16/2012, de 20-04,
revelou uma mudana de paradigma do regime insolvencial, promovendo a
recuperao, privilegiando a manuteno do devedor no giro comercial. Ademais,
ponderou a comparao com a situao de insolvncia, concluindo que esta no seria
obrigatoriamente melhor, j que, em situao de liquidao, o valor do ativo
diminuiria, as custas do processo teriam de ser pagas, e o despedimento de mais
trabalhadores traria um aumento global da dvida, para alm de eliminar postos de
trabalho. Em relao ao princpio da igualdade, esclareceu que este permite
diferenciaes objetivas em funo da classificao e categorias hierrquicas dos
crditos, bem como da diversidade das suas fontes/origem, pelo que, in casu, a origem
dos crditos crditos tributrios da Segurana Social servem o pagamento e
proteo de todas as situaes de falta ou diminuio de meios de subsistncia ou de
capacidade de trabalho justificaria um tratamento diferenciado.
J na deciso do mesmo Tribunal, de 25-11-2013, da relatora Manuela Fialho,
alcanou-se concluso distinta. Em causa estava uma proposta de pagamento de
crditos laborais em 24 prestaes mensais, com um ano de carncia, perdo de juros
e sem constituio de qualquer garantia. Por um lado, o Tribunal entendeu que no
se havia demonstrado que o plano de revitalizao seria pior do que seria a hiptese
de insolvncia. Mas entendeu, por outro lado, que havia violao do princpio da
igualdade, porquanto se tratava de forma diferente credores iguais (ambos credores
privilegiados), sem justificao. Assim, concluiu o Tribunal que viola o princpio da
igualdade o Plano de Recuperao que, relativamente a credores privilegiados, prope apenas para um
dos grupos de credores o incio imediato do pagamento das prestaes mensais, a constituio de
garantias patrimoniais e o pagamento dos juros vincendos, enquanto que para o outro grupo de credores
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privilegiados, os credores laborais, prev apenas o pagamento dos crditos em prestaes mensais, com
um ano de carncia, sem constituio de qualquer garantia nem pagamento dos juros vincendos.
No mesmo sentido, no acrdo do mesmo Tribunal, de 17-12-2013, relatado
por Paulo Duarte Barreto, afirmou-se que violaria o princpio igualdade dos credores
a previso de pagamento Administrao Tributria e Segurana Social da
totalidade do capital e juros, garantidos por hipoteca, sendo o pagamento dos
credores laborais realizado com reduo de 50% do capital em dvida e perdo de
juros, prevendo-se o pagamento em 168 prestaes, com um perodo de carncia de 24
meses e eliminao da garantia do privilgio mobilirio. Adiantou o Tribunal que no
se pode proteger o devedor custa desproporcionada do credor, concluindo que, in
casu, havia um evidente desequilbrio, sendo a recuperao da empresa feita custa
dos trabalhadores, em especial sem o assentimento destes. Alm da violao do
princpio da igualdade, a situao seria mais favorvel sem o plano de recuperao do
que com ele.
Em sentido contrrio, o Supremo Tribunal de Justia, em aresto de 25-03-
2014, relatado por Fonseca Ramos, adiantou que Com o advento de nova realidade
econmica, em tempo de crise global e por imposio da troika, assumida pelo Estado Portugus o
CIRE a lei insolvencial vigente, coloca a tnica na recuperao sendo essa a ratio do diploma.
Apreciando a violao do princpio da igualdade, afirmou aquele Tribunal Superior
que O princpio da igualdade dos credores par conditio creditorum no confere, aos que deles
beneficiam, um direito absoluto, pese embora a natureza muito peculiar do crdito salarial que visa
remunerar a fora do trabalho, muitas vezes nico bem de quem trabalha. Esse direito de crdito pode
sofrer afrouxamento ou restrio como decorre do texto constitucional que contempla, a par do princpio
da igualdade, o princpio da proporcionalidade e da proibio do arbtrio coenvolvidos na legalidade do
exerccio de direitos e deveres, como apangio do estado de Direito baseado na dignidade da pessoa
humana art. 1 da Lei Fundamental. 5. Ponderando que o PER tem como fim primordial a recuperao
da empresa, a derrogao do princpio da igualdade dos credores legtima num quadro de ponderao
de interesses o interesse individual por contraposio ao colectivo se este se situar num patamar
material e fundadamente superior em funo dos direitos que devem ser salvaguardados, atendendo a
sua relevncia pblica. Assim, concluiu que os direitos decorrentes de garantias reais e
privilgios creditrios podem ser atingidos, desde que a afetao conste do plano e
nos termos nele previstos, no sendo necessrio o consentimento dos credores
afetados. Ponderando o princpio da proporcionalidade, entendeu que a derrogao do
princpio da igualdade dos credores legtima num quadro de ponderao de
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interesses, j que o processo especial de revitalizao tem como fim primordial a
recuperao da empresa.
Por seu turno, o Tribunal da Relao de Guimares, em 19/06/2014, em aresto
relatado por Helena Melo, asseverou que o facto de um dos crditos garantidos ser de
valor significativamente superior aos demais crditos garantidos e privilegiados no
justifica uma diferena de tratamento entre credores de modo a que a esse credor tudo seja concedido
capital integral, pagamento de juros vencidos e vincendos e das despesas efectuadas e os
trabalhadores titulares dos crditos privilegiados, tenham que prescindir dos juros vencidos ().Em
rigor, o aresto rejeitou que, atravs da aprovao do plano de recuperao no mbito
do processo especial de revitalizao, aos trabalhadores fosse negada a graduao da
garantia legalmente constituda para os seus crditos.
Em suma, como vimos, h decises da jurisprudncia em sentidos opostos
relativamente aos mesmos problemas: a apreciao da eventual violao do princpio
da igualdade (art. 194 do CIRE) e a comparao da situao obtida com o plano com
a situao que seria obtida sem o mesmo (art. 216, n. 1, alnea a) do CIRE).
Todavia, o que no ponderada a natureza especial dos crditos laborais,
constitucionalmente consagrada. De facto, em momento algum os aludidos arestos se
debruam sobre as especiais garantias que a CRP confere aos crditos laborais e que,
com a aprovao e homologao dos planos de recuperao em causa ficaram parcial
ou totalmente anuladas.
Repare-se que, como se disse, todo o sistema laboral construdo sob a
perspetiva da (tendencial) irrenunciabilidade, irredutibilidade e indisponibilidade
dos crditos laborais. E se tais caractersticas parecem poder desaparecer aps a
cessao do contrato, a verdade que na pendncia do mesmo aquelas mantm-se.
Como tal, choca-nos profundamente que um plano de pagamentos preveja, por
exemplo, um perdo de capital de 50 % dos crditos laborais, quando falmos, muitas
vezes, no apenas de crditos indemnizatrios ou compensatrios, mas de crditos
referentes prpria execuo do contrato de trabalho, ou seja, atinentes
remunerao devida pela efetiva prestao laboral.
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VI Congresso Internacional de Cincias Jurdico-Empresariais
Assim, embora entendamos que a anlise deve ser casustica40, parece-nos
evidente que qualquer plano que preveja o perdo de crditos referentes execuo
do contrato de trabalho no conforme legislao (laboral) nem s garantias
constitucionais conferidas ao salrio.
O mesmo sucede com a exagerada dilao no tempo do pagamento previsto.
evidente que o legislador no nos impe um prazo para tal pagamento41, mas o prazo
deve ser razovel e, no limite, no deve impedir o exerccio dos direitos do
trabalhador inerentes a tal pagamento. Isto assinalado na sentena do 1 Juzo do
Tribunal de Trabalho de Vila Nova de Gaia, de 23-05-2014, proferida no mbito de
providncia cautelar de suspenso de despedimento coletivo com o n. de processo
387/14.8TTVNG, no publicada. Nesta sentena concluiu-se que a aplicao do art.
363 n. 5 do CT (possibilidade de pagamento das compensaes devidas em caso de
despedimento coletivo de outra forma que no at ao termo do prazo de aviso prvio)
possvel em caso de processo especial de revitalizao, mas apenas aps a
homologao judicial do acordo. Ademais, se no plano de recuperao se previr o
pagamento da compensao para alm dos seis meses aps a cessao dos contratos,
tal consubstanciar uma ilicitude do plano, por impossibilitar que, na prtica, o
trabalhador possa impugnar o despedimento coletivo com fundamento na sua
ilicitude por falta de pagamento da compensao devida (art. 383, alnea c), do CT).
Esclarece a deciso deste Tribunal que estaria encontrada a forma de promover despedimentos
coletivos sem o pagamento das compensaes, bastando para isso instaurar um PER.
Aqui se revela um outro problema a apreciar em sede de processo especial de
revitalizao: quais os crditos a atender no plano de recuperao?
Conforme referimos atrs, entendemos que o momento que determina qual o
passivo que vai ser afetado pelo plano de recuperao o despacho que recebe o
processo especial de revitalizao e nomeia o AJP. Como tal, evidente que os
crditos no reclamados pelo credor nem reconhecidos pelo devedor no processo
especial de revitalizao e, em consequncia, no constantes da lista provisria de
40 Atendendo natureza do crdito laboral em causa, situao laboral do trabalhador, concreta
forma de pagamento que proposta ao mesmo, entre outros elementos. 41 Como sucede, por exemplo, no Brasil, em que o pagamento dos crditos laborais vencidos at
entrada do processo de recuperao tem como limite o prazo de um ano, sendo que os crditos de natureza estritamente salarial vencidos nos 3 (trs) meses anteriores ao pedido de recuperao judicial devem ser pagos no prazo mximo de trinta dias - art. 54 da Lei 11.101, de 09-02-2005.
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credores, no podero ser abrangidos pelo plano de recuperao, pois no se permitiu
aos credores a sua participao nas negociaes e votao do plano.
Maiores problemas se colocam quanto aos crditos que se venam depois da
entrada do processo especial de revitalizao, mas que o trabalhador reclame ou o
empregador reconhea como crditos sob condio suspensiva. o caso dos crditos
decorrentes da cessao do contrato que o trabalhador preveja (porque vai recorrer,
por exemplo, resoluo com justa causa por falta de pagamento da remunerao) ou
que o empregador antecipe, por pretender prever como medida da execuo do plano
de recuperao um despedimento coletivo.
Ora, h quem entenda que no se lhes pode aplicar o plano de recuperao,
porquanto no eram, data de entrada em juzo do processo, crditos vencidos42, no
podendo ser admitidos crditos sob condio suspensiva43.
esta a posio explanada no aresto do Tribunal da Relao do Porto de 27-
01-2015, relatado por Mrcia Portela, no publicado. Neste assunto, o despacho
proferido em primeira instncia determinou que () no que concerne incluso no plano de
recuperao do pagamento dos crditos aos trabalhadores constitudos aps o prazo de reclamao de
crditos, entende-se que os mesmos no podem ser atendidos no aludido plano, mas no so afectados
pelo mesmo, na medida em que, data do termo para reclamao de crditos, ainda no eram credores.
Contudo, a impossibilidade legal de atendimento dos citados crditos no impeditiva da deciso de
homologao da aprovao do plano votado pela maioria dos credores, pois que, neste caso, apenas se
dever considerar que o plano homologado ineficaz relativamente aos mencionados crditos, no
produzindo quaisquer efeitos quanto a estes () produzindo, contudo, os seus efeitos relativamente aos
demais credores. Desta deciso recorreu o devedor, dizendo que, no se incluindo
aqueles crditos no processo especial de revitalizao, os efeitos prticos do mesmo
ficaro muito limitados, gerando instabilidade e pondo em causa o sucesso do mesmo,
mais adiantando que soluo inversa criaria desigualdade entre trabalhadores.
Ademais, a indemnizao de antiguidade reporta-se a trabalho prestado
anteriormente, nada obstando a que crditos decorrentes da cessao do contrato,
como crditos sob condio suspensiva, se incluam no plano, sendo que a baliza
temporal para efeitos de determinao de quais os crditos abrangidos pelo plano
42 NUNO SALAZAR CASANOVA e DAVID SEQUEIRA DINIS afirmam que o crdito deve ser
atendido no PER pelo valor estimvel em euros data do despacho judicial de nomeao de administrador judicial provisrio () Os crditos, para serem reclamados, tm de existir, ou seja, tm de estar constitudos. No so, portanto, reclamveis crditos futuros. Os autores identificam esta como sendo, alis, uma das grandes fragilidades do PER. Op. cit., p. 55.
43 Conforme doutrina referida acima.
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deveria ser o trnsito em julgado da sentena de homologao. Ora, o Tribunal
Superior veio a confirmar a deciso da primeira instncia, concluindo o seguinte: Os
crditos relevantes para o PER so aqueles que se considerem constitudos at ao termo do prazo para a
reclamao de crditos. Por outras palavras, os crditos existentes. Conclui, ainda, que a
sentena recorrida no merece censura, sumariando: Os crditos dos trabalhadores, por
cessao do contrato de trabalho, constitudos aps o decurso do prazo da reclamao de crditos, no
podem ser considerados no plano de revitalizao elaborado no mbito do PER Processo Especial de
Revitalizao. () O crdito dos trabalhadores por cessao do contrato de trabalho, antes desta ocorrer,
no podem, obviamente, considerar-se crditos sob condio suspensiva.
No mesmo sentido, veja-se o Acrdo do Tribunal da Relao do Porto, de 17-
12-2014, relatado por Eduardo Petersen Silva, que conclui que Apesar de o plano de
recuperao prever a necessidade de reduo de pessoal e o pagamento em prestaes das compensaes
devidas aos trabalhadores abrangidos pelo despedimento coletivo, tal forma de pagamento no oponvel
aos crditos constitudos em momento posterior sua aprovao. II A no disponibilizao dos
montantes da compensao devida determina a ilicitude do despedimento.
Tambm a Relao de vora, em deciso de 19-12-2013, relatada por Jos
Feteira, no mbito de providncia cautelar de suspenso de despedimento coletivo,
decidiu que, numa hiptese de despedimento coletivo levado a cabo depois da entrada
do processo especial de revitalizao, havendo uma comunicao da deciso que
informa que a compensao ser paga em prestaes, nos termos do processo especial
de revitalizao e ao abrigo do art. 363, n. 5, do CT, e no sendo a compensao
paga com a cessao do contrato, o despedimento dever ser considerado ilcito,
determinando-se a sua suspenso.
Logo, o que est em causa a articulao da forma de pagamento dos crditos
decorrentes de cessao do contrato de trabalho por despedimento coletivo com o
processo especial de revitalizao.
Em primeiro lugar, cumpre denotar que temos dois regimes em confronto: o
regime do processo especial de revitalizao (prprio do Direito da Insolvncia e da
Recuperao de Empresas) e o procedimento inerente ao despedimento coletivo,
regulado pelo Direito do Trabalho.
Ora, de acordo com o art. 363, n. 5, do CT, a compensao devida em caso de
despedimento coletivo dever, em regra, ser colocada disposio dos trabalhadores
at ao termo do prazo do aviso prvio a que se refere o n. 1 do mesmo preceito, ou
seja, at ao efetivo termo do contrato. Exceciona-se, todavia, a situao prevista no artigo
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VI Congresso Internacional de Cincias Jurdico-Empresariais
347 ou regulada em legislao especial sobre recuperao de empresas e reestruturao de sectores
econmicos. Sendo assim, poder em processo especial de revitalizao recorrer-se
exceo do n. 5 do art. 363 do CT? Caber na redao da norma o processo especial
de revitalizao?
Se certo que data de redao deste preceito este processo no existia,
parece-nos todavia que ter de ser admitida a sua incluso no mbito que a norma
ter pretendido abranger. O mesmo sucede com outras normas em que a lei se refere
a empresa em situao econmica difcil ou () em processo de recuperao de empresa, como
acontece no n. 3 do art. 298 do CT, relativamente aplicao do regime de reduo
ou suspenso dos contratos de trabalho em situao de crise empresarial (lay off) e
desnecessidade das empresas que estejam naquelas circunstncias terem a sua
situao contributiva regularizada (n. 4 do mesmo preceito). No mesmo sentido
devem entender-se os n.os 1 e 2 do art. 10 do Decreto-lei n. 220/2006, de 03-11, que
referem que se configuram como desemprego involuntrio () as situaes de cessao do
contrato de trabalho por acordo, que se integrem num processo de reduo de efectivos, quer por motivo
de reestruturao, viabilizao ou recuperao da empresa, quer ainda por a empresa se encontrar em
situao econmica difcil, independentemente da sua dimenso. 2 - Para efeitos de aplicao do nmero
anterior considera-se: a) Empresa em situao de recuperao ou viabilizao, aquela que se encontre em
processo especial de recuperao, previsto no Cdigo dos Processos Especiais de Recuperao da Empresa
e Falncia, bem como no Cdigo da Insolvncia e Recuperao de Empresa, ou no procedimento
extrajudicial de conciliao (). Destarte, a nosso ver, tambm nestas duas hipteses, dos
n.os 3 e 4 do art. 298 do CT e n.os 1 e 2 do art. 10 do Decreto-lei n. 220/2006, de 03-
11, que se referem apenas a ttulo de exemplo, a redao da lei deve entender-se
como abrangendo o processo especial de revitalizao.
Assim, por identidade de razes44, tambm a exceo do n. 5 do art. 363 deve
entender-se poder ser aplicada a estes processos. Mas como articular a aplicao da
norma com o processo especial de revitalizao?
Ora, cumpre referir que, se verdade que a norma do n. 5 do art. 363 do CT
admite que o pagamento no seja feito at ao termo do aviso prvio, tambm
verdade que no diz de que forma pode ser pago. Como tal, cautela, e atenta a
jurisprudncia do Tribunal do Trabalho de Vila Nova de Gaia que acima indicmos,
44 Que por manifesta indisponibilidade de espao no vamos expor neste texto.
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entendemos no se dever prolongar tal pagamento para alm dos seis meses aps a
cessao do contrato.
De qualquer forma, se conjugarmos a jurisprudncia laboral e a
jurisprudncia civil supra referidas, a aplicao daquele preceito em situao de
processo especial de revitalizao parece resultar impossvel!
Seno vejamos: por um lado, se os crditos decorrentes da cessao do
contrato de trabalho em caso de despedimento coletivo s se vencem com a efetiva
cessao do mesmo, e se os crditos a considerar no processo especial de revitalizao
e para efeitos de aplicao no plano tm de estar vencidos data de entrada do
processo ou at ao despacho de nomeao do AJP (jurisprudncia civil), ento tal
implicar que o despedimento coletivo seja iniciado e terminado antes da entrada do
processo, para que os crditos decorrentes das cessaes dos contratos estejam
vencidos e o pagamento dos mesmos possa ser includo no plano. Todavia, por outro
lado, se o processo de despedimento coletivo terminar (antes da entrada do processo
especial de revitalizao) sem que seja colocada disposio do trabalhador a
compensao, o despedimento ser ilcito (jurisprudncia laboral). Sendo assim, da
aplicao conjugada das teses jurisprudenciais supra referidas resulta uma
impossibilidade prtica de recorrer a um pagamento faseado dos crditos laborais em
situao de processo especial de revitalizao, sob pena de tal prtica ser ilegal.
No podemos, pois, concordar (pelo menos no integralmente) com as aludidas
interpretaes jurisprudenciais. H que atender, portanto, no s aos interesses dos
trabalhadores enquanto tal, cumprindo-se as normas procedimentais atinentes ao
procedimento do despedimento coletivo, normas essas imperativas (art. 339 do CT),
mas tambm aos interesses dos trabalhadores enquanto credores da empresa,
garantindo-lhes o acesso s mesmas formas de proteo garantidas a qualquer outro
credor que tenha participao no processo especial de revitalizao. E, de igual modo,
h que tutelar os princpios subjacentes ao processo especial de revitalizao,
garantindo que uma determinada interpretao da legislao, demasiado rigorosa e
imalevel, no obstaculize a recuperao das empresas.
Assim, na nossa opinio, desde que os crditos laborais sejam reconhecidos na
lista de credores, quer por reconhecimento do prprio devedor na petio inicial do
processo especial de revitalizao, quer por reclamao do trabalhador, permitindo,
portanto, que o trabalhador participe nas negociaes e vote o desfecho do plano,
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parece-nos razovel que os mesmos sejam englobados e afetados pelo plano de
recuperao do devedor.
Como tal, salvo melhor opinio, se o empregador quiser pagar os crditos
laborais decorrentes de despedimento coletivo em prestaes, submetendo-os ao
plano de recuperao, deve seguir um dos seguintes procedimentos:
a) Procede ao despedimento coletivo dos trabalhadores antes do processo
especial de revitalizao, sendo que neste caso os respetivos crditos j sero
necessariamente vencidos data da entrada do processo especial de revitalizao
(devendo ser indicados pelo devedor e podendo ser reclamados pelos trabalhadores,
que faro parte do processo como qualquer credor, participando nas negociaes e
votando o plano) e podero ser pagos nos termos do plano; ou, em alternativa,
b) Comunica a inteno de proceder ao despedimento coletivo aos
trabalhadores abrangidos pelo mesmo (art. 360 do CT) at ao despacho de nomeao
do AJP ou, no limite, durante o decurso do prazo para reclamao de crditos,
permitindo que os trabalhadores reclamem os seus crditos no mbito do processo
especial de revitalizao, fazendo parte do processo como qualquer credor
(participando nas negociaes e votando o plano) e sendo os seus crditos pagos nos
termos do plano de recuperao; ou, ainda, em alternativa,
c) No fazendo o despedimento coletivo antes destes momentos,
reconhece como credores, na petio inicial de apresentao do processo especial de
revitalizao, os trabalhadores a abranger no despedimento coletivo, ainda que sob
condio suspensiva, admitindo, como tal, que estes tenham participao e direito de
voto no processo especial de revitalizao e que os seus crditos sejam pagos nos
termos do plano a aprovar.
Quanto primeira e segunda posies, as mesmas apenas aparentemente
contrariam a jurisprudncia laboral. De facto, o juzo de ilicitude do despedimento
coletivo por falta de pagamento da compensao pode ser um juzo meramente
transitrio, em sede de providncia cautelar, e no ser confirmado em sede de
processo principal, se entretanto houver incluso dos crditos laborais no processo
especial de revitalizao, aprovao e homologao do plano de recuperao e
cumprimento deste. A instaurao de uma ao antes do termo de prazo para a
impugnao do despedimento coletivo ser, todavia, sempre necessria para
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interromper tal prazo de caducidade, sob pena de, no sendo pago o crdito no mbito
do plano aprovado, ser impedido o acesso do trabalhador a tal impugnao45.
Relativamente relao destas posies com a jurisprudncia civil, parece-nos
que a segunda posio mereceria acolhimento em parte da jurisprudncia.
J a terceira opo delineada, que admite que crditos no vencidos data de
entrada do processo nem at ao termo do prazo para reclamao de crditos, ou seja,
crditos meramente condicionais, eventuais ou potenciais, tenham o mesmo
tratamento que crditos vencidos anteriormente, est em oposio com parte da
jurisprudncia civil que encontrmos46. Todavia, parece-nos que esta a soluo mais
adequada compatibilizao da natureza do processo especial de revitalizao com
os crditos laborais.
Repare-se que a tramitao do despedimento coletivo demorada (no limite,
pode atingir cerca de quatro meses de durao, atendendo antiguidade dos
trabalhadores envolvidos) e, como tal, o vencimento dos crditos laborais e da
compensao derivada do despedimento coletivo, que s ocorre com a cessao do
contrato, pode ocorrer meses aps a comunicao inicial de despedimento. Ora, a
situao financeira da empresa admite, muitas vezes, que se aguarde pelo
vencimento de tais crditos para que ocorra a apresentao do processo especial de
45 Ou seja, nas hipteses referidas, no deve ser peticionada nem declarada a ilicitude do
despedimento com fundamento na alnea c) do art. 383 do CT enquanto o processo especial de revitalizao estiver pendente e for possvel a homologao do plano de recuperao que englobe o pagamento de tais crditos, salvaguardando-se apenas que no decorra o prazo para impugnao de tal despedimento.
46 Note-se que o entendimento de que apenas os crditos efetivamente vencidos (e j no os futuros ou sujeitos a condio) data de entrada do processo, data de nomeao do AJP ou at ao termo do prazo para reclamao dos crditos podem ser atendidos no processo e abrangidos pelo plano, um entendimento jurisprudencial e doutrinal que no tem assento na letra da lei.
Alis, h jurisprudncia e autores que, em sentido contrrio, entendem que os mesmos so admissveis. Na jurisprudncia, veja-se o acrdo do Tribunal da Relao de Lisboa, de 25-11-2014, relatado por Cristina Coelho, admitindo at que se a ponderao dos elementos de que dispunha sobre tais crditos fossem no sentido da probabilidade sria de verificao plena da condio, podia atribuir os votos pelo valor correspondente ao valor nominal dos crditos, o que nos parece perfeitamente defensvel no caso dos crditos laborais sob condio.
Na doutrina, vd. FTIMA REIS SILVA, Processo Especial de revitalizao, cit., p. 47 e a mesma autora em A verificao de crditos no processo de revitalizao, II Congresso de Direito da Insolvncia, Almedina, 2014, p. 265. Alis, a autora defende que releva o crdito condicional, desde que se trate de uma condio suspensiva, em sentido absolutamente contrrio ao de NUNO SALAZAR CASANOVA e DAVID SEQUEIRA DINIS, para quem relativamente aos crditos decorrentes de negcio jurdico sob condio, os mesmos podem ser reclamados se a condio for resolutiva, mas j no se a condio for suspensiva. Cfr. op. cit., p. 58.
Parece-nos que se a condio a que se sujeita a existncia do crdito est na estrita dependncia do prprio devedor e no de terceiros e, bem assim, se a verificao de tal condio prevista e determinada pelo prprio plano de recuperao, no h motivos para que no se aceite a verificao de tais crditos sob condio suspensiva e o seu pagamento nos termos do plano.
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revitalizao. Alis, como se sabe, o processo especial de revitalizao surge,
frequentemente, de forma apressada, como antecipao ou reao a potenciais ou
efetivos ataques de credores ao patrimnio do devedor, atravs de aes executivas
ou outras providncias, pelo que obrigar o devedor a promover um despedimento
coletivo e aguardar pelo seu termo para poder ento apresentar o processo especial
de revitalizao uma soluo que no tem qualquer cabimento nem sentido prtico.
Acresce que, a nosso ver, as solues acima apresentadas permitiro a
compatibilizao das garantias e direitos dos trabalhadores com o intuito e
vantagens do processo especial de revitalizao para o devedor. De facto, as hipteses
aventadas garantem, na nossa opinio, por um lado, o cumprimento integral de todas
as formalidades e exigncias legais decorrentes do procedimento de despedimento
coletivo e, por outro lado, o respeito por todas os pressupostos impostos pelo regime
do processo especial de revitalizao, no se opondo a qualquer norma legal nem a
qualquer princpio inerente a tal processo.
Pelo contrrio, caso a entidade empregadora no proceda de uma daquelas
formas, ento no poder, a nosso ver, abranger os trabalhadores no plano, j que,
no tendo estes sido reconhecidos como credores, no participaram nas negociaes
nem votaram o plano, no podendo, pois, ser abrangidos por um plano onde no
tiveram qualquer interferncia.
De qualquer forma, caso o plano seja aprovado com incluso dos crditos
laborais, mas sem que aos trabalhadores tenha sido dada a possibilidade de se
pronunciarem e votarem, para alm de colocarem em causa a licitude do
despedimento, podero os trabalhadores obter a responsabilizao do devedor e dos
dos administradores por informaes incorretas e falta de chamada dos credores para
as negociaes, nos termos do art. 17-D, n.os 1, 6, 10 e 11 do CIRE.
Ademais, outros problemas se colocam com os crditos no vencidos data de
entrada do processo especial de revitalizao, decorrentes de cessaes de contrato de
trabalho posteriores a tal momento, bem como problemas com crditos vencidos mas
ainda no reconhecidos judicialmente, os quais o trabalhador poder ver-se inibido
de reclamar judicialmente por via da ao laboral47. Tal ser o caso de resolues com
47 Designadamente, por fora da interpretao jurisprudencial do art. 17-E do CIRE: cfr., entre
outros, os Acrdos do Tribunal da Relao do Porto, de 18-12-2013, relatado por Joo Nunes, de 07-04-2014, do mesmo relator, e de 05-01-2015, da relatora Maria Jos Costa Pinto.
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justa causa operadas pelo trabalhador posteriormente entrada do processo especial
de revitalizao, mas cujos crditos sejam reclamados e reconhecidos, sendo certo que
nos parece que, neste caso, tendo o trabalhador a oportunidade de participar nas
negociaes e votar o sucesso do plano, o seu crdito dever ser abrangido pelo
mesmo, apesar de ainda no vencido data de entrada do processo. Quando a
resoluo ocorra j aps a apresentao das reclamaes de crditos, no sendo os
crditos reconhecidos e, como tal, no participando o trabalhador nas negociaes
nem tendo a possibilidade de votar na aprovao do plano, ento os seus crditos no
podero ser sujeitos ao pagamento nos termos do plano.
Cumpre, ainda, apreciar a possibilidade de suspenso e resoluo dos
contratos de trabalho por parte dos trabalhadores com fundamento na falta de
pagamento das remuneraes, quando haja aprovao e homologao do plano de
recuperao com previso de pagamento de tais crditos em prestaes. Ora, neste
caso, no nos parece que a suspenso ou resoluo possa ter como causa a falta de
pagamento dos crditos abrangidos pelo plano, mas poder fundar-se noutros
crditos em dvida no abrangidos pelo mesmo48, ou noutras motivaes que
fundamentem a existncia de justa causa para a resoluo.
Ademais, em qualquer caso, estando a empresa em situao de processo
especial de revitalizao, parece-nos que dificilmente a falta de pagamento da
remunerao poder julgar-se culposa (nos termos e para os efeitos do n. 2 do art.
394 e n. 1 do art. 396 do CT).
Alm disto, queremos salientar uma outra situao curiosa: imagine-se a
hiptese de um trabalhador que resolve o seu contrato com justa causa antes do
processo especial de revitalizao, reclamando aqui os seus crditos. O
reconhecimento dos seus crditos na lista no consubstancia verificao dos mesmos,
servindo apenas para efeitos de votao49. Assim, se o processo especial de
revitalizao no for homologado, se houver desistncia do mesmo antes do seu
termo, ou se houver homologao do plano mas posterior incumprimento do mesmo,
que faz o trabalhador para exigir o seu crdito?
48 Designadamente, os crditos que se tenham vencido aps o despacho de recebimento do processo e
nomeao do AJP. 49 Recorde-se que a lista de credores definitiva no processo especial de revitalizao releva apenas
internamente, no prprio PER, concorrendo para a formao do qurum deliberativo () ou para a sua confirmao. FTIMA REIS SILVA, Processo Especial de revitalizao, cit., p. 44. Adianta ainda que a lista definitiva no tem qualquer efeito de caso julgado (). Ibidem, p. 45.
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O trabalhador no ter, nesta hiptese, sentena laboral que reconhea o seu
crdito, nem qualquer ttulo para executar. Ter, pois, a nosso ver, de intentar
necessariamente uma ao laboral (ou, no limite, uma notificao judicial avulsa que
interrompa o prazo prescricional50), mesmo na pendncia do processo especial de
revitalizao, para que os seus crditos no prescrevam.
Finalmente, colocam-se dvidas relativamente instaurao de processos
contraordenacionais por parte da Autoridade para as Condies do Trabalho na
pendncia deste processo especial, por falta de pagamento de remuneraes e outras
prestaes. Neste caso, parece-nos que os processos contra-ordenacionais no devem
poder instaurar-se e devem suspender-se. Isto, por um lado, por identidade de razes
com a ratio subjacente ao art. 17-E do CIRE e, por outro lado, porque entretanto a
dvida em causa ser alvo de restruturao no mbito de plano a aprovar e
homologar, pelo que o processo contraordenacional instaurado com base na falta de
pagamento da dvida fica destitudo de fundamento, ocorrendo uma causa de
inutilidade superveniente da lide. J nos parece admissvel, todavia, a instaurao
de processos relativamente falta de pagamento de crditos vencidos aps o processo
ou no abrangidos pelo plano de recuperao.
4. Concluses
Recordando os dizeres do memorando, constatmos que o que se pretendia
com a criao do processo especial de revitalizao era melhor facilitar a recuperao
efectiva de empresas viveis () introduzir uma maior rapidez nos procedimentos judiciais de aprovao
de planos de reestruturao.
Assim, com a severa afetao dos crditos laborais que tem sido admitida por
alguns tribunais, no se estar a ir mais longe do que previsto no estaremos a ser
mais troikistas que a troika? No merecero os crditos laborais um tratamento claro
e inequvoco, digno das garantias constitucional e legalmente consagradas? No se
justificar a manuteno da especial tutela conferida ao trabalhador e aos seus
crditos?
50 Claro que se poder sustentar que se houver assuno da dvida pelo prprio devedor na petio
inicial, ocorreu uma causa de interrupo da prescrio ou da caducidade por reconhecimento, nos termos dos arts. 325 e 331, n. 2, do CC.
Mas se no houver tal reconhecimento e o devedor se limitar a no impugnar a lista onde tal crdito reconhecido aps reclamao do trabalhador, dificilmente se poder falar em qualquer causa de interrupo da prescrio ou caducidade.
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Ou, pelo contrrio, dever legislar-se sobre a matria, discutindo-se um novo
papel para o salrio e uma reconfigurao do trabalhador como mero credor da sua
entidade empregadora? Ou, pelo contrrio, dever a legislao, semelhana da
legislao brasileira, determinar limites para a forma de pagamento dos crditos
laborais que se considerem respeitadores da tutela constitucional dada a tais
crditos?
Muito embora coloquemos estas questes de forma alternativa, entendemos
que no deve haver alterao ao sistema existente, sendo perfeitamente possvel,
como acima adiantmos, conciliar os direitos e garantias dos credores laborais com os
interesses do processo especial de revitalizao, que visa a recuperao do devedor.
Assim, entendemos que o sacrifcio de algumas relaes laborais em detrimento da
manuteno de outros postos de trabalho que pode decorrer de um plano de
recuperao, sendo por vezes uma medida necessria recuperao do devedor e
indispensvel subsistncia do agente econmico e salvaguarda do emprego dos
trabalhadores sobreviventes, no incompatvel com a manuteno dos direitos
daqueles que so afastados ou voluntariamente se apartam da empresa.