6618292-Benedito-Nunes-Heidegger-Ser-e-Tempo.pdf

57
Coleção PASSO-A-PASSO CIÊNCIAS SOCIAIS PASSO-A-PASSO Direção: Celso Castro FILOSOFIA PASSO-A-PASSO Direção: Denis L Rosenpeld PSICANÁLISE PASSO-A-PASSO Direção: Marco Antonio Coutinho Jorge Ver lista de títulos no final do volume

Transcript of 6618292-Benedito-Nunes-Heidegger-Ser-e-Tempo.pdf

  • Coleo PASSO-A-PASSO

    CINCIAS SOCIAIS PASSO-A-PASSO Direo: Celso Castro

    FILOSOFIA PASSO-A-PASSODireo: Denis L Rosenpeld

    PSICANLISE PASSO-A-PASSODireo: Marco Antonio Coutinho Jorge

    Ver lista de ttulos no final do volume

  • Benedito Nunes

    Heidegger &

    Ser e tempo

    Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro

  • Copyright 0 2002, Benedito Nunes Copyright 0 2002 desta edio:Jorge Zahar Editor Ltda.rua Mxico 31 sobreloja20031-144 Rio de Janeiro, RJtel.: (21) 2240-0226 / fax: (21) 2262-5123 e-mail: [email protected]: www.zahar.com.br

    Todos os direitos reservados.A reproduo no-autorizada desta publicao, no todoou em parte, constitui violao de direitos autorais. (Lei 9.610/98)

    Capa: Srgio Campante

    Composio eletrnica: TopTextos Edies Grficas Ltda. Impresso: Cromosete Grfica e Editora

    CIP-Brasil. Catalogao-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    Nunes, Benedito, 1929-N923h Heidegger & Ser e tempo / Benedito Nunes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002(Passo-a-passo)

    ISBN 85-7110-665-7

    1. Heidegger, Martin, 1889-1976. 2. Heidegger, Martin, 1889-1976. Ser e tempo Crtica e interpretao. 3. Ontologia. 4. Espao e tempo. I. Ttulo. II. Srie.

  • Sumrio

    Introduo 7

    O mtodo 10

    O mundo 14

    A morte 22

    Tempo e temporalidade 24

    A revoluo de Ser e tempo 34

    Seleo de textos 47

    Referncias e fontes 56

    Leituras recomendadas 58

    Sobre o autor 59

  • Introduo

    Martin Heidegger (1889-1976), nascido na Alemanha, professor da Universidade de Freiburg im Brisgau e seu reitor de 1933 a 1934, um dos raros filsofos modernos cuja obra apresenta singular crescimento pstumo: Heidegger morreu com as gavetas abarrotadas de inditos, que comearam a ser editados a partir de 1978 fato gerador de uma terceira fase da recepo de seu pensamento.

    A primeira fase, at 1946, corresponde irradiao de Ser e tempo, um estranho tratado, como dele diria o autor, sobre o sentido do ser e que, citado sob a sigla SZ, estudaremos aqui. Dedicado a seu mestre Edmund Husserl, com amizade e venerao, escrito a partir de 1923, interrompido em 26 e publicado em 1927, permaneceria incompleto at o fim da vida de Heidegger, s com duas das trs sees programadas para a primeira parte, omitindo a terceira (com o ttulo inverso de Tempo e ser) e sem a segunda parte, ento prevista, da mesma obra. Anunciada nessa inverso do ttulo, de Ser e tempo a Tempo e ser, e proposta como virada (Kehre), a segunda fase io pensamento heideggeriano, que perspontara em 30, seria explicada, pela primeira vez ao pblico europeu na carta Sobre o humanismo (ber

  • 8 Benedito Nunes

    den Humanismus) a Jean Beaufret, logo aps a Segunda Guerra Mundial, em 1946, quando o filsofo foi afastado do ensino em conseqncia de inqurito a que respondeu perante as tropas Aliadas de ocupao pelas notrias e oficiais relaes por ele entretidas com o Partido Nazista quando foi reitor.

    As duas sees publicadas da primeira parte de Ser e tempo j compem o perfil de uma ontologia fundamental, estudando, numa analtica, com base no mtodo fenomenolgico de Husserl, o homem do ponto de vista de seu ser, como Dasein. O perfil dessa ontologia, repassado na vontade de destruio e subverso que impregna a questo do sentido do ser, se reconfigura nos textos de 1929, como O que a metafsica?, Da essncia do fundamento e Kant e o problema da metafsica. A julgar-se pela segunda fase, seria esse estudo apenas um caminho provisrio para o desenvolvimento completo da questo do ser em geral. No era, pois, a existncia humana, mas a questo do ser em geral a meta de Ser e tempo, que passou a considerar-se a questo de fundo, interesse, encargo ou destino do pensamento nos escritos de 1930 em diante, como, entre outros, A essncia da verdade, Hlderlin e a essncia da poesia (36) e aqueles reunidos na coletnea Caminho do bosque (Holzweg), particularmente A origem da obra de arte (1935), A poca da imagem do mundo e Por que poetas?, alm daqueles mais tardios em que se juntam os temas da essncia da tcnica e da superao da metafsica.

    A publicao pstuma de cursos e conferncias inditos na obra completa (Gesamtausgabe), ainda em vias de

  • Heidegger & Ser e tempo 9

    publicao, tanto da primeira fase Interpretaes fenomenolgicas de Aristteles (Phnomenologische Interpretationen zu Aristteles, 1923), Ontologia, hermenutica da facticidade (Ontologie, Hermeneutik der Faktizitt, 1923), Prolegmenos histria do conceito de tempo (Prolegomena zur Geschichte des Zeits Begriffs, 1925), Fenomenologia e teologia (1927), Problemas fundamentais da fenomenologia (1927) e Conceitos fundamentais de metafsica (Grundbegriffe der Metaphysik, 1929-30) quanto da segunda Hinos de Hlderlin, Germnia e o Reno (Hlderlins Hymnen, Germanen und der Rhein, 1935, e Contribuies filosofia (Beitrage zur Philosophie Vom Ereignis, 1938), entre muitos outros emprestam terceira a que me referi um carter essencialmente interpretativo, pois os escritos atualmente difundidos entrosam e redimensionam as duas primeiras. No temos em cada uma delas, como se quis pensar, um Heidegger diferente Heidegger I e Heidegger II , mas dois momentos distintos de um mesmo pensar que mutuamente se esclarecem. Assim, como o prprio filsofo ponderou a um de seus intrpretes, se somente atravs do primeiro que se pode chegar ao segundo, no menos verdadeiro que foi esse ltimo que possibilitou o outro.

    Queremos pensar que o entrosamento dos dois se operou por intermdio do conceito que lhes comum e que ambos tm por pressuposto: o conceito de Dasein, chave principal de Ser e tempo e no qual veio a fixar-se, culminando no deslocamento a segundo plano do conceito clssico de verdade, todo um processo crtico de confrontao com a tradio filosfica que esse tratado revolucionou afinal. Tal

  • 10 Benedito Nunes

    revoluo se detecta quer no regime expositivo da obra, eivado de termos novos com base em palavras comuns da lngua alem, quer no ousado vnculo a entretido ao mesmo tempo com a prtica da vida e com a linguagem, de modo a retirar da filosofia a hegemonia da teoria do conhecimento e a desvincular completamente a ontologia das motivaes teolgicas e do primado axiolgico da cincia. A primeira relao do pensamento luz do problema do sentido do ser ali proposto se estabelecer com a poesia e com a arte, no com a cincia, o que na segunda fase tem como pano de fundo o desenvolvimento tecnolgico e o auge da secularizao. Trata-se de uma genealogia da poca moderna no presente; de modo que a fisionomia da Kehre se completaria com a reconquista de um novo comeo do pensamento em torno do sentido do ser.

    Nos captulos a seguir examinaremos o mtodo fenomenolgico e os trs tpicos fundamentais do tratado Mundo, Morte e Temporalidade que tambm so componentes da ontologia fundamental antes referida. O quinto e ltimo captulo versa sobre a revoluo filosfica operada em Ser e tempo.

    O mtodo

    A vontade de subverso e de destruio que anima a questo do sentido do ser verbo derivado do latim esse e do grego eimi (ou do particpio ente, correspondente ao ens latino e ao t n grego) est na busca do pressuposto que

  • Heidegger & Ser e tempo 11

    possibilitou a sua formulao e que se estampa no recuo em relao linguagem implicado nessa mesma pergunta. Pergunta Heidegger em Ser e tempo, de que so quase todas as citaes do presente texto, excetuando as fontes expressamente citadas em Referncias e fontes: Temos hoje uma resposta questo do que significa a palavra ente De modo nenhum. pois justificvel que se coloque de novo a questo do sentido do ser. (SZ, p.4)

    Quem faz a pergunta, colocando essa questo, somos ns mesmos como Dasein. O Dasein, ente que ns mesmos somos, tem a possibilidade de pr essa questo. Quando a fazemos, se estabelece uma relao circular entre quem questiona e o questionado, entre quem interroga, o ente que somos e o ser interrogado. Por que se pode afirmar isso Em razo do mtodo adotado, oriundo da fenomenologia de Husserl, reinterpretada em ntima relao com a hermenutica. Reinterpreta-se a fenomenologia, cincia da conscincia, na acepo de seu fundador, como um permitir ver o fenmeno, aquilo que se mostra por si mesmo uma vez liberado de seus encobrimentos. E aquilo que assim se mostra o ser do ente focalizado, uma vez que na fenomenologia reinterpretada, a intencionalidade no mais, como foi para Husserl, a propriedade fundamental da conscincia, mas a direo para o ser compreendido, isto , para o ser pr-descoberto, de que a conscincia o ponto de abertura.

    Sob esse novo ngulo, a fenomenologia adquire um porte ontolgico, ou melhor, ela se torna ontolgica. A fenomenologia ontologia, e, como ontologia, uma hermenutica, porque a descritividade fenomenolgica tem o

  • 12 Benedito Nunes

    alcance de um trabalho de interpretao aplicado ao Dasein no de fora para dentro, mas de dentro para fora, uma vez que parte do Dasein e pelo Dasein mesmo conduzida. O mtodo se compatibiliza, pois, com a investigao do Dasein em si mesmo e por si mesmo. Essa investigao exige, no entanto, que se neutralize a conscincia numa epoqu, posta por conseguinte num parntese metodolgico. Em lugar de conscincia (Bewusstsein), leremos Dasein (ser-a). E est em germe na noo mesma de Dasein a delimitao do mtodo a base que o legitima, que no outra seno a compreenso do ser, na qual j nos encontramos ao iniciar a analtica, e que, portanto, detm um alcance pr-ontolgico: o mbito da existncia humana a que se aplica e a temporalidade aonde chega e que a fundamenta.

    Da poder se dizer, em primeiro lugar, que o Dasein o ente que compreende o ser, o que significa compreend-lo em sua existncia e entender a existncia como possibilidade sua, de ser ou de no ser si mesmo, com a qual est concernido. Se o Dasein um ente, um ente que pe em jogo o seu prprio ser. Assim, o que se visa em Ser e tempo elaborar a questo do ser esse mesmo jogo da questo, da pergunta sobre o sentido do ser. Temos que auferir esse sentido luz de quem pergunta, o Dasein como ente, que na pergunta j visa o seu prprio ser. E visando-o, investiga a sua existncia, que no tem como um objeto diante de si mesmo, mas como risco de ganhar-se ou de perder-se. Portanto, essa investigao polarizada pela autenticidade ou pela inautenticidade em que se resolve. Mas o ponto de partida, para evitar a intromisso de conceitos

  • Heidegger & Ser e tempo 13

    previamente elaborados mas no aclarados, a mediania banal da vida cotidiana, como o nvel de interpretao corrente de si mesmo, dos outros e do mundo em que o Dasein j se encontra. Para ele, existir interpretar-se. E interpretar-se questionar-se. Porm no questionar-se est em jogo a questo do ser. Por isso, insiste Heidegger em dizer-nos que este ente que ns mesmos somos, o Dasein, aquele que, em virtude de seu prprio ser, tem a possibilidade de colocar questes.

    Desse ponto de vista, porm, a intencionalidade deixa de ser uma propriedade da conscincia, como foi para Husserl. A relao intencional como que a desinterioriza. O voltar-se dela para os objetos est enraizada na compreenso do ser em cuja rbita se move. Nessa confrontao contestatria ao pensamento de Husserl achava-se Heidegger, porm, aliado ao pensamento grego antigo, e de modo particular a Aristteles, reinterpretando a descrio fenomenolgica enquanto intuio das essncias como logos, phainomenon e altheia: o primeiro significando tornar patente ou manifesto aquilo de que se fala, portanto objeto do discurso; o segundo, aquilo que se mostra por si mesmo; e o terceiro, no velamento e no encobrimento. O ser verdadeiro, que corresponde entelcheia aristotlica, ao ser em ato, coincidiria com aquilo que (t n) e portanto com a essncia (ousa): mas no com o ser, e sim com o ser do ente enquanto presena (Anwesenheit)

    Se a investigao heideggeriana acompanhada pelo interesse, no sentido que Kierkegaard atribuiu a essa palavra, daquele que existe, o seu objetivo no proporcionar

  • 13 Benedito Nunes

    instruo espiritual, mas, partindo do plano existencial, pr-terico, que sempre tem por fundo, determinar o complexo de estruturas (chamamo-las de existentivas para diferenci-las do plano existencial, relativo existncia de cada qual) que constituem o Dasein, e nas quais repousa o sentido de seu ser. Assim a ontologia fundamental abrange os seres da ordem do Dasein e aqueles dois que a essa ordem no pertencem, chamados de categorias, e que so o ser- mo (Zuhanden) e o ser vista (Vorhanden), ou seja, os entes acessveis na prxis e os entes que se apresentam diante de ns como objetos substantes. O Dasein como ente ser-no-mundo.

    O mundo

    A expresso ser-no-mundo nem exprime um nexo de continuidade entre o Dasein e os outros entes nem exprime uma relao de encaixe desse ente no mundo natural. Significa antes de mais nada um ser familiar a, traduzido pela locuo alem sein bei, e que corresponderia, em nossa lngua, ao que conota o verbo estar. Ser-no-mundo implica por isso transcender o mundo. Mas a transcendncia pertence ao Dasein, isto , sua constituio fundamental. A relao com o mundo um engajamento pr-reflexivo, que se cumpre independentemente do sujeito por um liame mais primitivo e fundamental do que o nexo entre sujeito e objeto admitido pela teoria do conhecimento. mais uma regio ontolgica do que uma

  • Heidegger & Ser e tempo 15

    realidade dada. Designaria uma totalidade no gnero kantiano de totalidade transcendental. O mundo que est a diante de ns no ente ou receptculo de objetos. S no mundo os entes se nos tornam acessveis, inclusive o Dasein, que no est dentro do mundo. Os entes que nos cercam, e que no so o Dasein, fazem parte do mundo circundante; podemos cham-los de intramundanos. Lemos na Introduo de Ser e tempo: Ao Dasein inerente essencialmente: ser num mundo. compreenso do ser que inerente ao Dasein, concernem, com igual originariedade, o compreender o que se chama mundo e o compreender o ser dos entes que se tornam acessveis dentro do mundo. (SZ, p.13) Ser-no-mundo assinala a transcendncia do Dasein e, como tal, constitui a estrutura da subjetividade. No h sujeito sem mundo; no h homem sem Dasein. A idia de sujeito leva ao subjectum (hypokimenon), substncia. Porm o Dasein desatrela-se do primado do sujeito enquanto a investigao chega ao fenmeno, focalizado na mediania banal e indiferenciada do cotidiano, extraindo hermenuticamente das aparncias o fundo original, pr-ontolgico, do Dasein nele liberado. Trata-se da ao da analtica: ela desce, em seu esforo interpretativo ao modo de ser do cotidiano, estabilizado na mediania da conduta tanto numa sociedade primitiva quanto numa sociedade civilizada.

    Longe do plano contemplativo, o mundo que Heidegger focaliza preliminarmente, o mundo circundante, intercambia, na prxis cotidiana, as dimenses da vida ativa, o prtico da ao, ao potico do produzir e do fabricar.

  • 16 Benedito Nunes

    Nossa primeira relao com o que nos cerca no cognoscitiva, mas de lida, de trato, de manipulao: uma relao instrumental de acesso aos entes pela qual nos ser-vem para isso ou para aquilo, cada qual sendo a serventia que prestam, o uso que fornecem. o para qu do utenslio, a sua disponibilidade como ente mo (Zuhande) numa experincia ante-predicativa, envolvente, de preocupao. O ente mo mais obra, como trabalho que se insinua enquanto existe. Que diferena haver nesse nvel entre natureza e produtos da natureza O bosque parque florestal, a montanha uma pedreira, o rio fora hidrulica, o vento, sopro nas velas. (SZ, p.70) Mas a instrumentalidade antes aviva do que apaga o mundo como estrutura subjacente preocupao. Um utenslio liga-se a outros referencialmente; e a referencialidade, com o seu contedo de signo, alquebra, mediante o olhar em torno a viso circunspectiva, a envolvncia nossa na lida cotidiana ou na conduta de trato. O exemplo de Heidegger (a seta de assinalamento da posio dos automveis ou o pisca-pisca) de todo prtico. Mas o pisca-pisca s nos presta esta serventia a partir do mundo que torna o instrumento disponvel. Sem mundo no haveria uso; sem uso no haveria pisca-pisca. O Dasein compreende esses nexos referenciais, cujo todo dotado de significatividade um entrelaamento de significaes, do qual inseparvel o mundo circundante, cujo mbito espacial, mas no num sentido mtrico, como o aposento em que me movimento familiarmente, tal uma paragem (Gegend) em que me encontrasse.

  • Heidegger & Ser e tempo 17

    A abertura. O Dasein tambm espacial nesse sentido, que difere do csmico e do geomtrico, aos quais, no entanto, d origem por ser o mesmo Dasein aquele que delimita a proximidade e a distncia, segundo as direes fixas do corpo, o alto e o baixo, a direita e a esquerda, o longe e o perto. O Dasein no habita o espao, ele espacializa: abre o espao que ocupa como ser no mundo. Preocupado em agir e fazer, e desta forma ocupado com aes e obras, o Dasein tambm cuida de outrem. Seja de maneira positiva, negativa ou indiferente, a existncia no s a minha existncia, mas tambm a de outro, comigo compartilhada num ser-em-comum (Mitsein). Ser-no-mundo, o Dasein igualmente ser com os outros, tendo nisso uma outra via de acesso ao mundo, capaz, no entanto, de subtrair-nos a ns mesmos, de englobar-nos nessa busca de si em que nos empenhamos como um poder estranho, superior, annimo, impessoal a gente (das Man) em que nos demitimos, e que a todos se sobrepusesse, sob a mscara do pronome Eu, depois de ter origem em cada qual. Do cuidar dos outros passamos ao senhorio do ser-em-comum. A abertura (Erschlossenheit) que por aqui ocorre tem a sua contraparte no encobrimento (Verdecktheit). Essa abertura est, no entanto, provida por mais originrios abrimentos, tambm com o sentido de luminosidade e clareira, dando filosofia de Ser e tempo um de seus traos mais avanados ou revolucionrios. Nem o abrimento ao mundo nem o abrimento aos outros seria possvel se no estivssemos imersos no meio do ente em sua totalidade, por outras palavras, situados facticamente no mundo e diante dos outros, j sentindo ao pensar e j

  • 17 Benedito Nunes

    falando ao sentir. Ao mesmo tempo que imergimos no meio do ente, pondo-nos em contato com coisas de serventia e, por intermdio destas, com coisas vista moldando o conceito de ser natural, projetamo-nos para alm do mesmo ente. Tanto a imerso quanto a projeo no podem separar-se do circuito da convivncia ser-com-outros.

    A carga afetiva indica a imerso (Befindlichkeit), que nos revela o nosso irredutvel a no mundo, onde j nos encontramos lanados. Esse ser lanado correlativo ao projeto estadeado no compreender, que integra o conceito mesmo de existncia, inseparvel de seu poder-ser. Ambos, imerso e projeo, delineiam, como tambm o faz o discurso, enquanto meios de abertura o mbito pr-teorico de nossa conduta. E cada modo de existncia traz a compreenso de ns mesmos e do mundo. A fala ou o discurso, que tambm um abrimento originrio como a afeio, indica a projeo, na medida em que, modo possvel de ns mesmos, projetar interpretar-nos, a ns, aos outros e ao mundo.

    A interpretao nada mais do que o desenvolvimento do compreender apropriando-se das possibilidades em que o poder-ser se projeta. Mas essa apropriao no jamais algo sem pressuposto: parte de um referencial que se tem (Vorhabe), explicita-se em conceitos prvios (Vorgriffe) numa certa perspectiva (Vorsicht). O sentido dessa apropriao j discursivo, mas no proposicional. Comensurando a abertura, o discurso comensura a linguagem ao ouvir (Horen) e silenciar (Schweigen), que so suas possibilidades.

  • Heidegger & Ser e tempo 19

    Os sentimentos. Sentimentos no so epifenmenos nem simples estados afetivos; o tdio, a alegria e a esperana abrem-nos o mundo de diferentes formas. Mas, acompanhando Kierkegaard, Heidegger excepcionalizou a angstia. Vamos descrever a angstia que Heidegger aprofundou em Ser e tempo antes do tdio, que examinou detidamente em outra obra, Conceitos fundamentais de metafsica, complementar a Ser e tempo.

    Antes, porm, diremos que o sentimento de alegria, do qual o filsofo trata de maneira sucinta, interrompe a tnica do medo ou do terror que domina o cotidiano. J o temor ocorre tanto da presena de um outro Dasein quanto da natureza e dos utenslios. O que se teme sempre algo dentro do mundo, intramundano. O porqu do temor o prprio Dasein entregue a si mesmo ou s outras espcies de ente. O temor revela a essencial vulnerabilidade do ser humano.

    Na angstia, diz-nos Heidegger, acompanhando Kierkegaard, o que nos ameaa no est em parte alguma. No estando em parte alguma, a ameaa entretm relao com algo que no intramundano. O que nela temido se desloca para o mundo. O perigo que nos espreita e em toda parte nos acua o mundo como mundo, originrio e diretamente, que se abre para o Dasein desabrigado. O incmodo do desabrigo a fctica possibilidade a que nos entrega como solus ipse. afinal o Dasein mesmo que nos angustia, porque j sem a proteo do cotidiano, revelando-se, ento, nesse sentimento; o poder-ser livre, a possibilidade de escolha, desapossado da familiaridade com o mundo, tornado

  • 20 Benedito Nunes

    inspito. Angustiar-nos no mais nos sentirmos em casa, a estrutura da subjetividade abalada, sem o encobrimento da mediania do cotidiano e a envolvncia da queda, de que mais adiante nos ocuparemos. Nessas condies, fugimos continuamente da angstia, ameaada pelo poder-ser si mesmo da existncia. Numa dialtica discreta, mostra-nos Ser e tempo que, nesse sentimento, o intramundano cede lugar ao mundo, ao passo que o objeto ameaador nada . O afloramento do Nada aqui denunciado ser o expresso tema da experincia de angstia em O que a metafsica? e Kant e o problema da metafsica.

    H trs espcies de tdio, sendo duas superficiais, que despontam de situaes particulares, e uma terceira, dita profunda, que provm do fundo temporal do Dasein. A situao particular da primeira a expectativa de um evento certo, de ocorrncia incerta; procuro distrair-me para deter o tempo, com o que preencho o esvaziamento que me atinge. A situao da segunda o esquecimento do tempo; esvazia-se-nos o eu. Do tdio profundo disse Leopardi que pode ser a mais estril das paixes humanas e a mais fecunda. Os animais no o conhecem, ao contrrio do homem. Os entes continuam a mas sob o foco de uma indiferenciao espantosa O correlato do tdio essa recusa da parte dos entes. O que o torna possvel o horizonte do tempo o que tambm possibilita o Dasein.

    Discurso e linguagem. No se pode afirmar que o ser humano tenha adquirido linguagem. O ser humano falante. Em conseqncia do que a fala ou o discurso lhe proporciona

  • Heidegger & Ser e tempo 21

    um meio de abertura, como um prolongamento da interpretao (Auslegung), de que a linguagem, como sistema de signos, historicamente concretizada numa lngua, instncia ntico-emprica. As palavras podem espedaar-se e coisificar-se. Elas brotariam das significaes articuladas. Ambos conceitos, discurso e linguagem, traspassantes, tm sua comum raiz no conceito aristotlico do homem como ser capaz de falar zon lgon chon. Dizer algo, de certa maneira, para algum, numa tonalidade ou disposio de nimo, nisso consiste o fenmeno do discurso em sua completa estrutura significativa. ele a condio transcendental da linguagem como totalidade de palavras de uma lngua, na perspectiva do ser-em-comum no cotidiano, que faz da mesma linguagem um ser utensiliar. Na convivncia, o ser-em-comum se objetifica ou impessoaliza, a ns se impondo como o poder estranho da gente no falatrio ou na parolagem, a que se interligam a curiosidade vida (Neugier) e a ambigidade (Zweideutigkeit). Ento na linguagem que o homem freqentemente decai; a queda a mais explcita maneira de inautenticidade, a forma estabilizada da vida cotidiana como envolvncia estruturada sobre a preocupao e a solicitude. Cadente, o ser-no-mundo ao mesmo tempo alienante (entfremdend). Sem equivaler a uma situao passageira, suprimvel quando a humanidade estivesse mais avanada, a queda, propriamente um existentivo em que se apiam as religies de salvao, o conceito ontolgico de um movimento que confirma a situao fctica do Dasein e a sua existncia como poder ser a facticidade e a existencialidade, na linguagem heideggeriana. Cada um

  • 21 Benedito Nunes

    desses aspectos aclara o ser-no-mundo de que se desdobra e traz implcito o fenmeno do cuidado (Sorge) em que o ser do Dasein se desencobre.

    A morte

    O Dasein se desencobre como poder-ser. Mas sendo essa possibilidade sempre minha, ela seria a todo instante recupervel, a existncia se prolongando infindamente. Mas desde o princpio o Dasein est predeterminado pelo seu fim. Basta o homem viver, que j bastante velho para morrer, reza antigo provrbio alemo. Ento a morte esse fim como possibilidade da impossibilidade. Estamos diante do no-ser como essncia da existncia. Eis em que consiste o ser-para-a-morte. O Dasein no tem um fim aonde chega e simplesmente cessa, mas existe finitamente. (SZ, p.329)

    Mas diante dessa existncia finita, da morte, o homem como ser cadente no cessa de fugir. Quem morre a gente, no eu. Esquivo-me da morte no anonimato da gente. Fujo dela enquanto possibilidade prpria. Mas se no fujo, exercito-me diante da mais extrema e radical possibilidade de mim mesmo. E assim exercitando-me antecipo-a, assumindo-a; e, portanto, decidindo. A deciso (Entschlossenheit) uma escolha, e, se isso ocorre, angustio-me. Mas na angstia libera-se o poder-ser mais prprio, mais autntico do Dasein, com a sua compreenso respectiva, conforme confirmao trazida pela voz da conscincia, forma que a auto-interpretao desse ente confere tradicional conscincia

  • Heidegger & Ser e tempo 23

    moral, nesse caso funcionando como situao hermenutica.Scrates ouvia essa voz da conscincia como o seu daimn, que o chamava e

    que, ouvido em silncio, punha-o fora da ao e do circuito da gente. Esse chamamento cobra-nos uma dvida e invoca-nos a culpa. O estranhamento do chamado e sua silenciosa invocao, bem como aquilo para o que nos convoca, convergem no fenmeno do poder-ser prprio atestado por essa voz da conscincia. Como interpretar a dvida, como entender a culpa.

    Chama-se culpa a causa de uma deficincia em relao a outrem, ao ser-em-comum, portanto. Mas essa deficincia no estranha nossa condio. O dficit fica a cargo do no-ser que j somos e pelo qual responde a liberdade fundada na transcendncia. Dessa forma, a genealogia da conscincia moral remonta ao cuidado e a seus suportes a disposio, o projeto e o discurso. Foroso concluir que as dimenses da abertura so as da conscincia moral.

    Tal perspectiva parece ter sido antecipada por Herclito quando escreveu no fragmento 119 que o daimn do homem o seu ethos. Nada mais estranho para o homem do que o ethos toldado pela angstia e rompendo com o falatrio cotidiano. A vocao do daimn chama ao cuidado, que responde pela culpa, mas no por obra de erros e omisses. Basta a finitude nossa para inculpar-nos. Mas essa mesma culpa nos chama para a finitude. ento que, compreendendo-nos livres, podemos ouvir a intimao desse poder-ser. A vocao convoca-nos nossa liberdade, a um querer ter conscincia, que o que escolhemos angustiadamente.

  • 24 Benedito Nunes

    Ao contrrio, porm, a conscincia moral uma espcie de gestionria mercantil e administrativa do mundo para a interpretao luz da mediania do cotidiano, perante a qual a vida um negcio que cobre ou no os seus custos. (SZ, p.289) Nesse nvel, a voz se torna contabilizao do mrito e do demrito. No entanto, a vocao ouvida e compreendida dessa forma nada prescreve. Pela deciso, recuamos do domnio estabilizado das normas determinao da liberdade, com o que se desencobre o que facticamente possvel na situao em que j nos encontramos. A deciso alcana a verdade originria da existncia, corno determinao da liberdade e forma germinal da ao. Numa problemtica kantiana, poder-se-ia dizer que a deciso constitutiva da razo prtica.

    J vimos que Heidegger confere ao exercitamento para a morte o papel de liberar as nossas autnticas possibilidades fcticas. Agora constatamos que essa deciso como o parto da conscincia moral. Concorrentes que se traspassam, o ser-para-a-morte e o poder-ser livre implicam, cada qual, a projeo do Dasein para fora de si mesmo, com o que a existncia toma a configurao de um xtase, de um movimento exttico, que traa o perfil ontolgico da temporalidade.

    Tempo e temporalidade

    O cuidado, como ser do Dasein, contraria a idia de imanncia substancial do eu. O poder ser si-mesmo prprio

  • Heidegger & Ser e tempo 25

    ocorre por um ato de apropriao do Dasein, numa deciso extrema, projetando-o na direo da morte que o totaliza. Mas essa projeo entreabre o que torna possvel um ente que existe adiante de si, lanado e cadente: o poder advir a si, e nisso mantendo a possibilidade como possibilidade, isto , existindo. (SZ, p.325) Mas o Dasein s retrovm (passado) advindo (futuro) a si; e porque retrovm ao advir, que gera o presente. Ai temos o movimento exttico o fora de si em si e para si mesmo da existncia que se chama de temporalidade. Cada um desses componentes um xtase, fundando um membro da estrutura do cuidado: o advir ao poder-ser, o retrovir ao ser lanado, o apresentar ao estar junto aos entes. Nesse movimento trplice, ocorre um desclausuramento da subjetividade.

    Em sua singular completude, a temporalidade pode abranger o homem em seu ser como um todo porque se remete (e nos remete) morte, assumida contra a tendncia para encobri-la no envolvimento do cotidiano. Cessaria ento, graas a uma deciso antecipadora que alcanasse o fim que j somos, a oscilao que polariza o Dasein, e que a analtica acompanha, entre o plano da existncia autntica e o da inautntica. Nessa deciso, revela-se o perfil da temporalidade autntica: o futuro, que puxa a cadeia dos xtases, uma antecipao; o passado, a retomada do que uma vez foi possvel; e o presente, o instante da deciso. Assim, os xtases (ek-stasis) da temporalidade corrigem a com-preenso vulgar do tempo, que tem no presente a sua fase axial: os momentos pretritos ficariam para trs, e os porvindouros passariam para a frente, ainda por suceder. Na

  • 26 Benedito Nunes

    verdade o passado ainda est presente, como mostra a retrovenincia. O Dasein ainda o passado sem deixar de ser presente. E no presente est comprimido o passado; como no passado antecipa-se o futuro.

    Santo Agostinho tinha razo: no h trs tempos. E nem o fluxo da conscincia, como tempo csmico, evolutivo, segundo a concepo de Bergson, que os substitui. A temporalidade est mais prxima do continuum descrito por Husserl, como experincia preliminar imanente que constitui as vivncias. Mas se os momentos desse continuum so os xtases, no h como estabelecer a gnese da temporalidade a partir do eu. Pois que da temporalidade no se pode falar como de um ente. Nem subjetiva nem objetiva, s podemos dizer que ela se temporaliza em cada um de seus xtases. certo que a temporalizao envolve de cada vez os trs xtases numa relao recproca de cada qual com os outros dois.

    Mas qualquer que seja o xtase, opere-se a temporalizao pelo futuro como na existencialidade, pelo passado como na facticidade e pelo presente como na queda, cada um dos demais tambm se temporaliza, respeitada sempre a primazia do futuro, relativo ao compreender, que possibilita o projeto, mas originariamente determinada pelo passado presente (Gewesenheit) e pelo presente (Gegenwart), cujo acento se desloca para o apresentar, ou seja, para o que se torna presente. O presente que funda a queda tambm temporaliza a envolvncia pelos entes em que nos perdemos no mundo circundante. Mas por a chegamos temporalidade imprpria, quando o presente se torna um

  • Heidegger & Ser e tempo 27

    simples agora, quando o futuro muda-se em expectativa (Gewartigen), o passado produzindo-se em esquecimento (Vergessenheit) no que j passou. Ela esquece a morte, e o ser, a menos que se recupere em seu poder-ser e, com a primazia do futuro, restabelea o tempo originrio, em que o passado se d como retomada (Wiederholung) e o apresentar como instante (Augenblick) da deciso.

    O tempo originrio finito e assegura a gnese do ser do Dasein e da existncia cotidiana. A temporalidade imprpria tende infinitude. Ela se estende aos entes intramundanos atravs do presente, como se deles se originas-se. Chama-se, por esse motivo, intratemporal.

    O intratemporal. Desatado da preocupao na prxis cotidiana, o intratemporal inclui a compreenso do tempo como proviso disponvel, ao alcance de qualquer um e de todos, com que se conta sempre e antecipadamente para fazer e no fazer isso e aquilo: o tempo que tanto podemos agarrar (Prenez votre temps, diz a usual locuo francesa) quanto dissipar ou perder. Como a preocupao a ondulante conduta de confronto com as coisas diante das quais se est, ela condiz com o apresentar da temporalidade exttica e se expressa num agora que. Dizendo agora ns sempre j compreendemos um em que isso ou aquilo, embora sem diz-lo explicitamente. (SZ, p.408) O agora tambm um aqui dentro do mundo. E assinalaria apenas fugidio momento, se ao pronunciar agora no expressasse igualmente, ainda que de forma tcita, um ento e um outrora. Mas ento quer dizer ainda no e

  • 28 Benedito Nunes

    outrora j no mais. Cada um desses termos , pois, co-implicado pelos outros; o encadeamento entre eles nos d uma estrutura relacional remissiva.

    No porm insignificante pormenor que o encadeamento seja verbal. Na estrutura remissiva, temos a sucesso em imagem um esquema da idia de sucesso que permite localizar acontecimentos no tempo ou, na terminologia heideggeriana, a databilidade, em que se apia a datao. Mas, desse modo, o tempo se torna disponvel entre os termos da estrutura remissiva do agora ao ento e do outrora ao agora, numa linha extensiva, o enquanto, e eis o intervalo (Spanne), esquema da permanncia ou da durao. Como esse tempo preenchido por um que-fazer, a sua disponibilidade fica no mesmo plano da disponibilidade prtica das coisas, que no nos so dadas como objetos da natureza, mas descobertas em sua serventia, ao alcance da mo. Esse vinco pragmtico se fortalece no terceiro trao que Heidegger atribui ao intratemporal: o carter pblico, de base instrumental. Ao dizer agora sustenta-me esse referencial comum. Tambm quando olho o tempo no relgio.

    O tempo com que contamos agora o tempo contado, medido, descoberto nas coisas o curso dos astros, a alternncia do Dia e da Noite e transferido a instrumentos pblicos de contagem para todos, os relgios, sejam eles varas de sombra, ampulhetas, clepsidras, relgios mecnicos ou atmicos. O Dasein j conta com o tempo e por isso medidas sucedero a medidas, de acordo com o instrumento utilizado. Olhar o relgio, ver as horas, significa utiliz-lo

  • Heidegger & Ser e tempo 29

    para a regulao de atividades, dizendo agora tempo de. Mas a dominncia pblica do medidor converte a contagem numa sucesso de agora independentes, e o tempo contado passa a ser um curso temporal objetivo. No entanto, preciso no esquecer que o intratemporal deriva da temporalidade. Mas ao derivar da temporalidade, o intratemporal modifica-1he a ordenao dos xtases, pondo na dianteira o presente em funo das coisas ou objetos na direo dos quais se temporaliza.

    Essa primazia do presente se traduz no efeito de nivelao dos agora, identificados ao instrumento medidor, digamos os ponteiros do relgio para nos lembrarmos de Bergson , o que justifica a definio do tempo na Fsica (IV,219 h) de Aristteles a medida do movimento segundo o anterior e o posterior , que Heidegger identifica ao conceito de tempo natural ou vulgar.

    Ter sido esta a primeira interpretao detalhada desse fenmeno que nos foi transmitida, a qual Heidegger interpretar por sua vez, a comear pela sua conferncia de 1924, O conceito de tempo. A continuao do mesmo exame, a ser efetivado na terceira seo da segunda parte no publicada de Ser e tempo, s viria a ser feita no curso do segundo semestre de 1927, Problemas fundamentais de fenomenologia. Primeiramente Heidegger se refere ao nexo do tempo com o movimento, focalizando depois o agora como base desse mesmo nexo remissivo ao relgio que a existncia humana sempre possui, regulado pelo nmero do movimento repetitivo. Nenhuma distncia maior pode haver do que entre essa concepo e a de Heidegger, a menos

  • 29 Benedito Nunes

    que consideremos que o que Aristteles descreve em seu tratado a compreenso cotidiana pblica do tempo que usamos e com que contamos. De qualquer forma, a descrio aristotlica esmiuada em Problemas fundamentais de fenomenologia: o tempo, um nmero do movimento, este tomado na perspectiva do antes e do depois, da considerando-se o tautologismo da definio, a que se acrescenta a condio do agora, constitutivo do tempo. O agora se divide num anterior e num posterior.

    Nenhuma tentativa para decifrar o enigma do tempo pode dispensar um debate com Aristteles, declara o mesmo curso, pois foi ele quem pela primeira vez e por muito tempo conceitualizou de maneira unvoca a compreenso vulgar do tempo, de tal modo que a sua concepo do tempo corresponde ao conceito natural do tempo.

    Rege o intratemporal a preocupao com o mundo circundante; dominado pelo presente e sob a perspectiva do cotidiano, ele estende-se indefinidamente em cada ago-ra. Nesse nvel, portanto, o tempo objeto de preocupao. A existncia humana por ele dividida. A temporalidade converte-se, como na Fsica de Aristteles, em medida de movimento. Sem princpio nem fim, seu correspondente essencialista no mundo superior das idias a eternidade, de que constitui a imagem movente.

    Revela-se afinal a temporalidade como o fenmeno possibilitador do cogito. Penso, logo sou! Na verdade, o cogito no um puro eu penso, mas a realizao de uma passagem do pensamento existncia, subsidiada pelo tempo o tempo pontual da evidncia, conquistada a todo

  • Heidegger & Ser e tempo 31

    instante e que assegura o conhecimento de que sou. Mas o que sou em minha identidade, como res cogitans, temporaliza-se no presente. O decisivo a esse respeito est na afir-mativa seguinte: A temporalidade exttica o que ilumina o a originariamente. (SZ, p.351)

    Dizer que o Dasein temporal significa que a estrutura da subjetividade, do si mesmo, est fundada no movimento exttico do qual depende o carter intencional da conscincia, a sua direo para os objetos. Ultima-se tambm aqui o fenmeno do sentido, implicado, em decorrncia da questo mesma do ser, nas estruturas todas com que deparamos na analtica: da significao ao mundo, da abertura ao cuidado. Sentido aquilo em que se apia a compreensibilidade de algo. (SZ, p.151) A compreenso do ser desemboca no tempo, que o sentido do Dasein. Dado que na temporalidade que se explicitam as estruturas existentivas todas, temos que concluir que a temporalidade, enquanto condio da existncia como poder-ser, a possibilidade da possibilidade.

    Por fim, a temporalidade neutraliza a vigncia da substncia. A substncia do homem a existncia e o Dasein temporal: existe temporalizando-se, entre nascimento e morte. Sem a temporalizao nenhum Dasein seria, e sem o Dasein no haveria mundo. Este ente no preenche pois, como se viu da concepo do tempo, as fases de um trajeto, mas prolonga-se a si mesmo (streckte sich selbst). Eis o que impe sua existncia a estrutura do acontecer (Geschehen), de que deriva a historicidade. Temporal no fundo de seu ser, o Dasein histrico.

  • 32 Benedito Nunes

    Historicidade e historiografia. O termo histria se generalizou natureza, e com o respaldo das idias de evoluo e de transformao dialtica, pde-se conceber uma histria global, sob um tempo nico e uniforme como o descrito por Aristteles. A histria da espcie humana faria parte dessa histria global, em continuao das galxias, da terra e da vida em geral, tal como foi concebida pelas linhas hegeliana e positivista do historicismo germnico, com as quais Heidegger polemizou e do qual Herder traou as grandes linhas, quando escreveu em sua Filosofia da histria: Tudo um grande destino, no pensado pelos homens, no esperado nem provocado por eles. Hegel pensou depois esse grande destino como a regncia de uma razo astuciosa que se universaliza valendo-se do esprito de cada povo. a vida humana que histrica e no a natureza. Por isso a cincia da histria ou historiografia alcana o conhecimento da realidade espiritual em que desemboca o intercurso das aes intencionais dos homens. A essa posio foi guindada por Dilthey, um hegeliano: a histria uma das cincias do esprito. J para o positivista Leopold Ranke, seria preciso neutralizar a subjetividade para que os fatos histricos fossem reconstitudos tal como se passaram. Tanto como o evolucionismo, o materialismo histrico incidiu na mesma concepo do tempo natural e vulgar.

    Heidegger discute a noo mesma do que histrico, identificado ao passado. O que foram as coisas que hoje no so mais?.... Em uso ou fora de uso elas no so mais o que foram. O que ento passou? Nada mais do que o mundo... (SZ, p. 380), responde ele. O mundo responde pela

  • Heidegger & Ser e tempo 33

    historicidade. essa historicidade das coisas antigas, das Antigidades, que abre para o historiador o passado. Ela tem duas pontas, uma individual e outra a do ser-em-comum. Essa segunda ponta traz de volta o intratemporal, j como tempo social e cultural, que impe historicidade o peso de um destino (Geschick) coletivo. Por um lado o Dasein decide voltando-se para si mesmo, entregue sua finitude; por outro, ao decidir, retrai-se, nos limites da experincia geracional de que participa, a uma herana comum. Quando autntica, a deciso o instante da retomada de possibilidades do passado, do que nele ainda permanece vivo.

    A historiografia tematiza o que, autntica ou inautenticamente, abre-se na situao temporal de quem escreve a histria; abre-se, portanto, na historicidade da existncia do historiador, conforme ensina o $76 de Ser e tempo. No conhecimento histrico, portanto, est sempre em causa uma escolha do passado. Oscilando conforme a temporalizao que a orienta, essa escolha introduz diversidade na angulao da histria, de acordo com a estupenda intuio de Nietzsche na segunda de suas Consideraes inatuais, aproveitada no $76 de Ser e tempo. Teremos ou uma histria monumental ou uma histria antiquria ou uma histria crtica.

    A primeira implicao da temporalidade heideggeriana o abalo na representao aristotlica do tempo, preponderante na moderna filosofia da histria. A finitude, sobre-levando-se infinitude do tempo linear, atingir ainda segunda implicao a idia hegeliana da histria universal

  • 34 Benedito Nunes

    como saber reflexivo do desenvolvimento da humanidade. O conhecimento histrico, possibilitado pelo tempo, no pode sintetizar seno o processo que o historiador alcana discernir atravs da perspectiva de sua poca e de sua sociedade.

    A revoluo de Ser e tempo

    Essa revoluo toma forma na ontologia fundamental, como metafsica do Dasein, custa de seis teses principais: a insuficincia da antropologia filosfica, porque abolindo a transcendncia do Dasein; a finitude como expresso dessa transcendncia e proto factum metafsico; o enfrentamento do Nada pela angstia; a abertura pela compreenso, pelos sentimentos e pela linguagem; a totalizao do Dasein no ser-para-a morte; a identificao entre o poder-ser prprio e a autenticidade no limite entre o tico e o existencial. Dentro do quadro articulado por essas seis teses, a primeira grande mudana operada na tradio a transferncia da idia de fundamento transcendncia do Dasein.

    Nihil est sine ratione, nada existe sem razo. Razo e fundamento se equivalem. Nesse sentido, como diz Heidegger, a verdade remete sempre a um fundamento, que um dar razo, e que reside na proposio. A proposio, como enunciado predicativo, depende do aberto do compreender da descoberta de um ente que o sujeito proposicional indica e que o predicado faz ver sob certo aspecto e do prolongamento comunicativo do compreendido, em que o

  • Heidegger & Ser e tempo 35

    ente descoberto se d a ver para outrem. O indicado o que a proposio mostra na forma do enunciado (Ausgesagte), como expresso verbal que ingressa no mundo do ser-em-comum. A comunicao, fala e linguagem, d conta da enunciao (Heraussage) do ato de asseverar, atributivo de um predicado a um sujeito.

    Desse modo, a proposio se recorta duas vezes no discurso. Este, domnio do enuncivel, articula a experincia antepredicativa da interpretao. o como hermenutico da viso cicunspectiva, articulado em palavras frases (isto serve ou no serve, pesado demais etc.) ao qual vai substituir-se o como apofntico da proposio categrica (isto aquilo), suscetvel de ser verdadeira ou falsa. Dado que sentido a compreensibilidade de algo que o discurso articula, toda proposio tem uma interpretao subjacente por base. O enunciado predicativo seria uma forma derivada da interpretao.

    Ser uma proposio verdadeira significa que ela descobre o ente em si mesmo. Ela mostra, faz ver o ente em seu estado de descoberto (Entdecktheit). (SZ, p.218) Mas esse fazer ver s possvel graas ao compreender e, conseqentemente, graas abertura do Dasein como ser-no-mundo. Daqui descemos verdade originria no cuidado.

    Verdade originria o que cabe dizer do ser-para-a-morte, que confirma a finitude do Dasein requalificando o cuidado. Verdade originria equivaleria verdade da existncia. Ambas expresses remetem abertura, a que se deve que a proposio seja descobridora. O fundamento da verdade removido para a abertura, razo de todo descobrir.

  • 36 Benedito Nunes

    Desse recuamento resultam inverses radicais que tonificam a revoluo heideggeriana.

    Em vez de apenas localizar a verdade, a proposio se localiza na verdade originria, no domnio do manifesto ou do iluminado que a revelao (Offenbarkeit) do ser, previamente aberto e manifestado, torna possvel. O resultado dessa inverso combina com a exegese de altheia (no ocultamento, no velamento), diluda no termo latino veritas, custa do qual se fixaria a noo de adaequatio rei et intellectus.

    Terceira conseqncia: o entendimento da adaequatio decorrente do vezo do Dasein a interpretar-se segundo o envolvimento da queda, refletindo os entes intramundanos que descobre em torno de si e junto aos quais se encontra. D-se nesse passo a regular dominncia da interpretao entitativa do ser o ser do ente estampada na ousia ou parousia dos gregos.

    A quarta conseqncia a transferncia da significao de realidade aos entes intramundanos. O significa o ser, mas o ser no significa nenhum dos modos de afirmao categorial, nem uma coisa nem um ente. Por certo, afirma Heidegger, s enquanto o Dasein , quer dizer, a possibilidade ntica da compreenso do ser, d-se ser (gibt es Sein). (SZ, p.212) D-se ser e a realidade. o que se descortina atravs da conduta pertinente ao conhecimento.

    O conhecimento terico uma modificao da experincia antepredicativa, endereada ao descobrimento dos entes, que se apresentam como objeto. O apresentar-se como objeto demanda a presentificao do ente, temporalizado

  • Heidegger & Ser e tempo 37

    no presente. Tal seria gnese da atitude terica, afeta a um domnio entitativo descoberto, a um positum, que a cincia no funda e que a possibilita. A verdade dos enunciados cientficos sempre derivada de uma verdade mais originria, por sua vez estribada na verdade ontolgica do desvelamento do ser, a que se refere o sentido da palavra altheia. Heidegger diz-nos expressamente que a cincia, como um conjunto de proposies verdadeiras coordenadas e fundamentadas, , enquanto conduta do homem, a forma de ser desse ente. (SZ, p.l 1)

    Da revoluo conceitual provocada pela ontologia fundamental de Ser e tempo resultam trs deslocamentos encadeados: dos princpios lgicos e dos cnones metodolgicos, da positividade das cincias e da especulao filosfica.

    J a transferncia do princpio de razo essncia do fundamento antecipa a transferncia dos princpios de identidade e de no-contradio para algo mais originrio, sem carter proposicional, como a compreenso do ser inerente ao Dasein, que serve de fio condutor analtica, superpondo-se aos cnones metodolgicos da poca moderna, pelo que se torna a mesma analtica uma contestao ao cogito cartesiano. O ser-no-mundo inverte o mesmo cogito. Ao penso, logo sou, substitui-se o sou no mundo, logo penso. Tambm as cincias, que esto suspensas verdade originria, deslocam-se ao fundamento que a liberdade instaura, e confirmam a nossa finitude.

    Longe est a posio de Heidegger daquela reprovao da cincia pela filosofia de que tanto falou Merleau-Ponty. Essa posio insiste na positividade mesma das cincias, no

  • 37 Benedito Nunes

    reconhecimento de uma verdade ntica do conhecimento cientfico, com o fim de traar por meio disso a questo ontolgica. No a validade das cincias que est em discusso, mas o que elas representam como possibilidade humana.

    Como teoria, a cincia nasce da experincia antepredicativa. Sua origem , portanto, extra-cientfica. Os conceitos fundamentais de uma cincia no so por ela mesma instaurados. As descobertas de sua investigao incidem sobre o j aberto do ser dos entes, que predelineia, no modo da projeo, a experincia constitutiva do mesmo domnio. Sendo a projeo uma possibilidade do Dasein, a abertura correspondente um acontecer histrico.

    bom lembrar que a projeo matemtica da natureza, tematizando o ente como mensurvel, pelo qual podem determinar-se fatos e planejar experimentos, est na gnese da fsica galileana. A historicidade das cincias expressa-se nos conceitos fundamentais em que se baseiam. Lemos no $3 de Ser e tempo: O nvel de uma cincia determina-se por sua capacidade de experimentar uma crise de seus conceitos fundamentais. Nessa crise imanente das cincias, vacila a relao mesma da investigao positiva com as coisas a respeito das quais indaga. Por todos os lados despontam hoje, nas distintas disciplinas, tendncias a firmar a investigao sobre novos fundamentos. (SZ, p.9) Como momentos de crise, so perodos crticos de revoluo cientfica, nos quais se abandona uma perspectiva dominante de conhecimento que hoje chamamos de paradigma e procede-se a uma reviso de conceitos. Foi o que

  • Heidegger & Ser e tempo 39

    ocorreu poca de elaborao de Ser e tempo, quando, ento, surgiram uma nova matemtica, uma nova geometria e se introduziram na fsica as teorias atmica e da relatividade.

    Irrompida a crise, perturbada fica a rotina de prticas que se estabilizaram. Prevalece antes o sobressalto da liberdade, temporalizando sobre o abismo (sem fundo) do Dasein, de sua transcendncia, a verdade originria que desvela o ente desocultando o ser. Tal abertura desloca para a transcendncia o sentido da prtica terica da cincia. Quer isso dizer que o desloca para fora do universo cientfico institucionalizado, que integra o mundo circundante pblico do cotidiano.

    Dessa forma, a histria das cincias, dependendo de possibilidades projetivas, recai na dialtica do excesso e da privao que prpria da liberdade. Seus principais captulos procederam de momentos de deciso, na sinuosa linha da temporalidade exttica que obedece silenciosa fora do possvel. Como modo de conduta do Dasein, a cincia est ligada ao enfrentamento do Nada. No obstante, assegura-nos a cincia um domnio entitativo pleno, inclusive para o telogo, que o recebe no modo da f. Em uma das obras complementares a Ser e tempo, a conferncia O que a metafsica?, escreve Heidegger: Mas o estranho que, precisamente, no modo como o cientista se assegura o que lhe mais prprio, ele fala de outra coisa. Pesquisado deve ser apenas o ente e nada mais; somente o ente e alm dele, nada; unicamente o ente e, alm disso, nada.

  • 40 Benedito Nunes

    Prope-se aqui a questo do nada custa da cincia e depois se prope a mesma questo do ser, resgatada por um ato de rememorao do olvido a que a condenou a tradio metafsica do pensamento filosfico hegemnico. Mas o nada no um conceito oposto ao ente; pertence, de modo originrio, mesma essncia do ser. Admitiu-se antes a finitude do tempo originrio. Admite-se, agora, a finitude do ser, que s se manifesta na transcendncia do Dasein suspenso dentro do nada. Como no concluir que a questo do nada a mesma do ser e vice-versa? Com isso o imprio da lgica vacila. Vacila, tambm, a superioridade da cincia. Em contrapartida, a metafsica se converte em acontecimento essencial no mbito do Dasein, como diz a mesma conferncia antes citada. Estamos colocados dentro da metafsica pelo fato de existirmos, mas a questo do ser pe em causa o posto da metafsica como cincia primeira e, ainda mais, o posto da filosofia como saber terico.

    Quando, portanto, a filosofia comea, ela j um recomeo, mobilizada de cada vez pela questo do ser, e encobrindo essa mesma questo sempre que recomea. A ontologia fundamental, que investiga a genealogia dos conceitos ontolgicos preponderantes, reitera aquela questo rememorando o ser esquecido, passado em silncio pela metafsica. A ontologia fundamental quebra o silncio. E tenta desencobrir, no recuo a uma origem que ela no funda conceitualmente, e que a determina, o que ocorre de maneira obscura e distorcida no pensamento filosfico.

    O ser o transcendens que ela descobre na transcendncia do Dasein. Assim a ontologia fundamental a filosofia realizada como ontologia universal e fenomenolgica que

  • Heidegger & Ser e tempo 41

    parte da hermenutica do Dasein, que, por sua vez, como analtica da existncia, liga o ponto do fio condutor de toda questo filosfica quilo de que surge e para onde retorna. (SZ, p.38)

    O Dasein. A filosofia gira em torno da verdade ontolgica na qual se funda toda verdade ntica. Mas que trancendens descobre a fenomenologia hermenutica seno o tempo originrio? A diferena do ente ao ser, surgida na rbita da transcendncia do Dasein, corresponde a esse transcendens descoberto na temporalidade. Assim, em seu extremo limite, a ontologia fundamental detm-se diante da diferena, noo dominante na segunda fase do pensamento heideggeriano, que aproxima o tempo do ser e que distancia do ser o ser do ente (entificao). O sentido do ser em geral, a que se ligaria a ponta do fio condutor a pergunta pelo ser , depois de desenrolado atravs do ente que o compreende de modo prvio em sua existncia, excede e determina essa mesma compreenso.

    Pode a pergunta encontrar sua resposta retrocedendo constituio originria do ser do Dasein que compreende o ser. (SZ, p.437) Essa constituio originria, que faz do Dasein um ser-no-mundo, a estrutura da subjetividade. Foi, afinal, a compreenso do ser que legitimou a suspenso fenomenolgica do ser da conscincia referido no $83 de Ser e tempo. Em vez de regio ontolgica privilegiada (como foi para Husserl), o ser da conscincia a relao de pertena (Zugehorigkeit) do homem ao ser, possibilitando o conhecimento de si a ipseidade e a transcendncia.

  • 41 Benedito Nunes

    Por isso, no o homem Daseiende, mas Dasein: a abertura, o a da existncia fctica, que vai tanto do homem para o ser quanto do ser para o homem, est enfeixada semnticamente no Da de Dasein, relao que se perde no etimologismo praticado pela traduo brasileira de Ser e tempo, que seria de exemplar competncia no fosse o hamletiano prejuzo desse nico defeito by one defect que o fez traduzir o mesmo termo Dasein por pr-sena, sem perceber que, na leitura, a etimologia no vigora sobre a semntica e que, nesse ato de leitura, a palavra deixa de ser neutra (das Dasein), funcionando a presena como Anwesende ou como prsence, assim escrito, certa vez, em francs, por Heidegger, de acordo o que se pode ler nos Beitrge, da terceira fase. No sentido empregado pela primeira vez essencialmente em Sein und Zeit, este termo no se traduz, quer dizer, ele contradiz o ponto de vista do pensamento e do modo de expresso da histria do Ocidente at agora: Da Sein. No sentido literal significa, por exemplo: a cadeira est a; o tio est a. Chegou e est presente; da prsence (sic). Dasein significa propriamente um ente, mas no no modo de ser no sentido dito acima ....

    O tratamento que a idia de verdade recebeu no $44 de Ser e tempo deixa prever a inverso de rumo que separou Heidegger I de Heidegger II.

    A essncia da verdade. Deslocada da proposio, a verdade residiria no Dasein. Mas como a abertura o domnio do iluminado e do manifesto, pode-se tambm dizer que o Dasein est localizado na verdade. Mas j vimos que a contraparte

  • Heidegger & Ser e tempo 43

    da abertura o encobrimento. Sendo ambos, encobrimento e abertura, possibilidades existentivas, o Dasein fctico, projetante e cadente, , ao mesmo tempo descobridor e encobridor. Se assim , ele est tanto na verdade quanto na no-verdade. A distino entre o verdadeiro e o falso, na ordem dos juzos e das proposies, deriva de uma partilha que se efetua na rbita da conduta de um ente temporal e histrico que livre para fundamentar para dar razo, desencobrindo de suas aparncias o ente no meio do qual se encontra e sobre o qual se projeta. A altheia comporta um desvelamento: o ente descoberto, que se mostra na proposio, arrancado de suas coberturas. A verdade, ento, um existentivo. A verdade exige, constrange e d razo de si mesma; ela tem a fora de um pressuposto. E como pressuposto encerra uma exigncia feita ao ente para que se revele. O desvelamento, que extrai o ente com a violncia de um roubo, ocorre porm em funo do aberto, ponto de emergncia da verdade originria, custa da deciso, ato de escolha abrindo o Dasein no seu poder-ser mais prprio. Quer isso dizer que o homem como sujeito, cria e constitui o verdadeiro, numa soluo idealista, pois que a verdade seria relativa ao ser do Dasein? Heidegger tambm afirma isso. Como igualmente afirma que reside no idealismo a nica e correta possibilidade de desenvolver os problemas filosficos. (SZ, p.208) Essa afirmao est de acordo com a intromisso da negatividade no conceito de transcendncia identificado liberdade. A cada momento do Dasein o no-ser de si mesmo. A despeito das elucidaes em contrrio, a negao traria liberdade o seu alento.

  • 44 Benedito Nunes

    Em suma, transcendncia, liberdade e negao prolongariam o esquecimento, o olvido do ser na tradio metafsica do pensamento moderno. O estranho tratado Ser e tempo estava, no fim, envolvido pela metafsica que tinha sido problematizada. Como superar esse envolvimento seno rediscutindo a verdade originria? Nela ainda haveria representao?. Ou o enunciado predicativo mostra somente aquilo pelo que se rege e que se manifesta na conduta, interpretando, como tal, a abertura, que assim o pressuposto do critrio de adequao adaequatio rei et intellectus sustentando portanto o nexo derivado entre verdade e proposio A abertura constituir o mbito do desvela-mento que tem no Dasein o seu a.

    Est, em sntese, nessa frase torcida a doutrina da conferncia de 1930. A essncia da verdade, final da primeira fase e incio da segunda do pensamento heideggeriano. O que se desvela nesse mbito?

    O que se desvela nesse mbito o acontecimento de que depende a histria ocidental: a pergunta do primeiro pensador grego sobre o que o ente, que o abandona ao ser ao ser que possibilita a histria, daqui em diante referida por Heidegger como historial, assinalando a provenincia e a destinao do homem. o ente aberto no Dasein que possibilita a histria. O pensamento do ser o fundamento oculto do homem, em que a histria fundada e sobre a qual escrita.

    A abertura do Dasein ao ser, que passar a chamar-se clareira (Lichtung) o domnio do iluminado e do manifesto , reticulada, com zonas de sombra ou de ocultao,

  • Heidegger & Ser e tempo 45

    e o desvelamento, fatum da liberdade que possui o homem, tambm, em si mesmo, simultaneamente, uma dissimulao ou retrao. Somente aqui se completa a doutrina esboada em Ser e tempo, no $44, segundo a qual o Dasein est na verdade e na no-verdade. O destino do indivduo prolonga-se no do ser-em-comum, realizando-se como errncia, onde no cai porque sempre nela est.

    Manifestando-se no espao de abertura, entre velamento e no-velamento, a altheia acontece, e nesse acontecer consiste a essncia da verdade. Mas, nessas condies, a essncia da verdade a verdade da essncia. O ser no mas se essencializa (west) na linguagem. Indicando o movimento de virada (Kehre), a pergunta, a questo do ser condutora, no colocada mais atravs do Dasein, como na analtica, mas atravs da histria do ser, sedimentada nos textos filosficos, de que o primeiro momento, contendo a fora do princpio, a physis dos pr-socrticos.

    Destruio e poesia: grand finale. Mas, desse ponto de vista, a viragem, voltando-se para essa histria sedimentada, j prenunciada na Introduo de Ser e tempo, opera de modo preliminar como destruio (Destruktion) da histria da ontologia, em busca das experincias originais em que foram alcanadas as primeiras determinaes do ser, posteriormente diretivas. (SZ, p.22) Ora, essas primeiras determinaes, com a fora do principio, j so tambm originariamente poticas. Pensamento do ser e dizer potico se entrelaam. Esse entrelaamento pode ser entrevisto no inacabado texto do grande tratado de 1927, que nos indica

  • 46 Benedito Nunes

    a valncia ontolgica do potico: A comunicao das possibilidades existentivas da imerso (Befindlichkeit), isto , o abrir da existncia, pode tornar-se o prprio fim do discurso potico (dichtende Rede). (SZ, p.162) Em termos semelhantes, ela aparece nos Prolegmenos para a histria do conceito de tempo, de 1925, em grande parte um esboo de Ser e tempo. E ainda com importante acrscimo. O discurso, e antes de tudo a poesia (vor allem Dichtung), libera novas possibilidades do ser do Dasein. E por faz-lo confirma-se como modo de temporalizao do prprio Dasein. Esboa-se a trilha da historicidade da linguagem e da poesia, que passar para Hlderlin e a essncia da poesia (1936).

    Os conceitos interpretativos elaborados pela ontologia fundamental fecundaram as cincias humanas e as disciplinas humansticas. Penetraram a psicanlise com Ludwig Biswanger e Medard Boss, a potica com Emil Staiger e a hermenutica com R. Bultmann, telogo da desmitologizao, sob a influncia da historicidade da existncia. Nos mesmos conceitos baseou Sartre a especulao de O ser e o nada (I.tre et le Nant) e Kojve a sua interpretao da dialtica hegeliana. Da mesma fonte serviu-se Herbert Marcuse para a reformulao antropolgica do marxismo e Maurice Merleau-Ponty para respaldar sua Fenomenologia da percepo (Phnomenologie de la perception). No outro extremo do pensamento filosfico, mesma poca, Ludwig Wittgenstein leu e apreciou, certamente como texto limite entre o dizer e o silenciar, O que a metafsica?, de Heidegger.

  • Seleo de textos

    Obs.: Inclumos nessa seleo alguns dos textos circunvizinhos a Ser e tempo.

    O ente cuja anlise nossa incumbncia somos ns mesmos. O ser deste ente em cada caso meu. No ser deste ente comporta-se ele relativamente ao seu ser. Como ente deste ser entregue responsabilidade de seu peculiar ser. O ser neste ente o que est sempre em jogo. Dessa caracterstica do Dasein resulta uma dupla:

    l. A essncia desse ente reside em seu para ser (Zu sein).A essncia deste ente deve ser concebida, na medida em que dela se pode falar, a partir de sua existncia. A incumbncia ontolgica justamente mostrar que se escolhemos o termo existncia para designar o ser deste ente, este termo no tem e no pode ter a significao ontolgica do termo tradicional existentia: existentia quer dizer ontologicamente ser--vista, uma forma de ser que por essncia no convm ao ente que tem o carter do Dasein. Evitamos a confuso usando sempre em lugar desse termo a expresso exegtica ser--vista e reservando o termo existncia (Existenz) como determinao do ser para o Dasein.

    A essncia do Dasein est em sua existncia. O que se pode extrair desse ente no so propriedades dadas de um

    47

  • 48 Benedito Nunes

    ser--vista, mas modos de ser possveis dele em cada caso e somente isso. Todo ser tal ou qual deste ente primariamente ser. De onde resulta que o termo Dasein, com que designamos esse ente, no expressa seu quid est, como mesa, casa, rvore, mas sim o ser.

    2. O ser que est em jogo neste ente em seu ser em cada caso meu. O Dasein nunca pode considerar-se ontologicamente como caso e exemplar de um gnero de entes vista. A estes entes, -1hes o ser indiferente ou pensada a coisa exatamente, so de tal modo que seu ser no pode ser-1hes nem indiferente nem o contrrio ... O Dasein em cada caso sua possibilidade ... E por ser em cada caso o Dasein essencialmente sua possibilidade, pode este ente em seu ser escolher-se a si mesmo, ganhar-se e tambm perder-se ou no ganhar-se nunca ou s aparentar que se ganha.

    A realidade e o cuidado

    Na ordem das relaes ontolgicas de fundamentao e da possvel distino entre o categorial e o existencial, a realidade remetida ao fenmeno do cuidado. Mas que a realidade esteja fundada ontologicamente no ser do Dasein no pode significar que o real s possa ser como o que em si mesmo, se o Dasein existe e enquanto existe. Certa-mente, s enquanto o Dasein , quer dizer, a possibilidade ntica de uma compreenso do ser, que o ser se d. Se no existe o Dasein, ento no tampouco a independncia nem muito menos o em si.

  • Heidegger & Ser e tempo 49

    O modo de ser da verdade e a pressuposio da verdade

    O Dasein est essencialmente na verdade, enquanto constitudo pela abertura. A abertura uma forma essencial do ser do Dasein. S h verdade na medida e at onde o Dasein . Os entes s so descobertos quando um Dasein e s so abertos enquanto um Dasein . As leis de Newton, o princpio de contradio, qualquer verdade somente verdade enquanto o Dasein ... Antes que fossem descobertas, as leis de Newton no eram verdade; do que no se segue que fossem falsas nem muito menos que se tornem falsas quando j no seja possvel onticamente nenhum descobrimento....

    Que haja verdades eternas coisa que s ficar suficientemente provada quando se tenha conseguido demonstrar que o Dasein foi e ser por toda a eternidade. Enquanto no se tenha conseguido essa prova, continuar sendo a frase uma afirmao imaginria ...

    De Ser e tempo, trad. de Benedito Nunes [Sein und Zeit Acht unveranderte Auflage, Tbingen, Max Niemeyer, 1957]

    Onde procuramos o nada? Onde encontramos o nada? Para que algo encontremos no precisamos, por acaso, j saber que existe? Realmente! Primeiramente e o mais das vezes o homem somente ento capaz de buscar se antecipou a presena do que busca. Agora, porm, aquilo que se busca o nada ...

    O nada se revela na angstia mas no enquanto ente. Tampouco nos dado como objeto. A angstia no uma

  • 49 Benedito Nunes

    apreenso do nada. Entretanto, o nada se torna manifesto por ela e nela, ainda que no da maneira como se o nada se mostrasse separado, ao lado do ente, em sua totalidade, o qual caiu na estranheza. Muito antes, e isso j o dissemos: na angstia deparamos com o nada juntamente com o ente em sua totalidade. Na angstia se manifesta um retroceder diante de ...que, sem dvida, no mais uma fuga, mas uma quietude fascinada. Este retroceder diante de recebe seu impulso inicial do nada. Este no atrai para si, mas se caracteriza fundamentalmente pela rejeio ... Esta remisso que rejeita em sua totalidade, remetendo ao ente em sua totalidade em fuga tal o modo do nada assediar, na angstia, o ser-a a essncia do nada: a nadificao.

    Que metafsica?, Os Pensadores, Abril Cultural, vol.XLV,trad. de Ernildo Stein [Was is metaphysik? (1929),in Wegmarken, Frankfurt, Vittorio Klostermann, 1957]

    Somente a liberdade pode deixar imperar e acontecer um mundo como mundo. Mundo jamais , mas acontece como mundo (weltet) ...

    A liberdade como transcendncia no , contudo, apenas uma espcie particular de fundamento, mas a origem do fundamento em geral. Liberdade liberdade para o fundamento.

    A relao originria da liberdade para com o fundamento, ns a denominamos o fundar. Fundando, ela d liberdade e toma fundamento. Este fundar radicado na transcendncia est, porm, disperso numa multiplicidade

  • Heidegger & Ser e tempo 51

    de modos. Deles h trs: l. O fundar como erigir. 2. O fundar como tomar cho. 3. O fundar como fundamentar.

    O ser-a funda (erige) o mundo apenas enquanto se autofunda em meio ao ente.No fundar com o carter de erigir, como projeto da possibilidade de si mesmo,

    reside, entretanto, o fato de o ser-a sempre se exceder (berschwingt). O projeto de possibilidades , segundo sua essncia, sempre mais rico que a posse que repousa naquele que projeta. Mas uma tal posse prpria do ser-a, porque se encontra situado, como projetante, em meio ao ente. Com isso j esto subtradas ao ser-a certas outras possibilidades e isto simplesmente atravs de sua prpria faticidade.... A transcendncia conforme os dois modos de fundar ao mesmo tempo aquilo que excede e que priva....

    Fundamentar no ser tomado aqui no estreito e derivado sentido do demonstrar de proposies ntico-tericas, mas, numa significao fundamentalmente originria de acordo com isso, fundamentao significa tanto como possibilitao da questo do porqu em geral.

    Sobre a essncia do fundamento, Os Pensadores, Abril Cultural, vol.XLV, traduo de Ernildo Stein [Von Wesen des Grundes (1929), in Wegmarken, Frankfurt, Vittorio Klostermann, 1957]

    $42 A revelao da constituio do ser do Dasein ontologia. Esta ltima se chama ontologia fundamental enquanto estabelece o fundamento da possibilidade da metafsica, quer dizer, enquanto considera a finitude do Dasein como

  • 52 Benedito Nunes

    seu fundamento. O contedo desse ttulo inclui o problema da finitude no homem como elemento decisivo para possibilitar a compreenso do ser...,

    $43 Uma analtica do Dasein deve procurar, desde o comeo, fazer visvel o Dasein no homem, precisamente segundo aquela forma do ser do homem que, de acordo com sua essncia, esfora-se por manter no esquecimento o Dasein e a compreenso do ser do mesmo, isto , a finitude originria ...

    A angstia o encontrar-se fundamental que nos coloca diante do nada. Mas o ser do ente s inteligvel e nisso se encontra a mais profunda finitude da transcendncia se o Dasein no fundo de sua essncia enfrenta (hineinhalt) o nada.

    Este enfrentamento do nada no um intento casual e arbitrrio de pensar o nada, mas um acontecer que est na base de todo encontrar-se no meio do ente--vista e que deve ser esclarecido, segundo sua possibilidade interna, por uma analtica ontolgica fundamental do Dasein.

    Kant e o problema da metafsica, trad. de Benedito Nunes [Kant und das Problem der Metaphysik (1929),Frankfurt, Vittorio Klostermann, 1951]

    Mundo s h se e por quanto tempo um Dasein existe. Pode haver natureza mesmo na ausncia de todo Dasein. A estrutura do ser-no-mundo revela essa particularidade essencial do Dasein, a saber que ele se projeta um mundo, no depois e acessoriamente, mas de tal sorte que o projeto de mundo pertence ao ser do Dasein. Com esse projeto, o Dasein j

  • Heidegger & Ser e tempo 53

    sempre sai de si, ele existe (ex-sistere), ele no mundo. por essa razo que nunca h alguma coisa como esfera interna. Se reservamos o conceito de existncia ao modo de ser do Dasein, porque o ser-no-mundo pertence a esse ser....

    O tempo originrio intrinsecamente fora de si. Tal a essncia da temporalizao. O tempo originrio o tempo em si fora de si, quer dizer que ele no qualquer coisa que, numa primeira abordagem, seria presente-subsistente como uma coisa, e que em seguida sairia de si deixando-se atrs de si, mas ele no em si mesmo nada mais do que esse fora de si puro e simples. Na medida em que essa caracterstica exttica define a temporalidade, um transporte exttico para..., em direo de..., encontra-se formalmente implicado na essncia de cada xtase que s se temporaliza atravs de sua unidade temporalizante com os outros xtases.... A temporalidade como unidade originria do futuro, do haver sido e do presente , em si mesma exttica horizontal. Horizontal significa aqui: caracterizado por um horizonte dado com o prprio xtase. A temporalidade exttica-horizontal no s torna ontologicamente possvel a constituio ontolgica do Dasein, mas ela que tambm possibilita a temporalizao do tempo, aquele que a compreenso vulgar conhece e que ns caracterizamos em geral como uma sucesso no reversvel de agora....

    A intencionalidade o fato de ser dirigido para alguma coisa, com a co-pertena que isso implica entre a intentio e o intentum a intencionalidade, que na fenomenologia comumente designada como o arquifenmeno, tem por condio de possibilidade a temporalidade e seu carter

  • 53 Benedito Nunes

    exttico-horizontal. O Dasein s intencional porque determinado, em sua essncia, pela temporalidade....

    O tempo, como tempo apropriado/inapropriado, tem por carter a significabilidade, quer dizer, esse trao que pertence ao mundo como mundo em geral. por essa razo que ns designamos sob o nome de tempo do mundo (Weltzeit) o tempo com o qual ns contamos, o tempo ao qual nos entregamos....

    O tempo comporta, tambm, alm da significabilidade, um segundo momento: a databilidade. Cada agora exprimido num presentificar, que vai de par com um estar na expectativa e um reter....

    Cada momento do tempo nele mesmo expandido, mesmo se o alcance dessa expanso varivel. Esse alcance varia em funo daquilo que de cada vez o agora fixa a data ... O ltimo trao caracterstico do tempo, no sentido do tempo calculado e exprimido, o que ns denominamos ser-pblico do tempo.... A expresso do agora inteligvel por todos no ser-em-comum.

    A objetivao do ente atravs da qual as cincias positivas se constituem cada vez de maneira diferente em funo da realidade especfica e do modo de ser do domnio ontolgico em questo, est centrado sobre o que , em cada caso, o projeto da estrutura ontolgica do ente a objetivar. Contudo, o projeto da estrutura ontolgica de um domnio do ente projeto de que depende a objetivao que est na base das cincias positivas no urna pesquisa ontolgica sobre o ser do ente considerado, mas conserva ainda o carter de uma considerao pr-ontolgica na qual seguramente

  • Heidegger & Ser e tempo 55

    pode entrar (e de fato entra sempre) um certo conhecimento j disponvel das determinaes ontolgicas do ente em questo. A objetivao da natureza, prpria fsica moderna, se constitui atravs de um projeto matemtico da natureza em que as determinaes fundamentais, intrnsecas a uma natureza em geral, so trazidas luz, sem que essas determinaes sejam reconhecidas como ontolgicas. Galileu, que deu aqui o primeiro passo, desenvolveu esse projeto na base e no quadro de um conhecimento dos conceitos ontolgicos fundamentais da fsica tais como movimento, espao e matria , conceitos que ele recebeu da filosofia antiga e da escolstica, mas que ele no se contentou simplesmente em receber dessa forma.... Retenhamos simplesmente que mesmo as cincias positivas, e justamente naquilo que assegura em primeiro lugar sua consistncia, se relacionam necessariamente, mesmo de maneira pr-ontolgica ao ser do ente.

    Os problemas fundamentais da fenomenologia, trad. de Benedito Nunes [Die Grundproblem der Phanomenologie (1927), Frankfurt, Band 24 Vittorio Klostermann, 1989]

  • Referncias e fontes

    p.12: Em lugar de conscincia (Bewusstsein), leremosDasein (ser-a): a citao encontra-se nos Seminrios deThor e Zahringen, in Questions IV, Paris, Gallimard, 1976.

    p.13: A meno ao interesse no sentido kierkegaardiano est exposta em Kierkegaard, Post-scriputum aux miettes philosophiques, Paris, Gallimard, 1949, p.209.

    p.19: O Kierkegaard referido nessa pgina o de O conceito de angstia (El concepto de angustia: una sencilla investigacin psicologica orientada havia el problema dogmatico del pecado original, Buenos Aires, Espasa-Calpe, 1940).

    p.20: A observao de Leopardi sobre o tdio encontra-se em Leopardi, Pensamentos, in Poesia e prosa, Rio de Janeiro, Nova Aguillar, 1996.

    p.30: Para a referncia ao debate com Aristteles sobre o conceito de tempo, ver Martin Heidegger, Die Grundpro-blem der Phanomenologie, in Gesamtausgabe, Frankfurt, Vittorio Klostermann, 1989.

    p.32: A observao de Herder pode ser lida em Herder, Filosofia de la historia para la educacin de la humanidad, Buenos Aires, Editorial Nueva, 1950.

    56

  • Heidegger & Ser e tempo 57

    p.39-41: As citaes de O que a metafsica? foram extradas de Heidegger, Was ist Metaphysik?, in Wegmarken, Frankfurt, Vittorio Klostermann, 1967, a primeira da p.5 e as duas seguintes da p.18.

    p.42: Edio brasileira de SZ: Ser e tempo, 2 vols., trad. Mrcia de S Cavalcanti, Petrpolis, Vozes, 1988.

    p.42: O esclarecimento de Heidegger sobre o sentido do termo Dasein encontra-se em Beitrage zur Philosophie (vom Ereignis), Frankfurt, Vittorio Klostermann, 1989, $176, p.300.

  • Leituras recomendadas

    Joo Paisana. Fenomenologia e hermenutica: a relao entre as filosofias de Husserl e Heidegger, Lisboa, Presena, 1992.

    Richard Palmer. Hermenutica, Lisboa, Edies 70.Paul Ricoeur. Existncia e hermenutica, in O conflito das

    interpretaes: ensaios de hermenutica, Rio de Janeiro, Imago, 1978..A tarefa da hermenutica, in Interpretao e ideologia, Rio de Janeiro,

    Francisco Alves, 1977.Richard Rorty. Ensaios sobre Heidegger e outros/Escritos filosficos 2,

    Rio de Janeiro, Relume Dumar, 1999.Ernildo Stein. Lies preliminares sobre o $44 de Sein und Zeit, in

    Seminrio sobre a verdade, Petrpolis, Vozes, 1993.Jacques Taminiaux, Lectures sur Iontologie fondamentale/Es-sais sur

    Heidegger, Paris, Millon, 1995.

    58

  • Sobre o autor

    Benedito (Jos Viana da Costa) Nunes, nasceu em 1929 em Belm do Par, onde vive e reside. Estudou filosofia na Frana e foi professor titular emrito dessa matria na Universidade Federal do Par. Dentre as suas muitas publicaes no domnio da literatura e da filosofia, destacam-se os livros O dorso do tigre, Joo Cabral de Melo Neto, Poesia de Mrio Faustino, Introduo filosofia da arte, A filosofia contempornea, O tempo na narrativa, Passagem para o potico: filosofia e poesia em Heidegger, No tempo do niilismo e outros ensaios, Crivo de papel, Hermenutica e poesia.

    59