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Entrevista com Zigmunt Bauman * Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke Um renomado periódico espanhol referiu-se recentemente a Zygmunt Bauman como um dos poucos sociólogos contemporâneos "nos quais ainda se encontram idéias". Opinião semelhante é freqüentemente exposta por críticos de várias partes do mundo quando refletem sobre o pensamento desse intelectual polonês radicado na Inglaterra desde 1971 e empenhado há meio século em "traduzir o mundo em textos", como diz um deles. Indiferente às fronteiras disciplinares, Bauman é um dos líderes da chamada "sociologia humanística", ao lado de Peter Berger, Thomas Luckmann e John O'Neill, entre outros. De um lado, não se encontram em suas obras abstrações ou análises e levantamentos estatísticos; de outro, são ali aproveitadas quaisquer idéias e abordagens que possam ajudá-lo na tarefa de compreender a complexidade e a diversidade da vida humana. Essa é uma das razões pelas quais Bauman tem muito a dizer para uma gama de leitores muito maior do que normalmente se espera de um trabalho de sociologia mais convencional, o que condiz com suas próprias ambições de atingir um público composto de pessoas comuns "esforçando-se para ser humanas" num mundo mais e mais desumano. Como ele gosta de insistir, seu objetivo é mostrar a seus leitores que o mundo pode ser diferente e melhor do que é. Autor prolífico e de renome internacional, pode-se dizer que sua fama e prolixidade aumentaram significativamente após a aposentadoria, em 1990: 16 de seus 25 livros foram publicados após essa data e cinco obras dedicadas ao estudo de seu pensamento foram escritas nos últimos anos. Descrito certa vez como "profeta da pós-modernidade" (com o que não concorda), por suas reflexões sobre as condições do mundo da "modernidade líquida", os temas abordados por Bauman tendem a ser amplos, variados e especialmente focalizados na vida cotidiana de homens e mulheres comuns. Holocausto, globalização, sociedade de consumo, amor, comunidade, individualidade são algumas das questões de que trata, sempre salientando a dimensão ética e humanitária que deve nortear tudo o que diz respeito à condição humana. Preocupado com a sina dos oprimidos, Bauman é uma das vozes a permanentemente questionar a ação dos governos neoliberais que promovem e estimulam as chamadas forças do mercado, ao mesmo tempo em que abdicam da responsabilidade de promover a justiça social. "Hoje em dia", lamenta ele, "os maiores obstáculos para a justiça social não são as intenções... invasivas do Estado, mas sua crescente impotência, ajudada e apoiada todos os dias pelo credo que oficialmente adota: o de que 'não há alternativa'". É nesse quadro que se pode entender sua afirmação de que "esse nosso mundo" precisa do socialismo como nunca antes. Mas o socialismo de que Bauman fala, como insiste em esclarecer, não se opõe "a nenhum modelo de sociedade, sob a condição de que essa sociedade teste permanentemente sua habilidade de corrigir as injustiças e de aliviar os sofrimentos que ela própria causou". É nesse sentido que ele define o socialismo como "uma faca afiada prensada contra as flagrantes injustiças da sociedade". Nascido na Posnânia em 1925, Bauman escapou dos horrores do holocausto que aguardavam os judeus poloneses na Segunda Guerra Mundial ao fugir com sua família para a Rússia, em 1939. De lá voltou após a guerra, quando se filiou ao partido comunista, estudou na Universidade de Varsóvia e conheceu Janina, com quem está casado há 55 anos e com quem teve três filhas: Anna (matemática), Lydia (pintora) e Irena (arquiteta). Confiantes e animados pelo sonho de criar uma sociedade mais justa e igualitária, Zygmunt e Janina ali construíram suas carreiras (ele como professor da Universidade de Varsóvia e ela como editora de roteiros cinematográficos) e criaram sua família, até que uma nova onda de anti-semitismo e repressão esmagou seus sonhos e os forçou ao exílio. Após três anos

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Entrevista com Zigmunt Bauman*

Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke

Um renomado periódico espanhol referiu-se recentemente a Zygmunt Bauman como um dos poucos sociólogos

contemporâneos "nos quais ainda se encontram idéias". Opinião semelhante é freqüentemente exposta por críticos de

várias partes do mundo quando refletem sobre o pensamento desse intelectual polonês radicado na Inglaterra desde 1971

e empenhado há meio século em "traduzir o mundo em textos", como diz um deles. Indiferente às fronteiras disciplinares,

Bauman é um dos líderes da chamada "sociologia humanística", ao lado de Peter Berger, Thomas Luckmann e John O'Neill,

entre outros. De um lado, não se encontram em suas obras abstrações ou análises e levantamentos estatísticos; de outro,

são ali aproveitadas quaisquer idéias e abordagens que possam ajudá-lo na tarefa de compreender a complexidade e a

diversidade da vida humana. Essa é uma das razões pelas quais Bauman tem muito a dizer para uma gama de leitores muito

maior do que normalmente se espera de um trabalho de sociologia mais convencional, o que condiz com suas próprias

ambições de atingir um público composto de pessoas comuns "esforçando-se para ser humanas" num mundo mais e mais

desumano. Como ele gosta de insistir, seu objetivo é mostrar a seus leitores que o mundo pode ser diferente e melhor do

que é.

Autor prolífico e de renome internacional, pode-se dizer que sua fama e prolixidade aumentaram significativamente após a

aposentadoria, em 1990: 16 de seus 25 livros foram publicados após essa data e cinco obras dedicadas ao estudo de seu

pensamento foram escritas nos últimos anos.

Descrito certa vez como "profeta da pós-modernidade" (com o que não concorda), por suas reflexões sobre as condições do

mundo da "modernidade líquida", os temas abordados por Bauman tendem a ser amplos, variados e especialmente

focalizados na vida cotidiana de homens e mulheres comuns. Holocausto, globalização, sociedade de consumo, amor,

comunidade, individualidade são algumas das questões de que trata, sempre salientando a dimensão ética e humanitária

que deve nortear tudo o que diz respeito à condição humana. Preocupado com a sina dos oprimidos, Bauman é uma das

vozes a permanentemente questionar a ação dos governos neoliberais que promovem e estimulam as chamadas forças do

mercado, ao mesmo tempo em que abdicam da responsabilidade de promover a justiça social. "Hoje em dia", lamenta ele,

"os maiores obstáculos para a justiça social não são as intenções... invasivas do Estado, mas sua crescente impotência,

ajudada e apoiada todos os dias pelo credo que oficialmente adota: o de que 'não há alternativa'". É nesse quadro que se

pode entender sua afirmação de que "esse nosso mundo" precisa do socialismo como nunca antes. Mas o socialismo de

que Bauman fala, como insiste em esclarecer, não se opõe "a nenhum modelo de sociedade, sob a condição de que essa

sociedade teste permanentemente sua habilidade de corrigir as injustiças e de aliviar os sofrimentos que ela própria

causou". É nesse sentido que ele define o socialismo como "uma faca afiada prensada contra as flagrantes injustiças da

sociedade".

Nascido na Posnânia em 1925, Bauman escapou dos horrores do holocausto que aguardavam os judeus poloneses na

Segunda Guerra Mundial ao fugir com sua família para a Rússia, em 1939. De lá voltou após a guerra, quando se filiou ao

partido comunista, estudou na Universidade de Varsóvia e conheceu Janina, com quem está casado há 55 anos e com quem

teve três filhas: Anna (matemática), Lydia (pintora) e Irena (arquiteta).

Confiantes e animados pelo sonho de criar uma sociedade mais justa e igualitária, Zygmunt e Janina ali construíram suas

carreiras (ele como professor da Universidade de Varsóvia e ela como editora de roteiros cinematográficos) e criaram sua

família, até que uma nova onda de anti-semitismo e repressão esmagou seus sonhos e os forçou ao exílio. Após três anos

em Israel, o convite para o cargo de chefe do departamento de sociologia na Universidade de Leeds trouxe Bauman e sua

esposa à Inglaterra, onde permanecem até hoje.

Gentil, modesto e reservado, Zygmunt Bauman aceitou prontamente ser entrevistado para o público do Brasil, país que

pouco conhece e onde esteve uma única vez há vários anos, para um congresso de sociologia no Rio de Janeiro. Pelas

notícias que ouve do país, o que o impressiona é a desumanidade de cidades como São Paulo, por exemplo, uma cidade

que, como diz, com sua abundância de muros ao redor de residências, prédios, parques etc., mostra "o lado mais brutal e

inescrupuloso das tendências segregadoras e exclusivistas" das cidades metropolitanas. O fato de os brasileiros

despenderem "4,5 bilhões de dólares por ano em segurança privada" só acresce a desumanidade de um quadro que

considera sintomático da realidade mundial.

Bauman recebeu-me em Leeds, na confortável casa onde mora desde que ali chegou, há mais de trinta anos. "Naquela

época achei a cidade horrível, imunda", disse-me Janina, comentando a mudança dos últimos tempos, que transformou

Leeds de um sujo centro industrial em uma cidade bonita, verdejante e cheia de vida.

Extremamente hospitaleiro (algo muito próprio dos europeus do Leste, como dizem), Bauman entremeou reflexões sobre

sua obra e sua vida com idas à cozinha para servir chá quente e com oferecimentos insistentes de caprichados canapés de

salmão e outros petiscos cuidadosamente dispostos na pequena mesa de sua biblioteca.

Quando se acompanha sua carreira, o senhor parece um filósofo que, devido às condições da Polônia de pós-guerra, foi

temporariamente desviado de sua vocação, voltando-se para a sociologia. Concorda com essa descrição?

Essa seria uma reconstrução justa do que realmente aconteceu e de como eu encarava a situação, mas com uma ressalva.

Eu não era um filósofo profissional antes de ter me desviado para a sociologia, como você sugere; nem desejava me tornar

um. Antes de me juntar ao exército polonês e voltar para meu país natal por essa via, eu fiz dois anos de curso universitário

de física por correspondência (na Rússia, os estrangeiros não tinham permissão de viver em cidades grandes, onde havia

universidades). Lembro de, como tantos adolescentes, me sentir um tanto apavorado e esmagado pelos mistérios e

enigmas do universo e de desejar ardentemente dedicar minha vida a desvendar esses mistérios e a solucionar esses

enigmas. Meus estudos no entanto foram interrompidos pelo apelo das armas, quando eu tinha 18 anos, para jamais serem

retomados.

Ao deixar o exército em 1945, eu me vi novamente numa Polônia arruinada pela ocupação nazista, o que se somava a um

anterior legado de miséria, de desemprego em massa, de conflitos étnicos e religiosos aparentemente insolúveis e de

exploração de classe brutal. Os desafios que meu país confrontava eram, pois, muito maiores do que os do resto da Europa,

pois além de reconstruir fábricas e casas, semear campos abandonados e colocar a economia de pé novamente, a Polônia

exigia a batalha exaustiva contra uma pobreza sedimentada e contra profundas divisões de classe; a abertura das

oportunidades educativas também era tarefa urgente, já que até então elas haviam estado fechadas à grande maioria da

nação. Para resumir, a Polônia ainda tinha que aderir ao "projeto de modernidade", que podia ainda estar "inacabado" na

Europa (e ainda hoje está, como insiste Jurgen Habermas), mas que na Polônia de 1945 ainda nem havia começado

seriamente.

Imagino que a crença de que a sociologia poderia melhorar a vida humana ao reformar o meio social no qual esta se

conduzia era parte integral do "projeto de modernidade". Até mesmo diria que o projeto consistia exatamente nisso. Assim,

as pessoas que estavam seriamente empenhadas em levar a sociedade a desenvolver condições mais desejáveis — a fim de

ser "moderna", ou seja, mais humana e melhor estruturada para promover a felicidade e a dignidade humanas — não

titubeavam um instante sobre que tipo de conhecimento deveria ser com mais urgência adquirido, dominado e colocado

em prática. Certamente só poderia ser a "ciência da sociedade", a sociologia, a disciplina que surgira para servir ao "projeto

de modernidade". Como Auguste Comte disse na origem do mais "modernista" dos objetivos científicos, "il faut savoir pour

prévoir, e prévoir pour pouvoir". Tal convicção sobre a missão da sociologia e tal fé em seu poder de realizar sua missão

devem, sem dúvida, intrigar um leitor contemporâneo, mas somente porque vivemos hoje numa era diferente, quando o

mantra do dia não é mais "salvação pela sociedade"; infelizmente, o que se ouve agora, como homilias insistentes, é que

devemos buscar soluções individuais para problemas produzidos socialmente e sofridos coletivamente.

Se o senhor é ao mesmo tempo sociólogo e filósofo, poderia dizer se há ocasiões em que os dois papéis entram em conflito?

Essa é uma questão de perspectiva, pois combinar os papéis de "sociólogo" e de "filósofo" (ou ser enquadrado ora em um

ora no outro, ou nos dois ao mesmo tempo) pode parecer esquisito agora e no mundo anglo-saxão (ou nas partes do

mundo nas quais o desenvolvimento das ciências sociais seguiu um padrão americano após a Guerra). Mas nem sempre,

nem em todos os lugares, foi assim... Certamente não era assim na Polônia, onde, como em grande parte da Europa, a

sociologia foi concebida, gestada e incubada dentro do pensamento filosófico — como parte, ou ramo, da filosofia. Fui

educado e treinado no Departamento de Filosofia e Sociologia, e não me recordo de nenhum conflito entre as duas partes

do mundo acadêmico: ambas pareciam assumir que eram "naturalmente" parte de um todo, talvez se vissem mesmo como

gêmeos siameses, ou até gêmeos holocéfalos!

Sou inclinado a acreditar que as raízes da sociologia como uma atividade intelectual separada e relativamente autônoma se

encontram na exposição da antiga atividade filosófica à ousada, e até temerária, intenção de "ilustrar". O projeto de

"ilustração" pode ser entendido, para usar a famosa alegoria de Platão, como a vontade de levar o produto da

contemplação das verdades brilhantes e ofuscantes dos filósofos para os habitantes das cavernas e, desse modo, retirá-los

dos bancos aos quais estavam atados, permitindo que vissem, absorvessem e retivessem algo mais valioso do que as meras

sombras das coisas refletidas nas paredes. Em outras palavras, a sociologia nasceu da intenção, do desejo de compartilhar a

sabedoria dos filósofos com hoi polloi, as "pessoas comuns", e de com isso elevá-las da ignorância e superstição para o

conhecimento e entendimento genuínos. Inclino-me a pensar que na sua origem a sociologia era um programa de educação

filosófica universal... Li o apelo à razão como uma faculdade universal dos seres humanos, contido em Was is

Aufklarung ("O que é Iluminismo") de Kant, como um manifesto sociológico (dentre outras coisas, é claro).

Muitas pessoas tendem a descrever sua obra como sendo a de um moralista ou, pelo menos, como a de um sociólogo com

mensagens éticas muito fortes. Concorda com essa descrição? Se sim, diria que está propondo um novo tipo de sociologia?

Talvez deva começar dizendo que, diferentemente da filosofia que "deixa o mundo como é", conforme a famosa

reclamação de Ludwig Wittgenstein (que disse isso seguramente pensando no tipo de filosofia de "análise lingüística" que

dominava o universo acadêmico da época), a sociologia faz diferença no mundo. Diria mesmo que, considerando sua

ligação com a condição humana, há alguma afinidade entre o papel da sociologia e o da engenharia. A "engenharia" em que

a sociologia se engaja, quer deliberadamente ou não, pode ser de dois tipos, e faz uma imensa diferença saber de qual

deles se trata. Desde os anos de 1950 cunhei os termos "engenharia pela manipulação" e "engenharia pela racionalização"

para diferenciar os dois tipos de engajamento e esclarecer para mim mesmo a qual tipo eu deveria aderir e de qual eu

deveria me afastar.

O primeiro tipo de "engenharia", imensamente popular no meu tempo de estudante, tanto na comunista Polônia como na

capitalista América, se oferecia aos corredores do poder com a promessa de ajudá-los a obter, sem nenhum

questionamento, qualquer tipo de ordem que fosse escolhida para a sociedade sob seu domínio. Supridos com informações

sociológicas sobre as condições sob as quais os homens e as mulheres se inclinam a diminuir suas obstinações e

indocilidades usuais e se tornam menos propensos a se rebelar e a trilhar seus próprios caminhos, os detentores do poder

podiam, então, legislar e transformar a realidade de modo a obter e receber a obediência e a disciplina que achassem

necessárias. O livro de sociologia mais influente da época, The structure of social action, de Talcott Parsons, declarava

exatamente seu propósito de desvendar os segredos do comportamento humano e de torná-lo previsível, não obstante ser

um fato inquestionável que os atos humanos são voluntários; em outras palavras, alardeava a possibilidade de "neutralizar"

os efeitos potencialmente perturbadores da escolha livre inata dos seres humanos, escolha danosa e abominável do ponto

de vista dos construtores e guardiães da ordem. Esse tipo de sociologia prometia ser uma ciência da não-liberdade a serviço

da tecnologia da não-liberdade... algo na mesma linha do que disse recentemente William Kristol em apoio às intenções dos

dirigentes americanos de remodelar a ordem social das pátrias de outras pessoas, desta vez em escala planetária: "Bem, o

que há de errado com o domínio, desde que a serviço de bons princípios e altos ideais?"1. Já ouvi tais palavras muitas vezes,

e me arrepiei antes do mesmo modo como ainda me arrepio agora.

Penso que fui atraído para a sociologia por motivos exatamente opostos aos que moviam os praticantes e "propagandistas"

da "engenharia pela manipulação". Suponho que o que me seduziu foi a esperança de ampliar a extensão e a potência da

liberdade dos atores sociais, oferecendo a eles um melhor insight na organização social na qual desempenham suas tarefas

de vida e que eles co-produzem (a maior parte das vezes inconscientemente). Desde sempre acreditei que, se a vocação

sociológica tem alguma utilidade para os seres humanos, essa utilidade se deve aos serviços que presta e pode prestar ao

esforço de compreender, dar sentido e adquirir um modicumde controle sobre suas vidas. É por isso que tendo a descrever

o que faço como um contínuo diálogo com a experiência humana. Era isso ao menos o que Stanislaw Ossowski, um dos

maiores sociólogos poloneses e um dos meus mais persuasivos professores em Varsóvia, considerava a premissa central de

sua muito peculiar "sociologia humanística".

Foi com isso em mente que durante os cinqüenta anos de minha aventura sociológica me movi de uma área da "condição

humana" para outra, sempre estimulado pelas contínuas mudanças, algumas profundas e outras sutis, dessa condição, ou

seja, do cenário social em que os indivíduos devem atuar. Desempenhando sua função — isto é, representando a condição

humana como produto das ações humanas —, a sociologia era e é para mim uma crítica da realidade social. Entendo que

cabe à sociologia expor publicamente a contingência, a relatividade do que é "a ordem", para abrir a possibilidade de

arranjos sociais e modos de vida alternativos; em outras palavras, ela deve militar contra as ideologias e as filosofias de vida

estilo TINA ("there is no other alternative") e manter outras opções vivas. Eu me regozijaria se algum dia dissessem de mim

o que Kracauer disse de Simmel: "É sempre o homem — considerado o construtor de cultura e um ser espiritual e

intelectual maduro, agindo e avaliando com total controle dos poderes de sua alma e ligado fraternalmente aos outros

homens em sentimento e em ação coletiva — que está no centro da visão de Simmel".

Se isso é ser moralista, então sou moralista no sentido de que creio que todas as decisões que o ser humano toma em seu

ambiente social (pois ninguém está sozinho, todos nós estamos conectados a outras pessoas) têm significado ético, têm um

impacto em outras pessoas, mesmo quando só pensamos no que ganhamos ou perdemos com o que fazemos. A extensão

planetária da televisão não nos permite mais dizer "eu não sabia" como desculpa para nossa inação. Contemplamos

diariamente como se faz o mal, como se sofre a dor, e dizer que nada podemos fazer pelo outro é uma desculpa fraca e

pouco convincente, até mesmo para nós próprios. Não há como negar que em nosso planeta abarrotado e intercomunicado

dependemos todos uns dos outros e somos, num grau difícil de precisar, responsáveis pela situação dos demais; enfim, que

o que se faz em uma parte do planeta tem um alcance global.

Max Weber também era um moralista, no sentido de que estava interessado em ética e desenvolveu a idéia de ética como

dever; mas o seu contexto era diferente, era de grandes poderes. Não é esse o meu caso, pois nunca estive particularmente

interessado em falar com os detentores do poder, tanto na Polônia como na Inglaterra.

Diria, então, que o papel da sociologia mudou na última geração?

Gostaria de voltar a insistir sobre o que cabia à sociologia nas suas origens. Como disse, essa "ciência da sociedade" nasceu

junto com o projeto de modernidade, que era um projeto muito simples. Partindo da idéia de que o mundo que herdamos

dos tempos pré-modernos, tradicionais, ignorantes, preconceituosos e supersticiosos era um mundo desordenado e

caótico, a tarefa que se impunha era torná-lo melhor. Ora, quem assumiria esse papel? Evidentemente os legisladores, os

reis, os príncipes, os presidentes, os parlamentos, enfim, quem quer que estivesse no poder e que se impusesse a tarefa de

reorganizar o mundo de tal modo que as pessoas viessem a se comportar racionalmente, a buscar a felicidade sem correr o

risco de fazer escolhas erradas. Nesse quadro, cabia à sociologia fornecer informações sobre como obter um

comportamento desejável das pessoas, sobre as razões pelas quais elas se desviam do caminho certo, como mantê-las

nesse caminho e evitar desvios etc. Enfim, o conhecimento sociológico era, portanto, dirigido àqueles que estavam no

papel de legislar, de criar as condições para uma boa sociedade. Esse era, enfim, o projeto da modernidade, que hoje está

em grande parte abandonado.

O que quero dizer, portanto, é que a sociologia, como um esforço de entendimento da experiência humana, não mudou.

Continua agora como era antes. O problema é que hoje o conhecimento sociológico é dirigido não mais aos governantes,

porque estes renunciaram à sua responsabilidade para com o bem da sociedade; eles são agora neutros, não interferem na

vida que se escolhe, a não ser que se trate de um assassino ou um terrorista. Por exemplo, o único tipo de conhecimento

pelo qual Tony Blair se interessa é aquele que lhe diz qual movimento deve ser feito para ser mais popular. Outras coisas,

como o bem da sociedade, não lhe interessam muito.

Vivemos em tempos de desregulamentação, de descentralização, de individualização, em que se assiste ao fim da Política

com P maiúsculo e ao surgimento da "política da vida", ou seja, que assume que eu, você e todo o mundo deve encontrar

soluções biográficas para problemas históricos, respostas individuais para problemas sociais. Nós, indivíduos, homens e

mulheres na sociedade, fomos portanto, de modo geral, abandonados aos nossos próprios recursos.

Sendo assim, a única entidade a quem a sociologia se dirige hoje é aquela que realmente está assumindo a

responsabilidade — o indivíduo. Ora, a experiência individual é normalmente muito estreita para que o indivíduo seja capaz

de ver os mecanismos internos da vida. Não saberíamos o que está acontecendo nesse mundo da modernidade líquida se

não fôssemos alertados para as possíveis conseqüências do processo em andamento. Explicar como as coisas funcionam,

ampliar a visão necessariamente limitada dos indivíduos, alargar seus horizontes cognitivos, enfim, dar a eles condições de

enxergar além de seu próprio nariz é o que cabe à sociologia agora. Como disse Ulrich Beck, que mais do que ninguém nos

alertou sobre os intricados mecanismos do que ele chama de Risikogesellschaf, a sociedade de risco, "nós, cidadãos,

perdemos a soberania sobre nossos sentidos e, portanto, também sobre nosso julgamento... ninguém é mais cego para o

perigo do que aqueles que continuam a confiar em seus próprios olhos".

Poderia falar mais amplamente sobre os riscos da modernidade?

Uma das características do que chamo de "modernidade sólida" era que as maiores ameaças para a existência humana

eram muito mais óbvias. Os perigos eram reais, palpáveis, e não havia muito mistério sobre o que fazer para neutralizá-los

ou, ao menos, aliviá-los. Era óbvio, por exemplo, que alimento, e só alimento, era o remédio para a fome.

Os riscos de hoje são de outra ordem, não se pode sentir ou tocar muitos deles, apesar de estarmos todos expostos, em

algum grau, a suas conseqüências. Não podemos, por exemplo, cheirar, ouvir, ver ou tocar as condições climáticas que

gradativamente, mas sem trégua, estão se deteriorando. O mesmo acontece com os níveis de radiação e de poluição, a

diminuição das matérias-primas e das fontes de energia não renováveis, e os processos de globalização sem controle

político ou ético, que solapam as bases de nossa existência e sobrecarregam a vida dos indivíduos com um grau de

incerteza e ansiedade sem precedentes.

Diferentemente dos perigos antigos, os riscos que envolvem a condição humana no mundo das dependências globais

podem não só deixar de ser notados, mas também deixar de ser minimizados mesmo quando notados. As ações necessárias

para exterminar ou limitar os riscos podem ser desviadas das verdadeiras fontes do perigo e canalizadas para alvos errados.

Quando a complexidade da situação é descartada, fica fácil apontar para aquilo que está mais à mão como causa das

incertezas e das ansiedades modernas. Veja, por exemplo, o caso das manifestações contra imigrantes que ocorrem na

Europa. Vistos como "o inimigo" próximo, eles são apontados como os culpados pelas frustrações da sociedade, como

aqueles que põem obstáculos aos projetos de vida dos demais cidadãos. A noção de "solicitante de asilo" adquire, assim,

uma conotação negativa, ao mesmo tempo em que as leis que regem a imigração e a naturalização se tornam mais

restritivas e a promessa de construção de "centros de detenção" para estrangeiros confere vantagens eleitorais a

plataformas políticas.

Para confrontar sua condição existencial e enfrentar seus desafios, a humanidade precisa se colocar acima dos dados da

experiência a que tem acesso como indivíduo. Ou seja, a percepção individual, para ser ampliada, necessita da assistência

de intérpretes munidos com dados não amplamente disponíveis à experiência individual. E a sociologia, como parte

integrante desse processo interpretativo — um processo que, cumpre lembrar, está em andamento e é permanentemente

inconclusivo —, constitui um empenho constante para ampliar os horizontes cognitivos dos indivíduos e uma voz

potencialmente poderosa nesse diálogo sem fim com a condição humana.

Poderia nos dizer como foi a experiência de viver no que o senhor descreveu como a "idade áurea", quando as universidades

polonesas tiraram o máximo de vantagem da liberdade ganha nas batalhas do "outubro polonês"2?

Foi algo, de fato, fascinante, diferente de qualquer outra universidade que conheci; diferente, diria, de qualquer vida

universitária existente. Há situações de liberdade acadêmica praticamente sem limites, quando todos os tipos

de Weltanchauungen (visões de mundo), estratégias de pesquisa, hierarquias de relevância e prioridades, estilos de se

contar histórias se encontram, conversam e argumentam. E há também situações em que os sociólogos se movem pelo

sentido de urgência, e não somente pela necessidade de completar dissertações a tempo e assegurar uma próxima

promoção; uma urgência de dar sua própria contribuição para a batalha por uma sociedade melhor, mais hospitaleira aos

seres humanos e à sua humanidade. E também se movem por uma vocação, uma missão de só se dedicar a isso. O que foi

peculiar da situação pós-outubro polonês foi que as duas situações emergiram juntas e continuaram durante algum tempo

a coincidir e a se fertilizar reciprocamente. Tal convergência é muito menos freqüente do que a presença de uma ou de

outra das duas situações isoladamente; na verdade, tanto quanto posso julgar a partir de minha experiência de meio

século, é mesmo uma raridade.

Esse tipo de combinação entre sentimento de liberdade e de propósito é uma felicidade de que a maioria dos acadêmicos

contemporâneos infelizmente carece, quer tenham ou não consciência do que estão perdendo. Na maioria dos lugares do

mundo a liberdade de expressão acadêmica é completa ou quase completa, somente limitada pelos regulamentos e regras

(muitas vezes penosas e até ridículas) da carreira e de outras invenções da burocracia universitária; mas, fora isso, as

escolhas são deixadas inteiramente livres para cada um. Há, no entanto, muito pouco sentido do propósito e

particularmente da relevância de seu próprio trabalho para o mundo fora dos muros da academia, como se todos

compartilhassem da sina da filosofia lamentada por Wittgenstein, de "deixar o mundo como é". Como se queixam muitos

sociólogos americanos, e também alguns europeus, os estudos sociais acadêmicos perderam a ligação com a agenda

pública. Parece haver poucos fregueses, se é que algum, para os modelos de "boa sociedade", o que costumava ser a

preocupação central e o forte da sociologia com inclinações humanísticas. As classes educadas não estão mais interessadas

na tarefa de ilustração e de elevação espiritual do povo. Os intelectuais pararam em grande parte de se definir pela

responsabilidade que têm para com "o povo", a nação e a humanidade.

O senhor se referiu aos "muros da academia" como um obstáculo para o pensamento livre. Há alguma esperança para as

universidades?

O que quer que as universidades façam, elas não conseguirão jamais pôr um fim à curiosidade humana, que talvez tenha de

sair da academia para se satisfazer. Ainda tenho meu escritório na Universidade de Leeds, mas mal posso reconhecer a

universidade da qual saí há poucos anos, tal a velocidade da mudança. Os nomes aparecem e desaparecem das portas, as

pessoas são classificadas de acordo com o projeto em que estão engajadas no momento, mas tudo é tão a curto prazo!

Cambridge provavelmente ainda é diferente.

Se se pensa nas limitações que a organização universitária hoje impõe ao desenvolvimento do pensamento livre, basta

olhar para o que acontece com a filosofia e a sociologia tal como são praticadas nos departamentos universitários e em

outros "locais de autoridade", ou seja, os lugares em que afirmações reconhecidas como pertencentes a uma dada

disciplina podem ser feitas e nos quais elas devem ser expressas para serem reconhecidas como tais. Nesse quadro, pois, a

filosofia e a sociologia se ligam a interesses intelectuais, estilos de pensamento e modos de argumentação bastante

diferentes. Cada uma dessas duas disciplinas acadêmicas se pretende de posse de grupos distintos de "dados primários" e

os processa, interpreta, verifica e refuta de maneiras diferentes. Dominar o canon tanto da sociologia como da filosofia e

adquirir credenciais oficialmente reconhecidas e confirmadas em cada uma delas toma todo o tempo dos estudantes

universitários — e a competência em uma dessas disciplinas acadêmicas raramente é exigida para se adquirir o grau na

outra.

Posso entender a preocupação dos sociólogos acadêmicos com a circunscrição, as barreiras e a defesa de suas possessões

contra os competidores na obtenção do dinheiro das fundações e do governo, mas o que não podemos esquecer é que essa

preocupação se origina na realidade da vida acadêmica e não na lógica da experiência humana que a sociologia é chamada

a servir.

Quão difícil foi para o senhor se ajustar à cultura britânica, quando veio viver na Inglaterra, com mais de 40 anos?

Ajustamento nunca ocupou um lugar prioritário no meu programa de vida. Nesse campo não fui além do básico, isto é,

aprender o idioma local e me fazer compreensível, evitando os mais crassos faux pas. Tal como lembro, meu estado mental

ao chegar à Grã-Bretanha não estava particularmente preocupado em esconder, sufocar ou erradicar minha idiossincrasia,

em abandonar o que no meu modo de agir e pensar poderia parecer estranho aos nativos. Tornar-me como os outros e

dissolver-me no plano de fundo não me parecia tarefa nem possível nem especialmente atraente, e nunca foi minha

intenção. Na época, eu considerava que o desafio estava em outro lugar: como revelar para meus colegas e alunos

britânicos o sentido das minhas diferenças e talvez induzi-los a achar algum interesse e uso no que era inicialmente alheio a

eles.

"Ajustamento" sugere uma via de mão única. Ao contrário, eu pensava em termos de troca igualitária: o único meio de

retribuir a hospitalidade dos meus anfitriões britânicos era oferecer a eles algo que não tinham ainda e não poderiam

adquirir a não ser num encontro face a face com um pensamento e um modo de agir alternativos; algo novo e diferente

que pudesse eventualmente enriquecê-los do mesmo modo que me tenho enriquecido com o encontro com o cotidiano

britânico. Eu, na verdade, desejava ser aceito — mas aceito precisamente pelo que eu era, por minha dessemelhança.

Minha sorte foi que, com essa atitude, eu aterrissei e me estabeleci na Grã —Bretanha. Posso pensar em muitos países

onde viver com tal atitude teria sido muito mais difícil e social e espiritualmente custoso. Se alguém tiver de ser um exilado

ou um estrangeiro, a Grã-Bretanha é o lugar certo para se estar. Pode-se esperar boa vontade, tolerância e bastante

hospitalidade — com a condição de que não se queira fingir que se é inglês... Além disso, o que aqui chega vindo de fora

não é colocado numa classe mas numa categoria separada, de "estrangeiro", na qual a liberdade de pensamento e de ação

tem amplo espaço; os estrangeiros escapam da atribuição de classe, de certo modo inflexível e rija, que interfere na vida

dos outros, dos britânicos comuns...

O senhor certa vez disse que se sentia "fora de lugar" em muitas circunstâncias. Ainda se sente assim? Diria que esse

sentimento implica perdas e ganhos?

Sim, ainda me sinto assim e gosto disso. Não tenho certeza se tal atitude foi fruto de uma escolha livre que gradualmente

se tornou um hábito, ou se foi, e ainda é, um meio de transformar uma necessidade em virtude. Perdas deve haver, como

ser ocasionalmente objeto de desconfiança, de zombaria, de descortesia, de um caso ou dois de rejeição e, o que para mim

é a coisa mais vexatória e nociva de todas, sentir que em vez de avaliarem suas opiniões de acordo com o seu mérito, elas

são descartadas como manifestações de alienismo. Mas os ganhos superam imensamente as perdas. No meu ponto de vista

(e por experiência), estar "fora de lugar", ao menos em parte do nosso ser, não concordar completamente, manifestar

divergência e dissensão, é o único meio de resguardarmos nossa autonomia e liberdade. Estar "dentro" mas parcialmente

"fora" é também um meio de preservar o frescor, a inocência e a abençoada ingenuidade de visão. Quem está assim

situado tende a fazer perguntas que não ocorreriam àqueles estabelecidos mais solidamente; tende a notar o estranho no

familiar, o anormal no óbvio. Exílio é muito freqüentemente uma situação de sofrimento, mas também de expansão do

pensamento crítico, de independência, insight e criatividade. No conjunto, foi minha grande sorte viajar e me estabelecer

aqui.

Quando e como o senhor abandonou o marxismo? Considera-se ainda um socialista?

Nunca abandonei Marx, apesar de minha intoxicação pelo "marxismo realmente existente" ter sido, felizmente, breve; de

fato, terminou bem cedo, no momento em que o vi como era: um imenso obstáculo para a recepção e a manutenção da

mensagem ética de Marx.

Imagino que meu entusiasmo por Emmanuel Lévinas3 tenha sido, em grande parte, predeterminado pela minha antiga

inoculação com a idéia de Marx de que a qualidade da sociedade deve ser testada pelos critérios de justiça e de fair

play que regulamentam a coletividade humana: a sociedade deve se justificar pelos padrões éticos, e não o contrário, os

padrões éticos pela sociedade. Espero ter o direito de dizer que nunca abandonei essa crença. O mesmo se aplica ao meu

socialismo, que, em meu entender, se resume na convicção de que, assim como o poder de carga de uma ponte se mede

não pela força média de todos os pilares mas pela força de seu pilar mais fraco, a qualidade de uma sociedade também não

se mede pelo PIB, pela renda média de sua população, mas pela qualidade de vida de seus membros mais fracos.

Socialismo para mim não é o nome de um tipo particular de sociedade. É, exatamente como o postulado de Marx de justiça

social, uma dor aguda e constante de consciência que nos impulsiona a corrigir ou a remover variedades sucessivas de

injustiça. Não acredito mais na possibilidade (e até no desejo) de uma "sociedade perfeita", mas acredito numa "boa

sociedade" — definida como aquela que se recrimina sem cessar por não ser suficientemente boa e não estar fazendo o

suficiente para se tornar melhor...

Fiquei muito marcado pelo Homme révolté de Albert Camus, que li no fim dos anos de 1950. O rebelde de Camus é um ser

humano que diz "não", mas que também diz "sim", ou seja, um ser humano que diz cada uma dessas palavras de tal modo

que deixa espaço para a outra. O rebelde se recusa a aceitar o que existe, mas também se abstém de rejeitar totalmente o

que existe. Ele não desculpa a condição humana pela sua desumanidade, por não se equiparar ao que ela poderia ser, mas

também não a despreza; aceita a condição humana "realmente existente", completa, com todas as suas desumanidades.

A motto hic Rhodos, hic salta4 define o rebelde de Camus e também o distingue dos rebeldes "metafísicos" e "históricos",

aparentemente seus parentes próximos, mas não companheiros de armas e talvez até mesmo seus confessos inimigos e

adversários mais traiçoeiros.

O rebelde metafísico rejeita a condição humana, considerando-a injusta, fraudulenta, abjeta e absurda. Ele nega a ela o

direito de existir e o direito de reconhecimento. É, pois, um rebelde intolerante que não perdoaria, e muito menos

absolveria, o pecado da não-resistência. Ele odeia o pecado, mas odeia mais ainda o pecador. Ele odeia a desumanidade do

mundo, mas odeia mais ainda — já que também desdenha e rejeita — seus escravos, vítimas e feridos colaterais. O rebelde

metafísico diria que o mais horrendo crime da condição humana "realmente existente" é a conspiração contra a rebelião. E,

no entanto, nenhum criminoso é tão repelente para ele como os seres humanos não rebeldes.

Os erros do rebelde histórico são ainda mais terríveis, ou ao menos assim parecem, pois foi contra ele que o rebelde de

Camus teve de afirmar seu próprio tipo de rebelião. Na época em que Camus escreveu, o rebelde metafísico já parecia ter

sido derrubado e destronado por seu "primo histórico", e essa mudança de dinastia parecia irreversível e definitiva. Era

também claro que, apesar de o rebelde histórico ter feito sua rebelião contra a variedade metafísica de escravidão, ele a

fizera em nome de uma escravidão nova e aprimorada.

Ele se rebelou contra ter de encarar o fato da solidão humana e da responsabilidade que a acompanha. Não podia suportar

a condição de sujeito moral dos homens, bem como o absurdo da impotência e da insignificância humanas. A servidão,

disse Camus, era a verdadeira paixão do século XX. Amedrontado por sua impotência, o rebelde histórico correu em busca

de proteção, procurando desesperadamente uma nova autoridade que aceitasse sua rendição. E isso ele encontrou nas

"leis da história", que inevitavelmente aliviam os ombros doloridos do peso da escolha responsável, e também nos

absolvem do mais angustioso dos deveres — o da subjetividade: daquele cuidado pelo Outro no qual o Eu, o sujeito que

está sozinho mas que não é solitário, que se auto-guia mas não está abandonado, nasce. Finalmente, as leis da história

oferecem a fuga mais eficaz da culpa de crueldade ao fazer a inevitabilidade histórica do progresso tomar o lugar da

distinção entre o bem e o mal.

Muitos anos mais tarde deparei com outra afirmação de Camus: "Existe a beleza e existem os humilhados. Quaisquer que

sejam as dificuldades que o empreendimento possa apresentar, gostaria de nunca ser infiel quer aos segundos quer à

primeira". Também gostaria que minha vida me permitisse dizer que me comportei o mais possível de acordo com esse

princípio. Por outro lado, não me importo muito com a lealdade aos "ismos"...

O senhor se diz ao mesmo tempo um socialista e um liberal. Poderia explicar como concilia as duas posições?

Eu, na verdade, não acredito que requeiram conciliação. Defino o socialismo de um modo muito simples, como já disse

antes, pela qualidade de vida de seus membros mais fracos.

Se se pensa, por exemplo, num dos fundadores do liberalismo moderno, John Stuart Mill, nota-se que ele também chegou

ao socialismo por acreditar que para implementar o programa liberal, o programa da liberdade humana, é necessário uma

distribuição justa de oportunidades, diminuindo-se a distância entre os membros mais ricos e os mais pobres da sociedade.

E, se nos lembrarmos de Lord Beveridge, o criador do Estado de bem-estar social britânico, o caso é o mesmo. Durante a

guerra, o governo da Grã-Bretanha criou uma comissão para organizar um programa de bem-estar social (do qual Beveridge

era diretor), prevendo que com o fim do conflito haveria milhões de desempregados que não mais aceitariam a sina dos

oprimidos. Beveridge preparou então todo um programa que foi pouco a pouco aceito pelo governo após a guerra. Ora, ele

não era um socialista e não se definiu jamais como tal. Dizia que era um liberal e que o que estava propondo era, na

verdade, a implementação definitiva do programa liberal, porque, se o liberalismo quer que todos sejam seres autônomos e

autoconfiantes, então para ser livre é necessário que se tenha recursos, que haja um chão firme no qual se apoiar. A idéia

de Lord Beveridge, que infelizmente não se impôs, era que toda essa assistência social, esse bem-estar social, toda essa

provisão eram necessários como medidas temporárias. E isso porque ele partia do pressuposto de que, para ter a coragem,

a ousadia de ser aventurosas e se arriscar, as pessoas precisam se sentir seguras — e segurança elas não podem obter por si

próprias, mas deve ser oferecida e garantida pela grande sociedade. Se as pessoas se arriscam sozinhas, correm o perigo de

ser abatidas por um grande fracasso, uma tragédia, uma crueldade ou coisa semelhante. Deve haver, portanto, essa

garantia do Estado, o que eu chamo de seguro coletivo contra o infortúnio individual. Se isso existe, as pessoas se enchem

de coragem e, sem receio de tentar, logo podem tornar-se prósperas. Essa era a idéia de Beveridge.

Enfim, como vemos, se se considera o melhor na história do liberalismo e o melhor na história do socialismo, eles sempre

convergem, há sempre essa conexão entre os dois. Para resumir, tudo se reduz à questão muito simples de que há dois

valores igualmente indispensáveis para uma vida humana decente e digna: liberdade e segurança. Não se pode ter um sem

que se tenha o outro. Esse é o meu ponto, mas infelizmente na prática política eles são normalmente justapostos e

apresentados como tendo propósitos opostos, como sendo necessário sacrificar a segurança sob o argumento de que

quanto maior ela for menos livre se é. A acusação mais comum hoje em dia é que o Estado de bem-estar social torna as

pessoas dependentes, já que ninguém pode ser livre se depende de assistências de qualquer natureza: saúde, caridade e

coisas do gênero. Isso tudo me soa muito cruel, porque eu sou um ser moral na medida em que me considero dependente

de você. Em certo sentido, meu bem-estar depende do seu bem-estar, minha autonomia depende da sua autonomia.

Assim, qualquer que seja a perspectiva da qual se parta, chega-se sempre à mesma questão de que, ou liberdade e

segurança são obtidas juntas, ou não serão obtidas de modo algum. Esse é o ponto de encontro entre socialismo e

liberalismo.

Em sua obra o senhor se refere freqüentemente a romances. O que acha que a literatura pode ensinar sobre a sociedade e

sobre a condição humana? Mais especificamente, o senhor confessa ser Borges uma de suas grandes fontes inspiradoras.

Poderia nos explicar em que um escritor que parece não tratar especificamente de questões sociais lhe é importante?

Devo começar lembrando que meus professores na Polônia nunca se preocuparam com as diferenças entre "filosofia

social" e "sociologia propriamente dita"; mas, acima de tudo, consideravam romancistas e poetas seus camaradas de

armas, não competidores, e muito menos antagonistas. Aprendi a considerar a sociologia uma daquelas numerosas

narrativas, de muitos estilos e gêneros, que recontam — após terem primeiramente processado e reinterpretado — a

experiência humana de estar no mundo. A tarefa conjunta de tais narrativas era oferecer um insight mais profundo do

modo como essa experiência foi construída e pensada, e dessa maneira ajudar os seres humanos na sua luta pelo controle

de seus destinos individuais e coletivos. Nessa tarefa, a narrativa sociológica não era "por direito" superior a outras

narrativas, pois tinha de demonstrar e provar seu valor e utilidade pela qualidade de seu produto. Eu, por exemplo, me

lembro de ganhar de Tolstoi, Balzac, Dickens, Dostoievski, Kafka ou Thomas More muito mais insight sobre a substância das

experiências humanas do que de centenas de relatórios de pesquisa sociológica. Acima de tudo, aprendi a não perguntar de

onde uma determinada idéia vem, mas somente como ela ajuda a iluminar as respostas humanas à sua condição — assunto

tanto da sociologia como das belles-lettres.

Compreendo, pois, a observação de Richard Rorty de que, se os futuros arqueólogos quisessem saber como era viver,

buscar a felicidade e sofrer na nossa era agridoce, teriam muita sorte se encontrassem em alguma biblioteca os livros de

Dickens e muito azar se encontrassem os de Heidegger. Quando se está seriamente interessado em colocar o pensamento,

o sentimento e a ação humana no centro da pesquisa sociológica e em se tratar a sociologia como uma conversa contínua

com os seres humanos, o veredicto de Rorty faz muito sentido. A lida diária com médias estatísticas, tipos, categorias e

padrões facilmente faz com que se perca de vista a experiência. Um bom romance teria, então, um efeito salutar e sóbrio,

relembrando ao praticante dos "métodos sociológicos" qual deveria sempre ser o "negócio" da sociologia e que tipo de

sabedoria ela deveria estar permanentemente buscando.

Não só a sociologia perde para a literatura quando se quer entender o que faz as pessoas serem o que são, conhecer o que

pensam, os dilemas que enfrentam, suas alternativas etc. Muito pouco também se pode aprender sobre isso de escritos

que estão extremamente distantes das experiências diárias, que as processam de modo a selecionar somente uma pequena

parcela da condição humana. Pensemos, por exemplo, no grande Kant, que estabeleceu as fundações de nosso

pensamento. Pois bem, nas suas tentativas de explicar o humano, ele desconsiderou todo o aspecto da condição humana

que não fosse a razão, deixando de lado, portanto, as características emocionais, irracionais, erráticas, que também fazem

parte dessa condição. Isso nos deixa com um quadro da humanidade muito empobrecido, que, se por um lado pode

aumentar a elegância teórica e o prazer estético do relato lógico, de outro perde a comunicação com a experiência humana

diária. Ora, se se entende a sociologia, como já mencionei antes, como um diálogo contínuo com a experiência humana, tal

estratégia representa o fim do diálogo, pois com ela muito pouco se pode aprender sobre a humanidade.

O que aprendi com Borges? Acima de tudo, aprendi sobre os limites de certas ilusões humanas: sobre a futilidade de

sonhos de precisão total, de exatidão absoluta, de conhecimento completo, de informação exaustiva sobre tudo; enfim,

sobre as ambições humanas que, no final, se revelam ilusórias e nos mostram impotentes. Lembremos, por exemplo, do

conto de Borges que fala sobre o mapa: o sonho do mapa exato que acaba ficando do mesmo tamanho da própria coisa

mapeada e, portanto, sem nenhuma utilidade. Não me ocorre nenhum filósofo ou sociólogo que tenha podido tratar de tais

questões de forma tão persuasiva, tão convincente, tão espetacular. Em parte isso se deve à posição muito luxuosa e

mesmo invejável de nunca ter sido um acadêmico e de nunca ter estado submetido a uma disciplina. Fora dos muros da

academia os romancistas desfrutam da liberdade que é negada, por exemplo, aos sociólogos profissionais, que têm seus

trabalhos avaliados pela conformidade com os procedimentos que definem e distinguem a profissão, e não por sua

relevância humana. Quando se envia um artigo a uma revista científica para ser avaliado por um "par", numa opinião

anônima, isso só tem um impacto: reduzir a originalidade ao denominador comum! Pois na verdade o que acontece é que

essas opiniões fazem rebaixar todo pensamento original. Borges nunca teve que se submeter a esse tipo de coisa. Note que

os dois cientistas sociais da modernidade realmente interessantes e ainda hoje extremamente tópicos foram Marx e

Simmel, e eles têm também essa característica em comum: ambos eram free lancers e nenhum deles ensinou nas

universidades!

Ao contrário dos acadêmicos, portanto, os romancistas podem, aberta e sem a menor vergonha, recorrer a estratégias que

os primeiros desconsiderariam arrogantemente como "meras intuições", "puras suposições" ou mesmo "construções da

imaginação". É por agirem assim que eles podem abrir novas possibilidades interpretativas que os profissionais de bona

fide dificilmente iriam suspeitar ou mesmo notar.

Mas, acima de tudo, a maior vantagem da narrativa dos romancistas é que ela se aproxima mais da experiência humana do

que a maioria dos trabalhos e relatórios das ciências sociais. Elas são capazes de reproduzir a não-determinação, a não-

finalidade, a ambivalência obstinada e insidiosa da experiência humana e a ambigüidade de seu significado — todas

características muito marcantes do modo de o ser humano estar no mundo, mas que a ciência social se inclina a ver como

"impressões falsas", originárias da ignorância ou do conhecimento insuficiente.

O senhor tem sempre enfatizado a necessidade de todos nós "questionarmos ostensivamente as premissas de nosso modo

de vida". Teria alguma sugestão a nos dar sobre as respostas a esses questionamentos?

Maurice Blanchot disse certa vez, em palavras que ficaram famosas, que as respostas são a má sorte das perguntas. De

fato, cada resposta implica fechamento, fim da estrada, fim da conversa. Também sugere nitidez, harmonia, elegância;

enfim, qualidades que o mundo narrado não possui. Tenta forçar o mundo numa camisa-de — força na qual ele

definitivamente não cabe. Corta as opções, a multidão de sentidos e possibilidades que a condição humana implica a cada

momento. Promete falsamente uma solução simples para uma busca provocada e impelida pela complexidade. Também

mente, pois declara que as contradições e as incompatibilidades que provocam as questões são fantasmas — efeitos de

erros lingüísticos ou lógicos, em vez de qualidades endêmicas e irremovíveis da condição humana.

Creio que a experiência humana é mais rica do que qualquer uma de suas interpretações, pois nenhuma delas, por mais

genial e "compreensiva" que seja, poderia exauri-la. Aqueles que embarcam numa vida de conversação com a experiência

humana deveriam abandonar todos os sonhos de um fim tranqüilo de viagem. Essa viagem não tem um final feliz — toda a

felicidade se encontra na própria jornada.

O senhor descreveu modestamente um de seus livros mais recentes como um discussion paper. Diria que é por acaso ou

propositadamente que tem se dedicado a escrever ensaios?

No curso de meio século de estudos e de escrita, nunca consegui adquirir a habilidade de terminar um livro... Com o passar

do tempo reconheço que todos os meus livros foram entregues ao editor inacabados. Em regra, antes mesmo que o

manuscrito seja impresso, fica claro para mim que o que há pouco me parecia "o fim" era, de fato, um começo — com uma

seqüência desconhecida, mas tremendamente necessária. Por trás de cada resposta percebo que novas questões estão

piscando; que mais, muito mais restou a ser explorado e compreendido, e muito pouco, de fato, foi revelado pelo

"acabamento bem-sucedido" das explorações passadas. As perguntas mais intrigantes e provocantes emergem, via de

regra, após as respostas. No decurso dos anos aprendi a apreciar a queixa de Adorno sobre a convenção linear da nossa

escrita: por causa dela nós não conseguimos transmitir a lógica do pensamento que, diferentemente da escrita, move-se

em círculos e está invariavelmente forçada, por seu próprio progresso, a fazer perpétuos retornos.

O senhor já foi descrito como um "profeta da pós-modernidade" e os termos "pós-moderno" e "pós-modernidade"

aparecem em títulos de quatro de seus livros. Estaria sugerindo que uma mudança cultural e social significativa ocorreu na

última geração, suficientemente grande para que falemos de um novo período da história?

Uma das razões pelas quais passei a falar em "modernidade líquida" e não em "pós-modernidade" (meus trabalhos mais

recentes evitam esse termo) é que fiquei cansado de tentar esclarecer uma confusão semântica que não distingue

sociologia pós-moderna de sociologia da pós-modernidade, "pós-modernismo" de "pós-modernidade". No meu

vocabulário, "pós-modernidade" significa uma sociedade (ou, se se prefere, um tipo de condição humana), enquanto "pós-

modernismo" refere-se a uma visão de mundo que pode surgir, mas não necessariamente, da condição pós —moderna.

Procurei sempre enfatizar que, do mesmo modo que ser um ornitólogo não significa ser um pássaro, ser um sociólogo da

pós-modernidade não significa ser um pós-modernista, o que definitivamente não sou. Ser um pós-modernista significa ter

uma ideologia, uma percepção do mundo, uma determinada hierarquia de valores que, entre outras coisas, descarta a idéia

de um tipo de regulamentação normativa da comunidade humana, assume que todos os tipos de vida humana se

equivalem, que todas as sociedades são igualmente boas ou más; enfim, uma ideologia que se recusa a fazer qualquer

julgamento e a debater seriamente questões relativas a modos de vida viciosos e virtuosos, pois, no limite, acredita que não

há nada a ser debatido. Isso é pós-modernismo. Mas eu sempre estive interessado na sociologia da pós-modernidade, ou

seja, meu tema tem sempre sido compreender esse tipo curioso e em muitos sentidos misterioso de sociedade que vem

surgindo ao nosso redor; e a vejo como uma condição que ainda se mantém eminentemente moderna na suas ambições

emodus operandi (ou seja, no seu esforço de modernização compulsiva, obsessiva), mas que está desprovida das antigas

ilusões de que o fim da jornada estava logo adiante. É nesse sentido que pós-modernidade é, para mim, modernidade sem

ilusões.

Diferentemente da sociedade moderna anterior, que chamo de "modernidade sólida", que também tratava sempre de

desmontar a realidade herdada, a de agora não o faz com uma perspectiva de longa duração, com a intenção de torná-la

melhor e novamente sólida. Tudo está agora sendo permanentemente desmontado mas sem perspectiva de alguma

permanência. Tudo é temporário. É por isso que sugeri a metáfora da "liquidez" para caracterizar o estado da sociedade

moderna: como os líquidos, ela caracteriza-se pela incapacidade de manter a forma. Nossas instituições, quadros de

referência, estilos de vida, crenças e convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes, hábitos e

verdades "auto-evidentes". Sem dúvida a vida moderna foi desde o início "desenraizadora", "derretia os sólidos e profanava

os sagrados", como os jovens Marx e Engels notaram. Mas enquanto no passado isso era feito para ser novamente "re-

enraizado", agora todas as coisas — empregos, relacionamentos, know-hows etc. — tendem a permanecer em fluxo,

voláteis, desreguladas, flexíveis. A nossa é uma era, portanto, que se caracteriza não tanto por quebrar as rotinas e

subverter as tradições, mas por evitar que padrões de conduta se congelem em rotinas e tradições.

Como um exemplo dessa perspectiva, li outro dia que um famoso arquiteto de Los Angeles estava se propondo a construir

casas que permanecessem lindas "para sempre". Ao ser perguntado o que queria dizer com isso, ele teria respondido: até

daqui a vinte anos! Isso é "para sempre", grande duração, hoje. O que me interessa é, portanto, tentar compreender quais

as conseqüências dessa situação para a lógica do indivíduo, para seu cotidiano. Virtualmente todos os aspectos da vida

humana são afetados quando se vive a cada momento sem que a perspectiva de longo prazo tenha mais sentido.

Jean-Paul Sartre aconselhou seus discípulos em todo o mundo a ter um projeto de vida, a decidir o que queriam ser e, a

partir daí, implementar esse programa consistentemente, passo a passo, hora a hora. Ora, ter uma identidade fixa, como

Sartre aconselhava, é hoje, nesse mundo fluido, uma decisão de certo modo suicida. Se se toma, por exemplo, os dados

levantados por Richard Sennett — o tempo médio de emprego em Silicon Valley, por exemplo, é de oito meses —, quem

pode pensar num projet de la vie nessas circunstâncias? Na época da modernidade sólida, quem entrasse como aprendiz

nas fábricas da Renault ou da Ford iria com toda a probabilidade ter ali uma longa carreira e se aposentar após 40 ou 45

anos. Hoje em dia, quem trabalha para Bill Gates por um salário talvez cem vezes maior não tem idéia do que poderá lhe

acontecer dali a meio ano! E isso faz uma diferença incrível em todos os aspectos da vida humana.

No meu livro mais recente, Liquid love, exploro o impacto dessa situação nas relações humanas, quando o indivíduo se vê

diante de um dilema terrível: de um lado, ele precisa dos outros como o ar que respira, mas, ao mesmo tempo, tem medo

de desenvolver relacionamentos mais profundos que o imobilizem em um mundo em permanente movimento.

Em muitas partes de sua obra o senhor soa nostálgico, às vezes até mesmo do que chama de "modernidade sólida", quando

a humanidade aparentemente era menos ansiosa e tinha uma vida mais estável e segura. Concorda com essa

interpretação?

Eu não diria isso. Não acredito que haja um progresso linear no que diz respeito à felicidade humana. Podemos dizer que,

como um pêndulo, nos movemos de tempos mais felizes para tempos menos felizes e de menos felizes para mais felizes.

Hoje temos medo e somos infelizes do mesmo modo como também tínhamos medo e éramos infelizes há cem anos, mas

por razões diferentes. A modernidade sólida tinha um aspecto medonho: o espectro das botas dos soldados esmagando as

faces humanas. Virtualmente todo mundo, quer da esquerda quer da direita, assumia que a democracia, quando existia,

era para hoje ou para amanhã, mas que uma ditadura estava sempre à vista; no limite, o totalitarismo poderia sempre

chegar e sacrificar a liberdade em nome da segurança e da estabilidade. Por outro lado, como Sennett mostrou, a antiga

condição de emprego poderia destruir a criatividade e as habilidades humanas, mas construía, por assim dizer, a vida

humana, que podia ser planejada. Tanto os trabalhadores como os donos de fábrica sabiam muito bem que iriam se

encontrar novamente amanhã, depois de amanhã, no ano seguinte, pois os dois lados dependiam um do outro. Os

operários dependiam da Ford assim como esta dependia dos operários, e porque todos sabiam disso podiam brigar uns

com os outros, mas no final tendiam a concordar com um modus vivendi. Essa dependência recíproca mitigava, em certo

sentido, o conflito de interesses e promovia algum esforço positivo de coexistência, por menor que fosse.

Bem, nada disso existe hoje. Os medos e as infelicidades de agora são de outra ordem. Dificilmente outro tipo de stalinismo

voltará e o pesadelo de hoje não é mais a bota dos soldados esmagando as faces humanas. Temos outros pesadelos. O chão

em que piso pode, de repente, se abrir como num terremoto, sem que haja nada ao que me segurar. A maioria das pessoas

não pode planejar seu futuro muito tempo adiante. Os acadêmicos são umas das poucas pessoas que ainda têm essa

possibilidade. Na maioria dos empregos podemos ser demitidos sem uma palavra de alerta. Você chama isso nostalgia? Não

sei... Para pessoas que viveram no tipo de sistema Ford, semitotalitário, que tinha uma tendência totalitária inerente, como

Hannah Arendt dizia, nossas apreensões devem parecer incompreensíveis!

A questão é que, como já disse antes, aproximando-me dos meus 80 anos, não mais acredito que possa existir algo como

uma sociedade perfeita. A vida é como um lençol muito curto: quando se cobre o nariz os pés ficam frios, e quando se

cobrem os pés o nariz fica gelado. Há sempre um custo a ser pago para a melhora numa determinada direção. Mas insisto

que a sociedade que obsessivamente se vê como não sendo boa o suficiente é a única definição que posso dar de uma boa

sociedade.

O senhor subscreveria a motto de Romain Rolland sobre o "pessimismo da inteligência" e o "otimismo da vontade"?

Pessimismo? No meu entender, o otimista é aquele que acredita que este é o melhor dos mundos possíveis. E o pessimista

é aquele que suspeita que o otimista tem razão... Nesse quadro, não me identifico nem com o otimista nem com o

pessimista, pois acredito que o mundo possa ser melhorado e que essa mera crença é instrumental em torná-lo melhor...

Qual seria sua mensagem para os jovens de hoje?

Gostaria que tentassem, apesar de tudo (e talvez esteja aí o elemento de nostalgia que você notou), apesar de todas as

tendências em contrário e de todas as pressões de fora, reter na consciência e na memória o valor da durabilidade, da

constância, do compromisso. Eles não podem mais contar, como a antiga geração, com a natureza permanente do mundo

lá fora, com a durabilidade das instituições que tinham antes toda a probabilidade de sobreviver aos indivíduos. Isso não é

mais possível e, na verdade, a vida humana individual, apesar de ser muito curta, abominavelmente curta, é

a única entidade da sociedade de agora que tem sua longevidade aumentada. Sim, somente a vida humana individual vê

crescer sua durabilidade, enquanto a vida de todas as outras entidades sociais que a rodeiam — instituições, idéias,

movimentos políticos — é cada vez mais curta. Assim, o único sentido duradouro, o único significado que tem chance de

deixar traços, rastos no mundo, de acrescentar algo ao mundo exterior, deve ser fruto de seu próprio esforço e trabalho. Os

jovens podem contar unicamente com eles próprios e só haverá em suas vidas o sentido e a relevância que forem capazes

de lhes dar. Sei que essa é uma tarefa muito difícil... mas é a única coisa que posso lhes dizer.

Zygmunt Bauman e a Laranja Mecânica

A ordem estampada nos olhos de quem vê

Hugo Leonardo Dias - Publicado em 18.01.2006

A literatura é uma das fontes para que possamos refletir sobre os anseios da sociedade pós-moderna. Tanto Burgess como

Orwell descrevem uma sociedade em que a manipulação social está presente em todas as partes. No livro Laranja Mecânica

de Anthony Burgess, se preferirem no filme homônimo de Stanley Kubrick, o autor descreve um futuro próximo. Neste

cenário a sociedade seria um caos; os jovens delinqüentes travariam batalhas nas ruas. Para um mundo que clama pela

ordem essas pessoas são caracterizadas como estranhos (aqui fazendo referência a Zygmunt Bauman). Os estranhos são

pessoas que não se encaixam no modo de vida imposto pelo sistema capitalista. Eles são os “Alex” criados pelo mundo pós-

moderno, a prova que não há um ordem total. O mundo não é constituído por peças de Lego, que se encaixam com

harmonia. Na caixa do Lego existem também as peças que não se encaixam.

O teórico polonês Zygmunt Bauman citado acima, nos diz que há impregnado em nossa sociedade um sonho de pureza,

originado no seio da revolução francesa, que por meio de seu lema “igualdade, liberdade e fraternidade”, atribuídos

também aos teóricos do iluminismo, lançam para o mundo os conceitos de razão e igualdade como virtudes para

construção de um mundo melhor . Esses conceitos contribuirão para consolidar em nossa vida a busca da ordem, de um

mundo moldado, plano e igual. Esta ordem é um dos alicerces que conduzirá o mundo a este “sonho de pureza”. Segundo

Bauman a compulsão pela ordem implica três tipos de estratégia:

Estratégia antropofágica – acabar com os estranhos, devorando-os.

Estratégia da assimilação – Tudo o que é diferente é assimilado. A diferença passa a não existir mais. Ela é abafada para

promover a ordem.

Estratégia antropoêmica – esta implica em expulsar os estranhos do mundo da ordem.

O nosso jovem Alex é um dos exemplos citados acima, em sua situação podemos enquadrar como uma estratégia de

assimilar, ou seja, o que é estranho frente à sociedade é abafado, corrompido e assimilado pelo sistema. Alex como já dito,

é um delinqüente, suas ações envolvem o prazer em praticar a chamada “ultraviolência”. Após violentar uma velha, Alex é

preso e é submetido ao sistema Ludovico, que consiste em condicionar o jovem à não praticar os atos de delinqüência. O

sistema patrocinado pelo Estado será usado para que as pessoas que cometerem delitos sejam condicionadas a não

praticar tais atos de violência, como Alex.

Este caso ilustra o discurso médico como um dos fatores que criam o sonho de pureza em nossa sociedade. As

manifestações do estranho Alex são abafadas com intermédio da razão. A ciência é colocada em pratica para justificar um

busca pela ordem para destruir, abafar e assimilar aquele estranho. Vivemos em uma constante busca pela ordem, sendo

que a razão é o fator justificador desses atos, historicamente podemos usar o exemplo de uma atrocidade como o

holocausto para ilustrar como a razão foi o alimento da intolerância. Porém, hoje vivemos um novo holocausto, mais sutil,

fazendo com que aquele que não participa do jogo do sistema capitalista, o consumidor falho, aquele que é estranho, seja

excluído, porque todos clamam pela ordem, todos clamam pela pureza!

Modernidade e Ambivalência – Zygmunt Bauman

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

Centro de Filosofia e Ciências Humanas

Programa de Pós-graduação em Sociologia Política

Disciplina: SPO 7007 – Sociologia do Racionalismo

Semestre: 2008.2

Professor: Phd Carlos Eduardo Sell

Acadêmico: Adhemar Tavares Vieira Filho

Bauman, Zygmun, 1925-. Modernidade e Ambivalência. Tradução Marcus Penchel. RJ: Jorge Zahar Editora, 1999, 334 pg..

Introdução

O livro inicia procurando demonstrar os conflitos contra uma ambivalência que tem o bojo da desordem lingüística,

interpretado e refletido como uma falha instigante da linguagem e o respectivo desempenho. A angústia humana em

adequar a situação na busca das ações possíveis que permitam alternativas plausíveis quanto aos sinais da desordem. A

ambivalência se reflete no caos e descontrole alarmante e com previsão para o final.

Bauman propõe a “busca da ordem” como saída do projeto modernista, contidas como proposições de Adorno e

Horkheimer, ultrapassando os limites interpretativos desses autores. O ser humano a partir da modernidade não fracassou,

produziu auto-conhecimento “A ambivalência, possibilidade de conferir a um objeto ou evento mais de uma categoria, é

uma desordem específica da linguagem, uma falha da função nomeadora (segregadora) que a linguagem deve

desempenhar… A ambivalência é, portanto, o alter ego da linguagem e sua companheira permanente – com efeito, sua

condição normal.”, pg. 9.

Na estruturação como classificação dos eventos mundanos, a linguagem representa um mundo com bases sólidas e

habitadas pelo homem, no qual o acaso que contingência a sobrevivência do ser, com a condição do aprendizado, poderia

não representar uma situação de utilidade prática. O mundo estabelecido em uma ordem imanente, que prosseguiu com as

possibilidades de realização de um evento, determinando o grau de sucesso no passado que direcionem a outras formas de

acontecimentos futuros.

“Por causa da nossa capacidade de aprender e memorizar temos um profundo interesse em manter a ordem do mundo… .

A situação torna-se ambivalente quando os instrumentos lingüísticos de estruturação se mostram inadequados; ou a

situação não pertence a qualquer das classes lingüisticamente discriminadas ou recai em várias classes ao mesmo tempo.”,

pg. 10.

O mundo era descuidado e irrefletido, a melhor maneira de entendê-lo é a negação de que hoje entendemos da ordem e

caos, na qual a modernidade se viu compreendida e refletida. Em um mundo ordenado por um pensamento divino e que

jamais teria a possibilidade de entender as descrições da modernidade.

Bauman reflete a naturalidade mundana do ser e descreve que “ordem e caos são gêmeos modernos. Foram concebidos

em meio à ruptura e colapso do mundo ordenado de modo divino, que não conhecia a necessidade nem o acaso, um

mundo que apenas era, sem pensar jamais em como ser.”, pg. 12.

Hobbes propôs o nascimento da consciência da ordem ou da consciência da modernidade. “Entendia que um mundo em

fluxo era natural e que a ordem devia ser criada para restringir o que era natural… ”, pg. 13.

Como se é possível pensar e entender a relação entre a ordem pelo olhar de Bauman e os desafios pela sobrevivência. O

pensador nos dá uma pista, que refletiu como “os tropos da ordem: indifinibilidade, incoerência, ambigüidade, confusão,

incapacidade de decidir, ambivalência… é pura negatividade. É a negação de tudo o que a ordem se empenha em ser… Sem

a negatividade do caos, não há positividade da ordem; sem o caos não há ordem.”, pg.’s 14 e 15.

Ora, a natureza está aí para se apresentar como uma toponímia da ordem sublimentar, mas à distância e ao alcance do ser

humano. Então como é possível que por meio do desarranjo da ordem na modernidade, ambivalentes ao poder, a

repressão e a ação propositada, o ser encontre a ordem na natureza.

Novamente o autor direciona para “A prática tipicamente moderna, a substância da política moderna, do intelecto

moderno, da vida moderna, é o esforço para exterminar a ambivalência: um esforço para definir com precisão – e suprimir

ou eliminar tudo que não poderia ser ou não fosse precisamente definido.”, pg. 15.

Por certo, como definido sobre a intolerância como um gesto modernista quanto à desligitimação do outro, enquanto uma

ação coletiva e individual.

A relação com o estado moderno refletido como o outro, direcionando a condição de poder que conquista um espaço

geopolítico e social, como se não houvesse dono, se vê em uma bifurcação com o controle social coercitivo, conduz a

ambigüidade moderna.

“… a soberania do estado moderno é o poder de definir e de fazer as definições pegarem tudo que se auto define ou que

escapa à definição assistida pelo poder é subversivo. O outro dessa soberania são as áreas proibidas, de agitação e

desobediência, de colapso da lei e da ordem… a resistência à definição coloca um limite à soberania, ao poder, à

transparência do mundo ao seu controle, à ordem.”, pg. 16.

Em que sentido a ambivalência se fez presente entre a existência social e sua cultura moderna, considerando que a cultura

se contrapõe a sua Majestade que torna viável a presença de um governo. Esta relação permitiu uma tensão entre o que é

social e o que é cultura. “A história da modernidade é uma história de tensão entre a existência social e sua cultura.”, pg.

17.

Já a dicotomia presumível como interação para a prática e a visão da ordem social, apresenta a questão do poder como

relação entre a posição administrativa e a respectiva oposição, cuja dependência é assimétrica e de um lado depende do

outro para a sua existência e isolamento providencial a sobrevivência de ambos.

O livro foca os diversos aspectos que envolvem a luta moderna contra a ambivalência, sendo a fonte principal como

fenômeno que busca a sua extinção e qual o acordo gradual da modernidade estabelecido com a diferença, clareando

formas de vida pacifistas com a ambivalência.

1. O escândalo da ambivalência

A forma com que a modernidade suplantou o convívio com a natureza na antiguidade, determinando métodos e formas

para um efetivo domínio da natureza, tendo como a metafísica, autêntica escudeira de uma empreitada inglória e sem

tréguas, levou a técnica a criar uma ordem que tem na classificação das atividades humanas uma profunda ambivalência ao

caos, entendido como elemento imanente do estilo vivido na antiguidade. Esse arcabouço humano de pensar, agir

desenvolver atividades pelo caminho da cultura científica moderna, utilizou a dominação política, econômica e militar no

ocidente, delineando os modos alternativos de vida. Alguns pensadores enxergam como uma “… autodefesa da

modernidade, ela obliquamente reafirma e reforça o mito etiológico da civilização moderna como um triunfo da razão

sobre as paixões, …a crença de que esse triunfo foi um passo inequivocamente progressista no desenvolvimento histórico

da moralidade pública.”, pg. 28.

O período da modernidade está marcado com a cumplicidade do estado com o desenvolvimento da metafísica e a razão

convincente dos filósofos, qualificando o poder autodeterminado e soberano sobre as populações desprotegidas, ao

convencimento do estilo de viver, por uma indústria cultural determinada a elencar as imanações e orientações do status

quo dominante.

“Ao longo de toda a era moderna, a razão legislativa dos filósofos combinou bem com as práticas demasiadamente

materiais dos estados,… Legislar e impor as leis da razão é o fardo daqueles poucos conhecedores da verdade, os

filósofos.”, pg.’s 29 e 31.

Um dos resultados mais evidentes da suplantação da ética e das restrições morais com que as práticas científicas modernas

no ocidente produziram efeitos traumáticos à humanidade, foi o holocausto, que não foi um malefício estanque ao próprio

movimento nacional-socialista nazista, mas resultado somente possível com o progresso modernista, com as pesquisas

genéticas e de eugenia nos EUA e Europa, tanto é que após a derrota desse movimento nacionalista, cientistas de outros

países procuraram defender os avanços da metafísica alemã hitlerista e a democracia-liberal absorveu as descobertas

propiciadas pelo holocausto, mesmo com os evidentes engessamentos das populações dominadas.

O nascente estado moderno foi precursor da chamada filosofia fundadora fundamentada por Kant, Descartes e Locke, “…

depois de atribuir a Kant, Descartes e Locke a responsabilidade conjunta pela imposição do modelo aos duzentos anos

seguintes de história filosófica.”, pg. 34.

Esses pensadores foram movidos pelo sonho de uma humanidade livre da restrição social, política, econômica, única

condição que acreditavam, a dignidade humana pode ser respeitada e preservada.

A natureza está à mercê da metafísica, que em aliança com o estado moderno, procuram domina-la e subjugá-la aos

interesses desenvolvimentistas.

“A ciência moderna nasceu da esmagadora ambição de conquistar a natureza e subordina-la as necessidades humanas…

Despojada de integridade e significado inerentes, a natureza parece um objeto maleável às liberdades do homem.”, pg. 48.

A modernidade realmente reservou ao ser situação de poderio, que enfaticamente resultam em desequilíbrio ao meio

ambiente e dominação e alienação do homem. Tudo isto é bem resumido no veredicto de Hans Jonas: “Nunca tanto poder

combinou-se com tão pouca indicação sobre o seu uso. Ainda assim há uma compulsão, uma vez existente o poder, para

usá-lo de qualquer forma.” nota n° 30, pg. 305.

A modernidade colocou a humanidade em uma encruzilhada ameaçadora, ou aceita o desprezo da ética e desqualificação

da moral pelos cientistas ou questiona os valores e ações propostas por estes racionalistas.

“O que a lição do holocausto nos ensinou, porém foi a duvidar da sabedoria pretensiosa dos cientistas ao dizerem o que é

bom ou mau, da capacidade da ciência como autoridade moral, enfim da capacidade dos cientistas de identificar questões

morais e de fazer um julgamento moral dos efeitos de suas ações.”, pg. 54.

Bauman propõe a saída na pós-modernidade frente a um crescente poder do estado em conluio com a ciência moderna e

os políticos racionalistas. “A ambigüidade que a mentalidade moderna acha difícil de tolerar e as instituições modernas se

empenharam em aniquilar reaparece como a única força capaz de conter e isolar o potencial destrutivo genocida da

modernidade.”, pg. 60.

2. A construção social da ambivalência

Como a verdade se faz presente, frente à ambivalência que a herança da modernidade insiste em desafiar, frente aos

caminhos e descaminhos do ser domesticado, que vê na liberdade, as saídas para se auto-reconstruir, é o insistente apelo

de Bauman, neste mergulho do olhar para o nativo e o estranho.

Ancorado na pesquisa lingüística sobre o judeu europeu moderno e pós-moderno, que é visto como a um estranho em

meio a uma multidão de europeus nativos, principalmente o alemão, o autor procura entender e sentir as emoções vividas

pela estranheza ambivalente, num universo liberal-nacionalista. O elo de ligação que une e desune o nativo é a oposição

entre o amigo e o inimigo. O estranho se encontra presente, em meio a uma ordem pré estabelecida, surgindo a

ambivalência em uma construção social legitimada radicalmente, incompatibilizando a regra de uma ideologia nacionalista.

“Ele se situa entre amigo e inimigo, a ordem e o caos, dentro e fora. Ele representa à deslealdade dos amigos, o gracioso

disfarce dos inimigos, a fabilidade da ordem, a vulnerabilidade interna.”, pg. 71.

O ser humano dominado e culturalmente domesticado por um meio liberal-nacionalista, tende a desenvolver um ódio a si

mesmo, inclusive podendo transformar-se em agressão a sua origem que lhe serve de protótipo e é sentida como a sua

coporificação.

A resistência do estranho a assimilação cultural é encarada como desinteresse ou incapacidade de auto-remodelar.

3. A autoconstrução da ambivalência

Bauman como judeu que viveu na Polônia, sentiu em si a condição de “estranho”, sem pátria, onde as relações de

socialização se faziam com os intelectuais, que era o meio onde vivia. Os judeus dispersos e em minorias, num país com os

costumes e tradições totalmente diferentes, se sentiam completamente isolados e com extrema dificuldade de expressar

seu verdadeiro potencial como ser humano. O autor pesquisou e refletiu as emoções emanadas, sentimentos reprimidos e

frustrados, rejeições devido as diferenças culturais que percebia entre o nativo e o estranho. Talvez esse estilo social e

cultural tenha influenciado no modo pessimista como escreve suas obras sociológicas.

“Ser um estranho significa, primeiro e antes de tudo, que nada é natural; nada é dado por direito, nada vem de graça. A

união primitiva do nativo entre o eu e o mundo foi dividida. Cada lado da união foi colocado sob o foco da atenção – como

um problema e uma tarefa. Tanto o eu como o mundo são claramente visíveis. Ambos requerem constantemente exame e

precisam urgentemente ser “operados”, “manejados”, administrados. Sob todos esses aspectos, a situação do estranho

difere drasticamente do modo de vida nativo com conseqüências de longo alcance.”, pg. 85.

No sentido da ambivalência, neste texto os estudos são feitos quanto as relações do estranho com o nativo, suas interações

e relações socioeconômica e socioculturais, a política, religião, pensado quanto a individualização, e nesse particular,

Bauman descreve a pós-modernidade sob os efeitos da ordem estabelecida e o caos, na busca da autoconstrução da

ambivalência.

Os judeus foram os estranhos resultado da pesquisa do autor na Europa ocidental, perseguidos como estranhos universais,

desconsiderados como visitantes de outro país, pois não tinham pátria e considerados sem raízes sociais.

Kafka como judeu e escritor universal, pesquisado por Bauman, que escreveu “Foi à atormentada condição judaica de Franz

Kafka, vivida dolorosamente, que permitiu aos pensadores Camus e Sartre ver em sua obra uma parábola do transe

universal do homem moderno. Ela permitiu a Camus ler Kafka como um insight do incurável absurdo da vida moderna, da

estranheza na vida do homem; permitiu a Sartre ver em Kafka a própria definição do estranho: “O estranho é o homem

diante do mundo… O estranho é o homem… O estranho é também o homem entre os homens… Enfim, sou eu mesmo em

relação a mim mesmo”, pg. 96.

As dificuldades de integração com as sociedades onde viviam os judeus que eram vistos como arrogantes e irredimíveis, e

se predispunham a destruir o relacionamento com companheiros de sofrimento, nesta condição os judeus achavam

impossível criar uma relação com a sociedade a que pretende se integrar e conviver mutuamente. “Ele próprio um estranho

universal e talvez o mais perspicaz dos estranhos universais, Kafka desfiava e delineava os traços universais de estranheza,

esse único e verdadeiro herói, embora com muitas faces, de toda a sua obra literária”, pg. 101.

Tomando por fato a era do homem que ocorreu a passagem do estilo de vida nômade para a vida sedentária no cultivo

agrícola, chamada de revolução neolítica, o autor compara este momento do ser com o equivalente fato ocorrido com os

pensadores que formam a inteligência definida por Mannheim na América da década de 80: “Hoje os marxistas americanos

têm gabinetes e vagas de estacionamentos nos campi universitários, compara a atividade dos intelectuais marxistas a um

intervalo para o café num seminário…”, pg. 102.

Theodor Adorno, como uma pessoa sem endereço permanente, o estilo do sujeito estranho que não se acomodou com as

adversidades nas pesquisas sociais, escreveu: “O que difere do existente parecerá ao existente bruxaria, enquanto figuras

de pensamento como proximidade, lar, segurança mantém o mundo imperfeito sob seu feitiço. Os homens têm medo de

que perdendo essa mágica, eles percam tudo, porque a única felicidade que conhecem, mesmo em pensamento, é a de ser

capaz de ater-se a algo – a perpetração da falta de liberdade”, pg. 103.

Esses pensadores autênticos sempre buscaram a liberdade e se recusaram a produzir sistemas coesos ou academicamente

respeitáveis, pois não se envolveram com a política, pretendendo respirar o espírito livre.

4. Na armadilha da ambivalência

Uma situação de atratividade e como conseqüência a angustia de uma minoria na sociedade moderna. A modernidade

atraiu as pessoas para uma forma de vida que o autor nomeou como “estado de crônica ambivalência”, com ofertas de

liberdade estigmatizada.

A formação da nação-Estado entre os séculos XVI e XVIII, a partir das comunidades com características próprias na Europa

ocidental, levou a perda de autogestão comunitária assumida pelo Estado, desestruturando as bases sociais populares, com

seus respectivos costumes e tradições, através de obstáculos administrativos nacionalistas. A formação natural do ser a

nível local e comunal teve o estilo popular usurpado, ocorrendo a desnaturalização da conduta do ser.

O Estado moderno assimilou as bases sociais naturais e estabelecidas das tradições e formas de vida comunitária, chamada

por Geoff Dench como “prisioneiros da ambivalência”. Essas mudanças sociais previam a chegada da “intolerância à

diferença”. “O Estado moderno era um poder planejador, e planejar significava definir a diferença entre ordem e caos,

separa o próprio do impróprio, legitimar um padrão as expensas de todos os outros. O Estado moderno difundia alguns

padrões e se punha a eliminar todos os outros… Desautorizados e, portanto subversivas, essas qualidades agora geravam

ansiedade…”, pg. 117.

A assimilação foi uma coerção à própria “ambigüidade semântica”, todas as suas qualidades, em que a escolha era

obrigatória e inequívoca. Muitos membros das comunidades foram atraídos e assimilados pela nação-Estado, e as

comunidades eram profundamente enfraquecidas na origem, fortalecendo o Estado centralizador. Visava o fortalecimento

estatal e eliminação dos grupos comunitários como força de competição efetiva. Esta assimilação proporcional ao

engessamento das comunidades através do engajamento dos membros chaves ou mais participativos.

A experiência judaica alemã pesquisada pelo autor como processo de assimilação comunitária pela nação-Estado, já que foi

amplamente objeto de pesquisa por judeus nascidos na cultura moderna alemã como Freud, Marx, Kafka e Wittgenstein

entre outros pensadores. “Na imagem acadêmica e popular de assimilação judaica, da entrada do judeu moderno (ou da

saída do gueto), a história dos judeus alemães ocupa o lugar central e em muitos aspectos prototípica.”, pg. 121.

A pesquisa proposta pelo autor aconteceu na Europa ocidental, onde os judeus tinham condição cultural mais avançada e

criativa da diáspora, e na Europa oriental estavam empobrecidos “com estilo de vida de fronteira, inseguro, desafiador e

aventureiro”.

Durante mais de um século os judeus de língua alemã, durante o processo de modernização que se encontravam

coletivamente inspirando “ideologias, autodefinições e modos judaicos” na Europa ocidental serviram de ruptura para

assimilação judia ao iluminismo com a influência da revolução francesa através do nacionalismo moderno alemão. Este

estudo esclarece a assimilação na passagem das comunidades com suas tradições e culturas para a formação da nação-

Estado moderna, “… eles serviram de área de teste para a viabilidade da assimilação cultural como veículo de integração

social numa sociedade em processo de modernização. Pela mesma razão, sua história pode oferecer o inventário mais

completo das forças impulsionadoras da assimilação, dos dilemas com os quais confrontam os que as perseguem e dos

obstáculos que está fadada a encontrar no caminho para esse alvo.”, pg. 122.

As características individuais dos judeus estudados por escritores do século XVIII, “com sua barba, roupas estranhas e leis

cerimoniais completamente irracionais parecia algo menos que um ser humano.”, pg. 123, completamente diferentes dos

costumes e tradições européias, bem como alemães, resultou no tratamento aos judeus como estranhos em meio aos

nativos alemães. A elite nativa alemã exercia o papel de julgar e decidir como os esforços empreendidos para superar

inferioridade cultural dos judeus, principalmente os indivíduos que se inseriam nessa categoria, propondo testes e

processos de julgamentos, sem que os pretendentes influenciassem nos padrões de exames ou os resultados. Não se

permitia “diferenciação ou declaração de igualdade legal” em relação aos alemães das elites nativas. “O peculiar status

legal dos judeus – restrições legais junto com privilégios, exclusões residenciais e ocupacionais junto com autonomia

jurídica – tinha que dar lugar a novos códigos universais que não reconheciam prerrogativas de grupo e, portanto não

podiam reconhecer a forma legal de discriminação.”, pg. 124.

O autor descreveu vários estudos de casos de indivíduos da intelectualidade judia alemã forçada a abandonar as tradições e

cultura, deveriam se pronunciar a elite intelectual alemã que aceitava as condições exigidas e jurar fidelidade à cultura e

costume do nacionalismo, se assim não fosse, seriam excluídos na participação desta sociedade.

O Estado na modernidade promoveu a unificação do arcabouço legal, lingüística, cultural e ideológica de todas as

comunidades existentes no território que abrangia, através do processo de assimilação dos estranhos ou a nacionalização

(centralização) coercitiva. A eliminação da diversidade cultural ou a não permissão de aquisição de cultura diferenciada foi

um dos motivos das angustias e frustrações vividas pela população na modernidade.

Karl Marx, cujo pai, na opinião de escritor Murray Wofson, criou o filho com sentimento de vergonha pela origem judaica,

se expressou da seguinte maneira quanto ao processo de assimilação alemã: “Por outro lado, se o judeu reconhece que é

fútil a sua natureza prática e age para aboli-la, ele se livra de sua condição anterior e trabalha para emancipação humana

enquanto tal, voltando-se contra a expressão prática suprema do auto-isolamento humano.”, pg. 157.

A experiência da assimilação na modernidade vivida, refletida e estudada pelos judeus intelectuais alemães quanto ao

aspecto social, econômico, jurídico, cultural, tradição, psicanálise, questões da individualidade (estranho), no que se refere

as comunidades na Europa ocidental e oriental clarearam a modernidade fracassada que rejeitou a ambivalência (ordem e

caos), a diversidade e a contingência.

5. A vingança da ambivalência

Na modernidade, tanto nos EUA como na Inglaterra ocorreu a assimilação étnica judia pelas nações-Estado, citadas pelo

autor como “Essa tendência é mais acentuada ainda no caso de países mais afastados do olho do furacão e que, portanto,

apenas indiretamente partilham a responsabilidade pelo desastre final.”, pg. 174.

O anti-semitismo francês se mostrou opressor, a convivência se tornou amarga, impossibilitando o reconciliar com as

próprias emoções. Crenças anteriormente abraçadas por força de coerção tiveram que ser rejeitadas, desestabilizando o

individuo em seus próprios dogmas.

O pensador Simmel pesquisou na sociologia a filosofia do dinheiro na sociedade moderna, a espontaneidade da formação

de grupos, a forma instável da sociedade frágil e em constante mudança. No entanto Simmel como acadêmico e judeu

estranho sofreu com a assimilação e exclusão no meio universitário alemão, mesmo que tenha sido um dos primeiros

intelectuais no começo da modernidade a estudar e pesquisar a repressão da diferença e a rejeição da alteridade.

Bauman pesquisou descreveu neste capítulo, as desastradas conseqüências culturais do projeto de assimilação na sina de

suprimir a ambivalência e mesmo assim houve a proliferação, com a descoberta da subdeterminação, ambivalência e

contingência como condição humana.

As proposições de pensadores conhecidos como Kafka, Simmel, Freud, Derrida e outros menos conhecidos como Chestov

ou Jabís foram apresentadas e revistas neste capítulo.

O direcionamento desencadeado para um cenário social ambivalente à autoconstituição da consciência crítica moderna,

dando condição para surgimento do fenômeno cultural pós-moderno.

6. A privatização da ambivalência

A ambivalência explorada com determinação e transcendência contemporânea permitiu a privatização. Com a falta de

ações e atitudes concretas da sociedade para erradicar a privatização das atividades humanas, a ambivalência (ordem e

caos) e a contingência deslocou da esfera pública à privada.

Conforme demonstrou e escreveu Niklas Luhmann, “com a passagem de uma sociedade pré-moderna estratificada para a

sociedade moderna funcionalmente diferenciada (isto é, uma sociedade na quais as divisões atravessam as localizações

sociais dos indivíduos isolados), as pessoas individualmente não podem mais ser localizadas de modo firme num único

subsistema da sociedade, mas devem antes ser encaradas a priori como socialmente deslocadas.”, pg. 211.

Para definir e explicar minunciosamente a interação social entre duas pessoas na sociedade moderna, o pensador Luhmann

chamou de “amor” o fenômeno humano, que busca o fortalecimento dos laços sociais, mas também permite o

aparecimento de situações inéditas de frustração e fracassos individuais. O amor para o estranho universal, esse individuo

deslocado no mundo moderno, a paixão passou a ser um sentimento frágil e débil que supera a esperança de que esta

atitude seja satisfeita de modo verdadeiro.

A psicanálise e outras atividades multifuncionais no campo da relação social passaram a substituir a relação sincera de

amizade entre as pessoas, alguns autores chamam de “amor”. Essa relação se tornou privatizada, onde um dos lados aufere

lucro com a confiança e neutralidade da relação interpessoal. O mercado acaba ditando as relações interpessoais com

situação de difícil autoconstrução e busca da aprovação social, substituindo esses atos reacionais por padrões prontos e

moldados. Especialistas multifuncionais procuram resolver problema de relacionamento entre indivíduos ou a coletividade

na esfera pública, problemas estes oriundos da esfera privada.

Na relação amorosa entre o masculino e o feminino, o erotismo como embasamento do amor romântico dá lugar a

sexualidade e como desejo sexual a parceria social, reduzindo ao desejo sexual e sua satisfação com simpatia e obrigação

mútua, tornando uma parceria pessoal plena. Se esta relação é partilhada com outra(s) pessoa(s), o alcance da estabilidade

se torna difícil ou fragilizada. A substituição comercial do amor induz ao enfraquecimento e desvalorização do amor

romântico, pois expõe às dificuldades neste tipo de relacionamento. Assim as atividades comerciais especializadas se

multiplicam, havendo enfraquecimento nas relações afetivas amorosas, com fragilidade e conseqüências de perda no

tecido social pós-moderno.

A autoridade social da especialização pode ser descrita como o autor refletiu:

- individualização crescente faz com que a pessoa se feche e contenha em si no sonho de uma vida feliz;

- a identidade ambígua na pós-modernidade gera infelicidade que o individuo procura resolver com o tratamento

especializado;

- cada causa de infelicidade tem um tipo específico de solução especializada que o individuo procura solucionar.

O descontrole e frustrações resultados da assimilação da sociedade moderna, com o advento de problemas emocionais

específicos direcionam a solução na busca de saídas privatizadas.

As habilidades privatizadas desalojam habilidades interpessoais tradicionais, sem que precisasse recorrer à ajuda externa.

As pessoas têm habilidades naturais a sua disposição que permitem a própria solução de problemas individuais.

As ciências controlam fontes de incerteza ou desconhecimento popular, produzindo ciclos de padrão da dependência e

poder. O descontrole das autoridades no mundo da vida sacrifica as reais necessidades do ser humano na sociedade

moderna.

A fragilidade nascida no culto à racionalidade da escolha e da conduta em si mesmo, preferindo a ordem em vez da

diversidade e ambivalência.

7. Pós-modernidade ou vivendo com a ambivalência

As ciências sociais em um amplo espectro para dar uma resposta que convença a sociedade, no que se refere ao arcabouço

da modernidade e sua chamada herança na pós-modernidade.

Através das reflexões de Agnes Heller, o autor iniciou o último capítulo da obra Modernidade e Ambivalência com a frase

“Poderíamos transformar nossa contingência em nosso destino”. “A contingência do eu moderno, da sociedade moderna –

não eram o que as modernas ciências sociais que seus profetas e apóstolos, o que seus pretensos convertidos e

beneficiários vendiam.”, pg. 244.

O sonho de uma sociedade com condições de transcender seu ideário fadou ao fracasso com sucesso parcial, ou seja, a

promessa que se ativeram às modernas ciências sociais, não ultrapassou um simples “produto racional”, mesmo com o

propósito de justificar algum projeto totalmente diferente. Os intelectuais se apegam ao grande mote transvertido de auto-

ilusão, pregando o conhecimento visto como “insight da contingência”, violando equivocadamente a natureza verdadeira

do seu papel social. Assim escreve o autor sobre esse estimulante tema “… informaram da contingência acreditando

descrever a necessidade, expuseram a particularidade supondo falar da universalidade, expuseram a particularidade

supondo falar da universalidade, deram uma interpretação tradicional pretendendo uma verdade extraterritorial e

extratemporal, mostraram indecisão…”, pg. 245.

A crítica ácida que transpareceu foi que “… a ignorância acabou sendo por assim dizer, um privilégio.”, pg. 245.

O conhecimento sob a luz da verdade e de maneira pacífica tem a tendência de respeitar as fronteiras existentes e como

contexto, se transforma em equilibro de forças para se tornar uma “assimetria de poder”. A modernidade usou a verdade

como forma de poder na relação social; confundiu-se a diferenciação como sendo universalização em uma evidente auto-

ilusão. Partindo do princípio que “… a contingência era aquele estado de desconforto e ansiedade do qual era preciso

escapar tornando-se uma norma impositiva e assim se livrando da diferença.”, pg. 247, a esperança como estimulo da vida

deixa de ser a tão procurada felicidade e se percebe como uma infelicidade, surgindo à necessidade do aprendizado de vida

sem esperança. A contingência passou a ser como a consciência do presente, jamais vista em outra época. A forma de vida

arbitrariamente escolhida e partilhada como escolhida e partilhada como escolha individual que é aceita no coletivo, imune

ao avanço cultural de outra comunidade ou forma social.

A emancipação, portanto, caracteriza a aceitação da contingência que oxigena a vida e permite a pluralidade de objetivos.

O entendimento dos aspectos da modernidade e pós-modernidade, em que o conhecimento não oferece consenso ou a

descrição deixa a desejar, pois outra versão dos fatos são oferecidos ou a versão mais bem testada. A dúvida originada na

primeira condição é moderna, a segunda pós-moderna. Essa conclusão é possível pela formatação da cultura moderna

sendo a continuidade a pós-moderna.

O esclarecimento a essa questão, o autor utilizou os filmes “O exorcista” de William Blatty, se voltando a análise crítica por

meio da psiquiatria, contrapondo com o conhecimento científico e “O presságio” de David Seltzer, no qual se ateve à

ciência confrontada com o senso comum. Concluiu nas análises dos filmes, quanto a questionável autoridade da ciência

transformadora do ideal da verdade como produção de conhecimento, utilizando a ilusão como forma de proteção à

autoridade da ciência contra o descrédito.

A prova cabal da ciência é descrita pelo autor como “o credo da superioridade do conhecimento científico sobre qualquer

outro conhecimento. Além disso, desafia o direito da ciência validar e invalidar, legitimar e deslegitimar…”, pg. 257.

Autores como Descartes, o transcendentalismo de Husserl, o princípio da refutação de Popper, as racionalidades

construídas por Weber que traçaram a marca característica da mentalidade moderna.

No texto a seguir, Bauman descreve com clareza a construção do conhecimento, onde “A modernidade atinge esse novo

estágio quando é capaz de enfrentar o fato de que o aumento do conhecimento, onde “A modernidade atinge esse novo

estágio quando é capaz de enfrentar o fato de que o aumento do conhecimento expande o campo da ignorância, que a

cada passo ao horizonte novas terras desconhecidas aparecem e que, para colocar a coisa de maneira mais genérica, a

aquisição do conhecimento não pode se exprimir de nenhuma outra forma que não a da consciência de mais ignorância.”,

pg. 258.

O conhecimento é frontalmente imaginado pelo autor como maneira de distribuir essa gama de acervo equitativamente e

reflete “Uma idéia compartilhada, ao contrário, promete um abrigo: uma comunidade, uma fraternidade ideológica, de

destino ou missão. A tentação de compartilhar é esmagadora. E, a longo prazo, difícil de resistir.”, pg. 260.

A comunidade como forma de vida, se apóia na tradição para extravasar o entusiasmo popular. Pensadores como Kant,

Tönnies, Lyotard, Habermas, Maffesoli, Bernstein, Mauffe, Hobsbawn, Anderson entre outros pensaram a comunidade, sua

organização “por dentro” como individualidades que se identificam, e Bauman descreve como “As tribos do mundo

contemporâneo, ao contrário, são formadas – como conceitos, mais do que corpos sociais integrados – pela multiplicidade

de atos individuais de auto-identificação.”, pg. 263. A comunidade depende da aceitação por seus membros sobre o

consenso da homogeneidade com que suas buscas alcançam um ideal comum.

A análise crítica dos intelectuais que elaboram conclusões dos poderes modernos que buscavam eliminar o outro, o

diferente, o ambivalente, enquanto os autênticos intelectuais separaram a verdade do embuste, o conhecimento da ilusão,

a solidariedade da tolerância. Bauman relembra característica peculiar da pós-modernidade com o apoio da condição

universal praticada e aceita como forma de vida “De repente, um número crescente de cientistas sociais descobre que a

regulação normativa da vida diária é com freqüência sustentada por iniciativa de base popular de natureza heterodoxa e

tem de ser protegida contra transgressões de cima.”, pg. 326, nota 19.

A verdade como esclarecimento transcende o individuo comum e leva o conhecimento a um nível de destaque na pós-

modernidade, separando o verdadeiro do falso, o conhecimento da mera opinião.

O autor descreve o pensamento quanto à tolerância que se defende dos inescrupulosos, evitando ser uma presa fácil,

transformando em uma determinação de vontade firme e decidida, “Só pode evitar agressões quando se transforma em

solidariedade, no reconhecimento universal de que a diferença é uma universalidade que não está aberta a negociação e

que o ataque ao direito universal de ser diferente é o único afastamento face a universalidade que nenhum dos agente

solidários, por mais diferente que seja, pode tolerar, exceto com perigo para si e todos os outros agentes.”, pg. 270.

Na pós-modernidade surgiu a solidariedade como um diferencial a tolerância, como uma busca para algo que se limitava a

simplesmente aceitar as condições impostas, e surgiu com a disposição para lutar, reconhecer a diferença alheia, não a

própria, orientando socialmente para uma outra condição do ser. O autor dirige o olhar à sociedade insensível as

dificuldades dos que vão mal, “Estes aceitaram e declararam que poucos podem fazer para melhorar a sina dos outros. E

até conseguiram se convencer de que, uma vez que a engenharia social se revelou essencialmente podre, o que quer que

decidam fazer só pode piorar as coisas ainda mais.”, pág. 273. Mas o caminho contrário que leva à gentileza, no entanto

basta um pequeno passo para o caminho da volta.

Contrapondo os discursos de Nietzche e Scheler, Bauman relata a apatia da pós-modernidade, que resulta em fracasso

causado por uma privatização social dos problemas humanos e a responsabilidade por sua solução, “A política que reduziu

as responsabilidades assumidas em relação a segurança pública, retirando-se das tarefas da administração social,

efetivamente dessociolisou os males da sociedade e traduziu a injustiça social como inépcia ou negligência individual.”, pg.

276. O mercado gera efeitos perversos sobre as estruturas políticas e sociais pós-moderna. A mercantilização camufla

soluções para as questões comunitárias, a organização de vida coletiva e a administração pública da sociedade, engessando

os indivíduos e comunidades em suas reais possibilidades de ação concreta. Mas também não deixa de mostrar a saída para

desarticular a estrutura mercantil através da solidariedade e tolerância recíproca, evitando assim os riscos e perigos sociais.

O socialismo moderno foi à contracultura da modernidade, expondo as contrariedades da sociedade em sua promessa,

resistência a não efetivação dos avanços da modernidade e contribuiu para a concretização do pleno potencial da

sociedade. A incapacidade do socialismo em transformar a natureza para fins humanos sem o inconseqüente dano

ambiental irreversível. O socialismo elegeu prioridades a serem cumpridas e pregava que o capitalismo jamais conseguiria

suplantar na modernidade, como superar o potencial dos instrumentos e técnicas disponíveis de forma mais eficaz, racional

e criativo ou mais produtivo através da engenharia social. Em vez de cumprir as metas prometidas, causou prejuízos e

violentou a natureza sem produzir as riquezas previstas, com elevada devastação. A igualdade como forma de ideologia

social foi um fracasso, restringindo a liberdade individual. A fraternidade não existiu como se apregoava, mas sim a perda

da liberdade. Do sonho ao milagre findou na transformação do desastre impensado. Tanto o socialismo como o comunismo

foram sistemas unilaterais preparados para mobilizar os recursos sociais e naturais nos ditames da modernização e sua

fraqueza somou absurdos e as próprias contrariedades. Afinal os valores pós-modernos foram desacreditados no ocidente

com a poluição e aventuras modernizadoras fracassadas.

Um dos maiores motivos do fracasso socialista e comunista foi à planificação social centralizada, não despertando defensor

da integridade moral e razão após seu fim. A administração centralizada e planificada tem um custo social elevado à

sociedade, a distribuição dos benefícios foi profundamente desigual e injusta.

Os equívocos se repetem na pós-modernidade, produtora de injustiças, mesmo com exemplos na história do passado, a

planificação torna a sociedade pior do que é.

“A conquista da natureza produziu mais desperdício do que felicidade humana.”, pg.291.

A modernidade foi uma obsessiva marcha adiante, nunca conseguiu o bastante, que a satisfizesse, suas aventuras se

tornaram amargas e ambições frustradas. A pós-modernidade é uma continuação ao projeto não concluído e descartado da

modernidade. A auto-reprodução de um passado remoto conduz a pressão dos interesses e esperanças não satisfeito,

mesmo que seja abandonado por aqueles que vêem com nojo esse passado. Habermas pensou com conhecimento quando

fala do “projeto inacabado da modernidade.”

A inspiração da alma do ser foi intoxicada com o alimento da pós-modernidade em um Estado omisso, e o capitalismo

mercantilista concorre e supera através de efeitos ilusórios a organização administrativa pública. O fracasso antecipado do

capitalismo na pós-modernidade não consegue camuflar os males da sociedade; questão ambiental como a camada de

ozônio se mostra transparente com riscos imediatos, transporte público é o “calo de Aquiles” nas grandes metrópoles,

explosão irracional da frota de veículos e sua relação com a empregabilidade em todos os continentes, caos da saúde

pública mesmo em países ricos.

A privatização da tolerância conduz a uma indiferença nunca imaginada, com o mercado guiando a tolerância, produzindo

isolamento e frustração. “Cada vez menos pessoas acreditam hoje na capacidade mágica do crescimento econômico de da

expansão tecnológica. Uma coisa que as pessoas acham que a tecnologia produz infalivelmente e cada vez mais é um

crescente desconforto e perigo – novos riscos, menos previsíveis e remediáveis.”, pg. 292. Muitas pessoas se conscientizam

e passam a entender os problemas acarretados na pós-modernidade, principalmente os limites do mercado privatizado.

As justificativas se multiplicam para a efetiva manutenção da exclusão social na pós-modernidade com a aceitação tácita da

sociedade, Estado e intelectuais. Bauman aponta para a revisão histórica de uma ampla reforma na formatação política, a

democracia e a plena cidadania como veículos para sua realização. Um dos caminhos propostos a uma resposta na

modernidade é a política como chance a uma sociedade mais justa, sem a política haveria abandono aos critérios do

mercado. A pós-modernidade não apregoa o fim da política ou o fim da história, e sim um maior compromisso político com

mais eficácia na ação individual e comunitária. O confronto entre o mercado de consumo e a administração popular tem

demonstrado às saídas pelo autor, quer na reorganização comunitária e solidariedade como forma de integração social e

coexistência pacífica. A proposta a administração pós-moderna é assumir com a verdade uma “privatização da dissensão,

tornando-a difusa”, ou seja, refazendo ações no encontro da inserção social, desenvolvendo espaços na sociedade como

formação de “comunidades solidárias”, no respeito ao meio ambiente degradado desde a modernidade, desfazendo o

ideário da acumulação destrutiva e frustrante. Um novo rearranjo do sistema transforma e conduz a uma nova ordem social

e política, conferindo a sociedade pós-moderna um efetivo suporte a ambivalência.