6653_Ode Triunfal - TRB

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1 ODE TRIUNFAL 1 À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica Tenho febre e escrevo. Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto, Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos. Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno! Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria! Em fúria fora e dentro de mim, Por todos os meus nervos dissecados fora, Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto! Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos, De vos ouvir demasiadamente de perto, E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso De expressão de todas as minhas sensações, Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas! Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical — Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força — Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro, Porque o presente é todo o passado e todo o futuro E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão, E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta, Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem, Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes, Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando, Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma. 1 Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa VIVER EM PORTUGUÊS Módulo : 6653: Portugal e a sua História 25 Horas Formadora: Helena Queiroz

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Viver em Portugus

Mdulo:6653: Portugal e a sua Histria25 HorasFormadora: Helena Queiroz

ODE TRIUNFAL[footnoteRef:1] [1: Poesias de lvaro de Campos. Fernando Pessoa]

dolorosa luz das grandes lmpadas elctricas da fbricaTenho febre e escrevo.Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

rodas, engrenagens,r-r-r-r-r-r-reterno!Forte espasmo retido dos maquinismos em fria!Em fria fora e dentro de mim,Por todos os meus nervos dissecados fora,Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!Tenho os lbios secos, grandes rudos modernos,De vos ouvir demasiadamente de perto,E arde-me a cabea de vos querer cantar com um excessoDe expresso de todas as minhas sensaes,Com um excesso contemporneo de vs, mquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical Grandes trpicos humanos de ferro e fogo e fora Canto, e canto o presente, e tambm o passado e o futuro,Porque o presente todo o passado e todo o futuroE h Plato e Virglio dentro das mquinas e das luzes elctricasS porque houve outrora e foram humanos Virglio e Plato,E pedaos do Alexandre Magno do sculo talvez cinquenta,tomos que ho-de ir ter febre para o crebro do squilo do sculo cem,Andam por estas correias de transmisso e por estes mbolos e por estes volantes,Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,Fazendo-me um acesso de carcias ao corpo numa s carcia alma.

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!Ser completo como uma mquina!Poder ir na vida triunfante como um automvel ltimo-modelo!Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passentoA todos os perfumes de leos e calores e carvesDesta flora estupenda, negra, artificial e insacivel!

Fraternidade com todas as dinmicas!Promscua fria de ser parte-agenteDo rodar frreo e cosmopolitaDos comboios estrnuos,Da faina transportadora-de-cargas dos navios,Do giro lbrico e lento dos guindastes,Do tumulto disciplinado das fbricas,E do quase-silncio ciciante e montono das correias de transmisso!Horas europeias, produtoras, entaladasEntre maquinismos e afazeres teis!Grandes cidades paradas nos cafs,Nos cafs osis de inutilidades ruidosasOnde se cristalizam e se precipitamOs rumores e os gestos do tilE as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo!Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares!Novos entusiasmos de estatura do Momento!Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas s docas,Ou a seco, erguidas, nos planos-inclinados dos portos!Actividade internacional, transatlntica,Canadian-Pacific!Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotisNos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots,E Piccadillies e Avenues de LOpra que entramPela minhalma dentro!

H-l as ruas, h-l as praas, h-l-hla foule!Tudo o que passa, tudo o que pra s montras!Comerciantes; vrios;escrocsexageradamente bem-vestidos;Membros evidentes de clubes aristocrticos;Esqulidas figuras dbias; chefes de famlia vagamente felizesE paternais at na corrente de oiro que atravessa o coleteDe algibeira a algibeira!Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!Presena demasiadamente acentuada das cocotesBanalidade interessante (e quem sabe o qu por dentro?)Das burguesinhas, me e filha geralmente,Que andam na rua com um fim qualquer;A graa feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos;E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostraE afinal tem alma l dentro!

(Ah, como eu desejaria ser osouteneurdisto tudo!)

A maravilhosa beleza das corrupes polticas,Deliciosos escndalos financeiros e diplomticos,Agresses polticas nas ruas,E de vez em quando o cometa dum regicdioQue ilumina de Prodgio e Fanfarra os cusUsuais e lcidos da Civilizao quotidiana!

Notcias desmentidas dos jornais,Artigos polticos insinceramente sinceros,Notciaspassez -la-caisse,grandes crimes Duas colunas deles passando para a segunda pgina!O cheiro fresco a tinta de tipografia!Os cartazes postos h pouco, molhados!Vients-de-paratreamarelos como uma cinta branca!Como eu vos amo a todos, a todos, a todos,Como eu vos amo de todas as maneiras,Com os olhos e com os ouvidos e com o olfactoE com o tacto (o que palpar-vos representa para mim!)E com a inteligncia como uma antena que fazeis vibrar!Ah, como todos os meus sentidos tm cio de vs!

Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da agricultura!Qumica agrcola, e o comrcio quase uma cincia! mostrurios dos caixeiros-viajantes,Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da Indstria,Prolongamentos humanos das fbricas e dos calmos escritrios!

fazendas nas montras! manequins! ltimos figurinos! artigos inteis que toda a gente quer comprar!Ol grandes armazns com vrias seces!Ol anncios elctricos que vm e esto e desaparecem!Ol tudo com que hoje se constri, com que hoje se diferente de ontem!Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos!Progressos dos armamentos gloriosamente mortferos!Couraas, canhes, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.Amo-vos carnivoramente.Pervertidamente e enroscando a minha vistaEm vs, coisas grandes, banais, teis, inteis, coisas todas modernas, minhas contemporneas, forma actual e prximaDo sistema imediato do Universo!Nova Revelao metlica e dinmica de Deus!

fbricas, laboratrios, music-halls, Luna-Parks, couraados, pontes, docas flutuantes Na minha mente turbulenta e encandescidaPossuo-vos como a uma mulher bela,Completamente vos possuo como a uma mulher bela que no se ama,Que se encontra casualmente e se acha interessantssima.

Eh-l-h fachadas das grandes lojas!Eh-l-h elevadores dos grandes edifcios!Eh-l-h recomposies ministeriais!Parlamentos, polticas, relatores de oramentos,Oramentos falsificados!(Um oramento to natural como uma rvoreE um parlamento to belo como uma borboleta).

Eh-l o interesse por tudo na vida,Porque tudo a vida, desde os brilhantes nas montrasAt noite ponte misteriosa entre os astrosE o mar antigo e solene, lavando as costasE sendo misericordiosamente o mesmoQue era quando Plato era realmente PlatoNa sua presena real e na sua carne com a alma dentro,E falava com Aristteles, que havia de no ser discpulo dele.

Eu podia morrer triturado por um motorCom o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuda.Atirem-me para dentro das fornalhas!Metam-me debaixo dos comboios!Espanquem-me a bordo de navios!Masoquismo atravs de maquinismos!Sadismo de no sei qu moderno e eu e barulho!

Up-l h jockey que ganhaste o Derby,Morder entre dentes o teucapde duas cores!

(Ser to alto que no pudesse entrar por nenhuma porta!Ah, olhar em mim uma perverso sexual!)

Eh-l, eh-l, eh-l, catedrais!Deixai-me partir a cabea de encontro s vossas esquinas.

E ser levado da rua cheio de sangueSem ningum saber quem eu sou!

tramways, funiculares, metropolitanos,Roai-vos por mim at ao espasmo!Hilla! hilla! hilla-h!Dai-me gargalhadas em plena cara, automveis apinhados de pndegos e de putas, multides quotidianas nem alegres nem tristes das ruas,Rio multicolor annimo e onde eu me posso banhar como quereria!Ah, que vidas complexas, que coisas l pelas casas de tudo isto!Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro,As dissenses domsticas, os deboches que no se suspeitam,Os pensamentos que cada um tem a ss consigo no seu quartoE os gestos que faz quando ningum pode ver!No saber tudo isto ignorar tudo, raiva, raiva que como uma febre e um cio e uma fomeMe pe a magro o rosto e me agita s vezes as mosEm crispaes absurdas em pleno meio das turbasNas ruas cheias de encontres!

Ah, e a gente ordinria e suja, que parece sempre a mesma,Que emprega palavres como palavras usuais,Cujos filhos roubam s portas das merceariasE cujas filhas aos oito anos e eu acho isto belo e amo-o! Masturbam homens de aspecto decente nos vos de escada.A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casaPor vielas quase irreais de estreiteza e podrido.Maravilhosamente gente humana que vive como os cesQue est abaixo de todos os sistemas morais,Para quem nenhuma religio foi feita,Nenhuma arte criada,Nenhuma poltica destinada para eles!Como eu vos amo a todos, porque sois assim,Nem imorais de to baixos que sois, nem bons nem maus,Inatingveis por todos os progressos,Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!

(Na nora do quintal da minha casaO burro anda roda, anda roda,E o mistrio do mundo do tamanho disto.Limpa o suor com o brao, trabalhador descontente.A luz do sol abafa o silncio das esferasE havemos todos de morrer, pinheirais sombrios ao crepsculo,Pinheirais onde a minha infncia era outra coisaDo que eu sou hoje...)

Mas, ah outra vez a raiva mecnica constante!Outra vez a obsesso movimentada dos nibus.E outra vez a fria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboiosDe todas as partes do mundo,De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios,Que a estas horas esto levantando ferro ou afastando-se das docas. ferro, ao, alumnio, chapas de ferro ondulado! cais, portos, comboios, guindastes, rebocadores!

Eh-l grandes desastres de comboios!Eh-l desabamentos de galerias de minas!Eh-l naufrgios deliciosos dos grandes transatlnticos!Eh-l-h revolues aqui, ali, acol,Alteraes de constituies, guerras, tratados, invases,Rudo, injustias, violncias, e talvez para breve o fim,A grande invaso dos brbaros amarelos pela Europa,E outro Sol no novo Horizonte!

Que importa tudo isto, mas que importa tudo istoAo flgido e rubro rudo contemporneo,Ao rudo cruel e delicioso da civilizao de hoje?Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,O Momento estridentemente ruidoso e mecnico,O Momento dinmico passagem de todas as bacantesDo ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.

Eia comboios, eia pontes, eia hotis hora do jantar,Eia aparelhos de todas as espcies, frreos, brutos, mnimos, Instrumentos de preciso, aparelhos de triturar, de cavar,Engenhos brocas, mquinas rotativas!

Eia! eia! eia!Eia electricidade, nervos doentes da Matria!Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metlica do Inconsciente!Eia tneis, eia canais, Panam, Kiel, Suez!Eia todo o passado dentro do presente!Eia todo o futuro j dentro de ns! eia!Eia! eia! eia!Frutos de ferro e til da rvore-fbrica cosmopolita!Eia! eia! eia! eia-h--!Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.Engatam-me em todos os comboios.Iam-me em todos os cais.Giro dentro das hlices de todos os navios.Eia! eia-h! eia!Eia! sou o calor mecnico e a electricidade!

Eia! e osrailse as casas de mquinas e a Europa!Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, mquinas a trabalhar eia!

Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-l!

Hup-l, hup-l, hup-l-h, hup-l!H-la! He-h! H-o-o-o-o!Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!

Ah no ser eu toda a gente e toda a parte!

Londres, 1914 Junho.1. Releia a primeira estrofe. 1.1. Caraterize o ambiente em que o sujeito potico se situa. 1.2. Explicite a relao que ele mantm com a realidade que o cerca.

2. Atente, agora, nas estrofes 2 a 4.2.1. Procure, na segunda estrofe, marcas do "estado febril" que o sujeito potico anunciara. 2.2. Explicite as razes que esto na origem desse delrio.2.3. Prove, com passagens do poema, que todos os sentidos concorrem para esse estado de alucinao.2.4. Evidencie o valor expressivo das aliteraes (repetio de sons) presentes nos versos 16 e 24-25.2.5. Explique, pelas suas prprias palavras, os versos em que o sujeito potico exalta a abolio das fronteiras entre passado, presente e futuro.2.7. Interprete os desejos expressos pelo sujeito potico nas exclamaes da quarta estrofe.

3. A partir da oitava e at penltima estrofe, retoma-se o ritmo alucinante que tinha sido interrompido. 3.1. Demonstre que o referido ritmo se desenvolve numa gradao crescente. 3.2. Assinale os versos em que o sujeito potico refere aspetos negativos da civilizao moderna.

4. Comente o ttulo do poema e relacione-o com a cultura do excesso to cara aos sensacionistas. Deve ter em conta a definio de "ode e o significado do adjetivo "triunfal".

_________________________________________________________________________Nota: ODE - Poema lrico cujas estrofes so simtricas (versos possuem a mesma medida); possui um carter entusistico, alegre e animador. Poema lrico destinado ao canto e entoado entre os antigos gregos.