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A CRÍTICA E AS ARTES dossiê 41 número 1 volume 1 maio 2013 celeuma tales a.m. ab’sáber discute os traços conservadores da modernidade brasileira 1.HIPÓTESE DE FUNDO O Brasil é país moderno por excelência. Mas este espaço social tão particular adentrou de fato a modernidade com dois grandes atravessamentos não modernos, que compõem tanto a sua estrutura econômica original quanto a sua lógica político, simbólica e cultural, mais profunda. Trata-se da escravidão, e sua economia eminentemente rural, mas global, e da origem política institucional com um específico ancien règime, atrasado, ibérico português. Originalmente e durante praticamente todo o século XIX, o século da explosão industrial europeia e americana, e sua ideologia do progresso imanente, o Brasil foi de fato um Império Constitucional de economia rural escravista. Em relação à medida externa, dada necessariamente pelo lugar do país nos fluxos das trocas globais, estas duas forças que representaram os móveis maiores da fundação do espaço nacional tropical póscolonial, são forças simplesmente reacionárias, explicitamente não modernas, cuja organicidade é a própria conservação de seus princípios, marcados por um outro plano de nacionalidade. E em relação ao desenvolvimento capitalista mais geral, pelo atraso. Trata-se de forças culturais de conservação de estruturas tradicionais, e não de transformação, de destruição e de criação, como era a dinâmica mais ampla da própria modernidade. EXCURSO O movimento de grande duração que inscreveu o Brasil e os demais países americanos na história mais ampla da modernidade, de modo a estabelecer no descobrimento do espaço colonial e do novo espaço simbólico americano um dos verdadeiros fundamentos da experiência e do conceito da ordem moderna em expansão, costuma nos iludir a respeito do estatuto por vezes travado, por vezes fortemente regressivo, em grande medida conservador, de uma vida social contraditória de um modoespecífico, e que em grande medida regula a pulsação da experiência da cultura entre nós. Somos tradicionalmente condenados à modernidade, de fato e por ideologia. A natureza atravessada de iberismo, catolicismo, patriarcalismo, clientelismo e elitismo exclusivista, com espaço público universal simplesmente inexistente, que fundou de fato a nação brasileira, em um processo sucessivo de marcas afirmativas e retardamentos efetivos em sua outra experiência de modernidade política e CULTURA MODERNA E CAMPO CONSERVADOR NO BRASIL

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    tales a.m. absber discute os traos conservadores da modernidade brasileira

    1.HIPTESE DE FUNDO

    O Brasil pas moderno por excelncia. Mas este espao social to particular adentrou de fato a modernidade com dois grandes atravessamentos no modernos, que compem tanto a sua estrutura econmica original quanto a sua lgica poltico, simblica e cultural, mais profunda. Trata-se da escravido, e sua economia eminentemente rural, mas global, e da origem poltica institucional com um especfico ancien rgime, atrasado, ibrico portugus. Originalmente e durante praticamente todo o sculo XIX, o sculo da exploso industrial europeia e americana, e sua ideologia do progresso imanente, o Brasil foi de fato um Imprio Constitucional de economia rural escravista. Em relao medida externa, dada necessariamente pelo lugar do pas nos fluxos das trocas globais, estas duas foras que representaram os mveis maiores da fundao do espao nacional tropical pscolonial, so foras simplesmente reacionrias, explicitamente no modernas, cuja organicidade a prpria conservao de seus princpios, marcados por um outro plano de nacionalidade. E em relao ao desenvolvimento capitalista mais geral, pelo atraso. Trata-se de foras culturais de conservao de estruturas tradicionais, e no de transformao, de destruio e de criao, como era a dinmica mais ampla da prpria modernidade.

    EXCURSO

    O movimento de grande durao que inscreveu o Brasil e os demais pases americanos na histria mais ampla da modernidade, de modo a estabelecer no descobrimento do espao colonial e do novo espao simblico americano um dos verdadeiros fundamentos da experincia e do conceito da ordem moderna em expanso, costuma nos iludir a respeito do estatuto por vezes travado, por vezes fortemente regressivo, em grande medida conservador, de uma vida social contraditria de um modoespecfico, e que em grande medida regula a pulsao da experincia da cultura entre ns.

    Somos tradicionalmente condenados modernidade, de fato e por ideologia. A natureza atravessada de iberismo, catolicismo, patriarcalismo, clientelismo e elitismo exclusivista, com espao pblico universal simplesmente inexistente, que fundou de fato a nao brasileira, em um processo sucessivo de marcas afirmativas e retardamentos efetivos em sua outra experincia de modernidade poltica e

    cultura moderna e campo conservador no brasil

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    econmica seu mercado internacionalizado com mo-de-obra escrava e uma mnima casta de homens brasileiros livres costuma ser comumente esquecida ao se dar nome cultura por estas bandas, frente aos princpios mais dignos e imaginariamente excitantes de uma modernidade compulsria, que deveria se realizar mesmo que a golpes de machado imaginrios.

    O fato, de durao de quatrocentos anos, de termos entrado e nos posicionado no processo da modernidade ocidental pela porta de trs da escravido de massas dos capitalismo mercantil do sculos XVII e XVIII, matriz radical e pregnante geradora de um milho de formas do atraso em nosso espao social real como, ao seu tempo, Joaquim Nabuco j apontou com preciso costuma ser evitado com sistema quando nos aproximamos da cultura, e o seu nome, entre ns. Tal cuidado contnuo, sintoma simblico e social primeiro, para que tentemos, com mais ou menos eficcia, nos elevar da tradicional descontinuidade de densidade de problemas significativamente modernos, de modo a que se possam produzir simulacros desejados da ordem da integrao social das massas e do ganho de democracia simblica e material, o que, at muito recentemente no Brasil no passava de iluso histrica, magicamente autorrealizada. No entanto, no plano da cultura e da arte, lugar imaginrio por excelncia, durante muito, e de muitos modos, o Brasil podia no ser o Brasil, o que era um modo muito prprio de ser o Brasil.

    Durante muito tempo o verdadeiro problema moderno brasileiro foi o terror ocidental colonial deixado de herana a uma nao, moderna, mas que mal se diferenciava das marcas de sua formao tambm radicalmente exteriorizada. Todavia, simultaneamente e no plano da cultura, era exatamente este ponto o que de fato no poderia ser dito. O elogio de uma elite cultural escravido moderna, como ela aparece na obra e no posicionamento poltico explcito de um Jos de Alencar, por exemplo, desconsiderava amplamente o processo propriamente moderno central e sua produtividade orgnica, da soluo de compromisso instvel contratada entre as classes sociais, de onde emergiu, j no sculo XIX, a vanguarda esttica antiburguesa europeia.

    Noutra via, o precoce eu tambm j fui brasileiro, j fui moreno como vocs, do modernista de segunda gerao Carlos Drummond de Andrade, certamente indicava saudvel liberdade para a desidentificao de um excesso ideolgico que h muito sobrecarregava o espao da ao e do pensamento com um nacionalismo compensatrio e de longa durao, advindo do romantismo pastoral, decoroso e alegorizante da criao de um espao nacional praticamente do nada, durante o longo e lento sculo Imperial brasileiro e, no entanto, tal visada livre e superior do homem urbano do sculo XX sinalizava tambm a facilidade da reverso imediata a um cosmopolitismo igualmente mgico e positivo, o transoceanismo congnito

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    e constante prprio de nossa posio perifrica e retardatria, de um espao social reflexo, na noo precisa de Paulo Duarte.

    Oscilando entre as comoes de singularidade e identidade alucinada de uma vida autocne e por subtrao da cultura nacional, de elite de violenta nobreza escravocrata, e uma internacionalizao redentora e esvaziadora da conscincia prpria do tempo e do lugar, de uma prpria dialtica particular da modernidade, seguia grande parte do impulso cultural da modernidade singular do pas luso-tropical, de raz escravista. Da a concentrao mxima dos dois polos da equao na ideia precisa de estrangeiros em nossa prpria terra de Srgio Buarque de Holanda, e seu complemento dialtico avanado, e ainda mais perfeito, da ordem de uma antropofagia negativa, do oscilamos constantemente entre no ser e ser o outro, da dialtica rarefeita de Paulo Emlio Salles Gomes, snteses conceituais crticas do sculo XX do que arduamente se conquistou na vida da melhor experincia esttica por estas paragens, a partir da radicalidade machadiana e do agiornamento dialtico modernista naquilo que ele conheceu de mais radical.

    Por outro lado, e em outra chave dos mesmos motivos, Glauber Rocha podia iniciar com toda preciso a sua reflexo profunda sobre o golpe de 1964 com a imagem do encontro alegrico do nobre portugus de carnaval, com o ndio autcne desenraizado e com o negro escravo, na praia e no sol do Brasil, e, ainda em 1967, na obra-prima de ampla e longa durao que foi Terra em Transe o sentido do presente o do futuro conservadores brasileiros, o golpe de 1964 e a configurao autoritria de nosso capitalismo sempre incompleto, se sobrepunha amplamente imagem histrica onipresente da fundao ibrica escravista brasileira. Uma leitura do andamento da histria, bem realizada pela prpria forma do filme, que por estas bandas no adentramos a ideia de linearidade do progresso abstrato, prpria do mundo central, mas habitamos uma forma de circularidade histrica, em que, nos momentos decisivos, o passado que se impe ao presente, e no o futuro.

    Tal imagem dialtica, alegoria modernista clssica, raz do Brasil, que alcanava agora o cinema que finalmente alcanava a prpria revoluo modernista brasileira, era simplesmente, naquele conjuntura de regresso histrica produtiva, uma imagem da verdade. A crise de radical modernidade, signo de um momento decisivo na histria do presente e da guerra fria dos anos de 1950 e 60, que decidia o destino da humanidade no sculo XX avanado, desaguava por estas bandas na simples reafirmao da clivagem social mais radical, cujas origens mais singelas e puras, segundo o filme, recuavam fundao do escravismo brasileiro e do sistema escravista do Antlntico Sul, que uniu Portugal, frica e Brasil, nos sculos XVII e XVIII, aproximando, como Luiz Felipe de Alencastro demonstrou, mais a Bahia e Pernambuco de Moambique e de Angola do que de

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    So Paulo. E o artista, atento densidade do fato histrico de superfcie, reconhece a profundidade estrutural de um processo de violncia especial da modernidade, chamado Brasil, que simplesmente no passava.

    certo que existe uma forte leitura da ordem da cultura entre ns que busca sempre sintonizar o momento de ponta de uma possvel vanguarda artstica, que tenha se autonomizado e se tornado autoconsciente, mais ou menos como acabei de fazer com Glauber Rocha, o momento em que, de modo particular, poderamos igualar os problemas de forma e vida do esprito de uma ordem central que, no imenso das vezes, representa verdadeira medida e referncia para a cultura e a sociedade materialmente atrasada, comumente ultrapassada. De par com o esforo menos excitante e no fetichista de estabelecer o solo rspido e por vezes rebaixado de uma experincia histrica traduzida em cultura e arte muitas vezes acanhada, pouco efetiva formalmente, reflexa e incompleta em relao s prprias ms pretenses de nao inserida no processo ocidental, existe um verdadeiro movimento positivo, mesmo que abstrato, de afirmao de um ltimo gesto ou grito de uma modernidade inevitvel, redimida na experincia isolada de uma soluo de ponta, capaz de imantar e contaminar a sabida e recalcitrante descontinuidade produtiva e formal do todo. O que no processo central se deu de fato como o embate entre modernizao real controlada e modernismo crtico de vanguarda, entre ns se deu em um movimento de trs polos conflitantes, entre modernizao, modernismo de superfcie e forte reao conservadora, tambm sempre conservada.

    Nesta vertente das coisas de cultura buscamos tambm algo da redeno social a golpes de gnios, que isoladamente, verdadeiramente, projetam uma civilizao que simplesmente no se confirma ao redor. Embora paradoxalmente tenha chegado a providenciar os elementos de sua formao, o processo sempre enigmtico da formao do gnio e do artista completo no panorama esmaecido de uma realidade empobrecida, marcada pela continuidade do pior. Assim costumamos sempre resgatar nossos pontos altos, sejam eles literrios, artsticos, cinematogrficos, musicais, como modo de invocar, a cada soluo histrica alcanada, a imagem de um todo potencialmente redimido no fato esttico simblico do artista superior ter vencido o Brasil, no gesto de norma elevada e costumeiramente de alta modernidade que aparece por aqui de tempos em tempos, e que deveria servir ao todo da cultura, sistematicamente em dficit exemplar.

    E no entanto, na maioria das vezes, tal esforo histrico que pertence ao todo mal serve ao prpria artista criador, na sua figurao fragmentria de uma superao que gira em falso de um sistema cultural constantemente inslito, em sua Aufhebung de cmera, particular.

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    Com exceo dos campos de cultura popular que se desenvolveram parte e apesar das distores autoritrias e antipopulares mais verdadeiras das elites nacionais, a famosa aristocracia do nada de Paulo Emlio Salles Gomes, em uma nomeao prpria do tempo em que o intelectual pblico ainda confrontava o campo conservador brasileiro como o da msica popular, com destaque para a especial experincia negra e favelada do samba clssico brasileiro, e seu rebatimento no corpo ertico da dana, que fascinou a vanguarda radical de um Hlio Oiticica, e o do futebol, em que Pel e Garrincha representaram o auge de um universo tcnico formado que estabeleceu uma historia contnua, de alto repertrio e imanente dos pobres que seguiu relativamente constante do final da dcada de 1930 at o presente, em muitas das demais artes e belas artes, as herdadas do processo europeu, o Brasil pode produzir, ao longo do sculo XIX e XX, gnios particulares, em momentos de pico de grande amplitude de vista histrica e de radical soluo formal, de interesse universal. E, no entanto, na maioria das vezes tais gestos fortes eram ligados a campos fragilizados, para no falarmos do campo geral da cultura no integra, que no repercutia a obra de seus autores maiores como experincia geral de transformao, ou mesmo no nvel desejado de tcnica do tempo.

    Curiosamente, neste tipo de dialtica brasileira entre a vida longa e a arte breve, a cultura desarticulada e repetitiva e o artista com seu momento de universal modernidade, o impacto maior do instante tropicalista de fins dos anos de 1960, movimento esttico histrico que tocou o nervo mais amplo de seu tempo, se deu pela recuperao estratgica, de longa durao, do modernismo dialtico ento bastante isolado de Oswald de Andrade, e da repercusso da obra forte de alguns jovens gnios de classe mdia, diante do todo radicalmente clivado e do controle e do fechamento do espao pblico estabelecido pela ditadura militar conservadora, para uma sociedade que descarrilava a tnue tentativa histrica, de pelo menos trinta anos, de finalmente se configurar atravs de uma plena revoluo moderna e modernizadora, derrotada. Foi a tomada do todo pelo poder arcassimo que insistia em definir os rumos conservadores da nao, articulado a um capitalismo de integrao social via mercado, ento desconhecido, que destacou a fora de um movimento de grandes qualidades de vanguarda e de leitura mais ampla, mesmo que alegrica, das contradies do pas, no tempo e no espao contemporneos ao seu prprio gesto. De modo que a fora mesma de totalizao do movimento, que visava conceber-se como comunicao de massa no momento da emergncia da unificao da experincia de massas, padronizada pela televiso, foi impulsionada pelo todo, voltado francamente fora e manuteno de um pas no integrado. Terra em transe.

    O fragmento de contradio tropicalista se completava, em uma estranha

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    dialtica, na fora decisiva do inimigo histrico de qualquer modernizao consequentemente democrtica no pas, e, exatamente como Oswald de Andrade realizou nas vsperas da revoluo 1930, se tirava a mxima fora crtica do lugar escandaloso, e de visada dialtica, da prpria mais ampla derrota histrica...

    Noutras palavras, o campo conservador impulsionou a expanso, que no se tornou hegemnica, mas passou a marcar o pulso da cultura no momento da universalizao da comunicao de massas no pas, do prprio campo crtico mais radical nacional, naquele momento histrico raramente contracultural em relao ao Brasil, sempre movido a uma modernidade edificante. E por isso, em relao dialtica com a prpria derrota histrica, tais artistas acabaram por contaminar o todo fraturado, a vida social mais ampla, que concebiam na prpria tcnica de sua forma tpica, o discurso alegrico tcnico arcaico e ertico tropicalista.

    Nossa tentativa constante de produzir uma induo de continuidade em uma cultura at ontem descontnua, e de experincia social clivada muitas vezes, no nos permitiu uma leitura acurada da natureza do campo conservador brasileiro, a verdadeira fora ativa de integrao e simultnea no integrao, progresso e simultneo atraso irredimido, esprito nacional e simultaneamente dependncia internacional das formas do capital de cada tempo, de cada ciclo, econmico, de reedio das mazelas nacionais. No estudamos suficientemente nossas formas de conservar o Brasil no seu passado constantemente modernizado, que nunca passa, os sistemas de concepo de mundo e histria que mais ou menos sistematicamente mantiveram o pas sobre o registro da clivagem social mais radical. Qual cultura moderna brasileira foi a que conviveu com tal natureza de modernizao constante sem modernidade?

    SITUAO CONTEMPORNEA

    No espao histrico de longa durao do Brasil o mercado antecedeu em larga escala o Estado nacional e o Estado nacional antecedeu fortemente nao moderna socialmente integrada. Assim no surpresa a construo poltica hegemnica do presente de uma modernizao de mercado muito acelerada, com democracia efetivamente incompleta.

    Vivemos de fato um deslocamento do lugar de atraso histrico, um poderoso agiornamento ideolgico, em uma sincronizao simblica com o centro da experincia capitalista, do ponto de vista da experincia de um mercado mundial aberto, prprio do consumidor mundial, da cultura globalizada de mercado, contudo, no nosso caso, sem completar os elementos fundamentais prprios integrao de uma nao moderna: educao pblica e de massas minimante qualificada, direito cidade e a moradia dignas, sade universal, direitos humanos efetivos no conspurcados, imputabilidade para a elite dirigente e econmica e

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    autonomia crtica do indivduo que possa alcanar e definir mesmo o estatuto do espao republicano.

    Vivemos hoje a situao de um Estado articulado entre promover desenvolvimento econmico rduo, pela presena constante do atraso cientfico e tecnolgico, bem como pela ausncia de uma cultura local mais profunda de inovao de mercado, de investimento e de formao de capitais criativos locais aps a radical financeirizao neoliberal dos anos de 1990 e iludir constantemente as demandas sociais ainda bsicas em um processo de adiamento, de suspenso infinita dos direitos, que devem ser resolvidos em algum pacto simblico ideolgico entre a vida popular e o poder. Neste ponto os mecanismos de controle social e de iluso espetacular da indstria cultural completam o processo de suspenso ao infinito, ideologia espetacular, prprio do novo Estado brasileiro: o modo brasileiro de funcionamento dos aparelhos ideolgicos de Estado. Evidentemente sem prejuzo do Brasil ser o pas em que mais morrem pessoas assassinadas no mundo, com a expressiva participao da polcia neste verdadeiro extermnio normal local, deslocado e concentrado na vida dos muito pobres e jovens.

    Com o governo de esquerda se completou uma soluo simblica orgnica para esta simulao de poltica, realizada no desejo de poder, arcaico, inclusive nas classes mdias e pobres envolvidos, da transferncia carismtica ao corpo do lder amado. Se completa o crculo infernal, psmoderno ao modo local, da simulao da poltica.

    O problema talvez seja verificarmos se tambm no temos, diante da cultura totalitria do desejo de mercado, da fragilidade e da simulao da poltica, uma verdadeira simulao da cultura, que se tornou em grande medida muito superficial e cnica. Assim no campo da cultura, e seu contemporneo potencial conservador brasileiro, podemos circunscrever seis tipos de mundos diferentes, que criam o circulo infernal de uma sociedade ainda atravessada por radicais arcasmos e que funciona, que funciona como sociedade contempornea:

    a) Uma cultura de massas baixa, que mal serve para as negociaes ps-modernas de tipo americano. Inclusive porque h ciso ainda radical entre elite cultural orientada pelo grande plano cultural do ocidente, sempre atrasado e em falso por estas bandas, e a vida popular, orientada por sua prpria histria de violncias e solues simblicas particulares.

    b) Uma cultura de massas que negocia seu trnsito em todas as esferas e classes da vida nacional: algo do samba clssico de da msica popular, cujos artistas so finalmente transformados em gnios da raa e, principalmente, o futebol.

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    Esta espcie de cultura mdia brasileira o lugar do novo pacto de conciliao e celebrao das condies nacionais do presente. Neste ponto se inscrevem os portais e redes sociais da internet, e o mundo da indstria cultural pesada da teledramaturgia. O correlato prtico desta cultura generalizao da cultura como consumo.

    c) Uma cultura de elite, cult, ainda reflexa, sempre enquadrada pelos grandes movimentos centrais, no cinema, de padro irrealizvel, mas tambm em vrios aspectos das artes plsticas, da literatura e do consumo cultural contemporneo.

    d) A tentativa de produo, com um olho no processo central, e outro na histria local, em uma espcie de modernismo retardatrio e colocado em cheque pelo nvel atual de produtividade do pacto arte fetichismo dinheiro, da grande business art central, de uma visada prpria para o estado fragmentrio, banalizado, utilitarista e sem dimenso da nossa prpria cultura. Uma tentativa de encetar uma visada prpria, no mais escandalosamente antropofgica, ou tropicalista marginal, mas sim elevada, um pouco em falso, e melanclica, dado o reconhecimento da distncia constante frente a produtividade capitalista central, apenas impossvel por estas bandas, cultura que parece chegar agora a um nvel de mercado que os Estados Unidos conheceu nos anos de 1950.

    e) A cultura de circulao de imagens de ego, de propaganda, em correspondncia direta com a mercadoria, do balco de ofertas mistificadores do si mesmo, no espao pblico rebaixado da internet, ou mesmo em espaos do jornalismo rebaixado at este ponto. Ali se ofertam sujeitos para tudo, e o espao da circulao da mercadoria tambm se realiza simultaneamente, de modo semelhante ao da circulao das pessoas.

    f) Em meio a isto tudo uma cultura crtica, na universidade e em novos dispositivos culturais curiosos e elegantes, novas revistas e institutos, para dar voz aos cultos entre si, que tentam dar alguma dimenso ao pensamento entre ns, considerando o enquadramento da crtica pela indstria cultural de jornais e revistas totalmente voltados para a cultura da reproduo e circulao estrita da mercadoria e da sua autoimagem de propaganda. Esta cultura de fato mnima, acabando por funcionar como ilustrao de elite.

    Por fim, o intelectual pblico moderno, entre ns convocado historicamente pelo impulso profundo de construir a nao ao mesmo tempo que critica-la, parece ter se tornado uma figura plenamente dispensvel em tal ordem industrial, mas rebaixada de modo prprio, das coisas locais. Do mesmo modo que a poltica se aproxima perigosamente da determinao estrita dos grandes mercados globais, a cultura se realiza na identidade cada vez mais total com o espao simplificado

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    da plena imagem e da circulao em grande escala da mercadoria. Mas, evidentemente, teremos um espao de simulacro para uma cultura elevada e at mesmo para uma cultura crtica entre ns.

    Evidentemente sempre teremos esforos de artistas, grupos e obras de arte isoladas, com mnimos sistemas culturais correlatos, mas fracos, como foram os nossos Machado, Oswald, Drummond, Niemeyer, Joo Gilberto, Glauber, Hlio, para sinalizar o momento atual do vnculo Brasil mundo, e para trazer o mundo at a nossa experincia histrica das coisas, mesmo que a contrapelo de toda verdadeira violncia incorporada e desrealizada nas conscincias, mais prpria da nao dependente e humanamente atrasada.

    tales a.m. absber psicanalista e professor de filosofia da psicanlise na Universidade Federal de So Paulo (Unifesp), autor de, entre outros, O sonhar restaurado (Editora 34) e Lulismo, carisma pop e cultura anticrtica (Hedra).