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    Quando 0 lugar resiste ao espacoColonialidade. modernidade eprocessos de territorializacao

    Andrea Zhouripo.. = ' ~ ( = RaqueZ Oliveira

    E quem conta como "nos na minha propria retorica?Que identidades poderiam sustentar um mito politico tao potente charnado

    "nos e 0que poderia motivar uma adesao a essa coletividade?

    Haraway, 1985, p. 72-73

    Para pensar os conflitos ambientaiso debate sobre as dicotomias sujeito-objeto, natureza-cultura, objetiv

    dade-subjetividade, entre outras quealimentaram asreflexoes epistemologicadesde os anos 1960, encontrou suporte nas vertentes pos-estruturalistas,feministas e ambientalistas, as quais, por uma hermeneutica dialetica, simutaneamente influenciaram e foram influenciadas pelos movirnentos sociaque eclodiam na Europa naquele contexto.

    Nos anos 1980, novos desdobramentos e atualizacoes desse debatpermearam a discussao sobre 0pos-moderno nas ciencias sociais, em quepresenca do autor, a autoridade etnografica, 0retorno da etnicidade, enfimforam charnados a reflexao (Clifford, 1988; Clifford; Marcus, 1986; Rosaldo1989, entre outros). No campo da antropologia feminista, Donna Harawa1985) afirmava 0carater parcial e localizado de todo 0conhecimento, sreferindo as epistemologias objetivistas como "a habilidade divina de ve

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    Nasociologia, Boaventura de Sousa Santos (1987) elaborou uma criticsao paradigma cientifico dominante na modernidade, chamando a si a tarefsde articular urn novo modelo para aproducao do conhecimento que reintrc-duzisse 0sujeito na cena. Aoafirmar que "0objeto e acontinuacao do sujeitcpor outros meios", Santos propos urn resgate do senso comum - pragmaticc.localizado, baseado no lugar e fundamentado na experiencia, aomesmo tempeem que comprometido com 0 conhecimento cientifico. Urn senso comurn.enfim, nao pravinciano, que possibilitasse a "ruptura do pensamento abissa.composto por modemidade e ernancipacao deurn lado e, de outro lado, explo-racao epoder" (Santos, 2009).

    Recorremos as observacoes de Haraway e Santos sobre a producacdo conhecimento como suporte para pensarmos a categoria de conflitosambientais e 0 estatuto do ambientalismo na atualidade.! Com efeito, taicomo Haraway (1985) argumentou a impossibilidade da existencia de urnmovimento feminista unico e totalizante, a ternatica dos conflitos ambien-tais parece apontar, de modo semelhante, a inviabilidade das tentativas queprocuram forjar essa mesma unidade para a constituicao de urn movimentoambientalista - no singular. .Iana decada de 1980, Haraway sublinhara que ascategorias de genero, raca e classe social nao podiam ser essencializadas. Aocontrario, apareciam como elementos operativos na dinamica politica, comocategorias construidas e contestadas no ambito de diversas praticas sociais.Nessa perspectiva, genera, raca e consciencia declasse eram vistos comopro-dutos ou respostas as experiencias hist6ricas deopressao pelopatriarcalismo,o colonialismo e0 capitalismo (Haraway, 1985). A autora destacava, assim,o carater politico de tais identidades, sua natureza pracessual e hist6rica e,portanto, potencialmente fragmentaria.

    Como consequencia, 0 dissenso e a fragmentacao no interior de taiscategorias demobilizacao aparecem como efeitos pr6prios da dinamica poli-tiea e nao como desvios ao percurso natural de constituicao de uma unidadecapaz de catalisar e subtrair as diferencas em prol da conformidade de senti-mentos, opinioes, prajetos eperspectivas. Segundo Haraway (1985, p. 73), 0encobrimento detais tendencias dispersivas serviria somente para escamotearas diferencas de poder internas a cada categoria: "Dolorosa fragrnentacaoentre feministas (para nao dizer entre muIheres) ao longo de cada linha deruptura possivel tem feito conceito de mulher elusivo, uma desculpa paraamatriz de dorninacoes das mulheres entre si."2

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    Ouurido 0 lugar reslslp .10r-spaco 441

    vozes, antes dispersas, parece continuamente interrogado pela persistenciada polifonia e pelo carater irredutivel, nada residual, das assirnetrias de po-der que acompanham a disserninacao dessas vozes presentes na diversidadedas lutas que emergem nos fugares. Se no ferninismo ha a impossibilidade deconvergir numa mesma etiqueta mulheres de diferentes classes e percursosetnicos e raciais, no campo arnbiental e similarrnente enganoso confundir 0chamado ambientalismo da ailuencia (Inglehart, 1977) com 0 ambientalismod os p ob re s (Martinez-Alier, 1999; 2005).

    Em que pesem as diferencas e fragrnentacoes irredutiveis, todavia,permanecem tentativas de despolitizacao desses processos, urn movimen toem direcao a sua essencializacao, tornando necessaria a construcao de urnconsenso e de uma unidade reguladora e disciplinadora das diferencas nointerior dessas potencias antes emancipadoras. No caso do ambientalismo,isso significou a ascensao da atual vertente hegernonica da modernizacaoecol6gica (Blowers, 1997). au seja, promoveu-se uma "ecologia do capitalis-mo" (Dupuy, 1980), com solucocs tecnicas e mercantis, simultaneamente aoapagamento dos processes espoliativos que ainda estao em curso nos lugares.Sao justamente esses processos que trazern a tona a necessidade de se pensaro estatuto do lugar no contexto da globalizacao, dos movimentos socials edo pensamento critico, relacionando-o as abordagens sobre os conflitos am-bientais aqui propostas.

    Nas pr6ximas secces, apresentarernos uma reflexao sobre as catego-rias de lugar, territorio e meio ambiente, colocando em questao formas naogIobocentricas e anticoloniais de prornocao do lugar, num esforco de com-preensao do movirnento de resistencia as barragens hidreletricas no Vale doJequitinhonha, Minas Gerais.

    Lugar, territ6rio e meio ambienteAo avaliar os aspectos ressaltados por Boaventura Sousa Santos nos

    anos 1980, Arturo Escobar (2003) entende que 0 apelo a construcao de urnsenso cornum nao provinciano e 0 que tern tido menos avanco na reflexaoacadernica, ao contrario do que ocorre no debate entre os atores nao acaderni-cos, por exemplo, no ambito dos movimentos sociais. De acordo com Escobar(2003, p. 641), uma razao para isso poderia estar na "reideologizacao domodelo dominante" - ou seja, a era do mercado total ~ que cria uma ordemglobal que nao somente favorece a elite mundial a custa dos pobres e do meioambiente, mas tam bern renorrnatiza as instituicoes acadernicas por todo 0mundo. Nesse sentido, as agendas mais convencionais parecem dorninar 0

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    cenario academico no contexte atual. Se nos anos 1980 as ciencias sociaispareciam impregnar 0 campo das ciencias naturais com novas ideias, hojeocorreria 0processo inverso. "Metaforas da complexidade, das redes e teiasparecem impregnar as ciencias naturais" (Escobar, 2003, p. 642) enquanto asdos numeros e equacoes maternaticas invadem as ciencias sociais.

    Nesse sentido, alguns autores vern propondo uma ruptura paradigma-tica para a reflexao sobre 0 que denominam como formas globocentricas dever 0mundo. Nesse novo paradigma, as categorias de lugar e territorialidadeganham novos contornos e tonalidades ao se colocarem como contrapontonao provinciano eemancipador as categorias colonizantes/colonizadoras for-jadas apartir depretensas posicoes globais (por exemplo, desenvolvimentosustentavel e governan~a ambiental). Quais significados e contribuicoesessa discussao nos apresenta para 0 debate sobre desenvolvimento e meioambiente hoje?

    Essenovo conjunto de reflexoes denuncia as categorias dopensamentoque aprisionam 0olhar apartir de urn referencial damodernidade - que seriaeurocentrico, global emasculino, centrado nos processosdocapital, doespa

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    Com efeito, os limites da critica pos-moderna se revelam pela enfasnas perspectivas da mobilidade (fluxos, disjuncoes etc.) e muitas vezes d"pos-materialismo". Demaneira distinta, a critica doprograma colonialidade-modernidade (Quijano, 2005; Mignolo, 2005; Lander, 2005)3 nao ignoro fato de que a afluencia e 0movimento continuo de alguns grupos sociaimplica historicarnente a expropriacao, a deslocalizacao cornpulsoria erespectiva localizacao de outros. Como argumentaram Chesnais e Serfa(2003), as desdobramentos espaciais das atividades industriais intensivas nconsumo derecursos produzem aampliacao dos riscos aos quais se encontramsubmetidos os grupos sociais mais vulneraveis,

    A mobilidade do capital desterritorializa, por urn lado, ao promovedeslocamentos compulsorios resultantes da implantacao de inumeros projetos de desenvolvimento. Por outro lado, ela tambem produz localizacoeespecialmente visiveis na concretude das estruturas de exploracao intensivde recursos que se multiplicam nos paises do SuI (Chesnais; Serfati, 2003as quais produzem como contrapartida a restricao de inumeros grupos aoreassentamentos e seu confinamento em espacos onde permanecem aindmais vulnerabilizados emarginalizados. a controle sobre 0potencial demoblidade edos fluxos coincide, nesses casos, com 0controle sobre os territoriese seus recursos.

    Entretanto, aresistencia centrada nos lugares, comose discutira adiantedemonstra que esses grupos empreendem em suas lutas 0 esforco pardeixarem a condicao passiva que os transforma em objetos dos movimentosde outrem (do capital), passiveis de deslocalizacao e relocalizacao, segundomigracao das vantagens comparativas.

    Adiferenciacao desse potencial demobilidade e as diferencas depodeem relacao aos fluxos emovimentos globais impoem a necessidade de umreflexao sobre a geom etria do poder (Massey, 2000, p. 179) a fim de entendeos p ro ce sso s p ro vin cian os g lo ba is que impedem uma concepcao progressista dlugar. Diferentemente da concepcao que imperava nos anos 1990, 0 lugar jnao aparece como uma categoria residual - 0reino do arcaico, das tradicoe(nao no sentido de Marshall Sahlins), 0 locus da a-historicidade - onde naexistiria mudanca social, tudo e estatico e fixo. ParaMassey (2000), a criticao global - como forca que oprime e explora - so pode ser efetuada a partido local, onde 0conhecimento e possivel e as trincheiras da resistencia estaem curso.

    Essa reflexao nao se opera, contudo, sem 0 estranhamento em relacaas categorias que aprisionam 0olhar numa matriz globocentrica e, por essvia, promovem uma hierarquizacao das coisasglobais para as coisas locais, em

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    ::l~5ENVOLVIMENTO E CONFLITOS AMBIENTAIS

    que a local e visto comoalgoparoquial e menor. Esse sentido hierarquizadornos permite entender 0 lugar central que ocupa hoje 0debate sobre mudan-cas climaticas: tema global por excelencia, uma abstracao que pode envolvervaries atores num pretenso consenso planetaria. Como efeito, as dimens6esdapolitica, das relacoes depoder, do exercicioda diferenca, que se realiza nadimensao do local, restam convenientemente subsumidos.

    Diante do exposto, entendemos a necessidade de se colocar 0 desafio,aurn s6 tempo intelectual epolitico, de resgatar osprocessos locais, incorpo-rando novos marcos e categorias de analise aos processos globais. Assim, daperspectiva que orienta esta reflexao, 0global nao impediria 0sentimento deenraizamento, 0desejo depermanecer no lugar, comasalvaguarda damemo-ria, da identidade e da vontade de se fixar, de criar raizes. Esses sentimentosnao seriam paroquiais e reacionarios por excelencia, Eles tambem apontampara a resistencia ao avarice do espa

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    Muitos processes de territorializacao hoje em curso sao processes deluta pelo significado e peia apropr iacao do meio ambiente (quilombolas,indigenas, vazanteiros, geraizeiros etc) contra a apropriacao global pelocapital, que transforma te rr ito rie s s oc ia i s (Little, 2002) em espacos abstratos,ou seja, lugares em espacos que con tern recursos naturals para a exploracaocapitalista. Entretanto, os grupos sociais sujeitados a desterritorializacao naosao vitimas passivas e expressam outras forrnas de existencia nos lugares.Reivindicam direi to a memoria e a sua reprcducao social. E sao eles que dizemque nem tudo e fadado a virar espaco de apropriacao abstrata pelo capital,conforme discutiremos adiante.

    A defesa do lugar, do enraizamento e da memoria destaca a procurapor autodeterrninacao, a fuga da sujeicao aos movimentos hegemonicosdo capital e a reapropriacao da capac ida de de definir seu proprio destino. Adirecao desses movimentos e contraria a atopia, pois eia insiste em nomearos lugares, em definir-lhes seus usos legitimos, vinculando a sua existenciaa trajetor ia desses grupos. Nao e uma luta pela fixidez dos lugares, mas simpelo poder de definir a direcao da sua mudanca.

    Diferente, portanto, do sentido global de espaco, porque nao se tratade urn espaco a ser transposto, de uma barreira fisica a ser aniquilada pelornovirnento de cornpressao espaco-ternpo, 0 lugar significa aqui 0 resgate dacategoria de espaco como "esteio da identidade", como "suporte do ser nomundo", como "referenciais que tornam os homens sujeitos de seu tempo"(Delgado, 2006, p. 37), poder-se-ia dizer, sujeitos de seu proprio destino.

    Nessa perspectiva, 0 debate sobre os conflitos arnbientais resgata apauta os limites inerentes a categoria "meio ambiente" quando e enfatizadasua potencia catalisadora resultante de uma pretensa crise objetiva e univer-sal, capaz de mobilizar e afluir difcrerrtes projetos e grupos em direcao a urnponto comum. A nocao de conflitos ambientais exige 0estranhamento dosconceitos hegernonicos do pensamen to arnbiental conternporaneo, lideradospelas ideias de desenvolvimento sustentavel e gOllernan~a ambiental, epigrafesdo pretenso consenso mundial e fraterno sobre a "crise do planeta Terra".

    Mapa dos conflitos ambientais:a potencialidade dos lugaresA necessidade de sublinhar os dissensos e a diversidade de projetos

    em curso na sociedade alimenta 0projeto de pesquisa "Mapa dos conflitosambientais no Estado de Minas Gerais'i.>

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    -l46 DESENVOLVIMENTO E CONFLITOS AMBIENTAIS

    Desde 0 inicio de sua colonizacao, 0 territorio mineiro vern sendo palcode intensa atividade economica, produtora de severas transformacoes nas suascondicoes naturais e nas formas sociais de sua apropriacao. A partir do esfor-

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    Quando 0lugar resiste ao espaco 447 iIIIIIIIiI

    no acesso a terra. Na decada de 1980, com 0inicio do "Programa Novo Jequi-tinhonha" desencadear-se-ia a disseminacao de projetos de aproveitamentohidreletrico e irrigacao.

    No caso das comunidades rurais do Medic Jequitinhonha, a exposicaoa essas experiencias hist6ricas continuadas de expropriacao conformou aolongo dos anos "territories de parentesco", modalidades compreendidas naliteratura como "terras de herancas" (Almeida, 2006). Em sua trajet6ria mar-cada pela convivencia com as grandes fazendas criat6rias; pelo embate comprojetos intensivos de exploracao mineral; pelo avanco das monoculturas deeucalipto sobre os terrenos de uso comum e pela atual arneaca de relocacao apartir da implantacao de barragens hidreletricas, esses grupos desenvolveram,ao Iongo de sucessivas geracoes, estrategias particulares para a preservacaode seu patrimonio familiar. As experiencias de confronto com antagonistasem situacoes adversas resuitaram nesse tipo de resistencia cotidiana (Scott,1985) expressa na diversidade das praticas informais de gestae do territo-rio, estas articuladas pelos grupos a partir de seu estoque de conhecimentopratico (Wittgenstein, 1994), costumeiro (Thompson, 1998) corporificado(Bourdieu, 2006) e, necessariamente, localizado (Escobar, 2005). Segundoressaltou Thompson (1998, p. 86): "0 costume e local", sua operacionalidadenao depende do registro exato das normas, mas da renovacao constante dastradicoes orais, Sua vigencia se concretiza na regularidade das praticas locais,na renovacao e na reproducao desse senso prdtico que encontra sua razao deser na tessitura das relacoes locais que compoem 0universo de atuacao dessesgrupos.

    Contudo, para alem da resistencia silenciosa impressa nas formas locaisde gestio dos territ6rios, as experiencias de resistencia desses grupos sao tam-bern marcadas pela acao coletiva de carater politico express a na organizacao ena luta das chamadas unidades de mobilizaaio (Almeida, 1989). Para Almeida(2006), a emergencia de novos movimentos sociais que incorporam a suapauta fatores etnicos, eco16gicose de autodefinicao coletiva esta intimamenterelacionada a esses processos de territorializacao que visam proteger as terrastradicionalmente ocupadas e geridas par modelos particulares de usa cornum,historicamente mantidos sob 0 signa da invisibilidade sociaL

    Tais "territories sociais" (Little, 2002) aparecem, entao, como dominiesespaciais de pertencimento construidos e reconstruidos politicamente nocampo das praticas e da gestae cotidiana de seus recursos, mas tambem nocampo discursivo das mobilizacoes e reivindicacoes que procuram protegere afirmar sua legitimidade nas correlacoes de forca que marcam atualmenteseus confrontos com inumeros projetos de desenvolvimento.

    II::

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    ":'':'6 DESENVOLVIMENTO E CONFLITOS AMBIENTAIS

    Mapear os conflitos ambientais significa, nesse horizonte, mais do quese dedicar a identificacao dos process os objetivos de degradacao e espoliacaodas condicoes naturais. Implica considerar a participacao ativa dos sujeitosno exercicio politico que lhes permite definir, nomear e destacar 0 caraterconflituoso das situacoes que vivenciam no local. Exercicio este que tambernadona 0reconhecimento das fronteiras opositivas desses grupos em relacaoaos sujeitos e projetos que lhes sao antagonicos no que se refere as perspec-tivas de apropriacao do territ6rio. Nesse ponto cabe ainda destacar que osconilitos ambientais se materializam na intersecao de dois dominios distintosde luta social (Acselrad, 2004). 0primeiro dominio se refere ao espaco socialpropriamente dito, em que a distribuicao diferencial dos capitais que estaoem jogo se traduzem em potenciais desiguais para a posse, usa e controledo espaco, A espacializacao das formas sociais de apropriacao dos recursosresultarn, assim, ern situacoes conflitivas em que os usos empreendidos pe-los segmentos dominantes incidem sobre territ6rios e recursos ocupados emobilizados pelos grupos mais vulneriveis. 0segundo dorninio nos remete,por sua vez, a esfera simbolica, ao campo em que se confrontam discursos,sentidos e projetos distintos que disputam legitimidade e reconhecimento.

    Contudo, se dissociados para fins heuristicos, esses process os se mos-tram intimamente conectados. Bourdieu (1993), Pecheux (1997) e Orlandi(1989) ja haviam destacado a associacao que as propriedades do discursomantem com 0 tecido s6cio-hist6rico e, consequentemente, com as relacoesde poder nele vigentes. Considerando que 0 discurso e sempre realizado apartir de c on did ie s d e p ro du ca o especificas associadas aos e fe ito s d as r ela co esde lugar, as estrategias discursivas acionadas pelos agentes ultrapassam 0texto enos remetem tanto ao contexto mais imediato da enunciacao, quantaao espaco social que estrutura as relacoes interdiscursivas (Pecheux, 1997;Orlandi, 1989). E nesse sentido que 0conceito bourdiano de campo se mostrapertinente, pois permite destacar que as posicoes no espaco social configu-ram l uga re s enunc ia ti vo s a partir dos quais as determinacoes ideologicas seinscrevem nos discursos que sao produzidos e que produzem 0proprio campoambiental (Bourdieu, 2002).

    No exemplo que procuramos analisar a seguir - qual seja, a tentativa deanulacao dos lugares a partir da implantacao de barragens hidreletricas -, asdinamicas politicas e culturais desencadeadas revelam a oposicao marcanteentre estrategias discursivas mobilizadas, de urn lado, pelo Setor Eletrico e, deoutro lado, pelos grupos localizados e organizados em funcao da resistencia,

    Em termos gerais, 0 discurso acionado pelo Setor Eletrico expressa avisao dominante do territ6rio como recurso. Essa especie de "utilitarismo

    explo"estrcorna urnvidospropse re-vengemcoletde sseudas

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    11 Leluqtrucregisiva, megcominuno pr

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    explorador da natureza" (Carvalho, 2001) se torna explicita per I D . E : i o d'2sua."estrategia territorial patrimonialista" (Vainer; Araujo, 1990) a qualrsduz acornplexidade e a diversidade das formas locals de irnaginacao do terrrtoxioa um conjunto homogeneo de "propriedades" ou "imoveis' a serern rerno-vidos: "Nao ha populacao, nao ha traba!hadores ou moradores, ha apenasproprietaries. E, nestes termos, 0 deslocamento da populacao se resume ese resolve at raves de uma infinidade de acoes individualizadas de cornpra--venda" (Vainer; Araujo, 1990, p_21)_ Pressuposta a essa visao reside aima-gem de individuos atomizados, imagem esta que obscurece a existencia decoletividades organizadas politicamente em torno da resistencia e da defesade seu territ6rio. Dessa invisibilidade das coletividades e, especialmente, deseu papel de sujeitos politicos resultant a desqualificacao e 0 esvaziamentodas mobilizacoes locais.

    Em contraponto, os segmentos dominados representados pelas comu-nidades atingidas lutam pela aflrrnacao de seus direitos, A formacao dernobilizacoes locais e a reconstrucao do territ6rio colocam em pauta 0esforcodessas populacoes em articular seu problema como urn fato coletivo, de ondeemergem novas identidades politicas. A forca desses significados e a densi-dade das redes de relacoes que se estabelecem no local tornam possivel a (re)construcao do territorio como lugar-espaco de reproducao social e esfera depertencimento que desafia os propositos ordenadores e homogeneizadoresdos Estados-nacao e dos seus projetos de desenvolvimento,

    "Levantar a cabeca e brigar para poder ficar no nossolugar"; a Hidreletrica de Murta e0lugar como resistencia

    :. ,:~

    o projeto Usina Hidreletrica de Murta (UBE Murta) consiste na cons-trucao de um barramento na confluencia dos rios Salinas e Jequitinhonha,regiao do Medic Jequitinhonha. A formacao do reservatorio se destina exclu-sivamente a gerar;:aode energia eletrica, e a potencia instalada prevista e 120megawatts. A irnplantacao desse empreendimento envolve 0 deslocamentocornpulsorio de cerca de 900 familias residentes nas areas rurais sujeitas ainundacao. 0processo de licenciamento teve inicio em 1998 e, desde entao,o projeto reivindica a concessao de Licenca Previa.

    Em 1999, 0 consorcio Murta Energetics S.A deu inicio as chamadas"carnpanhas de negociar;:ao", reconhecendo como interlocutores legitirnossomente as Cornissoes Municipals, estas constituidas por meio de decretospelos prefeitos locais, agregando tarnbern outros representantes das adminis-tracoes municipais. Com essa politica, 0cons6rcio ignorava, deliberadarnente.

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    ()contato dire to com os moradores das areas rurais afetadas pelo ernpreendi-mente. Frente a esse processo, porern, os moradores se organizaram em umacomissao autonorna, autonominada "Comissao de Atingidos pela Barragernde Mur ta", em franca oposicao as "Cornissoes Municipals", Dessa forma, apartir da organizacao de urna comissao propria, as familias iniciavarn sua lu taoDestacava-se, entao, 0 esforco dos "atingidos" para se fazerem reconhecidoscomo agentes politicos, com 0 status de mobilizacao coletiva. Em contraste,as acoes do Setor Eletrico se orientavam para 0esvaziamento das potencia-lidades emergentes no local.

    Com esse intuito, duas estrategias se fizerarn recorrentes, a saber, adesqualificacao da populacao e de sell territorio e 0apagamento nao so dasdiferencas, mas das divergencias em relacao ao projeto. Com efeito, os dis-curses proferidos pelos respresentantcs do consorcio erarn marcados peloaviltamento das formas locais de gestao do territorio e pela depreciacao dosaber que Ihes era constitutivo. Durante a audiencia publica do ernpreendi-mento, destacou 0 superintendente do consorcio:

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    Eu sei que seria muito rnais interessante para as populacoes que elas tivessemdominic, conhecimento daquilo que e feito na terra debs. Assim, poderiamdesenvolver com muito rnais facilidade e potericialidade as suas riquezas, assuas virtudes, em prol da propria comunidade (Audiencia publica realizadana comunidade de Barra cia Salinas, em outubro de 2002). eConforme e possivel obser var, 0 enunciado anterior projeta sobre a

    local a imagem da existencia de urn sujeito desprovido de conhecimento oude dominic sobre 0 territorio que ocupa. 0 verbo conjugado no futuro dopreterite do indicative em seria e poderiam e 0 usa do subjuntivo, em tives-sem, sugerem tal efeito de sentido. Na mesma ocasiao, havia destacado urnconsultor do corisorcio:

    Vamos falar agora dos impaetos negativos identifieados. A maior coneen tracsofoi verificada na socioeeonomia. Eles estao associados a inundacao de terrase benfeitorias, de cerea de 240 propriedades rurais; a inundacao parcial depovoado de Barra do Salinas, a tingindo aproximadarnente 70 edificacoes; e dealguns equipamentos de infraestrutura coletiva, com destaque para os acessosque serao interrompidos com 0 reservatorio (Audiencia publica realizada n::ccornunidade de Barra de Salinas, em outubro de 2002). de

    doNesse excerto, a selecao lexical marcada pelos termos "benfeitorias"edificacoes" e "equipamentos de infraestrutura coletiva" representam nocoesdistanciadas do dorninio cotidiano das populacoes atingidas. Dessa formsa apresentacao dos impactos decorrentes do enchimento do reservator.; -

    POpOex

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    Quando 0lugar resists ao espa~~

    obscurecida, pois suas consequencias sao transformadas em resultados quaseintangiveis, enigmaticos e sem notoriedade. Mobilizando 0que Ducrot (1987)eVogt (1980) identificaram como litotes, 0locutor mobiliza urn enunciado desentido fraco para significar algo bern mais forte (Vogt, 1980, p. 13). Contudo,o principal efeito e nao so a minimizacao dos impactos ou a producao de urndiscurso mais palatavel aos fins do enunciador, mas tambern a producao deuma imagem do territorio em que a diversidade da experiencia social ve-sereduzida a urn conjunto material hornogeneo composto por benfeitorias eedificacoes.

    Em outros enunciados e possivel identificar tambern 0esforco orientadopara a negacao do dissenso, esvaziando a existencia de mobilizacoes locais.Essa estrategia e evidenciada no relato das chamadas "campanhas de nego~ciacao" pelos consultores ambientais:

    No inicio da reuniao em 22/1112001 em Barra do Salinas houve uma inter-vendio forte de quatro representantes dos movimentos contraries a construiiio debarragens, entretanto as proprias liderancas locais posicionaram-se contraa mensagem radical e agressiva pregada e reconduziram a reuniao a sua pautaoriginal C . . ) No mais, as reunioes transcorreram todas em ambienie de muitacordialidade (D'Alessandro&Associados, 2001).Tambern durante a Audiencia Publica 0representante do cons6rcio

    enfatizou:

    - ,'Iq

    Ocorreram, durante 0ana de 2001, cerca de 40 reunioes publicas de enten-dimento e negociacao, para a discussao do EIA/RIMA e das inforrnacoescomplernentares pedidas pela Peam.f E 0 pedido da Fearn deterrninava queessas informacoes fossem preparadas em contato com as comunidades. Asreuni6es foram feitas com a participacao ativa e interessada das prefeituras,camaras municipais eliderancas locais;daAssociacaoComunitaria doPovoadodeBarra doSalinas, que e amais antiga de todas e que sempre esteve presen-te; e das cinco cornissoes municipais, formadas respectivamente em Berilo,Coronel Murta, GraoMogoI,Josen6polis eVirgem da Lapa, exatamente paraacompanhar 0desenvolvimento dos estudos sobre a usina (Audienciapublicarealizada na cornunidade deBarra doSalinas, em outubro de 2002).o conjunto de implicitos desse excerto apresenta uma concepcao espe-

    dfica de participacao: trata-se de uma deterrninacao da Fundacao Estadualdo Meio Ambiente (Fearn) e de uma concessao do empreendedor efetivadapor rneio de reunioes em que a consultoria apresenta os estudos eprogram aspor ela desenhados as organizacoes locais. Cabe observar ainda que 0locutorexpoe, nesse trecho, os agentes autorizados a essa participacao, os quais sao

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    denominados em sequencia: as prefeituras, as camaras municipais, as Iide-rancas locais, a Associacao Cornunitaria de Barra do Salinas e as cornissoesmunicipais. Destaca-se aqui 0silenciamento acerca das dissidencias existen-tes no local, cujos sujeitos sao apresentados como dispostos a negociacaoe ao entendimento. Observa-se, entao, a tentativa de tornar monof6nicoo discurso local, produzindo 0 apagamento das formas de resistencia e deoposicao, especialmente da Comissao dos Atingidos pela Barragem de Murta,claramente contraria ao projeto. Com efeito, 0que se tern e a deslegitimacaoda resistencia que se traduz como urn procedimento de interdidio ao discursoefetivado por meio de urn processo de separacao e reieicao (Foucault, 2001),na medida em que 0enunciado estabelece uma dicotomia entre antigo/novo,participantes legitimos/agentes desautorizados.

    Os excertos ante rio res evidenciam a despolitizacao do debate na medidaem que enquadram 0dissenso na qualidade de pratica indesejavel. Contudo,a tentativa de apagamento da resistencia local nao logra obstar a emergenciade vozes dissonantes. Representadas, sobretudo, pelos movimentos sociaisorganizados e pela populacao local afetada pelo empreendimento, essas vozescompoern 0discurso da heterodoxia, com 0intuito de ilustra-lo, selecionamostres enunciados. Vejamos 0primeiro:

    Nao estamos aqui para atacar ninguem, para atacar politico, mas estamosaqui para berrar (. ..) Quando eu ando em todas as comunidades que a Murtafalou que fez reuniao, vejo que 0 povo esta revoltado, que nao aceita a bar-ragern, porque aqui tern 920 familias, quase 5 mil pessoas. Se deixar essaMurta fazer essa barragem, 0que vai acontecer? (. ..) Aqui nao tern lugar prareassentar familias, porque aqui nao tern agua nascente. Aqui tern tres rios:o Salinas, 0 .Iequitinhonha e 0Vacaria. Todos Esses rios sao atingidos. Naosornos atingidas, sornos ameacados e nao vamos deixar construir a barrageme acabou. Somas ameacados por urn prajeto, mas ele nao vai conseguir ir prafrente, porque 0povo tern direito de decisao, nao e s6 0poder publico. 0 povoe dono, 0povo nao roubou, 0povo adquiriu, cornprou e herdou. E esse direitovoce tern, 0direito de decisao, (Audiencia Publica realizada na comunidade deBarra do Salinas, em outubro de 2002)A selecao lexical representada pelo termo "berrar" sugere urn novo

    subentendido, qual seja, 0 fato de que os atingidos nao foram anteriormenteouvidos apesar de 0 empreendedor afirmar ter estabelecido contato com ascomunidades. 0 enunciador tambern destaca que, embora 0empreendedoracentue que fez reunioes nas comunidades e que encontrou nestas enten-dimento, os moradores testemunharam a oposicao e a discordancia, Assim,em contraste com 0 ideal de entendimento e cordialidade, 0 discurso dos

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    Ouarido 0 lugar r8sist~ ~o ~Spi!l'f0 453

    atingidos tematiza a politica do silsncio imposta pela empresa ea perspectivede resistencia e desaprovacao quanto ao projeto. Cabe dest acar 0 fato de aenunciador articular a legitimidade de seu discurso enfatizando qU) : : se tratade um testemunho, de um relate pautado na observacao e na vivencia nalocalidade. E tambern na qualidade de testemunha que 0 locutor articula 0indice de pessoa "nos", marcando uma oposicao coletiva ao projeto em; " '~aovamos deixar construir essa barragem." Tais representacces sao corroboradasnos enunciados de outros rnoradores, con forme identificamos no trecho a .seguir:

    Represento minha comunidade de Morrinhos, sou urn trabalhador que tern66 anos e nunca morreu de fome. Gracas a Deus, vivo tranquilo do meu traba-lho. Tenho urn grande tabuleiro na beira do Vacaria, produzo tudo 0que stiaqui presente, E estao falando que nossas ter ras nao presrarn? Conheco essetabuleiro como urna mae terra. E que rem dizer que a mae terra val morrer? Aie que vamos ver. Mas gra~as a Deus vivo da terra (... ) Nao vamos ficar com acabeca baixa, vamos levan tat a cabeca e brigar pra poder ficar no nosso lugar.Eu nao quero a barragern, temos que considerar essa terra como nossa mae,porque ela nos eriou e vai criar 110SS0S filhos e netos. E disso que precisamos, eesse 0 nosso interesse. Muito obrigaclo a todos voces que me deram atencao ebaterarn palmas pra mirn, que sou urn analfabeto, mas trabalhador (AudienciaPublica realizada na comunidade de Barra do Salinas, em outubro de 2002).Repete-se nesse fragmento 0carater testemunhal do relato, a condicao

    demorador-trabalhador rural e entao destacada em contraposicao a autoridaderepresentada pelo conhecimento tecnico do ernpreendedor e sua consultoria.Essa autoridade e particularmente interrogada quando 0 locutor propoe aseguinte pergunta ret6rica: H E estao falando que nossas terras nao prestam?"Alern desses elementos, ha 0 recurso metaforico empregado na identificacaoda terra com a figura materna, fonte de vida, em contraste a . construcao dabarragem metaforizada como "morte". Nota-se ainda a acentuacao da ideia deque, ernbora a localidade esteja sendo pleiteada pela empresa, as terras per-tencem legitimamente aos trabalhadores; nas palavras do morador, tratase do"nosso lugar". Ora, 0ideal do projeto como promotor de desenvolvirnento paraa regiao e como bene fico aos moradores e recusado, na medida em que 0 locu torafirrna atraves de indices de osten sao repetidos (esse e disso) que 0 interessedos moradores e outro, qual seja, permanecer nas terras em que traba1ham.Assim, a opo sicao ao projeto, tal como no enunciado antecedente, e rnarcadsde forma enfatica e direta, sob a forma de lima assercao: "Eu nao quem 2.barragem", perspectiva que e tam bern reproduzida neste enunciado:

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    _ '5" WOLVIMENTO E CONFUTOS AMBIENTAIS

    Eu estou aqui pra falar que minha mae tern 87 anos, foi nascida e criada nabeira do rio Salinas; estou com 46 enos vivemos na regiao. Na nossa regiaonao queremos barragem porque nao vivemos de barragem, vivemos com osnossos terrenos e com 0 nosso trabalho, do que a nossa terra produz. Minhamae com87 anos sobreviveu queimando 0candeeiro aquerosene, elanao tinhaenergia; 0meu avofalavaquepegava mamona, faziaazeite equeimava, porquea terra produzia mamona eate hoje produz (...) Nao sobrevivemos comenergia,nao cornemos lampada acessa: mas camemos arroz, feijao, ab6bora ebatata--doce, emais todas essas coisas que estao aqui (...) Nao queremos abarragem,porque nossos pais nao sobreviveram com barragem; sobrevivemos da roca,das vazantes onde moramos (Audiencia Publica realizada na comunidade deBarra do Salinas, em outubro de 2002).

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    A enfase na oposicao ao projeto e a perspectiva de resistencia tambernsao ressaltadas atraves de repetidas assercoes em: "Na nossa regiao nao que-remos barragem" e, posteriormente.INao queremos a barragem". Tambernesta marcado 0carater antagonico dos projetos sociais articulados, de urnlado, pelo Setor Eletrico e, de outro, pelos trabalhadores rurais. Nesse caso,a figura da "lampada acessa" aparece como uma metonimia representativado projeto politico de que e parte a construcao do empreendimento. Contra-riamente, os produtos assinalados em sequencia - "arroz, feijao, ab6bora ebatata-doce" - simbolizam tambem de forma metonimica a materialidadede uma outra racionalidade com relacao a apropriacao do territorio,

    Em resumo, 0 licenciamento da UHE Murta ilustra as estrategias argu-mentativas tanto de aniquilacao quanta de reafirmacao do lugar. 0 discurso doempreendedor e de sua consultoria promove uma interlocucao com as vozesda heterodoxia deslegitimando-as e0faz mobilizando os temas do consenso,da negociacao, da participacao e da m i ti ga a io d as im pa ct os . Conforme examina-mas, a visao que 0Setor Eletrico constr6i esvazia a resistencia local. Mas, emcontraponto, 0discurso dos moradores e da Comissao de Atingidos articulaargumentos em torno da inviabilidade do projeto e mobiliza uma concepcaoantagonica de participacao pautada pela afirmacao do direito a resistencia.

    Esse antagonismo dos sentidos que recobrem 0termo participacao nosdois discursos analisados permite observar que a disputa politico-culturaltravada no bojo do licenciamento da UHE Murta ultrapassa 0tema especificoda barragem. Os deslocamentos sernanticos observados em torno da ideiade participacao tornam necessario desvendar a opacidade construida poressas nocoes compartilhadas, mas significativamente distintas conforme 0discurso que de l as se apropriam. No caso que analisamos, a referenda comuma "participacao" e indicativa da oposicao de diferentes forcas sociais que seprojetam sobre 0 territ6rio.

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    Nessa medida, uma suposta aposta na convergencia dos discursos e 0apagamento do conflito tern como consequencia a despolitizacao do sentidode participacao, tal como a constroi 0 segmento hegemonico do campo. 0resultado seria 0 escamoteamento das diferencas que recortam esse campoe a producao de uma rarefacao dos seus sujeitos e discursos.

    r-"bW ; . . :: : :~-2.~- Consideracoes finais

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    I:.lE-e:.u:=&:.A critica pos-moderna interrogou 0conceito de cultura fundamentado

    em expectativas de coerencia e continuidade que permitiam sua identificacao aunidades circunscritas por limites territoriais e sociais previamente definidosenunca questionados (Gupta; Ferguson, 2000). No cenario de urn capitalismodesterritorializado, as articulacoes entre povo, lugar e tradicao perderam seuaparente isomorfismo (Gupta; Ferguson, 2000). Mas 0 que fazer quando osproprios sujeitos ameacados por processos de deslocalizacao e relocalizacaoheteronomos reivindicam 0contrale sobre seu destino e 0fazem propondouma atualizacao dessas articulacoes? Como abordar aqueles atores que querem"levantar a cabeca e brigar pelo seu lugar"? Especialmente aqueles que mobi-lizam em suas lutas a reconstrucao de especificidades culturais e tradicoesrecriadas? Qual eo sentido de lugar que emerge nessas lutas?

    ofato e que, os conflitos dos quais tratamos colocam, aos sujeitos arnea-cados pelo deslocamento compulsorio, a necessidade de rever e de campor seusprojetos, de reconsiderar as potencialidades de seu territorio, de atualizar seusentido de lugar. A producao da localidade e marcada, entao, pela ativacao damemoria coletiva como instrumento de luta na afirrnacao da legitimidade daocupacao hist6rica da terra. 0 trabalho da memoria nao consiste ai em resgatarurn passado cuja perspectiva e 0imobilismo. 0 lugar resultante desse trabalhopolitico imaginativo se desvencilha de urn sentido reacionario que 0definiriacomo urn espaco de sujeicao desses grupos condenados a viver perpetuamentesob 0 signa da estagnacao,o tipo de localizacao frequentemente criticado pelos pos-rnodernos e0"encarceramento do nativo" empreendido pelo analista que discrimina e deli-mita culturas associando-as a espacos previamente definidos, contribuindo,pois, para a estabilizacao das diferencas em detrimento de uma analise dasrelacoes de poder operantes. Urn sentido progressita de lugar, no entanto,nao se furta a tal tarefa. Ele considera 0 fato de que a incrivel rnobilidade docapital tern como contrapartida a deslocalizacao e, posterior, relocalizacaoforcada de diversos grupos em areas de risco, para espacos planejados e res-tritos de reassentamento, enfim, para terrenos liminares onde sao patentes

    -Ie:

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    as tentativas de apagamento da qualidade historica, ativa e propositiva des-ses sujeitos. Nessa abordagem, a fabricacao e a defesa dos lugares se ligam ag eom etria d o pode r (Massey, 2000), ou seja, as diferentes e desiguais formaspelas quais os individuos e segmentos sociais se posicionam em relacao aosfluxos e movimentos que fazem parte do capitalismo desterritorializado.Considera-se, nessa perspectiva, que 0poder de mobilidade relativo a deter-minados segmentos sociais resulta no aprisionamento espacial dos gruposmais vulneraveis,

    o licenciamento de usinas hidreletricas no Vale do Jequitinhonha setorna particularmente ilustrativo de tais processos. Os discursos hegerno-nicos articulados pelo Setor Eletrico pautados pela "modernizacao ecologica"apontam para tentativas de aniquilacao dos lugares. A representacao que 0Setor Eletrico articula sobre 0ocal resulta na nocao de viabilidade do projetohidreletrico construida a partir da invisibilizacao dos custos sociais do em-preendimento e do silenciamento dos agentes locais por meio da recusa emreconhecer sua mobilizacao politica. Nesse processo, a proposicao de medidasmitigadoras e compensatorias corrobora para 0esvaziamento da comple-xidade das form as locais de relacao com 0 territorio, as quais sao traduzidaspor urn conjunto de imoveis rurais passiveis de indenizacao e remanejamento.A partir dessa operacao, os custos sociais e sentidos locais incornensuraveissao traduzidos na linguagem unica do valor monetario.

    Destaca-se nesse cenario a enfase que 0paradigma da "modernizacaoecologica" deposita na tecnica _ esta vista como potencia capaz de promovera dissolucao das divergencias politicas em relacao a apropriacao do territorio,Os ajustes tecnicos e as medidas de carater corretivo, mitigador e compen-satorio tendem a reduzir as diferencas politicas em torno do uso e controledo espaco ao debate sobre 0 padrao aceitavel de impactos. A participacao eagregada a cena como uma especie de tecnica de controle social cujo papelregulador consiste em banir a alternativa da resistencia em nome do enten-dimento e da negociacao.o local aparece, entao, nessa perspectiva, como uma paisagem, comocenario de intervencao da obra transformadora. 0 centro dessa abordagem euma visao provinciana de lugar que retira deste toda capacidade agenciadora.No entanto, na contracorrente desses movimentos, os "atingidos" parecemmobilizar sentidos emancipadores e progressistas de lugar. 0 significado delocalidade articulado por esses at ores acentua seu carater historico - espacosde reproducao social que conectam 0passado ao presente, esferas de perten-cimento que tornam possivel a construcao de identidades no presente e que,?wjetam perspectivas futuras de autonomia. Nesse horizonte, reconhecer

    que a =o recc:localiz.

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    que aacaodesses nativos politicamente organizados emobilizados reivindicao reconhecimento do seu desejo de permanecer no lugar, de promover uma10calizacao,

    Nesses casos, ao contrario de urn "modo intelectual de controle"(Sahlins, 1997), a localizacaoproduz 0sentido delugar antitetico a suaversaomoderno-colonialista. Ele nao aparece como urn barreira fisica que impoeo isolamento e que reclama pureza, ele nao e 0reduto do imobilismo. Ele eo suporte do presente e a referencia que orienta novos projetos coletivos.Nesse sentido progressista, quem tematiza a diferenca ea associa ao enraiza-mento e a localidade sao os proprios suieitos que habitam e constroem esseterritorio, Aqui a descontinuidade cultural que atravessa as formas sociaisde apropriacao da natureza nao e urn pressuposto do pesquisador, nao eurn artificio conceitual que lhe permite discriminar coletivos e associa-losa espacos ja naturalmente delimitados. Ao contrario, 0antagonismo entreprojetos sociais e a descontinuidadade cultural em pauta sao construidos eevidenciados durante 0percurso da luta empreendida pelos agentes sociaisque se engajam nas unidades demobilizacao locais.

    Com efeito, se 0 discurso hegemonico tende a subtrair ao local a auto-nomia e a intencionalidade historica dos seus grupos, em contraposicao, asunidades demobilizacao redefinem os termos daluta, pautando aresistenciaeassociando-a aopoder deautodeterminacao sobre os territories. 0 desejo eo direito depermanecer sao, entao, reivindicados em oposicao a mobilidadeforcada que e conduzida por outrem. A contraposicao entre essas duas pers-pectivas e conscienternente tematizada por esses grupos, sua defesa dolugarnao compartilha da perpespectiva colocada pelo projeto colonialista em seudesejo de regulacao eestabilizacao das diferencas. Naperspectiva dos charna-dos "atingidos" pelos projetos de desenvolvimento, 0lugar e referencia para aconstrucao desuas identidades politicas, elesignifica, sobretudo, a retomadado controle de seu proprio destino.

    Este artigo e resultado de pesquisas desenvolvidas com 0 apoio do CNPq e daFAPEMIG.Agradecemos a s referidas agendas de [omenta pelo auxilio concedido.

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    NotasJ i'1';ais tarde, a analise das cosmologias aruazonicas levou Descola (2000, p. 153-154) ao questio-namento da dicotornia xociedade-natureza e a teoriza

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