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I Seminário Internacional de Ciência Política 70 ANOS DA SOCIEDADE ABERTA NO COMBATE DAS IDEIAS: UMA ANÁLISE CRÍTICA DA TEORIA DA DEMOCRACIA EM KARL POPPER 1 André Silva de Oliveira 2 Rodolfo Silva Marques 3 Resumo: A Sociedade Aberta e seus Inimigos, obra seminal de Karl Raymond Popper, completa 70 anos em 2015 e o presente trabalho pretende rediscutir alguns aspectos relevantes da teoria democrática do pensador anglo-austríaco. Nosso escopo é demonstrar como a teoria da democracia em Popper se constitui numa alternativa tanto ao libertarianismo, versão radical do liberalismo, quanto ao liberalismo igualitário, tradição inaugurada por John Rawls. Os argumentos principais são o de que a teoria da democracia popperiana se funda não em um desenho institucional específico, mas essencialmente em um método para a reforma gradual das instituições políticas, e também na instituição de controles democráticos sobre os atos dos governantes como fundamentais para a democracia representativa. Palavras-chave: Sociedade Aberta; Liberalismo; Instituições. Abstract: The Open Society and its Enemies, seminal work of Karl Raymond Popper, turns 70 in 2015 and this study aims to revisit some important aspects of democratic theory of the Anglo-Austrian thinker. Our scope is to demonstrate how the theory of democracy in Popper is an alternative to both libertarianism, radical version of liberalism, as the egalitarian liberalism, tradition inaugurated by John Rawls. The main arguments are that the theory of Popper's democracy is founded not on a specific institutional design, but primarily for a method for the gradual reform of political institutions, and also in establishing democratic control over the actions of rulers as fundamental to representative democracy. Key-words: Open Society; Liberalism; Institutions. INTRODUÇÃO O conceito de sociedade aberta é certamente polissêmico, mas foi Karl Popper (1902-1994) quem lhe deu o sentido hoje mais conhecido, associando-o à construção, à preservação e à expansão das instituições que integram a democracia representativa do tipo liberal. Popper reconhece que tomou emprestado o conceito de sociedade aberta de Henri Ferguson para imprimir-lhe outro significado, desta vez vinculando-o à teoria da democracia. (POPPER, 1998, p.219, v. 1). Na verdade, Popper constrói uma teoria da democracia diversa de todas as outras existentes no campo do liberalismo político. Os fundamentos da teoria popperiana se encontram mais bem delineados no 1 Trabalho apresentado no 1º Seminário Internacional de Ciência Política – Estado e democracia em mudança no século XXI. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 9 a 11 de setembro de 2015. 2 Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: [email protected] 3 Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: [email protected]

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70 ANOS DA SOCIEDADE ABERTA NO COMBATE DAS IDEIAS: UMA ANÁLISE

CRÍTICA DA TEORIA DA DEMOCRACIA EM KARL POPPER1

André Silva de Oliveira2

Rodolfo Silva Marques3

Resumo: A Sociedade Aberta e seus Inimigos, obra seminal de Karl Raymond Popper, completa 70 anos em 2015 e o presente trabalho pretende rediscutir alguns aspectos relevantes da teoria democrática do pensador anglo-austríaco. Nosso escopo é demonstrar como a teoria da democracia em Popper se constitui numa alternativa tanto ao libertarianismo, versão radical do liberalismo, quanto ao liberalismo igualitário, tradição inaugurada por John Rawls. Os argumentos principais são o de que a teoria da democracia popperiana se funda não em um desenho institucional específico, mas essencialmente em um método para a reforma gradual das instituições políticas, e também na instituição de controles democráticos sobre os atos dos governantes como fundamentais para a democracia representativa. Palavras-chave: Sociedade Aberta; Liberalismo; Instituições.

Abstract: The Open Society and its Enemies, seminal work of Karl Raymond Popper, turns 70 in 2015 and this study aims to revisit some important aspects of democratic theory of the Anglo-Austrian thinker. Our scope is to demonstrate how the theory of democracy in Popper is an alternative to both libertarianism, radical version of liberalism, as the egalitarian liberalism, tradition inaugurated by John Rawls. The main arguments are that the theory of Popper's democracy is founded not on a specific institutional design, but primarily for a method for the gradual reform of political institutions, and also in establishing democratic control over the actions of rulers as fundamental to representative democracy.

Key-words: Open Society; Liberalism; Institutions.

INTRODUÇÃO

O conceito de sociedade aberta é certamente polissêmico, mas foi Karl Popper (1902-1994)

quem lhe deu o sentido hoje mais conhecido, associando-o à construção, à preservação e à expansão

das instituições que integram a democracia representativa do tipo liberal. Popper reconhece que

tomou emprestado o conceito de sociedade aberta de Henri Ferguson para imprimir-lhe outro

significado, desta vez vinculando-o à teoria da democracia. (POPPER, 1998, p.219, v. 1). Na

verdade, Popper constrói uma teoria da democracia diversa de todas as outras existentes no campo

do liberalismo político. Os fundamentos da teoria popperiana se encontram mais bem delineados no 1 Trabalho apresentado no 1º Seminário Internacional de Ciência Política – Estado e democracia em mudança no século XXI. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 9 a 11 de setembro de 2015. 2 Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: [email protected] 3 Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: [email protected]

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livro A Sociedade Aberta e seus Inimigos [The Open Society and its Enemies], sua obra seminal que

completa agora 70 anos desde a sua primeira edição.

O escopo do presente artigo é inicialmente tentar demonstrar porque essa obra importa para

o que podemos chamar de batalha das ideias e, sobretudo, oferecer uma releitura de alguns aspectos

que nos parecem relevantes da teoria da democracia em Karl Popper. Nosso entendimento é o de

que o colapso do comunismo soviético e a queda do Muro de Berlim, embora indiquem o acerto da

crítica que Popper endereçou ao historicismo marxista, não foram eventos capazes de esgotar a

importância das ideias contidas no livro A Sociedade Aberta e seus Inimigos.

Longe disso, a teoria da democracia popperiana se distingue tanto do ideário libertariano

quanto das teses defendidas pelos liberais igualitários e, portanto, oferece respostas diferentes para

alguns problemas enfrentados hoje pela democracia representativa do tipo liberal. Afinal, como

indicou o título de uma das obras de Popper, all life is problem solving.

O artigo está dividido em três seções: a primeira seção fará um breve retrospecto histórico

sobre o contexto político no qual foi editada A Sociedade Aberta e seus Inimigos, bem como

indicará suas teses centrais que servem de fundamento para a concepção popperiana de Grande

Sociedade Aberta. Na segunda seção será feita uma análise crítica de alguns aspectos relevantes da

concepção popperiana de Grande Sociedade Aberta, notadamente como concebia a interação entre

livre mercado e governo, confrontando-os com as premissas de outras correntes do liberalismo,

especialmente a concepção de Grande Ordem Espontânea de Friedrich von Hayek que inspirou

fortemente o atual movimento libertariano. Por fim, na terceira e última seção, será feito um cotejo

entre os aspectos aqui analisados do pensamento teórico popperiano e o advento dos chamados

regimes híbridos ou autoritarismos competitivos cujos projetos políticos pretendem suplantar a

democracia representativa do tipo liberal. Aqui, a ênfase recairá na importância que Popper atribuía

à instituição de salvaguardas institucionais necessárias à defesa da democracia representativa contra

os ataques promovidos por movimentos antidemocráticos. Distinguindo-se tanto do ideário do

movimento libertariano quanto das ideias centrais defendidas pelos liberais igualitários, a conclusão

principal é que a teoria da democracia de Karl Popper permanece atual por apresentar respostas

específicas para os dilemas enfrentados hoje pelo liberalismo do tempo presente.

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1. A GÊNESE DA CONCEPÇÃO DE GRANDE SOCIEDADE ABERTA POPPERIANA

COMO REAÇÃO AO ADVENTO DO TOTALITARISMO

A teoria da democracia de Karl Popper foi concebida durante o período mais tormentoso do

século XX, vale dizer, no período em que eclodiu a II Guerra Mundial. Filho de judeus, depois

convertidos ao luteranismo, Popper nasceu em Viena na época em que o Império austro-húngaro,

cujas fronteiras eram bem mais extensas do que as da Áustria atual, abrigava diversas etnias sob

uma convivência até certo ponto harmoniosa. Das lembranças mais primitivas de Popper sobre a

infância em Viena, vale destacar, ao menos, a que se refere à pobreza então existente, bem como ao

ambiente de liberdade que preponderava, a despeito da censura e outras restrições impostas pela

monarquia. No que pertine à primeira recordação, Popper relata como a pobreza que se via pelas

ruas da orgulhosa capital do império austro-húngaro acabou por perturbá-lo: A visão abjeta da pobreza de Viena foi um dos principais problemas que me perturbaram quando eu ainda era uma criança pequena – tanto que estava quase sempre no fundo do meu espírito. Poucas pessoas que agora vivem numa das democracias ocidentais sabem o que significa a pobreza no princípio deste século: homens, mulheres, crianças sofrendo de fome, frio e desespero. Mas nós, as crianças, não podíamos ajudar. Não podíamos fazer mais do que pedir umas moedinhas para dar a alguns pobres. (POPPER, 2008, p.21).

Cumpre ressaltar que Popper chegou a defender a completa erradicação da pobreza, criticou

os economistas que abandonaram essa ideia e, o que é mais importante, apresentou um programa de

cinco pontos com esse objetivo. (POPPER, 2001, p.185).

Popper recorda também que seu pai, o advogado bem estabelecido Raymond Popper, “era

um liberal radical da escola de John Stuart Mill e de modo algum um apoiador do governo”

(POPPER, 2008, p.22), embora tenha sido feito pelo velho imperador cavaleiro da Ordem de

Francisco José (Rittes des Franz Josef Ordens). Raymond Popper escreveu Anno 1903 – segundo

Popper, “uma sátira política brilhante” (POPPER, 2008, p.22) -, livro que foi apreendido pela

polícia em 1904, ano em que seria publicado, e seguiu proibido pelo governo até 1918. Mas

Raymond Popper não foi preso e, além disso, Popper considera que, antes da eclosão da Primeira

Grande Guerra, “havia uma atmosfera de liberalismo na Europa, a oeste da Rússia czarista” e a

Universidade de Viena “tinha um grande grau de liberdade e autonomia.” (POPPER, 2008, p.22).

Essas lembranças mais primitivas parecem ter deixado fortes marcas na formação política de

Popper. A existência de um império territorialmente vasto para os padrões europeus e com uma

população etnicamente diversa, mas convivendo de modo tolerante, fizeram com que Popper tivesse

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uma visão favorável a respeito daquele regime político. Não é por outro motivo que Popper

lamentou a dissolução do império e da atmosfera de liberdade que o impregnava, atribuindo tudo

isto à eclosão da Primeira Guerra Mundial. (POPPER, 2008, p.22).

Em abril de 1919, quando tinha apenas 16 anos, Popper confessa que se sentiu atraído pela

propaganda pacifista do Partido Comunista, sobretudo os apelos feitos por Leon Trotsky ao celebrar

o Tratado de Brest-Litovsk, e decidiu trabalhar como voluntário para o partido, tendo sido aceito

como entregador de mensagens. (POPPER, 2001, p.176). Todavia, em junho de 1919, a polícia

vienense matou oito jovens militantes do Partido Comunista numa manifestação de rua. Logo após

o evento, Popper se dirigiu à sede do partido e, ao ouvir discursos dando conta de que a revolução

exigia tais sacrifícios, decidiu deixar o partido. Havia, argumenta, “escapado da armadilha

marxista.” (POPPER, 2001, p.181).

Já adulto, Popper viria a dar aulas para crianças, trabalharia com marcenaria e, depois,

chegou a participar de algumas reuniões do chamado Círculo de Viena, grupo de intelectuais que

discutia temas relacionados à teoria do conhecimento. Mais tarde, Popper publicou em 1934 A

lógica da pesquisa científica, livro que o tornou famoso depois de ter sido publicado em 1959 no

Reino Unido. Na verdade, ao criar o critério de demarcação na ciência com base no método

dedutivo, Popper promoveu um forte ataque às teses indutivistas defendidas pelos membros do

Círculo de Viena. A convicção talvez exagerada (mas certamente orgulhosa) de ter feito um ataque

bem-sucedido ao núcleo do chamado positivismo lógico levou-o a apontar a si próprio como o

responsável por sua morte (POPPER, 2008, p.126). Todavia, o agravamento da situação política na

Europa, em especial na Áustria, levaria Popper, estudioso da teoria do conhecimento, a dedicar

especial atenção aos problemas sociais, notadamente à proteção das instituições da democracia

representativa do tipo liberal que se viram atacadas com o advento dos movimentos totalitários.

Mesmo antes da anexação da Áustria pela Alemanha nazista em março de 1938, a bandeira

do anti-semitismo crescera exponencialmente no país, sobretudo pela ação violenta dos partidos de

direita para com os judeus, inclusive no ambiente acadêmico. Assim, de acordo com Popper,

“tornou-se impossível para qualquer pessoa de origem judaica assumir o cargo de professor

universitário.” (POPPER, 2008, p.152).

As ações antissemitas realizadas e/ou estimuladas pelo governo austríaco protonazista e,

depois, a anexação da Áustria pelo exército alemão levaram Popper a migrar para a distante Nova

Zelândia, não podendo ser olvidado que possuía origem judaica, embora, como foi dito, sua família

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tivesse se convertido ao luteranismo. Popper dedicou-se então a escrever A Pobreza do

Historicismo e A Sociedade Aberta, obras que classificou como “o meu esforço de guerra.”

(POPPER, 2008, p.161). Na verdade, escrever A Sociedade Aberta custou-lhe muitos sacrifícios

porque não foi dispensado das atividades de docência na Universidade de Canterbury para esse fim,

bem como pela severa limitação de livros das bibliotecas neozelandesas. A Sociedade Aberta e seus

inimigos somente foi publicado em 1945 com ajuda de Ernest Gombrich e Friedrich Hayek que

conseguiram um editor para o aflito e isolado Popper em seu exílio neozelandês.

A Sociedade Aberta foi classificada pelo próprio Popper como “sem dúvida, o (seu) mais

importante” livro de filosofia política (POPPER, 2008, p.162). Na verdade, em nosso entendimento,

o livro estabelece os fundamentos da teoria da democracia popperiana, daí a importância de fixar

minimamente suas teses centrais. Popper abre sua obra magna afirmando a existência de uma tensão

no surgimento da civilização ocidental que remonta aos gregos da antiguidade. Essa tensão levou à

divisão da civilização grega entre uma sociedade fechada ou detida e uma sociedade aberta. A

primeira sociedade, do tipo fechado, foi identificada com a sociedade espartana e seus aliados. Suas

características principais seriam a estruturação da sociedade em tabus tribais fundados em

superstições e em uma rígida hierarquia social, bem como na recusa às mudanças sociais de

conteúdo igualitário e, portanto, democrático. Já a sociedade aberta foi claramente associada ao

modelo ateniense de Péricles e às ideias políticas igualitárias de alguns pensadores relevantes

daquele período, sobretudo Sócrates. O igualitarismo político, o individualismo democrático, o uso

da razão crítica na esfera pública, a abertura de Atenas à navegação marítima e comercial, etc.,

caracterizariam a sociedade aberta como um modelo capaz de promover mudanças sociais

contínuas, de modo a destruir os antigos tabus tribais.

Platão – e, antes dele, Heráclito – foi apresentado por Popper como protótipo de intelectual

alinhado com a ideia de sociedade detida e, portanto, inimigo declarado da sociedade aberta. Como

se sabe, Popper promoveu um pesado ataque às ideias de Platão, sobretudo a um possível projeto

político totalitário contido no livro A República. Para Popper, o projeto político que A República

encerrava nada mais era do que a adoção do modelo hierarquizado espartano em contraposição ao

modelo democrático ateniense cuja destruição interessava ao pensador grego. Popper foi muito

criticado pelo duro ataque feito ao pensamento político de Platão. Ian Shapiro recorda que, para

alguns autores como Leo Strauss, a sociedade descrita por Platão em A República não se constituía

em um modelo ideal ou perfeito, mas consistia na tentativa de demonstrar a impossibilidade de sua

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realização (SHAPIRO, 2006, p.254). Nossa convicção é a de que a análise popperiana sobre o

pensamento platônico não foi incorreta ou injusta. Shapiro corrobora, por exemplo, o entendimento

de Miles Burnyeat de acordo com o qual “deixa a interpretação literal de Popper como a mais

plausível” sobre o assunto (SHAPIRO, 2006, p.254).

Importa ressaltar que Popper estabelece uma espécie de fio condutor temporal pelo qual os

movimentos políticos contra e favor da sociedade aberta permaneceram em luta incessante ao longo

da história, indo desde a Grécia antiga até aos dias de hoje. Assim, Platão teria sido sucedido por

Friedrich Hegel e Karl Marx na defesa de um projeto político de cunho coletivista, anti-igualitário

e, portanto, totalitário, ao passo que Sócrates e Antístenes foram, por sua vez, sucedidos por

Immanuel Kant e Arthur Schopenhauer na promoção da defesa da sociedade aberta fundada no uso

da razão crítica e no individualismo igualitário.

Claro está que a democracia representativa do tipo liberal é vista por Popper como o

resultado evolutivo da sua concepção de Grande Sociedade Aberta ao longo da história, daí a

acentuada preocupação que demonstrou com a criação e preservação de salvaguardas e/ou

mecanismos de controle capazes de proteger as instituições democráticas contra a instituição da

tirania (POPPER, 1998, p.140-141, v.1). Aqui, cabe ressaltar dois importantes elementos

constitutivos da teoria da democracia popperiana: i) a democracia consiste no sistema político que

permite aos governados se livrar dos maus governantes sem derramamento de sangue, o que pode

ser obtido por meio de eleições gerais; e ii) a democracia não repousa unicamente no princípio de

que a maioria deve governar, mas, antes, na adoção de salvaguardas e/ou mecanismos de controle

democrático – como o sufrágio universal e o governo representativo - que permitam a proteção das

instituições democráticas contra os movimentos que querem destruí-la para instituir em seu lugar a

tirania.

Popper salienta que não importa saber quem vai governar – se os trabalhadores, os membros

da classe média ou ainda os industriais. Argumenta que essa preocupação sempre esteve no centro

das doutrinas coletivistas. Assim, Platão preconizava que os sábios deveriam governar; Hegel

indicou que a história pertencia aos grandes homens e, por fim, Karl Marx defendeu que a história

caminhava inexoravelmente em um único sentido, o sentido que apontava para o colapso da

economia de mercado e consequente vitória do proletariado, a última classe governante da história.

Para Popper, importa, antes, saber como os governados podem se livrar dos maus

governantes sem derramamento de sangue e como podem ser criadas salvaguardas institucionais

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que reduzam ao mínimo possível os danos provocados por maus governos. Todavia, qualquer que

seja o método empregado para o controle dos atos dos governantes pelos governados, ainda assim,

Popper reconhece que “não existe um método perfeito”, havendo sempre a possibilidade de que as

instituições da democracia representativa sejam demolidas para dar lugar ao advento da tirania

(POPPER, 1998, p. 141, v.1).

Por outro lado, um dos grandes méritos de Popper em The Open Society foi ter denunciado o

falso caráter profético do materialismo histórico marxista. Com uma bem fundamentada

argumentação, Popper sustenta que, ao contrário do que profetizara Karl Marx, a história não

caminhava em um único sentido, o sentido que resultaria na vitória inevitável do proletariado como

classe, de modo a atingir, por assim dizer, o derradeiro estágio da história. Para o pensador

austríaco, a história não tem nenhuma significação, exceto pela significação que lhe emprestamos: A história, afirmo, não tem significação. Mas essa afirmação não quer dizer que tudo que possamos fazer a tal respeito seja olhar atônitos para a história do poder político ou que devamos encará-la como uma cruel zombaria. Podemos interpretá-la com vista àqueles problemas do poder político cuja solução escolhemos tentar em nossa época. Podemos interpretar a história do poder político do ponto de vista de nossa luta pela sociedade aberta, por um regime da razão, pela justiça, igualdade, liberdade e pelo controle do crime internacional. Embora a história não tenha fins, podemos impor-lhe esses fins nossos: e, embora a história não tenha significação, podemos dar-lhe uma significação. (Itálicos do autor) (POPPER, 1998, p.286-287, vol. 2).

Hoje, quando temos diante dos olhos os eventos que resultaram na queda do Muro de Berlin

e no colapso do comunismo soviético, a argumentação de Popper parece demasiado óbvia para que

seja tomada em alta conta. No entanto, quando Popper atacou os chamados movimentos

historicistas em The Open Society, sobretudo o marxismo, o contexto histórico era completamente

diverso, pois havia a crença bastante disseminada de que o capitalismo colapsaria e que a sociedade

comunista seria construída sobre os seus escombros.

Curiosamente, os argumentos de Popper contra o historicismo marxista podem ser utilizados

hoje para contestar a incongruência dos que anunciam a vitória definitiva do liberalismo e o

consequente fim da história. A teoria de democracia popperiana se constitui num bom antídoto

contra essa exagerada pretensão historicista. Mário Vargas Llosa argumenta, por exemplo, que, para

o pensamento de Popper, “o mais insidioso e eficaz inimigo da cultura da liberdade é o

historicismo.”1 (LLOSA, 1990, p.1022).

Resta igualmente evidente que o fim da Guerra Fria com a derrota momentânea de um dos

blocos antagônicos não tornou mais fácil a tarefa do liberalismo de responder aos novos desafios

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que hoje se apresentam, dentre eles a extensão da regulação governamental sobre o livre mercado,

bem como a criação de salvaguardas institucionais contra os novos ataques à democracia

representativa do tipo liberal. Cumpre aduzir como a teoria da democracia de Popper responde a

esses dilemas do tempo presente.

2. A GRANDE SOCIEDADE ABERTA E O PARADOXO DA REGULAÇÃO

Preliminarmente e desde já, duas inferências aparentemente antitéticas podem ser feitas

sobre o grau de regulação a ser aplicado pelo governo ao livre mercado. De um lado, a evidência

histórica parece indicar claramente que uma regulação robusta conduz efetivamente à redução

substancial e, no limite, ao fim das liberdades políticas.

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1. Nossa tradução parcial para o seguinte trecho do artigo: This argument too has been subject to refutations, but even here, nuances aside, Popper’s

thinking hits the mark: the most serpentine and efficacious enemy of the culture of freedom is historicism. (LLOSA, 1990, p.1022). Com evidente acerto, Friedrich von Hayek afirma no clássico O Caminho da Servidão [The

Road to Serfdom] que “quem controla toda a atividade econômica também controla os meios que

deverão servir a todos os fins; decide, assim, quais deles serão satisfeitos e quais não serão.”

(HAYEK, 1994, p.101). De outro lado, não parece igualmente factível acreditar que a ausência

absoluta de regulação conduziria a uma situação de incessante criação de riqueza e liberdade.

Parece igualmente razoável deduzir que nem todos os atores que atuam no livre mercado fazem-no

de modo racional ou em estrita obediência às regras do jogo econômico e político. John Cassidy

apresenta um estudo bem fundamentado sobre a noção – decerto, equivocada - de que os mercados

financeiros são racionais e autorregulados. (CASSIDY, 2011, p.9-20; p.225-238).

É, portanto, necessário estabelecer algum tipo de regulação ou controle para evitar, como

bem acentuou Popper não apenas o surgimento de mercados que representem a opressão econômica

como “a instituição do mercado escravo”, mas também que o poder econômico possa “comprar o

poder político.” (POPPER, 1998, p.345-346, v.1).

Aqui, cumpre reconhecer que estamos diante de um paradoxo a que chamaremos de

paradoxo da regulação de cuja potencial resolução Karl Popper chegou muito perto quando tratou

do paradoxo do planejamento estatal em consonância com a análise do paradoxo da liberdade.

(POPPER, 1998, p.137, v.2). Indo um pouco mais além, é possível mesmo elaborar uma resposta

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provisória para o referido paradoxo a partir dos elementos constitutivos sobre o tema encontrados

na teoria da democracia popperiana.2

Divergindo frontalmente dos pensadores identificados com a corrente conhecida como

libertariana, Popper defende a regulação do livre mercado com propósito político. Popper discrepa

igualmente dos liberais igualitários, pois não chega a propor uma intervenção com fim

(re)distributivo como o fez, por exemplo, John Rawls. Na verdade, Popper defende a adoção da

concepção de mecânica social gradual, um método pelo qual “as medidas sejam planejadas para

combater males concretos, e não para estabelecer algum bem ideal.” (POPPER, 1998, p.137, v.2).

Portanto, mais do que propor algum desenho ou arranjo institucional específico, a teoria da

democracia popperiana se funda, sobretudo, em um método para a reforma gradual das instituições

da democracia representativa. Já a justiça rawlsiana de justiça comportaria em termos práticos,

segundo Célia Lessa, até mesmo “instituições clássicas do Bem-Estar Social, com especial ênfase

na expansão das oportunidades financiadas pelo Estado, regulações várias para conter o poder de

mercado de grandes empresas, restrições ao direito de herança e doações, garantia de um mínimo

legal, etc.” (LESSA, 2002, p.665).

___________________ 2.. Popper impôs a si próprio o enfrentamento de alguns paradoxos em The Open Society and its Enemies para os quais apresentou resposta, tais como

os paradoxos da soberania, da democracia, da liberdade e da tolerância, além, é claro, do já mencionado paradoxo do planejamento estatal. (POPPER,

1998, p.289-291, v. 1). Assim como Friedrich Hayek, Popper parte igualmente do conceito de ignorância radical,

vale dizer, parte da ideia de que todos somos incapazes de compreender a totalidade das interações

sociais que envolvem a atuação de instituições, organizações e indivíduos em uma vasta rede

intricada de relações. A concepção de Grande Ordem Espontânea de Hayek funda-se na convicção

de que o livre mercado permite que instituições sejam criadas espontaneamente e que todos os

atores sociais passam a agir de modo cooperativo na busca da satisfação da preferência de cada um.

Como foi dito, uma das ideias centrais de Friedrich Hayek no clássico O Caminho da Servidão é

que quem controla toda atividade econômica determina os fins políticos pelos quais os demais

deverão viver, assertiva corroborada pela experiência histórica.

Do mesmo modo, não parece haver dúvida de que uma intervenção estatal robusta no livre

mercado reduz substancialmente as liberdades individuais. Não há, todavia, evidência histórica de

que a completa ausência de regulação governamental sobre o livre mercado, como defendem os

libertarianos, resulte na geração incessante de riqueza e liberdade.

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Ultrapassando a rigidez da concepção anti-intervenção hayekiana, Popper propõe um

modelo de intervenção democrática para realizar reformas graduais com o objetivo de aprimorar

continuamente as instituições. O risco de que tais experimentos sociais se tornassem restritivos à

liberdade seria afastado pela recusa em promover reformas holísticas ou totalizantes cujos

resultados deletérios foram evidenciados pelos experimentos dos regimes totalitários. Popper

argumenta que o programa leninista conhecido como Nova Política Econômica – NEP - representou

um “limitado e temporário retorno à empresa privada” e se constituiu numa demonstração do

fracasso das reformas totalizantes realizadas pelo regime soviético durante o chamado “período do

comunismo de guerra.” (POPPER, 1998, p.90, v.2).

De outro lado, Popper sustenta que o capitalismo irrestrito – termo que utiliza para designar

o capitalismo do tipo laissez-faire que tanto revoltara a Karl Marx e seus epígonos – dera lugar ao

intervencionismo de conteúdo político no campo econômico, citando como exemplos a Inglaterra,

os Estados Unidos e as “chamadas ‘democracias menores’ com a Suécia à frente onde a tecnologia

da intervenção democrática alcançou até agora seu nível mais elevado.” (POPPER, 1998, p.147,

v.2).

Reformas graduais e limitadas apresentariam a vantagem de promover experimentos que

podem ser corrigidos ou retificados, de modo a causar o menor dano possível às pessoas e às

instituições. Divergindo, portanto, da visão anti-intervencionista preconizada por Hayek e pelo

poderoso movimento libertariano que o economista austríaco inspirou, Popper preconiza, até onde

podemos vislumbrar, a intervenção de conteúdo político no domínio econômico fundado em dois

objetivos específicos: i) a necessidade de evitar que a democracia representativa do tipo liberal seja

convertida em algum tipo de plutocracia; e ii) a necessidade de proteger os mais fracos contra a

ação deletéria dos mais fortes no campo econômico, de modo a salvaguardar a primazia da

liberdade. Como desdobramento do segundo objetivo, pode-se argumentar que Popper criou o

chamado utilitarismo negativo pelo qual a proteção dos mais fracos pode ocorrer sob a forma da

adoção de políticas públicas com escopo de combater o pauperismo e também impedir o sofrimento

evitável.

Quanto ao primeiro objetivo, vemos que Popper não hesita em sustentar que o poder

econômico deve ser submetido ao poder ou controle político. Neste aspecto, Popper parece seguir o

padrão legado pelo liberalismo político clássico de acordo com o qual qualquer poder que se

pretenda democrático deve se submeter a controles constitucionalmente limitados e que gozem,

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demais disso, de consentimento político. Invertendo completamente a lógica do marxismo clássico

e, por que não dizê-lo?, do atual movimento libertariano, Popper refuta a análise política de

conteúdo essencialmente economicista e argumenta que o poder político deve se sobrepor ao poder

econômico. Acima de tudo, Popper se preocupa que o poder econômico robusto ou incontrolado

venha a comprar o poder político:

O dogma de que o poder econômico está na raiz de todo o mal deve ser repelido. Seu lugar deve ser ocupado por uma compreensão dos perigos de qualquer forma de poder não controlado. O dinheiro, como tal, não é particularmente perigoso. Torna-se perigoso somente quando pode comprar o poder, ou diretamente, ou pela escravização dos economicamente fracos, que precisem se vender a fim de viver. (Itálico do autor) (POPPER, 1998, p.135, v. 2).

Popper argumenta que o poder econômico pode ser “domado” em uma democracia,

existindo “as chaves” – aqui, esse termo parece designar a existência de mecanismos institucionais

– que permitam “construir instituições para o controle democrático do poder econômico e para

proteger-nos da exploração econômica.” (POPPER, 1998, p.135, v.2). Não parece haver dúvida de

que o escopo perseguido por Popper é controlar o poder econômico avassalador a fim de evitar que

venha a subjugar o poder político. Na perspectiva popperiana, domar o poder econômico robusto ou

incontrolado significa impedir que a democracia representativa se converta em um sistema político

plutocrático.

No que pertine ao segundo objetivo, Popper concebe a intervenção estatal no livre mercado

com o propósito declarado de proteger os economicamente mais fracos das ações que tornem a luta

pela sobrevivência incompatível com o exercício efetivo da liberdade política. Sua percepção é a de

que uma condição econômica que reduza os indivíduos a uma situação de extrema pobreza ou

mesmo análoga à escravidão deve ser evitada a fim de preservar a primazia da liberdade. Popper

propõe então substituir a conhecida fórmula dos utilitaristas clássicos – a felicidade para o maior

número possível - pela fórmula “a menor quantidade possível de dor para todos” ou, em síntese,

“dor ao mínimo.” (POPPER, 1998, p.256, v.1). Essa fórmula constitui a base do chamado

utilitarismo negativo popperiano e, segundo o pensador austríaco, “pode-se converter, creio, num

dos princípios fundamentais (por certo que não o único) da política pública.” (POPPER, 1998,

p.156, v.1). Indo um pouco mais além, Popper propôs a completa eliminação da pobreza, projeto

que declarou ser factível, ao contrário do que presumia ser o pensamento majoritário dos

economistas. Não chega a sugerir a adoção de qualquer política pública redistributivista, mas seu

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claro apelo contra o sofrimento evitável e a eliminação da pobreza permite-nos inferir que tinha em

mente adoção de uma política pública focalista que tivesse por escopo alcançar tais fins.

Todavia, fiel à tradição liberal clássica, Popper percebe que sua defesa do intervencionismo

estatal no campo econômico com o objetivo de proteger os mais fracos podia provocar uma série de

objeções dentro do próprio liberalismo. Por isso, reconhece que “o intervencionismo é, portanto,

extremamente perigoso”, mesmo adotando os métodos graduais de mecânica social por ele

preconizados. (POPPER, 1998, p.137, v.2).

Tentando superar essa aporia, argumenta que “a intervenção do Estado deve ser limitada ao

que for necessário realmente para a proteção da liberdade.” (POPPER, 1998, p.137, v.2). Mesmo

estabelecendo a primazia da liberdade como fundamento para a intervenção estatal no campo

econômico, ainda assim, admitiu que sua argumentação podia suscitar novos problemas

relacionados com a aquisição de novos poderes econômicos pelo Estado, a ponto de torná-lo

“irresistível.” (POPPER, 1998, p.137, v.2).

Na conferência A opinião pública à luz do liberalismo, proferida em 1954, Popper, ao

enumerar os fundamentos do liberalismo, repete o mantra de que um “o Estado é um mal

necessário”, argumentando que “seus poderes não podem ser multiplicados além da medida

necessária.” (POPPER, 2006, p.196). Como solução, sugere a aplicação de um princípio a que

chamou de “navalha liberal”, uma analogia declarada à famosa navalha de Ockham, princípio

segundo o qual “essências metafísicas não devem ser multiplicadas além do necessário.” (POPPER,

2006, p.196). Coloca deliberadamente de lado o homem hobbesiano e seu princípio aterrador homo

homini lupus para argumentar que, mesmo que todos os homens fossem anjos guiando-se pelo

princípio homo homini angelus, ainda assim, haveria homens fortes e fracos. (POPPER, 2006,

p.196). E, claro, nesse mundo de pura bondade angelical, argumenta, seria necessária a intervenção

do Estado para proteger o direito de todos “contra o poder dos fortes”. (POPPER, 1996, p.196).

Portanto, permitir que os mais fortes atuem livremente em um ambiente econômico do tipo

preconizado pelo capitalismo irrestrito – como o classificou Popper ao se referir ao capitalismo

laissez-faire – levaria certamente à confirmação da famosa sentença de Isaiah Berlin segundo a qual

“liberdade para os lobos quase sempre significa a morte para os cordeiros.” (BERLIN, 1981, p.25).

De qualquer modo, como foi dito na abertura do presente tópico, Popper chegou muito perto

de apresentar uma resposta ao paradoxo da regulação. Mas, ao reunir os elementos constitutivos do

pensamento popperiano aqui apresentados, pode-se afirmar que a regulação não pode ser tão

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robusta ou mesmo absoluta a ponto de tornar “irresistível” os poderes econômicos do Estado nem

tampouco pode ser tão risível a ponto de retirar dos fracos uma proteção legal mínima contra as

ações deletérias dos economicamente fortes, de modo a converter a democracia em uma plutocracia.

Tanto num caso (ou polo) como no outro o escopo perseguido não é outro senão a defesa da

primazia da liberdade como fundamento da Grande Sociedade Aberta.

3. A GRANDE SOCIEDADE ABERTA E A INSTITUIÇÃO DO CONTROLE

DEMOCRÁTICO

O outro problema que atormenta a democracia representativa do tipo liberal envolve a

criação e/ou reforço de salvaguardas que protejam suas instituições contra os ataques de

movimentos políticos que pretendem destruí-la a partir de dentro do sistema, ou seja, utilizando os

próprios procedimentos estabelecidos pelas regras do jogo democrático. As salvaguardas

institucionais permitem que se exerça o controle democrático, aqui entendido como o controle dos

atos dos governantes pelos governados.

Não é, por certo, uma tarefa fácil e talvez mesmo não exista uma fórmula ou solução

definitiva para esse dilema considerando as diversas variáveis que incidem sobre o problema. Desde

já, importa ressaltar que Popper, cuja teoria da democracia se constitui no objeto do presente estudo,

atribuiu especial ênfase à análise da questão. Todavia, o fato de que o problema enfocado apresenta

consideráveis dificuldades para a sua efetiva resolução não serve como argumento suficiente para

recusar o seu enfrentamento. Como foi dito, a despeito da derrota dos totalitarismos de direita

(fascismo e nacional-socialismo) e de esquerda (comunismo), as instituições da democracia

representativa do tipo liberal seguem sendo alvo de pesados ataques que tem por desiderato não à

sua reforma gradual, mas tão-somente a sua mera demolição.

Não é absolutamente o caso de afirmar que a história tenha chegado ao final com a vitória

definitiva da democracia representativa do tipo liberal, negando, assim, a possibilidade de se criar

instituições que permitam maior participação social. A mera admissão de tal argumento significaria

nada menos do que preconizar o estabelecimento de um bizarro historicismo liberal, repetindo o

grave equívoco em que incorreram Karl Marx e seus seguidores que acreditaram na caminhada

inexorável da história rumo a suposto plano final. Ao reverso, trata-se antes de reconhecer que a

democracia do tempo presente não pode sobreviver sem a preservação de algumas instituições

forjadas pela vetusta tradição liberal e cuja eficácia foi comprovada pela história. Dito de outro

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modo, mais ainda dentro da mesma linha argumentativa, afigura-se como correto o argumento

sustentado por Ricardo Borges segundo o qual não se pode falar em democracia sem prescindir das

instituições que caracterizam a democracia representativa do tempo presente, tais como partidos,

eleições, parlamentos e governos. (BORGES, 2009, p.41).

A presente discussão é pertinente porque, a despeito da derrota dos totalitarismos que

caracterizaram o conturbado e sangrento século XX, se assiste hoje ao advento dos chamados

regimes híbridos ou semidemocracias cujos projetos políticos pretendem, por assim dizer,

ultrapassar as instituições da democracia representativa do tipo liberal. A própria designação ou

adjetivação dada pela literatura existente aos novos regimes políticos – “regimes híbridos”,

“semidemocracias”, “autoritarismo competitivo”, etc. – sugere a dificuldade em encontrar uma

caracterização ideal para classificá-los. Desvela também uma ambiguidade ou mesmo contradição

talvez insuperável que consiste em admitir que um sistema político venha a ser simultaneamente

democrático e autoritário. Custa crer que autoridades políticas autoritárias consigam edificar

instituições democráticas se não permitem o livre exercício da crítica pela oposição leal e do debate

público dos assuntos mundanos ou políticos, requisitos essenciais para a reforma gradual e

aprimoramento das instituições de qualquer sistema político. A mera alegação de que se conta com

a maioria eleitoral não se constitui em argumento válido para constranger a atuação da oposição

leal, o funcionamento da mídia livre ou não oficial e a manifestação espontânea de movimentos

civis contestatórios.

A ideia da instituição do controle social da imprensa sobre a atuação de poderosos grupos

econômicos que detém o domínio das principais organizações da imprensa, de modo a poder

supostamente manipular a opinião pública, deve ser ponderada com extrema cautela, sobretudo

porque a profusão de informações divulgadas hoje pela internet mitigou exponencialmente a força

desse argumento. Nesse aspecto, mesmo respeitando as posições divergentes, não parece excessivo

repetir aqui a correta lição novecentista de John Stuart Mill sobre a utilidade da imprensa livre

como necessária salvaguarda contra a ação deletéria de governos tirânicos e corruptos: “É de se

esperar tenha chegado o tempo em que não se faz necessária defesa alguma da ‘liberdade de

imprensa’ como uma das garantias contra os governos tirânicos e corruptos.” (MILL, 1991, p.59).

Foi ainda John Stuart Mill que ponderou que não somente os homens são falíveis, mas recorda que

verdades tidas como estabelecidas em determinados momentos históricos são depois reconhecidas

como equivocadas. (MILL, 1991, p.62). Para Popper, a liberdade de imprensa se constitui numa

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relevante salvaguarda da democracia, sendo “exigida porque nosso objetivo é que o público receba

uma informação correta.” (POPPER, 1998, p.347, v.2). Portanto, seja pelo reconhecimento da

existência da falibilidade humana (como reclamou Stuart Mill), seja pela necessidade de manter o

público bem informado, de modo a permitir o controle dos atos dos governantes pelos governados

(como defendeu Popper), os males que afetam a democracia devem ser resolvidos sem ofensa à

liberdade de imprensa como uma das salvaguardas institucionais que protegem a democracia

representativa.

Portanto, a discussão sobre quais salvaguardas devem ser estabelecidas para proteção da

democracia representativa se apresenta como extremamente relevante, considerando a ascensão dos

regimes híbridos ou autoritários competitivos. Steven Levitsky e Lucan Way assinalam que após a

Guerra Fria constatou-se a proliferação de regimes políticos híbridos em várias regiões do planeta

(África, a pós-comunista Eurásia na qual se incluem a Rússia e outros países, Ásia e América

Latina) que combinaram regras democráticas com governança autoritária durante os anos 1990.

(LEVITSKY e LUCAN, 2002, p.51). Muitos regimes híbridos permanecem em funcionamento

ainda hoje e é forçoso reconhecer que na América Latina adquiriram exponencial expansão a partir

da Venezuela chavista ou bolivariana, a matriz do modelo híbrido no continente que serve de

inspiração para os movimentos políticos acentuadamente iliberais. Os procedimentos eleitorais

realizados pelos regimes autoritários competitivos já não são suficientes para que sejam

reconhecidos como autênticas democracias eleitorais. O caso venezuelano é bem ilustrativo: os

processos eleitorais ali realizados estão bem distantes de caracterizar aquele sistema político como

uma democracia robusta ou, quando menos, consolidada. Daniel Levine e Enrique Molina

recordam, por exemplo, que, desde o relatório de 2009, a respeitada organização não governamental

Freedom House já não considera mais a Venezuela como uma democracia eleitoral. (LEVINE e

MOLINA, 2012, p.170).

A independência do poder judiciário também se apresenta como mera ficção em muitos

países que detém regimes políticos híbridos, considerando a sua notória subordinação ao executivo,

como demonstram os trabalhos de Raul Urribarri (URRIBARRI, 2011, p.854-884) e Matthew

Taylor (TAYLOR, 2014, p.229-259). Logo, os mecanismos institucionais utilizados pelos regimes

híbridos para demolir as instituições da democracia representativa do tipo liberal remetem aqui à

discussão sobre quais salvaguardas devem ser instituídas para proteger a democracia.

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Não é, decerto, um problema novo a dificuldade que as democracias representativas

encontram para criar salvaguardas que evitem a erosão de suas instituições por meio de movimentos

políticos antidemocráticos. A história atesta a chegada ao poder político dos movimentos fascista e

nacional-socialista pela via eleitoral, conforme as regras do jogo. A novidade talvez esteja no tipo

de regime político que, em diferentes graus, se dedica objetivamente a demolir as instituições da

democracia representativa ao mesmo tempo em que nega sua natureza autoritária, a despeito das

evidências em sentido contrário. Como foi dito, a própria admissão pela literatura da existência de

regimes híbridos, semidemocracias ou autoritários competitivos desvela algum tipo de leniência

para com eles, partindo talvez do pressuposto de que se encontram a meio caminho de sua

institucionalização democrática. Todavia, não pode ser descartada a hipótese inversa, ou seja, a de

que os regimes híbridos estejam a trilhar caminhos que os conduzem a novas formas totalitárias de

governança, embora mais sutis, considerando a aparente impossibilidade de retornar às formas

totalitárias do século XX. Aqui, a toda evidência, impõe-se a discussão sobre como preservar as

liberdades liberais clássicas que, uma vez conquistadas, parecem perder seu poder atrativo ou valor.

Como bem ressalta Robert Dahl, liberdades liberais clássicas – como oportunidades de exercer

oposição ao governo, formar organizações políticas, manifestar-se sobre questões políticas sem

temer represálias governamentais, etc. – “são uma parte da definição de contestação pública e de

participação”, as duas variáveis mais relevantes utilizadas para mensurar o grau de poliarquia ou

oligarquias competitivas dos sistemas políticos existentes. (DAHL, 2005, p.41). Muito

adequadamente, Dahl recorda que tais liberdades - legadas pela rica e vetusta tradição liberal –

foram suprimidas inesperadamente – ou não tão inesperadamente, acrescentamos - por novos

regimes políticos, como se deram conta tardiamente Mosca, Croce e Salvemini, “críticos do regime

parlamentarista pré-fascista.” (DAHL, 2005, p.41).

De qualquer forma, os movimentos totalitários que surgiram na primeira metade do

tumultuado e sangrento século XX eram então desconhecidos e muitos não puderam identificar a

tempo seu caráter visceralmente antidemocrático. Todavia, tendo passado por tais experiências e

reconhecendo o quanto vale a preservação das liberdades liberais clássicas, não cabe mais o recurso

à ingenuidade de acreditar que a liberdade não poderá ser perdida, apesar de tudo. Os elementos

constitutivos que os regimes híbridos ostentam permite-nos inferir que as liberdades liberais mais

comezinhas se encontram não sob ameaça, mas sob franco recuo ou mesmo acentuado declínio, de

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modo a retirar de tais sistemas políticos a possibilidade de classificá-los minimamente como

democráticos.

Não se trata, pois, de uma nova “teoria da conspiração liberal” – para tomar aqui emprestada

a expressão criada por Karl Polanyi ao criticar os liberais do passado -, mas de fatos históricos

atuais devidamente comprovados. (POLANYI, 2000, p.184-185). Daí advém a relevância de

discutir a necessidade de se criar e aprimorar continuamente salvaguardas que possam efetivamente

proteger as instituições da democracia representativa contra os ataques de movimentos que querem

destruí-la.

Além do problema relativo à regulação do livre mercado, Popper atribui especial relevância

ao tema acima indicado, tratando-o com grande apuro em The Open Society. Diferentemente de

Schumpeter, cujo pensamento está centrado nas tentativas de explicar o real funcionamento da

economia capitalista e o caráter procedimentalista da democracia, Popper exibe uma teoria da

democracia de conteúdo acentuadamente político, pois não lhe escapa a compreensão de que o livre

mercado necessita gerar riqueza e bem-estar sem descuidar, todavia, da instituição de controles que

preservem a estabilidade da democracia representativa.

Como já foi adiantado, Popper considera que qualquer sistema político somente pode ser

reputado como democrático se permite a substituição dos governantes pelos governados sem

derramamento de sangue. Essa troca dos governantes ocorre por meio de eleições limpas, universais

e, portanto, justas. (POPPER, 1998, p.140, v.1).

Não obstante isso, Popper argumenta que a mera adoção do procedimento eleitoral para

escolha dos governantes pelos governados não assegura o estabelecimento de instituições

“impecáveis e perfeitas” nem tampouco que “a política adotada pelo governo democrático seja

forçosamente justa, boa ou sadia, ou sequer melhor do que a adotada por um tirano benévolo.”

(POPPER, 1998, p.140, v.1). Na perspectiva popperiana há sempre o risco latente de que os

governados prefiram substituir as instituições da democracia representativa por uma tirania

benévola, concretizando, assim, o derradeiro sistema político concebido por Platão no livro A

República. Trata-se, na verdade, do que Popper denominou de “paradoxo da democracia”, ou seja,

“a possibilidade de que a maioria possa decidir que um tirano deva reinar.” (POPPER, 1998, p.290,

v.1).

Indo além da concepção minimalista schumpteriana de democracia (SCHUMPETER, 2013,

p. 321-337), Popper propõe a adoção de métodos igualitários para o que classificou de instituição

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do “controle democrático” que permitam aos governados controlar os atos dos governantes nos

períodos entre eleições. Assim, a prestação de contas dos governos para os governados se constitui

em um dos métodos necessários à instituição do controle democrático. Para Popper, o “voto

majoritário, juntamente com instituições para manter o público bem informado, são o melhor,

embora não infalível, meio de controlar tal governo. (Não há meios infalíveis).” (POPPER, 1998,

p.290, v.1).

Embora Popper tenha reconhecido que “as leis de salvaguarda da democracia, acham-se

ainda em estado bem rudimentar de desenvolvimento”, não deixou de elaborar algumas regras – na

verdade, 7 regras – que, uma vez adotadas, resultariam na proteção das instituições da democracia

representativa contra os movimentos políticos que pretendem destruí-las. (POPPER, 1998, p.346,

v.2). Segundo Popper, as 7 regras incluem desde o reconhecimento de que a substituição dos

governantes deve ser feita sem derramamento de sangue até à necessidade de “ampla proteção às

minorias”, mas excluindo de tal proteção os que “incitam os demais à derrubada violenta da

democracia.” (POPPER, 1998, p.167-168, v.2).

Como quase tudo o que deflui da concepção de Grande Sociedade Aberta, os 7 passos ou

regras apresentam um aspecto de natureza negativa, ou seja, apoia-se na ideia defensiva de proteção

da democracia, considerando “o fato de que ela (a democracia) controla e equilibra o poder.”

(POPPER: 1998, p. 169, v. 2).

Por fim, mas não menos importante, cumpre frisar que o controle democrático preconizado

por Popper não implica na adoção de instituições relativas à implantação da democracia

participativa ou direta, já que, “embora o povo possa influenciar as ações de seus governantes pela

ameaça de despedi-los, nunca se governa a si mesmo, em qualquer sentido concreto e prático.”

(POPPER, 1998, p.140, v.1). O controle democrático que tinha em mente repousava antes na crença de que os indivíduos

podem fazer uso da razão crítica e, assim, pressionar os governantes a prestar contas dos seus atos,

de modo a promover a reforma gradual das instituições democráticas em um ambiente de liberdade

e sem apelo à violência. Ao contrário de Joseph Schumpeter, que via o cidadão mediano como um

eleitor desinformado e pouco propenso a participar da atividade política, Popper revela ao longo de

toda a sua obra uma crença bastante otimista na capacidade de ação política dos indivíduos. Sua

declarada adesão à tradição iluminista certamente contribuiu para essa funda convicção política.

Para Popper, por exemplo, “há um grão de verdade” na máxima vox populi, vox dei:

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Conduto, acredito que há um grão de verdade no mito da vox populi. Seria possível exprimi-lo da seguinte maneira: embora não raro tenham acesso apenas limitado a fatos importantes, as pessoas simples são muitas vezes mais sábias do que os governantes, e, se não mais sábias, são frequentemente guiadas por interesses melhores e mais generosos. (Exemplos: a disposição do povo tchecoslovaco de lutar, na véspera do Acordo de Munique; ou, novamente, o protesto contra o plano Hoare-Laval). (POPPER, 2006, p.12).

Em resumo, Popper ressalta que a democracia oferece a possiblidade de reforma razoável

das instituições sem o recurso à violência e que, se “as tendências antidemocráticas latentes”

prevalecerem, a batalha travada no campo das ideias estará perdida e, junto com ela, a própria

democracia. (POPPER, 1998, p.346, v.2).

Como foi assinalado, o advento dos regimes híbridos após o fim da Guerra Fria demonstra, à

evidência, que a democracia representativa se encontra hoje sob ameaça e que há, portanto,

necessidade de se criar salvaguardas para a efetiva proteção de suas instituições. Portanto, a

concepção de Grande Sociedade Aberta popperiana continua a importar para o debate das ideias e, o

que é mais relevante, apresenta propostas para alguns dos relevantes dilemas enfrentados hoje pelas

instituições da democracia representativa do tipo liberal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vinculado à tradição liberal clássica, Karl Popper elaborou a sua concepção de Grande

Sociedade Aberta quando os movimentos políticos totalitários se encontravam em franca expansão

na primeira metade do século XX. Assim como outros pensadores no mesmo período histórico,

Popper preocupou-se com a revitalização do liberalismo político, optando por colocar a liberdade

política como valor primordial para a defesa das instituições da democracia representativa.

Popper jamais pretendeu criar uma teoria democrática perfeita ou infalível, daí porque

enfatizou a utilização de um método para a reforma gradual e pacífica das instituições da

democracia representativa do tipo liberal. Esse método para a reforma das instituições democráticas

envolve o uso permanente da razão crítica, a proteção do individualismo igualitário, o alcance

deliberadamente limitado dos experimentos sociais por tentativas de ensaio e erro, dentre outros

relevantes elementos constitutivos.

Em síntese apertada, vimos que a ideia da concepção de Grande Sociedade Aberta

popperiana não se esgota com o colapso dos regimes políticos que haviam sido erigidos com base

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no ideário do historicismo marxista, mas, ao reverso, oferece aspectos relevantes para o

enfrentamento de alguns dilemas atuais do liberalismo.

Um dos aspectos abordados foi a visão peculiar com que Popper vislumbrou a interação

entre governo e livre mercado, notadamente porque ainda se vive sob o influxo da grave crise

econômica de 2008, ocasião em que se iniciou um amplo debate planetário sobre esse tema. Nesse

aspecto, a teoria da democracia popperiana diverge tanto da concepção radical de Estado Mínimo

defendido pelos libertarianos quanto dos arranjos institucionais redistributivistas propostos pelos

chamados liberais igualitários. Mesmo considerando que Popper não apresentou uma resposta clara

para o que aqui chamamos de “paradoxo da regulação”, ainda assim, nossa convicção é a de que é

possível extrair uma resposta – decerto, provisória e, portanto, sujeito a tentativas de refutação –

para tal paradoxo, como foi indicado na segunda seção ou tópico do presente trabalho.

Por último, mas não menos importante, discutiu-se o problema da criação e preservação de

salvaguardas que possam, sem embargo, proteger as instituições democráticas contra os

movimentos políticos que hoje querem destruí-las. Surgidos após o fim da Guerra Fria, os

chamados regimes híbridos caracterizam-se crescentemente pelo desprezo às liberdades liberais,

que se veem novamente fortemente constrangidas ou simplesmente ameaçadas de supressão. Nosso

argumento consistiu em tentar demonstrar que a criação e manutenção de salvaguardas

institucionais ocupa uma posição central na teoria da democracia popperiana, porquanto o pensador

austríaco anteviu, com grande lucidez, que a primazia da liberdade sempre estaria ameaçada pelos

movimentos antidemocráticos, necessitando, portanto, de permanente vigilância e defesa.

A concepção de Grande Sociedade Aberta de Karl Popper segue, portanto, consistente na

batalha das ideais, oferecendo respostas para alguns problemas que atormentam hoje a democracia

representativa do tipo liberal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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