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1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Mestrado em Urbanismo V SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO “Cidades: temporalidades em confronto” Uma perspectiva comparada da história da cidade, do projeto urbanístico e da forma urbana. SESSÃO TEMÁTICA 6: TERRITÓRIOS, FRONTEIRAS E ESTRATÉGIAS DE GESTÃO URBANA ESPAÇOS PÚBLICOS, EXPANSÃO URBANA: USO E ABUSOS COORDENADORA: YARA VICENTINI (FAU-PUCCampinas) A CASA AUSENTE: UM ESTUDO DA SIMBOLOGIA DA OCUPAÇÃO DO ESPAÇO PELA POPULAÇÃO SEM CASA Ana Lúcia Vieira dos Santos 1 - Introdução O homem é um ser que tem consciência de si mesmo no tempo e no espaço. Atua sobre o ambiente físico, demarcando seu território e construindo abrigos. Para isso pensa, planeja e antecipa resultados, como observa Marx (1975, p. 202): “Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colmeia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo do trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual ele opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem que subordinar sua vontade.” A ação humana é transformadora, e além de técnica, é expressiva. Procura dar significado ao mundo, impor uma certa ordem. O homem classifica, nomeia, distingue e codifica . Todos os ambientes [humanos] resultam de escolhas feitas entre todas as alternativas possíveis.” (RAPOPORT,[1979?], p.31). O espaço humano torna-se assim um sistema de símbolos, significados e esquemas cognitivos. Entendemos por arquitetura qualquer atividade humana que transforma intencionalmente o ambiente físico, segundo um esquema diretor, organizando espaço, tempo, significado e comunicação, tornando essa organização explícita e visível. É um produto socio-cultural, definindo-se cultura como resumiram Kroeber e Kluckhohn, apud Wilson(1998, p. 130): “ Culture is a product; is historical; includes ideas, patterns and values; is selective; is learned; is based upon symbols; and is an abstraction from behavior and the products of behavior.” É também um sistema de comunicação não-verbal , que se manifesta consciente ou inconscientemente. Assim como os indivíduos diferem uns dos outros enquanto indivíduos e enquanto membros de um grupo, as sociedades diferem enquanto conjuntos culturais. A materialização do significado será sempre culturalmente específica do grupo que a produziu.

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    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE CAMPINAS Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

    Mestrado em Urbanismo

    V SEMINRIO DE HISTRIA DA CIDADE E DO URBANISMO Cidades: temporalidades em confronto

    Uma perspectiva comparada da histria da cidade, do projeto urbanstico e da forma urbana.

    SESSO TEMTICA 6: TERRITRIOS, FRONTEIRAS E ESTRATGIAS DE GESTO URBANA

    ESPAOS PBLICOS, EXPANSO URBANA: USO E ABUSOS COORDENADORA: YARA VICENTINI (FAU-PUCCampinas)

    A CASA AUSENTE: UM ESTUDO DA SIMBOLOGIA DA OCUPAO DO ESPAO PELA POPULAO SEM CASA

    Ana Lcia Vieira dos Santos 1 - Introduo O homem um ser que tem conscincia de si mesmo no tempo e no espao. Atua sobre o ambiente fsico, demarcando seu territrio e construindo abrigos. Para isso pensa, planeja e antecipa resultados, como observa Marx (1975, p. 202): Uma aranha executa operaes semelhantes s do tecelo, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colmeia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha que ele figura na mente sua construo antes de transform-la em realidade. No fim do processo do trabalho aparece um resultado que j existia antes idealmente na imaginao do trabalhador. Ele no transforma apenas o material sobre o qual ele opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem que subordinar sua vontade. A ao humana transformadora, e alm de tcnica, expressiva. Procura dar significado ao mundo, impor uma certa ordem. O homem classifica, nomeia, distingue e codifica . Todos os ambientes [humanos] resultam de escolhas feitas entre todas as alternativas possveis. (RAPOPORT,[1979?], p.31). O espao humano torna-se assim um sistema de smbolos, significados e esquemas cognitivos. Entendemos por arquitetura qualquer atividade humana que transforma intencionalmente o ambiente fsico, segundo um esquema diretor, organizando espao, tempo, significado e comunicao, tornando essa organizao explcita e visvel. um produto socio-cultural, definindo-se cultura como resumiram Kroeber e Kluckhohn, apud Wilson(1998, p. 130): Culture is a product; is historical; includes ideas, patterns and values; is selective; is learned; is based upon symbols; and is an abstraction from behavior and the products of behavior. tambm um sistema de comunicao no-verbal , que se manifesta consciente ou inconscientemente. Assim como os indivduos diferem uns dos outros enquanto indivduos e enquanto membros de um grupo, as sociedades diferem enquanto conjuntos culturais. A materializao do significado ser sempre culturalmente especfica do grupo que a produziu.

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    2 - A Casa O espao humano desde seus primrdios um espao simblico. Antes mesmo da construo dos primeiros abrigos, o espao j especializado e hierarquizado. O abrigo um fato tcnico comum aos homens e a alguns animais. O que transforma um abrigo numa casa seu valor simblico. As primeiras barreiras materiais, telhados e paredes, oferecem mais do que simples proteo fsica. O telhado se interpe entre o homem e um poder sobre-humano ainda incompreensvel, capaz de atingi-lo atravs de fenmenos incontrolveis como chuva ou neve. A parede o protege dos perigos de um mundo ainda selvagem. Esta fantasia de proteo fsica alia-se ao uso social do espao construdo para delimitar funes sociais, explicitando limites e interdies. As vrias possibilidades simblicas da casa podem ser assim resumidas: Demonstrao de status ( lugar e funo do indivduo na sociedade). Ponto de encontro social. Barreira social ( proteo do ncleo familiar). Afirmao de identidade pessoal. Limite (coeso). Proteo ( acolher, nutrir, proteger). O espao da habitao essencialmente protetor. Muito mais do que oferece abrigo fsico, estabelece um limite vital entre o pblico e o privado, protegendo o indivduo das presses sociais. A casa o mais forte smbolo de proteo e segurana, no-eu que protege o eu( Bachelard,1977, p. 22), espao de liberdade do ser. Ainda que no aparea concretamente, sua fora simblica permanece, oferecendo ao homem apoio para enfrentar um mundo hostil. 3 - Material e Mtodo O presente estudo baseou-se na observao direta da populao sem casa da cidade do Rio de Janeiro, desde outubro de 1996, com o objetivo de analisar seu relacionamento com o espao construdo. As observaes foram anotadas em fichas datadas contendo croquis do local, posio dos indivduos observados, objetos a eles pertencentes, e quando possvel sexo e faixa etria aparente. Optou-se pela no realizao de entrevistas, por se tratar de estudo das funes simblicas do espao construdo, comunicadas de forma no-verbal. Exemplo de Ficha

    Meio-fio

    Proj. edificios

    beb mulher

    carrinho

    beb

    poste

    Caixotes/ sacos

    Mulher 20/30 anos com beb Rua da Quitanda Centro Maio / 1997 Cercadura com caixas , sacolas e pertences, aproveitando pequeno recuo no alinhamento dos edifcios. Sem marquise.

    cadeira

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    4 - A Casa Ausente Uma vez na rua, o homem retorna s mais primitivas condies de vida. Volta a ser nmade, precisa caar seu alimento e se proteger de agresses fsicas. Enquanto o homem primitivo est em posio de domnio em seu habitat, o sem - casa se encontra na posio de menor status e maior desproteo em seu ambiente. Ao ser privado de casa o indivduo vai perdendo o referencial de si mesmo. No espao pblico da rua, deixa de contar com a barreira fsica que o protege das presses sociais. Precisa ento refazer seus mecanismos de defesa, adaptando suas necessidades s suas possibilidades. Para conter a desintegrao moral e psquica causadas pela vida na rua, agarra-se idia de casa como smbolo de proteo e segurana. Faz isso apropriando-se do espao construdo e mobilirio urbano, transformando sua funo manifesta numa funo simblica. Esses recursos representam uma situao de compensao, um esquema ordenador que vem de algum modo colocar-se acima do caos psquico, com o objetivo de manter a coeso. A casa-na-rua a princpio concreta. Os sem-casa a (re)produzem com caixotes, papeles ou qualquer sucata que sirva para delimitar fisicamente o espao. Com o passar do tempo tende a perder concretitude, tornando-se mais simblica, representada por elementos do espao construdo e mobilirio urbano. O processo de passagem da casa concreta para a casa ausente pode ser observado em quatro instncias, que dependem muito mais da organizao mental do indivduo do que do tempo de permanncia na rua: 1 - A delimitao concreta do espao. 2 - A casa-mvel. 3 - O uso do espao construdo 4 - A casa ausente 4.1 - A delimitao concreta do espao Nesta primeira fase na rua, o sem-casa tem necessidade de limitar concretamente o espao que lhe serve de abrigo. Faz isto usando caixas de madeira ou papelo, sacos e trouxas com seus pertences, numa cercadura simples, ou criando barracos em locais de menor movimento. A construo de barracos tende a se sedimentar numa favela, enquanto que as cercaduras favorecem o nomadismo, podendo os elementos que as compem serem carregados. Os sem-casa ainda carregam inmeros objetos que compem o cotidiano da casa, como colches, baldes, vassouras, espelhos, quadros, panelas, cadeiras, etc. No espao que usam tambm ficam delimitadas as funes domsticas. H o espao para cozinhar / comer, lugar de dormir, sanitrios. Esses acampamentos podem durar vrios dias, acontecendo em praas ou caladas largas de pouco movimento. No indispensvel a existncia de marquises ou outro tipo de coberta, especialmente nos meses mais quentes. Geralmente esto em grupo, familiar ou no. Sua organizao mental ainda preserva relaes sociais e permite at que tenham emprego regular.

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    4. 2 - A casa-mvel Os sem-casa que constrem um carro de sucata esto num estgio de maior nomadismo. Circulam pela cidade com seus carros, que obedecem a um modelo. So quase sempre homens, e excepcionalmente pequenos ncleos familiares. O carro usado para carregar pertences, eventualmente crianas pequenas e at mesmo animais. O condutor dorme junto ao carro ou sobre seu contedo. O carro serve como elemento de identificao grupal. Esses grupos se encontram em pontos determinados da cidade, especialmente terrenos baldios e reas sob viadutos, onde muitas vezes existe um ponto de gua que serve para a lavagem de roupas e banho. As relaes sociais e familiares vo perdendo solidez, porm os sem-casa ainda tentam manter uma atividade produtiva, como catar lixo. Foram observadas variaes do uso do carro em que o sem-casa ao invs de constru-lo usa carrinhos de beb ou de supermercado que provavelmente encontra no lixo. Croqui do carro construdo 4. 3 - O uso do espao construdo Nesta fase se acentua a perda de concretitude da casa. O sem-casa passa a escolher para abrigo nichos no espao construdo ou se coloca na proximidade de elementos que evocam diretamente a casa, como bancas de jornal, esculturas, trepa - trepa nas pracinhas. Estes locais no oferecem necessariamente o melhor abrigo fsico das imediaes, j sendo a funo simblica dominante. Famlias so raras, ainda persistindo pequenos grupos, especialmente duplas ou casais. Seus pertences j esto bastante reduzidos, geralmente se resumindo a uma ou duas trouxas, e eventualmente algum objeto de maior porte que adquiriu um significado especial.

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    O sem-casa se deita numa cama simblica, que permanece no mesmo local enquanto durar sua permanncia naquela rea. Nos perodos mais quentes esta cama sequer delimitada por papeles ou colches. Pode se colocar paralela ou perpendicularmente a uma parede, ficando a cabeceira sempre junto a um elemento vertical ( pilar, poste, frade ou rvore). 4. 4 - A casa ausente Quando o limite entre o pblico e o privado j no mais detectvel, a casa torna-se um smbolo que no mais se realiza no espao concreto. O sem-casa a representa atravs de manifestaes primitivas, como varrer o terreno ou adotar um objeto como marco simblico. A necessidade de continncia se expressa atravs da separao do eu e do no-eu por panos, faixas e plsticos enrolados no prprio corpo. O corpo o ltimo limite da identidade. Quando deixa de se ver no olhar do outro como um semelhante, o sem-casa perde totalmente o contato com a realidade. Objeto construdo com madeira, barbante Dormindo sob o objeto protetor e copo descartvel, demarcando territrio. 5 - Concluso O espao construdo um importante organizador psquico do homem. Vivendo nas ruas, o indivduo apropria-se do espao construdo, reinterpretando-o na tentativa de reproduzir a idia de casa, smbolo de proteo do eu. Os mais estruturados representam a casa concretamente, atravs de barracos ou barricadas. Os menos estruturados vo perdendo o referencial concreto, e progressivamente o contato com a realidade. Os pontos da cidade frequentados pelos sem-casa no so escolhidos ao acaso, nem esto necessariamente relacionados a uma efetiva proteo fsica. So lugares ricos de significado simblico. Pode-se observar uma relao entre a maneira de se expressar no espao e a preservao de relaes sociais. Ambas dependem mais da estrutura emocional do indivduo do que do tempo de permanncia na rua. As funes sociais so perdidas antes da funo protetora. Ao perder a funo primria de proteo o indivduo desumaniza-se, perdendo tambm contato com a realidade. A casa essencial para a integridade psquica do indivduo, que a reproduz como ltimo recurso de continncia. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ANZIEU, Didier. O Eu- Pele. So Paulo: Casa do Psiclogo, 1989. ARGAN, Giulio Carlo . Histria da Arte como Histria da Cidade. 3 ed. So Paulo: Martins Fontes, 1995. BACHELARD, Gaston. A Potica do Espao. Rio de Janeiro: Livraria Eldorado, 1977.

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    BETTELHEIM, Bruno. A Psicanlise dos Contos de Fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. GOMBRICH, EH. The Sense of Order - A Study in the Psychology of Decorative Art. 2 ed. New York: Phaidom, 1994. LEACH, Edmund. Cultura/ Culturas. In: Anthropos Homem , Enciclopdia EINAUDI, Portugal: Imprensa Nacional Casa da Moeda, v.5, p.102-135,1985. LEROI - GOURMAN, Andr. Evoluo e Tcnicas - Vol II - O Meio e as Tcnicas. Lisboa: Edies 70,1984. MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, v.1, 1975. RAPOPORT, Amos. The Meaning of the Built Environment. A nonverbal Communication Approach. Tucson: The University of Arizona Press, 1990. ________. Origens Culturais da Arquitetura.[1979 ?] Cap. 1, p. 26-42. ROSSI, Aldo . A Arquitetura da Cidade. Ed.So Paulo : Martins Fontes, 1995. RYBCZYNSKI, Witold. Casa: Pequena Histria de uma Idia. Rio de Janeiro: Record, 1986. SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada - Ensaio de Ontologia Fenomenolgica.2 ed. Petrpolis: Vozes, 1997. WHITE, Leslie A . Os smbolos e o Comportamento Humano. In : Cardoso FH, Ianni O, orgs. Homem e Sociedade. 10 ed. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976:180 - 192 WILSON, Edward O. Consilience- The Unity of Knowledge. New York: Knopf, 1998.