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SESSÃO - 04 9. OS TESTEMUNHOS LATINOAMERICANOS E O PROJETO UTÓPICO DA HISTÓRIA ORAL NO BRASIL: CULTURA INTELECTUAL, MILITÂNCIA E POPULISMO Ricardo Santhiago* * Graduado em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2004), especialista em Jornalismo Científico com pós-graduação no LabJor/Unicamp (2006), mestre (2009) e doutorando em História Social pela Uni- versidade de São Paulo, onde desenvolve tese sobre as ideias em história oral no Brasil, com bolsa concedida pela FAPESP. E-mail para contato: [email protected] 901 Resumo Testemunhas que escrevem lidam com conflitos que preocupam menos as testemunhas orais: o dever de narrar e a assunção da autori- dade narrativa são diluídos frente à demanda de um pesquisador; a exigência da lembrança e a necessidade do esquecimento redefinem-se com a autoridade compartilhada; a transferên- cia de responsabilidades minimiza o temor de seus efeitos. Na América Latina, o êxito na con- fecção e difusão dos testemunhos orais, como o de Rigoberta Menchú, considerado narrativa contra-hegemônica, acresceu à história oral feições militantes e ativistas. Dentro da cultura intelectual universitária, contudo, as justifica- ções e os propósitos destes testemunhos são por vezes deformados com vistas a ajustamen- tos institucionais, teóricos ou epistemológicos. Mas quais as formas que a história oral política e instrumental assume no Brasil? Seu projeto utópico é adequado aos cânones universitários ou exige abordagens autônomas? Palavras-chave: História oral; testemunhos; estudos utópicos; cultura intelectual Resumen Los testigos que escriben frente a los conflictos que afectan a menos que los testi- gos orales: el deber de narrar y de asumir la autoridad narrativa se diluyen para satisfacer la demanda de un investigador, la obligación de recordar y olvidar la necesidad de redefi- nir con autoridad compartida, la transferencia de responsabilidades minimiza el temor de sus efectos. En América Latina, el éxito en la producción y difusión de testimonios orales, como la de Rigoberta Menchú, considerada la narrativa contra-hegemónica, sumado a los militantes características de la historia oral y activistas. Dentro de la cultura intelectual de la universidad, sin embargo, las justificaciones y los propósitos de estos testimonios son a veces distorsionada con el fin de realizar ajustes en institucional, teórico o epistemológico. ¿Pero qué forma la historia oral de la vida política e instrumental adquiere Brasil? Su proyecto utó- pico se adapta a los cánones o la universidad requiere de enfoques autónoma? Palabras clave: La historia oral; los testigos; los estudios utópicos; la cultura intelectual

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  • SESSO - 04

    9. OS TESTEMUNHOS LATINOAMERICANOS E O PROJETO UTPICO DA HISTRIA ORAL NO BRASIL: CULTURA INTELECTUAL, MILITNCIA

    E POPULISMO

    Ricardo Santhiago*

    * Graduado em Jornalismo pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (2004), especialista em Jornalismo Cientfico com ps-graduao no LabJor/Unicamp (2006), mestre (2009) e doutorando em Histria Social pela Uni-versidade de So Paulo, onde desenvolve tese sobre as ideias em histria oral no Brasil, com bolsa concedida pela FAPESP. E-mail para contato: [email protected]

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    Resumo

    Testemunhas que escrevem lidam com conflitos que preocupam menos as testemunhas orais: o dever de narrar e a assuno da autori-dade narrativa so diludos frente demanda de um pesquisador; a exigncia da lembrana e a necessidade do esquecimento redefinem-se com a autoridade compartilhada; a transfern-cia de responsabilidades minimiza o temor de seus efeitos. Na Amrica Latina, o xito na con-feco e difuso dos testemunhos orais, como o de Rigoberta Mench, considerado narrativa contra-hegemnica, acresceu histria oral feies militantes e ativistas. Dentro da cultura intelectual universitria, contudo, as justifica-es e os propsitos destes testemunhos so por vezes deformados com vistas a ajustamen-tos institucionais, tericos ou epistemolgicos. Mas quais as formas que a histria oral poltica e instrumental assume no Brasil? Seu projeto utpico adequado aos cnones universitrios ou exige abordagens autnomas?

    Palavras-chave: Histria oral; testemunhos; estudos utpicos; cultura intelectual

    Resumen

    Los testigos que escriben frente a los conflictos que afectan a menos que los testi-gos orales: el deber de narrar y de asumir la autoridad narrativa se diluyen para satisfacer la demanda de un investigador, la obligacin de recordar y olvidar la necesidad de redefi-nir con autoridad compartida, la transferencia de responsabilidades minimiza el temor de sus efectos. En Amrica Latina, el xito en la produccin y difusin de testimonios orales, como la de Rigoberta Mench, considerada la narrativa contra-hegemnica, sumado a los militantes caractersticas de la historia oral y activistas. Dentro de la cultura intelectual de la universidad, sin embargo, las justificaciones y los propsitos de estos testimonios son a veces distorsionada con el fin de realizar ajustes en institucional, terico o epistemolgico. Pero qu forma la historia oral de la vida poltica e instrumental adquiere Brasil? Su proyecto ut-pico se adapta a los cnones o la universidad requiere de enfoques autnoma?

    Palabras clave: La historia oral; los testigos; los estudios utpicos; la cultura intelectual

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    Histria oral, entrevista, testemunho

    Muito j se falou sobre as frontei-ras e os avizinhamentos entre os testemu-nhos de provenincia oral e as entrevistas resultantes dos trabalhos de histria oral. Trata-se, efetivamente, de coisas diferen-tes: em termos de processos, resultados, gneros. Contudo, lidam com a voz viva; com o relato de experincias pessoais; possuem trajetrias paralelas; tm influ-ncias cruzadas; muitas vezes, tm tam-bm pressupostos e objetivos (polticos ou no) comuns. Falemos, primeiramen-te, de encontros em percursos.

    Embora tanto no mundo (ten-do os Estados Unidos como referncia, graas ao pioneirismo de Allan Nevins) como no Brasil a origem comumente re-putada da histria oral seja de escritrios e arquivos, geralmente voltados para a histria das elites o Oral History Re-search Office e o Programa de Histria Oral da Fundao Getlio Vargas no Rio de Janeiro, respectivamente , boa parte da expanso da histria oral se deveu vertente voltada quilo que se chamou de histria dos vencidos, histria das minorias, histria dos excludos, his-tria dos que no tm histria, histria dos que no tm voz, entre outras ex-presses.

    Tais vertentes, que no encontra-ram lugar na histria da histria oral por

    assim dizer oficial e hegemnica, adota-ram os testemunhos e a herana etno-lgica como sustentculos genticos. O livro Os filhos de Snchez, de Oscar Lewis, lanado em 1961 e identificado com os mtodos antropolgicos, adquiriu papel modelar nos anos 1960: apresenta a his-tria de uma famlia pobre, do Mxico, a partir dos relatos de seus integrantes. Para o autor, este mtodo d-nos uma viso cumulativa, multifacetada, panor-mica de cada individuo, da famlia como um todo, e de muitos aspectos da vida da classe baixa mexicana (1970, p. 11). Uma reviso mais detida da histria da histria oral no mundo pode ser encon-trada em um sem-nmero de artigos; o que importa, por ora, lembrar que a tra-dio dos testemunhos latinoamericanos ofereceu um passado a uma histria oral com vocaes polticas: a assim cha-mada histria oral militante.

    Sem dvida, a adeso (ou aluso) a esses testemunhos, amplamente di-fundidos internacionalmente, festejados como manifestaes exemplares de indi-vduos e grupos oprimidos, ajudou a am-parar uma das posturas da histria oral no Brasil: o projeto utpico de dar voz aos que, supostamente, no tm voz. Evidentemente esta no uma prerroga-tiva da histria oral no Brasil; no , tam-bm, caracterstica de toda a produo brasileira de histria oral no pas.

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    Histrias orais e suas utopias

    Ento, de que histria oral se fala? Dividida em disciplinas, tendncias e grupos de pesquisa, a histria oral de uns e de outros distingue-se tambm por sua misso. Alguns de seus ramos, nessa direo, prope a si prprias a misso de atuar politicamente; isto , investem uma metodologia que em princpio e por natureza neutra de um projeto ut-pico. Uma das obras que melhor sintetiza essa misso o livro bem conhecido de Paul Thompson, A voz do passado, em que o autor britnico afirma que a hist-ria oral

    Admite heris vindos no s dentre os lderes, mas dentre a maioria desconhecida do povo. Estimula professores e alunos a se tornarem companheiros de trabalho. Traz a histria para dentro da comunidade e extrai a histria de dentro da comunidade. Ajuda os menos privilegiados, e especial-mente os idosos, a conquistar dignidade e autoconfiana. Propicia o contato e, pois, a compreenso entre classes sociais e en-tre geraes. E para cada um dos historia-dores e outros que partilhem das mesmas intenes, ela pode dar um sentimento de pertencer a determinado lugar e a deter-minada poca. Em suma, contribui para formar seres humanos mais completos. Paralelamente, a histria oral prope um desafio aos mitos consagrados da histria, ao juzo autoritrio inerente a sua tradio. E oferece os meios para uma transforma-o radical no sentido social da histria (THOMPSON, 1992, p. 44)

    O livro mencionado , sem dvi-da, um dos que tiveram maior circulao

    e impacto internacional. No Brasil, tal utopia toma corpo de distintas manei-ras e em trabalhos de diferentes autores. Dentre outros possveis, utilizarei nesta ocasio os trabalhos de Yara Dulce Ban-deira de Atade, que parecem interessan-tes para a discusso a ser desenvolvida.

    Em seu livro Decifra-me ou devo-ro-te: Histria oral de vida dos meninos de rua de Salvador (1995), Atade relata que, aps sentir-se incomodada com as situ-aes de vida dos meninos de rua que via diariamente, nosso interesse pessoal, social e cientfico centrou-se inteiramen-te nessa rea (p. 19). Depois de maior aproximao ao tema (com leitura de bibliografia a respeito, pesquisas em jor-nais e discusses, alm da participao em eventos), consolidava-se nossa opi-nio de que as crianas e os adolescentes carentes e marginalizados precisavam ser ouvidos (p. 20).

    Considerando tais meninos marginalizados (p. 19), tais grupos desprotegidos e imaturos (p. 21), como um grupo silenciado (p. 23) (grupo silenciado com aspas no original) no prefcio, Meihy os classifica como um dos grupos sem histrias (p. 11), ca-lados em sem vozes (p. 12) , a autora descreve sua empresa:

    o principal desafio desta pesquisa foi a uti-lizao das tcnicas de histria oral, com o objetivo de dar voz a este segmento social, buscando-se ultrapassar as dificuldades

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    do relacionamento interpessoal por parte dos entrevistados, ao mesmo tempo em que se tornou necessrio, tambm, superar os condicionamentos sociais tanto dos entrevistadores quanto dos entrevistados (MEIHY, 1996, p. 23).

    Diz Atade que foram utilizados os procedimentos coerentes com a propos-ta inicial de dar voz aos chamados me-ninos de rua, com o objetivo de tornar seu discurso uma histria pblica (p. 23). Preocupada em captar as formas de ver, sentir e agir desses meninos na sua realidade cotidiana (p. 23), em entrevis-tas dirigidas nas quais os entrevistados eram postos inteiramente vontade (p. 26). Ao mesmo tempo, a autora afirma que o contato contnuo e os vrios di-logos de preparao permitiram verificar a sinceridade de suas palavras, bem como o cruzamento de certas informaes for-necidas por diferentes entrevistados (p. 26).

    A autora diz ainda que as 18 en-trevistas publicadas foram escolhidas por serem mais representativas, pela maior quantidade de informao e pela densidade (p. 33), e que, a esta colet-nea, acrescentaramos (...), atravs de comentrios e dados quantitativos, as concluses processadas de todo o mate-rial (p. 159). Diante de testemunhos emocionantes e contundentes (p. 165), que mostraram facetas manifestas ou ocultas surpreendentes (p. 160); resul-tantes da busca de, por todos os meios,

    dar condies ao depoente para falar sobre suas experincias, ideias e relaes pessoais ou sociais ligadas ao seu univer-so real, imaginrio e simblico (p. 189-90), Atade refora seu objetivo primeiro, sintetizado na citao de Meihy:

    O entendimento do papel da cultura acadmica dentro de interesses sociais imediatos implica uma tomada de posio sobre o sentido do conhecimento e da histria enquanto mediadora da reflexo contempornea (MEIHY apud ATADE, 1995, pp. 27-28).

    Na ltima seo do livro, Atade repete: Esta pesquisa pretendeu ampliar o debate e cumprir o compromisso assu-mido com esses meninos de dar-lhes voz e mediar o seu grito de socorro (p. 195). Em seguida, oferece seu veredito cultu-ra intelectual que critica:

    Ou a sociedade assume o coerente papel de usar o conhecimento e o saber para buscar uma autntica transformao so-cial, para lutar por um pas saneado das suas desigualdades, para criar uma comu-nidade mais fraterna e humana, ou de nada valer o conhecimento dos nossos cientis-tas sociais, e eles podero, cabisbaixos e envergonhados, questionar a validade e a utilidade dos seus diplomas, smbolos inteis do saber, perdidos no fundo do poo do caos social, juntamente com as suas desesperanas e as nossas frustraes

    (MEIHY apud ATADE, 1995, p. 195).

    Isto : para a autora, aquele co-nhecimento produzido por cientistas sociais que no tem como objetivo claro a transformao social no tem valor. En-

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    to em funo de compromissos polti-cos que se avalia o valor do conhecimen-to? Meihy, que no prefcio deste mesmo livro fala de um saber anacrnico e alie-nado, arrogante e apodrecido; de uma letargia acadmica que se apossa da inteligncia nacional que somente con-segue v-los [os meninos de rua] como perigosos, violentos, problemticos e, o que pior, sem soluo; de mtodos falidos de investigao e sem capacidade criadora, parece concordar, pelo menos no caso da histria oral e lamenta ainda que este recurso (...) [a histria oral] tem infelizmente de dialogar com as formas e temas clssicos nas fileiras dos estudos prestigiados pelas linhas mais conservadoras da militncia intelectual instalada entre ns (p. 12).

    Comentando outro livro de Ata-de, Clamor do Presente: Histria oral de fa-mlias em busca pela cidadania, publicado em 2002, Meihy a classifica como uma pessoa que assume, por meio do uso sistemtico e instrudo da histria oral, algumas das obrigaes de acadmicos que percebem a necessidade de olhar para o Brasil com olhos atentos s suas necessidades. Depois, afirma que a vi-sita proposta em Clamor do Presente um grito de dor. De dor to profunda que chega a convocar de volta militncia (Meihy, 2002, p. 14), para em seguida concluir que o intelectual agora tem outros compromissos. Yara mostra do papel mediador que temos de assumir

    como porta-vozes de um amanh que se far. Sim (p. 15).

    Mas no h outro espao entre um conjunto de alienao, anacronis-mo, arrogncia e podrido, e outro conjunto de inflexibilidade e militncia extremada? Pergunta-se se entre a letar-gia e o uso a histria oral como instru-mento capaz de dar voz aos silenciados e excludos (Atade, 2001, p. 72) no po-dem se abrigar posies intermedirias, como a de Lang, Campos e Demartini (1998): Nossa preocupao primeira o conhecimento da realidade, muito embo-ra os resultados da pesquisa visem trazer subsdios para ao (p. 11); [trata-se de], por meio da anlise e da interpre-tao, oferecer subsdios para uma ao racional e coerente (p. 10)

    Porm, dentre os compromissos e obrigaes do historiador oral nem sempre parece estar a apreciao das entrevistas que recolhe. Atade, nos dois livros citados, desenvolve reflexes sobre as narrativas em captulos conclusivos. Numa escala de valores, porm, Meihy parece atribuir a estas menor valor:

    Por certo a sensibilizao buscada na construo de um discurso convincente pleonstica. No bastariam as histrias?, pergunta-se. No seriam suficientes as patticas narrativas? Elas no falariam por si? (...) Estas histrias precisariam ser mais explcitas? (ATADE, 1995, p. 15-6).

    Nas concluses do livro Vozes da

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    Marcha pela Terra, l-se tambm: sendo legtimo que as histrias dos trabalhadores sem-terra se dizem por si, sem a necessi-dade de explicaes complementares, vale assinalar o que se segue como um esforo mais atento a ouvir e compreen-der do que a explicar. (...) Se fazemos esta reflexo, para organizar a recepo das mensagens por grupos desprepara-dos para ouvi-las (SANTOS; RIBEIRO; MEIHY, 1998, pp. 241-242).

    Mas ser que reconhecer as limi-taes, os problemas e a parcialidade da interpretao no suficiente? mes-mo necessrio calar-se (ou diminuir-se) diante da voz viva? Alessandro Portelli j escreveu que a interpretao sempre parte de uma relao de poder: interpre-tar uma coisa; ser interpretado outra (2007, p. 417) ento, dispensar o posi-cionamento diante de narrativas (ou, pior ainda, posicionar-se e desautorizar-se, a um tempo, louvando a autoridade do outro e aniquilando a sua prpria, que ao longo de meses ou anos envolveu-se num projeto) serve como recurso para reforar o desejo de apagar a hierarquizao em projetos de histria oral? Isto , alm da sujeio poltica, o elogio ao silncio do eu-com-voz e o louvor palavra do ou-tro-sem-voz tambm distintivo do que vale e do que no vale como conhecimen-to til?

    Mesmo colocaes mais equili-bradas nos conduzem a questionamentos

    o caso da feita por Fonseca (1997), em seu livro Ser professor do Brasil: Hist-ria oral de vida:

    Na terceira e ltima parte, apresento uma anlise dos documentos produzidos (...). Essa reflexo uma das possibilidades de interpretao das narrativas. Concordo com a concepo sustentada por autores que afirmam que a interpretao est presente em todas as etapas do trabalho de histria oral e, portanto, a anlise posterior dos documentos pode ou no ocorrer. Entretanto, coerentemente com os obje-tivos e os compromissos dessa pesquisa, apresento uma anlise sobre algumas das dimenses do que ser professor na edu-cao brasileira, no passado e no presente (FONSECA, 1997, p. 16)

    Embora a autora coloque-se a in-terpretar os documentos, ela afirma a dis-pensabilidade dessa interpretao. Mas fazer isso lanando mo do argumento de que todas as etapas da confeco de um projeto de histria oral so interpretativas no suficiente: no porque no o sejam; mas porque, se levarmos essa assero s ltimas conseqncias, entenderemos que o trabalho de selecionar fontes, ouvir e perguntar, estabelecer e compor o tex-to final de um projeto de histria oral equivalente ao de qualquer outro projeto. Ou a organizao de dossis, por exem-plo, desde a seleo do tema at as per-guntas que orientam sua composio, no so interpretativas nesse sentido su-blinear? So; mas, se se cobra de pesqui-sadores acadmicos que se manifestem em relao s suas fontes as critiquem, as organizem, as inscrevam em uma nar-

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    rativa autoral precisamos de outros ar-gumentos para sustentar que, no caso de entrevistas, isso no seja necessrio. Sob outra formulao, pergunta-se: quem assume a autoridade sobre o trabalho de histria oral? Quais riscos se corre e quais no se quer correr diante da narrativa oral, da fonte oral [que] sugere mais que afirma, caminha em curvas e desvios obrigando a uma interpretao sutil e rigorosa (BOSI, 2004, p. 20)?

    Conquanto essas questes devam continuar sendo discutidas, talvez a ob-servao do trajeto dos testemunhos pos-sa ser, de alguma maneira, instrutiva.

    Os testemunhos entre o saber e a poltica

    Dignificar a memria e o teste-munho so uma coisa; sacraliz-lo, outra. Adotar uma postura tica na confeco de trabalhos de histria oral e crer que a imobilidade diante do relato do outro integrante desta postura so, tambm, coisas diferentes. Coloca-se em cheque, ento, a postura do silncio.

    No texto Whose truth? Iconicity and accuracy in the world of testimonial literature, Patai (2006) oferece um pa-norama bastante controverso no que diz respeito recepo do testemunho de Rigoberta Mench nos Estados Unidos, e as relaes entretidas por ele com a cultura intelectual do pas. sacraliza-

    o do texto de Rigoberta, considerado intocvel e, por isso, intocado, repete comportamentos tidos, dentro do am-biente acadmico e da cultura intelectual brasileira, em relao a certos textos de histria oral. Decerto, de forma geral, os trajetos dos testemunhos latinoamerica-nos e de sua recepo dentro dos crculos universitrios levam a pensar sobre uma srie de questes atinentes a esta histria oral que se prope politizada.

    O espao acadmico um espao para a poltica? Quais os resultados da projeo da poltica sobre o conhecimen-to? Ser que o esforo de legitimao po-ltica da histria oral no iria de encontro a o esforo de legitimao universitria porque, ento, no se quer primordial-mente responder problemas de pesquisa, mas agir (mesmo que essa ao se d apenas no plano do discurso)? E mais: ao se propor que a histria oral seja uma metodologia instrumental, coloca-se um problema: uma metodologia no deveria ser neutra? Se deseja realizar plenamente seu projeto utpico pensa-se a hist-ria oral que se pretende empenhada no pode se furtar a responder essas pergun-tas. Isso tem sido feito, de forma mais ou menos discreta, nos trabalhos dos autores aqui citados, entre outros. Voltaremos a eles.

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