7729767 Analise Da Obra a Reliquia

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A RELÍQUIA, ROMANCE NEOPICARESCO,

A “BENGALADA” DO HOMEM REALISTA

Ana Leticia Pereira Marques Ferreira – UERJ [email protected]

Resumo: Este artigo tem como objetivo apresentar leituras convergentes do romance A Relíquia, de

Eça de Queirós. Essa obra possui características da picaresca, gênero surgido na Espanha do século

XVI, ao mesmo tempo em que se mostra como um típico romance do Realismo português do século

XIX, cujo objetivo máximo é moralizar seus leitores. Por meio das relações entre trabalho e religião,

Eça coloca lado a lado séculos tão díspares. Unindo aspectos aparentemente distintos, Eça associa

picaresca e realismo através de uma narrativa inovadora.

Palavras-chave: Eça de Queirós; picaresca; Realismo.

Abstract: The objective of this article is to present convergent lectures of the novel A Relíquia, by Eça

de Queirós. This book has picaresque characteristics, genre appeared in Spain’s 16th century, at the

same time that it shows oneself like a typical novel of the 19th century Portuguese Realism, whose

maximum objective was moralize its readers. By means of the relations between work and religion,

Eça puts side by side so dissimilar centuries. Joining aspects apparently different, Eça associates

picaresque and realism through an innovating narrative.

Keywords: Eça de Queirós, picaresque, Realism.

Introdução

O Realismo, apesar de interpretado de forma generalizante como um movimento

literário revolucionário e vanguardista, apresenta, em grande parte de suas obras, um tom

moralizante e até mesmo reacionário. Representação máxima da burguesia, o Realismo

português mostra, sim, a degeneração presente naquela sociedade, mas, por trás do método de

―arte pela arte‖, podemos observar uma literatura interessada na valorização da moral e da

família. Para isso, não receia em momento algum tornar-se uma ―auxiliar pedagógica‖ para a

formação dos leitores (e principalmente das leitoras) portugueses.

Entretanto, a literatura realista não se resumiu a manuais de ética. O mais interessante

para uma análise sincrônica é examinar a presença (ou a ausência) da moral, da culpa e de

seus efeitos sobre a consciência, isso em uma época em que literatura e psicanálise ainda não

andavam juntas.

Para retratar a crítica à religião e a valorização da moral – temas freqüentes na obra de

Eça de Queirós – foi escolhido o romance A Relíquia. Livro de difícil classificação (literatura

fantástica, farsa, sátira?), desprestigiado pelas críticas portuguesa e brasileira (DA CAL, 1970,

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p. 7), A Relíquia é a perfeita lição de moral sobre uma sociedade falsa e inconscientemente

beata.

O objetivo do Realismo: a “bengalada do homem de bem”

Ao criticar a ―literatura de boulevard‖ na conferência O Realismo como nova expressão

da arte, Eça de Queirós nega a produção romântica, que seria desvinculada de ideais sociais.

Para o autor, a nova literatura, o Realismo, deveria ser a ―anatomia do carácter‖, cujo objetivo

maior é ―corrigir e ensinar‖.

Eça encerra a discussão sobre a obscenidade das obras realistas – vistas por muitos

críticos como uma desculpa para a divulgação da pornografia e como péssima influência para

a formação ética dos leitores – quando liga a literatura à justiça e à ciência. Ele acredita que,

ditando a moral em suas obras (ainda que esta apareça como conclusão final, após uma série

de cenas consideradas impróprias na época), ajudará a propagar a idéia de justiça; criticando

os costumes, auxiliará a ciência e a consciência (mais uma vez o alvo da pregação da moral),

e assim formará uma obra ―bela, justa e verdadeira‖.

Ainda assim, Eça continuou sendo considerado um discípulo de Zola. Cerca de sete

anos após a Conferência, Machado de Assis iria aproximar a obra do autor português do que

acreditava ser um realismo vulgar. Falando sobre O Primo Basílio, explicita sua opinião sobre

o ―realismo sem condescendência‖ de Eça de Queirós:

Os que de boa fé supõem defender o livro, dizendo que podia ser expurgado

de algumas cenas, para só ficar o pensamento moral ou social que o

engendrou, esquecem ou não reparam que isso é justamente a medula da

composição. Há episódios mais crus do que outros. Que importa eliminá-

los? Não poderíamos eliminar o tom do livro. Ora, o tom é o espetáculo dos

ardores, exigências e perversões físicas.

[...]

Com tais preocupações de escola, não admira que a pena do autor chegue no

extremo de correr o reposteiro conjugal (ASSIS, 1943).

É certo que a obra de Eça não se limita a cenas eróticas como base de pensamentos

morais. Tampouco a de Assis revela o romantismo ingênuo de O Guarani, aclamado pelo

brasileiro na mesma crítica. Devemos, é claro, ser condescendentes com Machado, visto que o

brasileiro ainda não havia escrito sua obra da chamada fase madura, e ainda via com

excessivo rigor o movimento realista, no qual, posteriormente, também buscou inspiração.

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Interessante, no entanto, é atentar para a contradição entre o que seriam os romances

românticos e os realistas. Ao se imbuir do dever de difundir a moral, mostrando os vícios e as

degenerações da sociedade portuguesa para contribuir com a formação ética do leitor, Eça

volta aos princípios do romance romântico. Estabelece, assim como no estilo anterior, uma

―tese‖: ―serão castigados todos aqueles que infringem determinadas regras da moral‖; e

apresenta punições severas para esses personagens.

Talvez seja possível afirmar que não há muitas modificações, no que diz respeito aos

propósitos da literatura, nas produções do século XIX. Até porque, apesar de absolutamente

diferente do século anterior, a sociedade vitoriana era por demais específica (e de lentas

transformações internas) para que mudanças no contexto social chegassem a alterar

totalmente a temática literária. Portanto, a temática da moral no Romantismo é idêntica no

Realismo, apenas com abordagens distintas.

A respeito disso, podemos pensar sobre a carta de Eça de Queirós a Teófilo Braga, em

1878. Comentando sobre O Primo Basílio, afirma:

A sociedade que cerca esses personagens — o formalismo oficial (Acácio), a

beatice parva de temperamento irritante (D. Felicidade), a literaturarinha

acéfala (Ernestinho), o descontentamento azedo e o tédio da profissão

(Juliana), e às vezes, quando calha, um pobre bom rapaz (Sebastião). Um

grupo social, em Lisboa, compõe-se com pequenas modificações, destes

elementos dominantes. Eu conheço uns vinte grupos assim formados. Uma

sociedade sobre estas falsas bases não está na verdade: atacá-las é um dever.

[...]

Merecem partilhar com o Padre Amaro da bengalada do homem de bem

(QUEIRÓS, 1946, p. 43).

Eça explicita a homogeneidade da formação da sociedade lisboeta, destacando a

raridade que é encontrar alguém ético como o Sebastião do segundo romance do autor. E, tal

qual como em um espelho, segundo suas próprias afirmações, deseja reproduzir essa

sociedade para criticá-la. Mais uma vez, pode-se constatar que o intuito é realista, mas o

resultado, romântico. Eça de Queirós, verdadeiro ―homem de bem‖, considera-se, enquanto

autor, figura primordial para a reconstrução da moral e da ética na sociedade, pois será ele

quem dará a ―bengalada do homem de bem‖.

É dessa forma que se irá construir a obra de Eça, através das teses segundo as quais a

sociedade é formada, extraímos as lições de moral, sempre após a constatação de que o

mundo (e o autor) já desferiu sua bengalada.

Para que melhor possamos compreender os alvos de Eça de Queirós, é preciso observar

alguns dos aspectos valorizados pela moral vitoriana.

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A religião e o trabalho: a moral no século XIX

As intensas modificações ocorridas no século XIX, sobretudo nas áreas social e

científica, provocaram uma sensação de mal-estar generalizada. É possível afirmar que a

sociedade vitoriana em geral sentia dificuldades para enquadrar-se na nova ordem social

burguesa.

Com um claro caráter de salvação, as pessoas buscavam uma corrente capaz de analisar

e solucionar as questões éticas e morais da época. Ainda na esteira iluminista, correntes

positivistas conviviam com a criação de novas religiões de cunho místico e, o que é mais

interessante, com o ressurgimento da fé na Igreja Católica e seu embate filosófico com o

protestantismo. O que havia, na realidade, era uma necessidade de acreditar em algo.

A fé católica era representada em sua maioria pela burguesia, essencialmente pelas

mulheres. Apontada por muitos historiadores como passatempo de senhoras, a religião cristã

do século XIX está marcada pela extrema valorização da filantropia e de rituais como missas

e procissões – verdadeiramente muito mais eventos sociais do que práticas religiosas, tanto

para burgueses quanto para trabalhadores.

Parece contraditório que esse revival da religião esteja muito próximo da secularização,

mas, na realidade, isso tanto evidencia a necessidade da sociedade daquele século de agarrar-

se (mesmo que ingenuamente) a algo que a conforte; quanto reflete a falta de senso moral

daquele mundo vitoriano, que misturava religião com festas e bebidas.

Religião e trabalho sempre andaram juntos. Primordialmente no século XIX – no qual a

ascensão da burguesia comprovava os méritos do trabalho –, o labor era considerado um meio

eficiente de manter a mente ocupada, uma vez que a ociosidade seria o caminho para a

propagação do pecado.

A divulgação do trabalho como aliado à religião não fazia parte apenas do cotidiano

burguês, mas sobretudo do dia-a-dia da classe trabalhadora. A burguesia valorizava o

trabalho, ainda que não física e ostensivamente como ―apoiava‖ o dos trabalhadores. Essa era

a forma mais óbvia de garantir que, não desejando mais do que Deus poderia dar-lhes, a

classe trabalhadora manter-se-ia para sempre conformada com sua posição social.

Em contraposição a essa difusão do ideal burguês do labor estava a própria família

burguesa, cujos filhos nascidos na prosperidade ganharam ares de aristocracia, desprezando o

trabalho e legitimando o ócio como garantia de ―status‖ social. Nessa categoria encaixa-se

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perfeitamente Teodorico Raposo, que não é rico, mas vive, ainda que aventureiramente, sob a

égide da prosperidade da Titi.

Talvez seja possível afirmar que nem sempre os vitorianos estavam interessados em

cumprir as idéias que difundiam. No entanto, é certo podermos dizer que a moral do século

XIX era constituída por crença e trabalho, ainda que fossem exercidos de maneira hipócrita.

A neopicaresca como gênero literário do século XIX

A picaresca surgiu na Espanha do século XVI com A vida de Lazarillo de Tormes e das

suas Fortunas e Adversidades, de autor anônimo. O que atualmente podemos tomar como

características do romance picaresco são baseadas nesse livro, não apenas por ser a primeira

novela do gênero, mas também porque foi a única obra do período picaresco espanhol clássico

(1552-1646) que não foi influenciada pela censura da Inquisição.

Considerado um anti-herói, o pícaro é alguém com origem social baixa, que vive

astuciosamente para ascender na sociedade. Para isso, faz o mínimo de trabalho e o máximo

de trapaça possível, sempre se envolvendo em aventuras e sem, de forma alguma, ter crises de

consciência em relação ao ―vencido‖.

O pícaro é um herói único porque, por meio de suas atitudes, rebaixa a si mesmo, por

desprezo à classe social a qual pertence, mas também rebaixa as classes privilegiadas, por

inveja.

Como seu grande objetivo é ascender socialmente, comporta-se como os ricos – não

trabalha e ostenta uma falsa imagem por conta do vestuário. Vive de aparências porque este é

o caminho mais simples para ser um ―homem de bem‖, seu objetivo final. Evidencia assim

não só a sua ilicitude, como também a daqueles que detêm o poder. Esse anti-herói nada mais

é que uma paródia da ascensão social burguesa, em uma sociedade que despreza os valores

dessa classe.

É possível observar características da picaresca em obras muito posteriores ao período

citado. É certo que o contexto socio-econômico-cultural jamais se repetiu, mas o que torna

obras posteriores ao Lazarillo de Tormes pertencentes à picaresca é a ―resposta semelhante‖

do pícaro às diversas situações (GONZÁLEZ, 1994, p. 282). Isso significa que o ambiente

não é o mesmo, mas as atitudes são semelhantes. Essas reproduções do primeiro pícaro

podem ser chamadas de neopicaresca.

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A recepção da crítica e a classificação como neopicaresca

A Relíquia foi, por muitos anos, desmerecido pela crítica. Apesar disso, e do descrédito

da crítica luso-brasileira, em outros países o romance foi exaltado pela mistura de ―sátira

aristofanesca, poesia bíblica e romance‖ (DA CAL, 1970, p. 7), tanto é que essa é a obra de

Eça com maior número de edições e traduções.

Queirós, em carta a Ramalho Ortigão, diz que inscreveu o romance no concurso da

Academia das Ciências de Lisboa ―não porque haja sequer a sombra fugitiva d’uma

probabilidade mais magra do que eu, de que me seja dado o conto‖ mas porque desejava

―gozar a atitude da Academia diante de D. Raposo!‖ (QUEIRÓS, 1946, p. 136). Eça sabia que

a Academia não estava preparada para o recebimento de uma nova proposta de narrativa

como é A Relíquia.

O autor estava certo. Pinheiro Chagas refutou a obra baseado em uma pretensa

―inverossimilhança do sonho de Raposão. Pinheiro Chagas, assim como o restante da crítica,

acreditava que um personagem baixo, sem grandes nuances psicológicas, não seria digno da

grande Revelação da religião que ocorre durante o sonho. Segundo sua visão, autor e

personagem fundem-se no romance, como se isso fosse obra apenas de um descuido de Eça.

Depois do lançamento do livro, em carta a Luís de Magalhães, Eça de Queirós afirma

não gostar de seu resultado final, pois lhe falta ―um sopro naturalista d’ironia forte que daria

unidade a todo o livro‖ e diz que seu único valor é o ―realismo fantástico da Farsa‖

(QUEIRÓS, 1946, p.139). Mais uma vez a crítica não conseguiu perceber durante muito

tempo o significado dessa carta em que, ao concordar com o julgamento do concurso, Eça

estava ironizando o valor dado a uma instituição incapaz de reconhecer um novo estilo

narrativo.

O que Eça faz é uma subversão da narrativa, subversão esta que justifica a difícil

classificação da obra, que transita admiravelmente pela farsa, sátira, literatura fantástica e

picaresca. De acordo com Rosa (1964, p.337), Eça era conhecedor da picaresca clássica, leitor

d’O Lazarillo de Tormes e do Gil Blas, picaresca francesa. Ainda que nada tenha dito no

imbróglio do concurso, reconhecia-se como o primeiro autor de picaresca portuguesa.

Outros críticos também acreditam que ―Eça compreendeu a estrutura picaresca

espanhola muito antes da crítica‖ da época (FONTES, 1976, p. 40). Todavia, apesar de ser

clara a influência da picaresca na obra, talvez não seja possível afirmar tão categoricamente

que Eça estava pensando em seguir essa linha quando escreveu o romance. Se assim fosse, em

alguns de seus escritos encontraríamos menções sobre a picaresca ou sobre a classificação d’A

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Relíquia. Ainda seguindo essa linha de raciocínio, e considerando como séria a carta a Luís de

Magalhães, Eça não hesitaria em acentuar os traços naturalistas, uma vez que estes são

inerentes ao pícaro, cuja trajetória aventuresca é muito mais interessante que sua origem ou

sua relação com o meio. Até mesmo o episódio do sonho, causador de tantas controvérsias na

crítica, seria melhor explicado pelo autor se fosse apresentado como picaresco, uma vez que é

através dele que a aventura máxima de Raposão – a camisa de Miss Mary – se realiza e

também porque, para o pícaro, personagem baixo, é comum que ocorram acontecimentos

inexplicáveis para seu próprio proveito (como é o caso da Revelação).

Consciente ou não do gênero que representava, Eça escreveu o primeiro romance

picaresco português, representação digna da sociedade que elegia d. Patrocínio como um

padrão de moral.

É impossível discutir a ascensão dos inescrupulosos, em uma sociedade que valorizava

a religião (como era a do século XIX), e não lembrar do pícaro. A rede de trapaças e

aventuras que garantia o final feliz do rapaz sem escrúpulos é talvez muito mais fácil de ser

encontrada na vida real do século XIX, do que na do século XVI. Assim, é natural que a

picaresca seja considerada literatura realista, já que se adapta facilmente ao contexto social da

época. Teodorico Raposo, protagonista d’A Relíquia, de Eça de Queirós é a prova de como

um rapaz de origem baixa, criado em meio à burguesia e à religião, poderia ascender por

meios escusos.

Como já foi dito, são tomadas como base para a análise da neopicaresca as

características da primeira novela, O Lazarillo de Tormes. Há muito em comum entre o livro

espanhol e A Relíquia, podendo ser aceitas, portanto, como características da neopicaresca, o

caráter autobiográfico, a origem baixa e confusa do protagonista e sua infância sem amor,

longe dos pais. Também vale citar a necessidade de ser aceito pelo protetor (a Titi) como

meio de sobrevivência, os ardis que emprega para isso, a ausência de culpa ou

arrependimento, caracterizando total falta de moral. São ainda traços da neopicaresca o

caráter de aventura, o erotismo do protagonista, seu envolvimento com mulheres de reputação

desconfiável e o tom muito mais satírico do que crítico da história.

Ao tratar da manipulação que Teodoro faz da religião da Titi, Eça parece estar criando

uma tese: anterior à criação das religiões, a consciência deve nortear o homem para que ele

não se perca no vício e nas mentiras, como fez Teodorico. Apenas a consciência é capaz de

moralizar, já que apesar de ter sido criado sob bases religiosas, foi exatamente isso o que,

aparentemente, causou o desvirtuamento do protagonista.

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Para falarmos, no entanto, das ações da consciência na vida de Teodoro, é preciso

pensar o protagonista d’A Relíquia em dois momentos distintos. O Teodorico da infância traz,

é certo, dentro de si o germe da imoralidade, porém ainda não é o Raposão adulto, que busca

o gozo pleno através de inúmeros ardis.

Logo no prólogo, o narrador, que acredita ter atingido a maturidade plena, explica por

que escreve suas memórias. Independente das ações que vai protagonizar na história que

começa a contar, Teodoro credita-se uma lição de moral ―lúcida e forte‖. Ainda assim, prefere

ser chamado de profanador de túmulos a adorador de antepassados, e tudo isso para agradar a

Burguesia Liberal. Será a diluição entre as figuras do autor e do personagem? Será que

Teodorico realmente se moralizou? Antes de refletirmos sobre isso, vale lembrar o final do

prólogo, onde há a reafirmação do objetivo realista de moralização: ―[...] nestas páginas de

repouso e de férias, onde a Realidade sempre vive, ora embaraçada e tropeçando nas pesadas

roupagens da História, ora mais livre e saltando sob a caraça vistosa da Farsa‖ (QUEIRÓS,

1997, p. 13).

Teodoro, o menino que cresce sem o amor da mãe e logo perde o pai, chega à casa da

Titi esperando encontrar um amor substituto de mãe. Todavia, descobre na figura da tia

Patrocínio que o mundo não é tão bom quanto lhe parecia.

Quando a tia manda que passe pelo oratório e faça o sinal da cruz, Teodoro tem o

primeiro contato com os objetos de culto religioso. Os santos, a luz das velas e o Cristo feito

em ouro deixam Teodorico deslumbrado. Sua ambição já aparece quando pensa que no Céu

católico tudo será como a perfeição digna que um Céu merece: anjos e santos recobertos de

ouro e talvez de pedras preciosas.

Ainda sem conhecer o poder do dinheiro, Teodoro conclui facilmente: ―Que rica era a

titi! Era necessário ser bom, agradar sempre à titi!‖. Só vai, entretanto, começar a desfrutar os

prazeres que o dinheiro da tia pode oferecer quando, após anos de internato, passa a morar na

hospedagem das Pimentas, onde conhece ―sem moderação, todas as independências, e as

fortes delícias da vida‖ (QUEIRÓS, 1997, p. 23).

A maturidade e a virilidade chegam para começar a transformação de Teodoro em

Raposão. Medina, citando Larbaud, já atenta para a proximidade semântica de ―Raposão‖ e

―raposa‖, nome que está ligado à idéia de astúcia, ardil (1988, p. 556). As maiores astúcias

começam quando, apesar da relativa liberdade da qual goza longe de casa, Teodoro escreve à

tia contando sobre os falsos estudos, jejuns e novenas e sofre quando a rotina das práticas

religiosas torna-se realidade nas férias de verão, ao lado da tia. Mesmo tendo percebido que

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seu caminho e sua salvação não estão na religião, Teodoro começa a entender que apenas por

meio dela conseguirá agradar a tia, que está presa a uma beatice cega.

Ainda aqui não é insensível. Teodoro conhece Xavier, um parente afastado, e fica

emocionado com a pobreza em que vivem este e a família, composta por uma espanhola, com

quem é amigado, e seus três filhos. Chega a pensar em pedir ajuda à tia, mas quando d.

Patrocínio critica Xavier por suas ―relaxações‖, vê-se, apesar de tudo, obrigado a concordar,

já que precisa garantir a sua própria sobrevivência.

A conduta hipócrita de Teodoro agrada cada vez mais à Titi. Esconde dela seu interesse

pelas mulheres, enquanto encontra-se escondido com Adélia. E faz mais, chega a simular uma

carta em que se mostra chateado com um colega que o convida para ―relaxações‖. Em

diversas situações, finge teatralmente o encontro com as maravilhas da religião no oratório.

Toda essa encenação do protagonista deslumbra a tia que, como uma boa burguesa, deixa-se

levar por adornos de santos e arroubos de transe religioso.

A idéia que se tem é que Teodoro não tem problemas com a consciência porque há

desimplicação subjetiva. A culpa é do mundo, que o deixou sem amor de mãe, órfão, pobre,

dependente de parentes. A culpa é da Titi, que não soube dar-lhe afeto de mãe, que ama

apenas o Cristo de ouro no oratório.

Entretanto, as coisas começam a se modificar ao descobrir que a Titi pretende deixar a

herança para a Igreja e que seu rival é Jesus Cristo em pessoa. Ambiciosamente, Teodoro

deduz que é preciso aumentar sua ―fé‖.

É a partir desse momento que os efeitos da consciência de Teodoro decaem até a

extinção completa, pois passa a agir em nome da ambição. Não visa mais somente à

sobrevivência, agora quer todo o ouro da Titi, ouro que aprendeu a admirar desde a infância.

Uma vez que o mundo o diminuiu, com sua origem baixa e sua infância triste, resolve gozar o

que sempre lhe faltou. Cada vez que engana a tia não é só para garantir a casa e a comida que

ela lhe dá, mas para ter o gozo antevisto do gozo sem limite.

A culpa por seus atos deixa de ser sempre do Outro e passa a ser também dele, já que

começa a deixar a posição de vítima e passa a agir em benefício do gozo próprio. Nunca se

pode esquecer que Teodoro tem uma profissão, cultura e poderia iniciar sua própria vida, sem

depender da Titi. Mas é claro que Raposão sucumbe à tentação. Por que, como ele mesmo diz,

não ―fartaria o bandulho‖? A sociedade não presta, precisa levar uma bengalada; ninguém

melhor do que Raposão para recebê-la.

Teodoro dá, então, lições de humildade e devoção, pensando em ludibriar a tia até a sua

morte, quando herdaria tudo por ter sido admiravelmente santo. Isso ocorre até o momento em

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que surge a oportunidade de ir para Jerusalém, representar a tia Patrocínio na Terra Santa. Aí

surge realmente a grande chance do pícaro Raposão — trazer a relíquia tão ardentemente

desejada e pedida pela titi.

Assim que chega a Alexandria, tem um caso com Miss Mary, uma luveira inglesa de

reputação contestável, que lhe deixa de lembrança uma camisa de dormir, chamada por

Teodorico de ―relíquia de amor‖. Um leitor mais desatento pode não se dar conta, mas desde

já Eça inicia o paralelismo entre as duas relíquias, ambas profanas e desejadas por Raposão,

ambas causadoras de sua ruína. A relíquia de Mary traz a seguinte dedicatória: "Ao meu

Teodorico, meu portuguesinho possante, em lembrança do muito que gozamos!" (QUEIRÓS,

1997, p. 65). Além da importância óbvia que têm as palavras e os objetos na vida do pícaro,

não é possível deixar de relacionar o gozo antevisto de Teodoro com a relíquia da tia e o gozo

com Mary, gozo este que colocará em xeque seus sonhos de riqueza acalentados desde a

infância.

Na chegada a Jerusalém inicia-se a desconstrução do ideal religioso burguês vitoriano.

A idéia de santuário sublime, Terra Santa e morada eterna do Cristo adorado pela titi é

demolida pela imagem de uma Jerusalém humana e cheia de ―Teodoros‖ vendendo ridículas

relíquias.

Ligando sempre o amor ou o sexo (ambos só obtidos através de prostitutas) ao dinheiro

da tia, resolve escrever para ela, dizendo que está à procura da ―grande relíquia‖ e

aumentando ainda mais seu repertório de falsidades ao relatar visões de santos e conversas

com imagens, nas quais d. Patrocínio é sempre louvada.

Ainda não estamos na passagem do sonho, mas Teodoro mostra-se dúbio como é

comum a todo pícaro, refletindo ainda a fina crítica irônica que perpassa a obra de Eça.

Obedecendo à recomendação da Titi, despi-me, e banhei-me nas águas do

Batista. Ao princípio, enleado de emoção beata, pisei a areia reverentemente

como se fosse o tapete de um altar-mor; e de braços cruzados, nu, com a

corrente lenta a bater-me os joelhos, pensei em São Joãozinho, sussurrei um

padre-nosso. Depois ri, aproveitei aquela bucólica banheira entre árvores;

Pote atirou-me a minha esponja; e ensaboei-me nas águas sagradas,

trauteando o fado da Adélia.

[...]

Não me contive, arranquei o capacete, soltei por sobre Canaã este urro

piedoso:

— Viva Nosso Senhor Jesus Cristo! Viva toda a corte do céu!

(QUEIRÓS, 1997, p. 88).

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Teodoro, ―com um brilho de visitação celeste‖, encontra os galhos espinhosos que se

tornarão a futura relíquia. Teme que a falsa coroa de espinhos de Jesus Cristo tenha alguma

virtude verdadeira e d. Patrocínio fique boa dos seus inúmeros males. Segundo Raposão, ele

só ―começaria a viver – quando ela começasse a morrer‖. Instaura-se o conflito interno

(religioso ou filosófico?) de Teodorico – seriam verdadeiros todos ―ensinamentos‖ da Titi?

Imagens, relíquias, visões teriam algum significado e poder de decisão sobre o seu destino?

Eça coloca a Religião ao lado da Ciência.

Inicia-se então o período do sonho, narrativa que abarca um terço do livro e vai mostrar

a Revelação tão refutada pela crítica. Jerusalém, a cidade da Revelação católica será também

o templo da Revelação da Verdade, do cristianismo humano e da moral anterior a qualquer

religião.

Teodoro acompanha com Tópsius a prisão de Cristo, a desconfiança da população em

relação aos seus objetivos e à sua castidade. Na casa de Gamaliel, doutor da Lei, aprende que

as virtudes teologais são anteriores a Cristo, fazem parte de várias religiões e constituem o

saber necessário para o bom desenvolvimento da consciência.

Teodorico, que literalmente desconhece o Cristo católico, irá encontrá-lo ―no seu corpo

humano e real, vestido do linho de que os homens se vestem, coberto com o pó que levantam

os caminhos humanos! [...]‖ (QUEIRÓS, 1997, p. 115).

Questiona a sua fé como somente um católico vitoriano faria, relacionando a crença à

imagem encontrada na Igreja, dando importância única a esse aspecto do culto. A mesma

relação entre imagem e pessoa dar-se-á quando Teodoro assistir à crucificação de Cristo.

Este é o início da Revelação – Teodoro descobre que Cristo não é apenas a imagem do

oratório da Titi. Daquele Cristo, o da imagem, ele não tinha medo, pois durante toda a sua

vida não conteve nenhum significado. Já o Cristo ―verdadeiro‖, do sonho, o assusta frente à

desumanidade do mundo, o faz acreditar não no Cristo da religião católica, mas nas virtudes

que ele representa.

Mesmo após o sonho, a mescla de religião (ainda que falsa) e ambição continua fazendo

parte de Teodoro. Após a descoberta feita pela Titi de que a coroa de espinhos era na verdade

a camisa da prostituta, Raposão vai embora de casa, fugido. Passa a vender as falsas relíquias

para sobreviver, e com isso mostra que não tem nenhum arrependimento do que fez. Seu

único desespero é ver-se sem o dinheiro da tia e as mordomias das quais gozava em sua casa.

Questionando-se sobre como os embrulhos teriam sido trocados, Teodoro pensa em algo

de sobrenatural e avista um Cristo crucificado dentro de uma caixa. Inicia aí um diálogo no

qual acusa a imagem, afirmando que é a desgraça que recebe em troca depois de ter se

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compadecido de sua morte no episódio do sonho. O Cristo sai então do caixilho e aponta os

erros de Teodoro – suas mentiras e a falsa beatice para a d. Patrocínio, enquanto dormia com

prostitutas em segredo.

Chegou o momento da tão esperada bengalada de Eça de Queirós. Teodoro apavora-se

com a Voz, que o persegue e o faz sofrer. É finalmente a hora em que a culpa o atormenta, a

consciência inicia o seu papel.

Eu não sou Jesus de Nazaré, nem outro deus criado pelos homens... Sou

anterior aos deuses transitórios; eles dentro em mim nascem; dentro em mim

duram; dentro em mim se transformam; dentro em mim se dissolvem; e

eternamente permaneço em torno deles e superior a eles, concebendo-os e

desfazendo-os, no perpétuo esforço de realizar fora de mim o deus absoluto

que em mim sinto. Chamo-me consciência; sou neste instante a tua própria

consciência refletida fora de ti, no ar e na luz, e tomando ante teus olhos a

forma familiar, sob a qual, tu, mal-educado e pouco filosófico, estás

habituado a compreender-me [...] (QUEIRÓS, 1997, p. 202).

Essa é a Revelação — a Verdade não está nas religiões, mas sim na consciência, que

deve dirigir o Homem para que este não infrinja não as regras de moral católicas, mas a moral

necessária para o bom desenvolvimento de uma sociedade. A consciência, da qual descendem

todas as religiões, é o triunfo do romance de Eça. Talvez seja mesmo o seu personagem

principal, que só aparece no último capítulo.

Teodoro ainda tenta agir como antes. Chega a iniciar uma oração, clamando pelo

―Senhor Jesus, Deus e filho de Deus‖, mas a consciência já teve sua ação e seu caminho agora

é tornar-se um ―homem de bem‖, casado, pai, respeitável e até mesmo dono de mosteiro.

Mas Eça não poderia deixar de mostrar que as crenças cegas estão (ou podem estar)

acima da Verdade. E é justamente disso que se valem os pícaros, como Raposão, para

prosperarem. Teodoro lembra-se de que o bilhete de Miss Mary continha as iniciais M.M. e

que ele poderia ter afirmado tratar-se da camisa de Maria Madalena. Estaria, assim, ainda

mais realizado e por que não o fez? Por que perdeu a sua oportunidade de prosperar? ―Porque

houve um momento em que me faltou esse descarado heroísmo de afirmar, que, batendo na

terra com pé forte, ou palidamente elevando os olhos ao céu – cria, através da universal

ilusão, ciências e religiões‖ (QUEIRÓS, 1997, p. 208).

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Conclusão

A Relíquia é farsa, sátira, picaresca; é crítica ao catolicismo da culpa e do castigo, do

fanatismo e da secularização. Reproduz tudo o que a sociedade européia do século XIX queria

esconder sobre a religião, a moral e sua relação com o trabalho e os meios lícitos de ascensão.

Combalida pela crítica, A Relíquia não é certamente a obra-prima de Eça de Queirós,

mas pode ser considerada um marco no conjunto de suas obras, pois ali assume um estilo

narrativo incomparável a qualquer outra produção portuguesa do século XIX.

É também única a fuga do maniqueísmo, que uma obra satírica é capaz de proporcionar.

Reduzir o romance à validade das bengaladas de Eça ou criticá-lo pelo aspecto burlesco do

protagonista é desmerecer uma obra que não pára na crítica simples, mas se estende à

reprodução dos efeitos da consciência no ser humano, anunciando o objeto de estudo tão bem

desenvolvido posteriormente pela psicanálise.

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