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Segundo romance de Bruno Godoi, conhecido por seu suspense policial e sobrenatural

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2014

São Paulo

Bruno Godoi

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Copyright © 2014 Bruno GodoiCopyright © 2014 Editora Empíreo

Capa – Daniel Lameira e Giovanna CianelliProjeto Gráfico & Diagramação – Rafael Acatauassú

Revisão – Adriana ChavesPreparação – Matheus Perez

2014Todos os direitos desta edição reservados à

editora empíreo

Rua Tagipuru, 197, cj. 501156-000 – São Paulo – SP

Telefone (11) 3368 8111www.editoraempireo.com.br

[email protected]

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Godoi, BrunoSete cabeças / Bruno Godoi. -- São Paulo :

Empíreo, 2014.

isbn 978-85-67191-05-8

1. Ficção brasileira I. Título.

Índices para catálogo sistemático:

1. Ficção : Literatura brasileira 869.93

14-07489 cdd–869.93

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pa r a t od o s qu e, como e u, n ão e n t e n de m o s a b s u r d o s d o m u n d o.

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ato i

ESTAR, E NÃO SER13

ato ii

SER, E SIM, ESTAR167

ato iii

O FIM É O INÍCIO. REPETINDO247

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ato i

SANGUE DERRAMADO. ESPALHADO101

ato ii

O HOMICIDA205

ato iii

APORIA279

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Que lucro tem o homem ao ganhar o mundo inteiro e perder a própria alma?

Marcos 8, 36

Missa Negra […] espécie de culto diabólico. O ritual, de modo geral, consistia: (1) numa exortação (sermão) à prática do mal […] (2) no coito com o demônio […] e (3) variedade de profanações, principalmente de índole sexual. […] Estátuas de tamanho natural, tanto de Cristo como da Virgem Maria […] desempenhavam um papel frequente no ritual. A da Virgem […] pintada para dar-lhe um aspecto dissoluto […] era equipada com seios […] As de Cristo traziam um falo para a felação masculina e feminina […] amarravam uma pessoa qualquer na cruz e ela funcionava no lugar da estátua.

Excerto do livro O Exorcista, de Willian Peter Blatty

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Em 1921, o psiquiatra suíço Hermann Rorschach (1884-1922), desenvolveu o Teste de Rorschach. Técnica de avaliação psicológica pictórica. Nada mais é do que dar respostas às manchas − imagens abstratas − apresentadas ao paciente em cartões ou pranchas. A partir das respostas, faz-se a análise e estudo psicológico do indivíduo. As formas são em tinta, precisamente borrões simétricos não estrutu-rados. É utilizado em vários países.

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ato i

ESTAR, E NÃO SER

Vi subir do mar a besta que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre os chifres, dez diademas, e sobre as cabeças, um nome de blasfêmia.

Apocalipse 13, 1

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A água goteja pela torneira de bronze. Atinge o fundo encar-dido do bojo de porcelana. Concentra-se, formando piscina de imundícies fétidas. Pelos e demais porcarias entopem o ralo. Um ruído de bipe. Alto, irritante, estridente, quebra o reinado sonoro das gotas e ecoa, repetidamente, pelo banhei-ro fechado. Um relógio de pulso: Bipe, bipe, bipe. O banheiro é frio, largo, profundo; a luz, cinzenta. Seis luminárias com-pridas, distribuídas em três pontos do teto − afastadas entre si em número irregular − formam I III II. A primeira delas, I, falha ininterruptamente. Segundos depois, todas falham, trazendo a escuridão para o recinto.

Três segundos além, elas piscam, estalam e voltam a iluminar com mais intensidade, revelando outra vez o ba-nheiro. O bipe sempre constante: Bipe, bipe, bipe. Importuno: Bipe, bipe, bipe. As gotas a cair, a encher o bojo; o relógio a apitar: Bipe, bipe, bipe. Densa névoa gélida, úmida e pene-trante, elevando-se pelas paredes em lenta assunção. O re-cinto se afogando no vapor. E o relógio prosseguindo. A gota também. Bipe, gota. Bipe, gota. Bipe, gota. Ruído e sujeira. No centro do banheiro, despontando do vapor, uma pessoa, em pé, se olha no espelho. As pernas sendo abraçadas pela umidade ascendente.

De repente, as lâmpadas brilharam ainda mais, afastando o peso do escuro. Todavia, criaram mais sombras – cada dobra e saliência do recinto revelava uma mancha negra quando

[TOMADA INICIAL]CENA 1: 14 DE JULHO

AMANHECERNO BANHEIRO DE UM RESTAURANTE

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atingidas pela luz. A pessoa ao espelho esfregou os olhos ir-ritados pelo súbito retorno do clarão. Alto, magro, rosto fino, olhos cinzentos. Covas profundas nas bochechas acentuavam os malares. Pele seca, sentindo mais o efeito do frio. Cabelo desgrenhado. Roupas elegantes, porém encardidas, maltrata-das, amarrotadas. Vestia pesado e comprido sobretudo bege, o qual lhe envolvia feito armadura; e um cachecol quadricula-do, creme e vermelho, que parecia sufocar-lhe, envolvendo-o como serpente esmagando a presa.

Por trás da proteção de panos, o espelho revelava a real condição do homem: perdido. Sufocado. Depressivo. Angus-tiado. O distintivo preso ao pescoço refletia o brilho intermi-tente das luminárias. Detetive Anton Levey. O nome na placa metálica rebatia a claridade como se almejasse permanecer na sombra, nas trevas; recusando a luz que lhe chegava. An-ton ergueu as mãos, levando os dedos ao rosto. Tocou as ru-gas, as olheiras. As pálpebras pesadas. Girou o pescoço len-tamente de um lado a outro, analisando seu reflexo. Fitando friamente a si mesmo. Inspirou fundo. Reteve o ar. Expirou e desviou os olhos do espelho.

Analisou o ambiente à frente. Três pias lascadas, encar-didas. Torneiras de bronze gastas, tortas. Espelhos trincados, pouco reflexivos; moldura dourada, mofada. O frio se con-centrando ainda mais. Anton virou-se. Observou duas cabi-nes sanitárias. Portas de compensado, material novo, desto-ando da realidade antiga das pias e torneiras. Uma das portas estava aberta, revelando sinais de vandalismo e algo escrito na parede. Escrito em letras disformes, irregulares; impresso em fezes: mistério, a grande babilônia, a mãe das prosti-tuições e abominações da terra. apocalipse 17, 5. O chei-ro era forte e nauseabundo. Mesmo seco e passado, o escrito exalava a condição de dejeto.

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Urina e vômito preenchiam o chão, servindo de tapete ri-tualístico para o escrito acima. O entorno, feito altar religio-so, completava o palco. Lixeira entupida. Cigarro na privada. Marcas de sola e impressões de dedos. Moscas, baratas, for-migas. Anton estreitou os lábios. Levou novamente a mão ao rosto, massageando a face. Desviou a atenção da imundície e virou-se para o fundo: um mictório em alvenaria. Comprido. Azulejos brancos, amarelados. Bolor. Trincos. Mais dejetos. Melancolia pairava no ar. O ruído das lâmpadas uniram-se ao som do bipe, aumentando o desconforto e sufocando o gote-jar no bojo. Anton demonstrou irritação com os sons.

Voltou-se para o espelho, ombros tombados. Morto. Ren-dido, vencido. Com letargia, afastou a manga do sobretudo. O relógio apitando: Bipe, bipe, bipe. Toco-o e o alarme ces-sou. Virou-se novamente para o mictório. O vapor gelado er-guendo-se, suplicando por espaço; almejando o teto, objetivo: obscurecer a claridade. Claridade despejando brilho; vapor rebatendo com frio e sombras. O embate entre luz e trevas. Anton estreitou os olhos. Inclinou a cabeça preguiçosamente, mirando algo por baixo da névoa que começava a lhe chegar ao rosto. Fitou algo lá, à base do mictório. Algo volumoso, algo esticado sobre o piso. Um corpo no chão.

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Um corpo, deitado de costas, coberto por lona negra, jazia próximo ao mictório. A lona cobrindo da canela ao topo da cabeça, não revelando o sexo. Os braços abertos, em posição crucificada, extrapolavam o limite da cobertura, deixando-se visíveis. Pulsos feridos. Duas chagas. Mão esquerda espalma-da para cima, a direita fechada em punho. Dedos sujos, ma-gros. Mãos secas, sofridas. Membros esquálidos. Das vestes, que se apontavam sob a lona, podia se notar sujeira e umi-dade. Mau cheiro. Na região do abdôme a lona avolumava, formando espécie de barriga proeminente. Anton prendeu o olhar no corpo, nas chagas, na saliência abdominal.

– Grávida? – murmurou pensativo. – Ou um homem? – Deu de ombros e estudou o restante da cena. Uma fita zebrada deli-mitava a área. Marcas de giz no chão revelavam sinais da perícia.

– A equipe já esteve aqui – concluiu e passou a atenção para o canto da parede. Perto do corpo. Onde vislumbrou uma mancha escura: indícios de infiltração e borrões de umi-dade. Além de outras sujeiras típicas de banheiros abertos ao público. A mancha alastrava-se para os lados, em alguns pon-tos esticando-se verticalmente feito chifres. Em outros, con-centrava-se em formas ovais como cabeças. São sete cabeças e dez chifres. Ao centro, no encontro das paredes, asseme-lhava-se a um rosto ferido e deformado. Um rosto espelhado em agonia, meia face em cada parede. Uma mancha em uma prancha a se projetar noutra prancha. Simetria.

CENA 2: 14 DE JULHO

BANHEIRO / RESTAURANTE

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– Teste de Rorschach? – Anton ironizou. – Então eu vejo o rosto de Cristo. – Murmurou sem emoção.

Mirou com intensidade a mancha. Prendeu o olhar nos olhos do rosto. Perdeu-se nos olhos da imagem, parecendo compadecer-se com o Cristo agonizante. Inspirou fundo. Pis-cou lenta e demoradamente. Voltou o olhar para o corpo. Não havia sinais de sangue, apenas água sobre o piso. A torneira ainda gotejando, as gotas acertando o bojo. A pia trincada deixando escorrer fios úmidos pelo tronco de porcelana. Lá-grimas sinuosas. Em alguns pontos, infiltrações pelas trincas desprendiam-se em gotas maiores, as quais espirravam ao acertar o piso. Estalactites ruidosas no silêncio gelado. Im-pertinente. Desconfortante. Anton suspirou e avançou em direção ao corpo.

* * *

Agora estava de cócoras ao lado do morto. Pensando, refle-tindo, investigando a situação. Agachado, a névoa fria cobria--lhe, devorando o homem. Holofotes pareciam brilhar em pontos distintos dentro do vapor. Brilhando de baixo para cima, como fonte de luz sobre o solo numa floresta escura. Mas Anton não se importou com o vapor, forçando as vistas, inclinou-se, e correu o olhar pelo corpo. Percorreu os braços estendidos. As chagas. Parou num detalhe que lhe intrigou: a mão direita da vítima, em punho, fechada ao redor dum fras-co de vidro marrom escuro. Ainda: o dedo indicador estava ferido; unha roída, mordida.

Parece que roeu a unha até sangrar. Mas e o frasco marrom? O que é isso? Refletiu. Passou a atenção para os polegares do corpo. Ambos borrados de sangue seco até a metade. E sob as unhas, restos de alguma substância escura.

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– Hum... enfiou os polegares em algum buraco sujo – o detetive atestou.

As sobrancelhas faziam-lhe sombra sobre as órbitas, acen-tuando-lhe as olheiras negras, profundas. O cinza das íris refletindo a claridade minguada num esforço rápido e agoni-zante, feito chama sufocando-se sem oxigênio. Coçou a barba por fazer. Sentiu os ossos salientes na pele esticada. Inspi-rou, expirou; muitas vezes, como se ruminasse as informa-ções coletadas. Agora desviou a atenção para os pés do corpo: sapatos encardidos. Molhados de chuva. Sujeira das ruas. O esquerdo apresentava, ainda, mancha de comida. Migalhas de alimento entrelaçavam-se ao cadarço. Sapato masculino. E de repente, um zunido nas luminárias, e a luz falhou outra vez. Apaga.

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Vacilante, a luz retornou aos poucos. Do cinza ao azul claro, para, enfim, se manter em brilho mortiço. Anton parecia não se importar com o apagar das lâmpadas. Estava indiferente ao conflito entre luz e treva e aos estalos elétricos. Concentrou--se novamente nas mãos do corpo. A água ainda gotejando, arrastando o ruído pelo ambiente confinado. O aroma inde-sejado das latrinas completava a atmosfera opressa. Ainda de cócoras, mãos entrelaçadas e antebraços apoiados nos joelhos, o detetive investigava sem tocar. A cabeça inclinada para a mão direita do cadáver, buscando brechas entre os dedos para espreitar o rótulo do frasco.

O marrom do objeto realçava na pele pálida, extinta, sem vida. Anton aproximou-se mais, porém, nada viu além. Apenas o marrom do vidro se mostrava. Por fim, desistiu. Abandonou o item. Concentrou-se no dedo indicador, na unha mordida e arrancada. E o tempo passou. Mais vapor ascendeu-se. Dedos serpenteantes da umidade do piso. Braços gelados tateando aci-ma, abarcando o homem; tingindo as luminárias, lá em cima, de gotas. Luz molhada. Ações secas. Anton mordeu os lábios murchos, rachados. A cabeça pesando. Levantou-se, e o bipe, ao mesmo tempo, retornou, acompanhando o movimento. Ele resmungou, incomodado com a impertinência do alarme.

Olhou para as mãos e tocou o pulso direito. Ali, onde se po-sicionou, de frente aos três espelhos do banheiro, foi possível ver seu reflexo capturado pelo do meio: Anton de cabeça bai-

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xa manipulando os botões do relógio. Nesse momento, uma sombra disforme cruzou pelos espelhos; começando pelo da esquerda, próximo ao cadáver. Passou, num salto, para o do meio. Outro salto e sumiu pelo terceiro, do lado direito. Um vulto, à espreita, se deslocando por trás de Anton. Apenas o reflexo capturado,como se a sombra se projetasse na parede atrás, e, parede e sombra fossem refletidas nos espelhos.

A origem do vulto era a mancha no canto da parede, lá, onde Anton vislumbrara o rosto de Cristo impresso na sujeira. Do rosto, algo se levantou e se movimentou, como predador ao dar o bote. Três movimentos. Três saltos pelos espelhos. Um. Dois. Três. Pulos. Reflexo. Reflexo. Reflexo. Rápido. Um es-pectro: sete formas ovais, dez riscos verticais. Sete cabeças, dez chifres. Anton ajustava o relógio, alheio ao deslocar da coi-sa. Cessou o toque. Ajeitou o sobretudo e esfregou as mãos. Olhou-se ao espelho. Viu seu reflexo, apenas; e a parede atrás, sem vulto, sem movimentação. Sem nada. Apenas azulejos.

Tentou forçar o sorriso, mas não encontrou energia. Não encontrou vontade. Voltou o olhar para as mãos. Baixando novamente a cabeça. Envolveu o pulso direito com a mão es-querda, bloqueando o relógio – como se o tempo o irritasse, infringisse-lhe medo. O relógio marcava 01h32. Com a cabeça ainda baixa, inclinou os olhos para o espelho do meio, buscan-do o reflexo do canto da parede, lá: o rosto do Cristo. Olhou bem, porém já não via o rosto. A mancha havia sumido. Os riscos verticais e as formas ovais. Tudo havia sumido, dando lugar para revestimentos úmidos, trincados e amarelados.

– Hã? – Anton empertigou-se. Estranhou o ocorrido.Franzindo o cenho em espanto, tombou o corpo, prepa-

rando-se para virar – ainda fitando o reflexo da parede. O corpo girando sobre os calcanhares, os olhos fixos no espe-lho. Corpo indo, olhar ficando. Quase... Quando forte pan-

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cada trincou o silêncio gelado, como badalada oca de sino denso, imenso, agressivo. Tum, tum, tum. Pancadas na porta do banheiro. Tum, tum, tum. Semelhantes a batidas cardíacas.Tum, tum, tum. Alguém batendo à porta fechada. Então, duas vozes se elevaram lá, do lado de fora. As falas cruzaram a es-pessura da madeira. Arrastando-se pelo ar feito unhas sobre superfície plana; a arranhar e irritar.

Duas pessoas. Conversavam enquanto forçavam a maça-neta. Porta trancada. Forçaram mais uma, duas, três vezes. Queriam entrar. Dois garotos. Anton, ainda com os olhos fi-xos no espelho e envolvendo o relógio, decretou:

– Perícia! Banheiro interditado.Mas a maçaneta foi novamente forçada. Uma, duas, três ve-

zes. Os garotos elevaram a voz, arranhando mais o ar. A gota, no bojo, a completar as falas, tal qual tambor irregular, destoan-te, desafinado. O ambiente antes mudo, agora em som, se mos-trava: vozes lá fora e o gotejar aqui dentro. Pingo, palavras, pan-cada. Pingo, palavras, pancada. Pingo, palavras, pancada. Até que um dos externos demonstrou impaciência:

– O jeito é mijar no poste.– Que merda. A espelunca vai ficar fechada o dia todo,

cê vai ver.Mais arrancos na porta velha. As dobradiças saltaram.

Tremelicaram. Dobraram-se sobre o eixo. Mais pingos, mais palavras, mais pancadas.

– Banheiro fechado, porra! Estão surdos? – Anton rosnou.Outros arrancos na maçaneta, os garotos não se impor-

taram com as ordens do detetive. Por fim, Anton se irritou mais. Preparou-se para esbravejar com intensidade, quando o diálogo externo cessou. Os ecos perderam-se pelo ambiente. Os estranhos afastaram-se. O som parou. Persistiu o gotejar; o bojo enchendo-se mais. Menos ressoante era o pingar, a

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queda estava menor. A pia se enchia sem parar, diminuindo a energia da água, feito relógio de areia a escorrer, elevando o monte cada vez mais. A barulheira despediu-se, dando lugar para o silêncio se elevar. Frio. Apatia. Anton descontraiu os músculos, ainda apertando o pulso.

Voltou-se para as torneiras. O bronze destacava-se, elevan-do-se sobre o escuro. Havia muita umidade ao redor das pias, como se acabassem de usá-las de modo abrupto, espirrando água em demasia. Nisso, a iluminação foi cessando lentamen-te, cedendo brilho passageiro para o bronze luzir. Brilho efê-mero, estrela cadente. E o vapor ocupando todo o banheiro, se embrenhando pela fiação das luminárias, adentrando ao rebaixo do teto. Umidade e eletricidade. Água e fio exposto. Então, de repente, um curto-circuito: estalos, microexplosão. A luz se apagou – novamente. Frio. Trevas. Negrume. Silên-cio. Umidade. Lentamente Anton soltou o pulso. Ajeitou as vestes. Engoliu em seco.

E nas trevas, em algum ponto acima do vapor gélido, aci-ma da claridade mística da névoa. Acima das cabines sani-tárias. Acima do escrito em fezes. Acima de tudo, algo – ou alguém – lá, no canto, espreitava o detetive Anton Levey. Volume contorcido, vulto desfigurado. Massa disforme. Uma sombra no escuro. Esguia, estática, silenciosa. Sete cabeças. Dez chifres. Anton, aqui embaixo, afundou as mãos no so-bretudo, encontrou um objeto no bolso direito, fechou o pu-nho sobre o mesmo. O toque gelado no item o trouxe para o momento. Decidido, virou-se para a porta, fechou os olhos e andou de encontro ao escuro.

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