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J jornaldeletras.sapo.pt * 18 de setembro a 1 de outubro de 2013 8 * Letras VALTER HUGO MÃE A Islândia é efectivamente a boca de deus e este é o melhor titulo que o Valter podia ter encontrado. Tento convencê-lo disso, ele rejeita. Recordo-me de ter ouvido a história de como Jorge Amado considerava que a sua família lhe tinha destruído a” Dona Flor e os seus maridos” por opinarem demasiado. E por isso desisto. Nada é mais dramático do que a escolha de um titulo. Ele comporta em si todas as possibi- lidades e limitações. Calculo que seja o mesmo que baptizar uma criança. Continuo a não gostar do título do meu novo filme, “o sentido da vida”. E se bem que se trata de um titulo devidamente roubado aos Monty Python, não deixa de tresandar a titulo de livros de auto-ajuda.” e me- aning of life” não é o sentido da vida. Seria mais correcto escolher “o significado da vida”… no fun- do a questão primordial é essa. Mais uma vez ao regressar choro cumpulsivamente no avião. Dias melhores , dias piores, cansaço, felicidade tudo é uma desculpa para temer a morte que considero iminente. Lá em baixo não se vis- lumbra terra. Apenas se deduz… A forma da nuvem gigantesca tem a forma e o tamanho da ilha. A Daniela (minha produtora) dá-me a mão… diz que tudo vai correr bem e a verdade é que sempre corre. A boca de deus, que o Valter, inventou é necessariamente imperscrutável e por isso é um retrato tão fiel da Islândia. A ilha é triste, inóspita, impossível de viver e inacreditavelmente bela. Entrar em nevoeiro cerrado é o máximo de solidão que se poderá atingir. Não existe o outro, nem estendem-me a mão, sentem-se à vontade comigo, querem abraçar- me e tomar conta de mim durante um bocado”. Mas reconhece: “É incrível que me abordem e parti- lhem comigo o que eventualmente não partilham com mais ninguém”. E que “acreditem” em si, no que diz e no que escreve. Foi isso, de resto, que mais o comoveu, por exemplo, no Festival Literário de Parati, onde, em 2011, levou a plateia às lágrimas. “Não pode haver recompensa maior do que a de alguém desconhecido que, numa manifestação honesta, imediatamente se compadece com o que estamos a dizer. É isso que eu colho de praticamente todos os meus leitores, a garantia de que receberam a mensagem e que a entenderam como verdadeira”. Como diz a família: “O Valter está dentro de todos os livros. E as pessoas percebem isso”. A ILHA DAS CAXINAS O sucesso, contudo, não impe- de que VHM se sinta por vezes, tantas vezes, uma ilha. O seu novo romance é fruto dessa sensação, não só por se passar na Islândia, a ilha de todas as suas fantasias, mas também por a esses pedaços de terra rodeada de mar o escritor associar a solidão. De resto, a epí- grafe do livro, retirada do romance Gente Independente, de Halldór Laxness, o único Prémio Nobel da Literatura islandês, sublinha isso mesmo: “Um homem não é independente a menos que tenha a coragem de estar sozinho”. Esse é o movimento de Halldora, a narradora de A Desumanização. É dela esta ideia, que também podia ser de Valter. “Aprender a solidão não é senão capacitarmo-nos do que representamos entre todos”. Para si, não é só o facto “de a escrita ser um exercício de solidão”. É também “a certeza de que por mais acompanhado que esteja, por mais gente que me procure, a comuni- cação, como afirma Wittgenstein, é impossível”. Nunca ninguém chega perto o suficiente, diz, e acredita “frustrantemente” nisso. “Todos os afetos são apenas tentativas e até certo ponto estamos enclausura- dos”. Como as personagens de A Desumanização. Felizmente as ilhas não têm de viver sozinhas. Podem formar um arquipélago convocando outras ilhas. É o que VHM faz. Não aban- dona essa necessidade de estar só, essa vontade de ter coragem de en- carar a solidão de frente, como viu tantas vezes acontecer na Islândia. Mas chama a si o que é mais seu. A família é a sua primeira ilha. As Caxinas, a segunda. É por estas ruas, em Vila do Conde, ali junto à Póvoa de Varzim, que nos mostra com prazer, que se sente à vontade. Anonimamente, até. “As Caxinas são a minha normalidade”, diz. “Nas minhas viagens tenho sempre um limite. Ao fim de sete dias co- meço a pensar que Nova Iorque não chega aos calcanhares das Caxinas. Aqui não preciso de parecer inteli- gente, nem chique, posso abanda- lhar-me à vontade, ser eu próprio”. Nas ruas que vão dar ao mar, onde ainda vive a sua mãe, toda a gente o conhece. No café Homem do Leme, que antes, com o nome Cadilhe, foi dos seus pais durante muitos anos, nos restaurantes da cidade, onde é tratado por Senhor Valter, ou ainda no Pátio, bar de paragem obrigató- ria todas as noites para encontrar os seus amigos. Hoje está cá a pintora Isabel Lhano, o poeta João Rios, Isabel Neves e Luís Paiva. Os quatro são professores. De todos, só João Rios leu o novo livro. E assim que o amigo se senta, dispara: “Este vai surpreender ainda mais os teus leitores”. O comentário é certeiro, como o escritor o admite. “Não tenho dúvidas: este é o meu romance mais poético”. “A lingua- gem sempre me interessou, mas neste vou à procura do indizível, já que tento dar voz ao esplendor da natureza e de um lugar”. A ILHA DA ISLÂNDIA Era uma paixão antiga, a Islândia. Uma viagem sonhada há muito, desde os tempos da adolescência. E a sua paixão por ilhas deve-se a este fascínio que, como nos Açores, outras ilhas da sua predileção, não diminuiu com a confirmação do olhar. Antes, porém, a Islândia era apenas um nome, ainda antes do tempo em que a internet veio esclarecer todas as curiosidades e permitir viagens sem sair de casa. Certo dia foi-lhe parar às mãos um fanzine, uma dessas publicações que se fazem com poucos meios e muita boa vontade, com um artigo sobre os Psychic TV, um grupo de música e performance experimen- tal. Entre os seus colaboradores encontrava-se um tal de Hilmar Örn Hilmarsson, que VHM teve o prazer de agora conhecer, em Reiquiavique, durante as filmagens de O Sentido da Vida, de Miguel Gonçalves Mendes (ver caixa). Mas pela descrição que dele fazia, ima- ginou-o como um “ser exótico”, estranho ser de um país ainda mais estranho. “Foi por causa do Hilmar Örn Hilmarsson”, diz o escritor, “que criei a imagem de um lugar de fantasia, de permissões esquisitas e irreais”. A bandeira da Islândia, que já sabia de cor devido a uma coleção de cromos que fez no início da juventude, ganhava então novos contornos, outros rostos. Depois vieram os eyr, os Purrkur Pillnikk, os Sigur Rós, uma quantidade de bandas que ficaram no ouvido. Acima de todas, “a deusa Björk”, agora já na época das entrevistas televisivas, dos te- lediscos, da internet, da sociedade do espetáculo. E como a cantora is- landesa, um dos grandes símbolos culturais da Islândia, nunca negava a existência de elfos e trolls e outras criações maravilhosas, a conclusão impôs-se: “Comecei a achar que a Islândia era uma espécie de Disney World, um parque de diversões para gente grande”. A ilha do norte da Europa tornou-se, assim, um lugar mítico na sua vida. E o seu poder de atração ia aumentando ao ritmo de cada viagem que fazia. De um lado, a certeza de ser um país fantástico, do No corpo de deus A linguagem sempre me interessou, mas neste vou à procura do indizível, já que tento dar voz ao esplendor da natureza e de um lugar Miguel Gonçalves Mendes FOTOS: MIGUEL GONÇALVES MENDES

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Jjornaldeletras.sapo.pt * 18 de setembro a 1 de outubro de 20138 * Letras VALTER HUGO MÃE

A Islândia é efectivamente a boca de deus e este é o melhor titulo que o Valter podia ter encontrado. Tento convencê-lo disso, ele rejeita. Recordo-me de ter ouvido a história de como Jorge Amado considerava que a sua família lhe tinha destruído a” Dona Flor e os seus maridos” por opinarem demasiado. E por isso desisto. Nada é mais dramático do que a escolha de um titulo. Ele comporta em si todas as possibi-lidades e limitações. Calculo que seja o mesmo que baptizar uma criança. Continuo a não gostar do título do meu novo filme, “o sentido da vida”. E se bem que se trata de um titulo devidamente roubado aos Monty Python, não deixa de tresandar a titulo de

livros de auto-ajuda.” The me-aning of life” não é o sentido da vida. Seria mais correcto escolher “o significado da vida”… no fun-do a questão primordial é essa. Mais uma vez ao regressar choro cumpulsivamente no avião. Dias melhores , dias piores, cansaço, felicidade tudo é uma desculpa

para temer a morte que considero iminente. Lá em baixo não se vis-lumbra terra. Apenas se deduz… A forma da nuvem gigantesca tem a forma e o tamanho da ilha. A Daniela (minha produtora) dá-me a mão… diz que tudo vai correr bem e a verdade é que sempre corre.

A boca de deus, que o Valter, inventou é necessariamente imperscrutável e por isso é um retrato tão fiel da Islândia. A ilha é triste, inóspita, impossível de viver e inacreditavelmente bela. Entrar em nevoeiro cerrado é o máximo de solidão que se poderá atingir. Não existe o outro, nem

estendem-me a mão, sentem-se à vontade comigo, querem abraçar-me e tomar conta de mim durante um bocado”. Mas reconhece: “É incrível que me abordem e parti-lhem comigo o que eventualmente não partilham com mais ninguém”. E que “acreditem” em si, no que diz e no que escreve. Foi isso, de resto, que mais o comoveu, por exemplo, no Festival Literário de Parati, onde, em 2011, levou a plateia às lágrimas. “Não pode haver recompensa maior do que a de alguém desconhecido que, numa manifestação honesta, imediatamente se compadece com o que estamos a dizer. É isso que eu colho de praticamente todos os meus leitores, a garantia de que receberam a mensagem e que a entenderam como verdadeira”.

Como diz a família: “O Valter está dentro de todos os livros. E as pessoas percebem isso”.

A ILHA DAS CAXINASO sucesso, contudo, não impe-de que VHM se sinta por vezes, tantas vezes, uma ilha. O seu novo romance é fruto dessa sensação, não só por se passar na Islândia, a ilha de todas as suas fantasias, mas também por a esses pedaços de terra rodeada de mar o escritor associar a solidão. De resto, a epí-grafe do livro, retirada do romance Gente Independente, de Halldór Laxness, o único Prémio Nobel da Literatura islandês, sublinha isso mesmo: “Um homem não é independente a menos que tenha a coragem de estar sozinho”.

Esse é o movimento de Halldora, a narradora de A Desumanização. É dela esta ideia, que também podia ser de Valter. “Aprender a solidão não é senão capacitarmo-nos do que representamos entre todos”. Para si, não é só o facto “de a escrita ser um exercício de solidão”. É também “a certeza de que por mais acompanhado que esteja, por mais gente que me procure, a comuni-cação, como afirma Wittgenstein, é impossível”. Nunca ninguém chega perto o suficiente, diz, e acredita “frustrantemente” nisso. “Todos os afetos são apenas tentativas e até certo ponto estamos enclausura-dos”. Como as personagens de A Desumanização.

Felizmente as ilhas não têm de viver sozinhas. Podem formar um arquipélago convocando outras ilhas. É o que VHM faz. Não aban-dona essa necessidade de estar só, essa vontade de ter coragem de en-carar a solidão de frente, como viu tantas vezes acontecer na Islândia. Mas chama a si o que é mais seu. A família é a sua primeira ilha. As Caxinas, a segunda. É por estas ruas, em Vila do Conde, ali junto à Póvoa de Varzim, que nos mostra com prazer, que se sente à vontade. Anonimamente, até. “As Caxinas são a minha normalidade”, diz. “Nas minhas viagens tenho sempre um limite. Ao fim de sete dias co-meço a pensar que Nova Iorque não chega aos calcanhares das Caxinas. Aqui não preciso de parecer inteli-gente, nem chique, posso abanda-

lhar-me à vontade, ser eu próprio”. Nas ruas que vão dar ao mar, onde ainda vive a sua mãe, toda a gente o conhece. No café Homem do Leme, que antes, com o nome Cadilhe, foi dos seus pais durante muitos anos, nos restaurantes da cidade, onde é tratado por Senhor Valter, ou ainda no Pátio, bar de paragem obrigató-ria todas as noites para encontrar os seus amigos. Hoje está cá a pintora

Isabel Lhano, o poeta João Rios, Isabel Neves e Luís Paiva. Os quatro são professores.

De todos, só João Rios leu o novo livro. E assim que o amigo se senta, dispara: “Este vai surpreender ainda mais os teus leitores”. O comentário é certeiro, como o escritor o admite. “Não tenho dúvidas: este é o meu romance mais poético”. “A lingua-gem sempre me interessou, mas neste vou à procura do indizível, já que tento dar voz ao esplendor da natureza e de um lugar”.

A ILHA DA ISLÂNDIAEra uma paixão antiga, a Islândia. Uma viagem sonhada há muito, desde os tempos da adolescência. E a sua paixão por ilhas deve-se a este fascínio que, como nos Açores, outras ilhas da sua predileção, não diminuiu com a confirmação do olhar. Antes, porém, a Islândia era apenas um nome, ainda antes

do tempo em que a internet veio esclarecer todas as curiosidades e permitir viagens sem sair de casa. Certo dia foi-lhe parar às mãos um fanzine, uma dessas publicações que se fazem com poucos meios e muita boa vontade, com um artigo sobre os Psychic TV, um grupo de música e performance experimen-tal. Entre os seus colaboradores encontrava-se um tal de Hilmar Örn Hilmarsson, que VHM teve o prazer de agora conhecer, em Reiquiavique, durante as filmagens de O Sentido da Vida, de Miguel Gonçalves Mendes (ver caixa). Mas pela descrição que dele fazia, ima-ginou-o como um “ser exótico”, estranho ser de um país ainda mais estranho. “Foi por causa do Hilmar Örn Hilmarsson”, diz o escritor, “que criei a imagem de um lugar de fantasia, de permissões esquisitas e irreais”. A bandeira da Islândia, que já sabia de cor devido a uma

coleção de cromos que fez no início da juventude, ganhava então novos contornos, outros rostos.

Depois vieram os Theyr, os Purrkur Pillnikk, os Sigur Rós, uma quantidade de bandas que ficaram no ouvido. Acima de todas, “a deusa Björk”, agora já na época das entrevistas televisivas, dos te-lediscos, da internet, da sociedade do espetáculo. E como a cantora is-landesa, um dos grandes símbolos culturais da Islândia, nunca negava a existência de elfos e trolls e outras criações maravilhosas, a conclusão impôs-se: “Comecei a achar que a Islândia era uma espécie de Disney World, um parque de diversões para gente grande”.

A ilha do norte da Europa tornou-se, assim, um lugar mítico na sua vida. E o seu poder de atração ia aumentando ao ritmo de cada viagem que fazia. De um lado, a certeza de ser um país fantástico, do

No corpo de deus

A linguagem sempre me interessou, mas neste vou à procura do indizível, já que tento dar voz ao esplendor da natureza e de um lugar

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J 18 de setembro a 1 de outubro de 2013 * jornaldeletras.sapo.pt VALTER HUGO MÃE Letras * 9poços de lama, na temperatura do enxofre e em bocas de rocha. Ficou lá um mês, voltou duas vezes, e já tem agendada outra viagem para outubro. Viveu sempre um misto de “maravilha e susto”. “A opulên-cia da natureza afeta-me muito”, garante. “Assusta-me tanto quanto me fascina”. A Desumanização é o espelho dessa experiência.

A ILHA DA CASAEmpilhados, cobrem-lhe a metade do corpo. Sentado na mesa da sala de jantar da sua casa, no bairro imediatamente acima das Caxinas, VHM desfia os muitos livros que o acompanharam nestes últimos anos. Em comum têm a proveniên-cia: são todos islandeses. A geogra-fia e a cultura do país tornaram-se uma obsessão sua e fizeram com que estas paredes recém-habitadas reproduzissem um pouco do am-biente que por lá encontrou.

Valter comprou a casa há pouco tempo, mas não parece. “Em pequeno sonhei com uma casa lím-pida, cheia de luz, com uma mesa isolada onde eu escrevesse só e nada me poluísse as ideias”, brinca. “Mas, de repente, ao decorar esta casa, tive necessidade de acumular, de preencher, de convocar pessoas através de objetos. Talvez seja outra forma de fugir à solidão.” Nas paredes, quadros de muitas cores, alguns já reproduzidos em capas de livros seus. Também esculturas, peças de artesanato e estatuetas, uma até de José Saramago, a quem, como contou numa crónica do JL, às vezes “faz festas na cabeça”.

Foi aqui que escreveu A Desumanização. Da Islândia trouxe um caderno de apontamentos, com notas e pensamentos, e uma paisagem que não poucas vezes, ao correr do texto, se tornou persona-gem. E se pouco importa saber se este livro inaugura ou não um novo ciclo, certo é que o desejo de captar o lugar trouxe muita novidade à sua escrita. “Nos romances ante-riores há uma identidade que tem que ver com Portugal e até uma perceção de que somos a periferia. Mas fazer de um livro a auscultação da natureza, que não se pronuncia verbalmente, isso é absolutamente a primeira vez que faço”. Neste romance a “Islândia também fala”. Na voz de Halldora, nos poemas do seu pai, no amor descontrolado que Einar lhe tem e no ensurde-cedor silêncio da sua irmã gémea, que morreu mas cuja alma parece ter migrado para o seu corpo.

Não surpreenderá, por isso, ler a nota do autor que encerra o roman-ce: “Este livro é uma declaração de amor esquisita, mas é a mais sincera declaração de amor aos fiordes do oeste islandês”. Na inóspita região, encontrou levado ao limite tudo o que na infância imaginou sobre o país. “É aqui que há registo da maior parte dos avistamentos marinhos”, brinca. Mas é sobretu-do aqui - junto a Bildudalur, onde situou a sua aldeia imaginada - que a ditadura da natureza mais se faz sentir. “Quando se vive no meio do

1 CONTEXTUALIZAÇÃOLirismo não se harmoniza com abjecionismo. Aquele pressupõe uma linguagem poética e senti-mental, este uma linguagem crua e horrorizante; aquele, um léxico versado sobre a paixão; este, um léxico vil, repelente, ignóbil e desprezível. O milagre literário de

A Desumanização, de Valter Hugo Mãe (VHM), ora publicado, reside justamente no paradoxo de conseguir cruzar e harmonizar com sucesso esté-tico estes dois tipos de linguagem. Com efeito, A Desumanização entrelaça de um modo admirável o abjecionismo característico das narrativas de Rui Nunes ou de Gonçalo M. Tavares e o lirismo presente na poesia de Manuel Alegre. Valter Hugo Mãe não é o único escritor português a fazê-lo. Recordemos a obra de Hélia Correia, por exem-plo, sobretudo o seu último romance, Adoecer.

Porém, no todo da obra de VHM, este é o seu primeiro livro que entretece de um modo mui-to pronunciado o abjecionismo, constituído por elementos socialmente patológicos, e um lirismo neo-romântico. É como se neste romance ora publicado, VHM tivesse juntado o estilo naturalista dos seus primeiro e segundo romances, o nosso reino e o remorso de baltazar serapião, com o estilo lírico de O Filho de Mil Homens - e é neste sentido que A Desumanização deve ser literariamente estatuído na obra do autor: o resultado original e bem consegui-do de uma obra ficcional iniciada há praticamente dez anos em que a multiplicidade de temas e estilos (recorde-se o estilo realista de A Máquina de Fazer Espanhóis, ou a incursão no fantástico do parto da personagem anã em O Filho de Mil Homens) se reú-nem, em 2013, na publicação de A Desumanização. Significa, igualmente, que VHM, no romance ora publicado, como corolário de dez anos de escrita em prosa, atinge um patamar de maturidade literá-ria difícil de alcançar e, até, de superar.

2 A DESUMANIZAÇÃO: SUBLIME E ASSOMBRODificilmente se converte em escrita poética

o conhecimento de um país se o não amarmos. A Desumanização é o resultado do amor (no sentido de encantamento) do autor pela Islândia, o país da neve, do gelo e dos fiordes: “Que maravilha, as fundas dos vulcões que respiram e aguardam. Que maravilha, a espessura das montanhas que deitam pé ao debaixo das águas e aguardam. Diziam os velhos carregados de ideias inúteis. Os profundos velhos” (p. 22). Este amor vazou-se em duas ver-tentes: a atração pela paisagem inóspita mas subli-me, simbolizada na imagem do “fim do mundo”, na “boca de Deus”, e o assombro ou espanto pela luta poderosa dos islandeses contra um ambiente hostil. São as duas marcas semânticas que detetamos ao longo de todo o romance: o sublime e o assombro, que, cruzados ambos, geram positiva e negativa-mente o lirismo e o abjecionismo.

Não é um povo normal o que assim consegue viver tão esforçadamente e as personagens criadas por VHM refletem esse duplo estatuto de excelsi-dade, no sentido de ultrapassarem a sua condição

de aldeãos isolados no povoado de Bilduladur, e de patologia, contendo todas algo de imundo e de repugnante, que as caracteriza, com exceção de Gudmundur, que transforma em poesia a luta diária pela sobrevivência, o pai da menina Halldoro ou Hall, a narradora, de 11/12 anos.

O sublime metamorfoseia-se numa linguagem apaixonada, por vezes com o sentido sintático subvertido, e o assombro na criação de personagens que se caracterizam por serem sempre mais ou me-nos que humanas. Hall não aceita a morte e o enter-ramento da irmã gémea (cf. “Nota do Autor” para enquadramento na biografia de VHM), Sigridur. A mãe culpa-a da morte desta e do mal que parece afetar a família, a mãe expia a desgraça sofrida no seu próprio corpo através de ritos de escarnificação, que impressionam o leitor (cf. p. 19, por exemplo).

Entre a mãe que a maltrata e o pai que lhe arreba-ta a alma através da poesia, a pequena Hall deixa-se apaixonar por Einar, um ser feio, “tolo”, um “ogre” sujo, de dentes podres, pele imunda e barbas crespas nunca cortadas, que a engravida. Povoado isolado sem sacerdote, o sensato e optimista Steindór faz as vezes de pastor de almas, celebrando ao domingo um arremedo de ato litúrgico no velho edifício da igreja, onde a vizinha Thurid tenta arrancar notas melodiosas a um velhíssimo órgão avariado. O am-biente social é descrito com um sentido decrépito, decadente e fellinesco (cf. descrição das gentes da aldeia nas pp. 148 a 155), as personagens sobrevoam a crueza da terra gerando atitudes e pensamentos fantasiosos e fantásticos, usando de uma linguagem cruel e sanguínea. Assim se constrói o universo tétrico e sem futuro da menina Hall, uma vida que entre “o antes e o agora sobrava nada. Como se a biografia de alguém houvesse de ser apenas a data de nascimento e o exato segundo que se encontrava a viver” (p. 227). O desfecho deixa-se adivinhar, sobretudo após o sofrimento de um aborto natural por Hall, não há mais lugar em Bilduladur para Hall.

Belíssimas imagens de Cristina Valadas que, pelo misto de infantilidade e fantástica, introduzem ao ambiente do romance.

Título estranho o deste romance, A Desumanização, aliás, como “estranhos” têm sido todo os títulos dos livros de VHM. Qual o seu significado? Que o am-biente natural de isolamento extremo gera reações e comportamentos desumanos, como os constantes do romance? Que o ambiente social desumaniza as crianças, como se Hall fosse uma espécie de “bom selvagem” rousseauniano pervertido pela mãe e por Einar? Que o povoado retratado representa a verda-deira natureza humana e hoje a ciência e a tecnolo-gia, concedendo-nos o conforto não-natural e uma vida longa, desumanizou-nos? J

Lirismo abjecionista

OS DIAS DA PROSAMiguel Real

paisagem, nem coordenadas. Só a consciência da nossa própria solidão. Será talvez a experi-ência mais próxima da morte. E sair … a de sobreviver O meu pânico da morte faz-me agora amar profundamente a vida. E nos últimos tempos qualquer viagem que viva, qualquer rela-ção que tenha faz-me agradecer a um deus no qual não acredito a possibilidade de viver/ expe-renciar aquele momento.

São 3 da manhã. Estou de óculos de sol.. A luz branca fere os olhos, sobretudo quando reflectida num glaciar .. será que as coisas só existem realmente quando as vivemos. 7 horas de viagem e chegamos aos fior-des. Não sou new age…odeio a metafísica mas juro que vivi o dia mais feliz da minha vida, um orgasmo constante, um orgasmo visual durante 7 horas em que me foi dada a possibilidade de ver a paisagem mais extraordinária que alguma vez me deparei, religiosa na sua majestade. Penso no privilégio que é a minha vida e, na possibilidade de comparti-lhar este momento com a Daniela que amo, odiando. Com o Valter, que irei amar e odiar também por toda a vida. E percebo que a Islândia é não ter medo, é estar sentado no topo de um carro a filmar e não ter medo do abismo.

É estar deitado num tanque de água quente, perdido na paisagem com temperaturas negativas, é perceber que tudo é maior de que nós e que pouco há que possamos fazer. . Apenas lutar e no final de cada uma das batalhar aceitar serenamente o nosso destino. O Hilmar aceita participar no filme. Ironia do destino o Valter tinha dedicado o livro ao Hilmar. O Hilmar é um padre Viking, mas é tam-bém o mentor e causa da origem da nova cena musical islandesa, da Bjork ou de uma banda como sigur ros. J

outro a verificação de que o mundo lhe parecia “demasiado normal”. “Poucas vezes tive a sensação de estar num lugar que, ou pela sua preservação ou pela sua destruição, não se parecia com mais nada”.

Em agosto de 2011, partiu para a Islândia e não demorou muito a confirmar as suas suspeitas, ele que em tudo segue sempre a intuição. Ainda estava no autocarro que faz a ligação entre o aeroporto de Keflavík e a capital e já tinha a sensação de “incómodo”, que é o mesmo que dizer de “desafio”. “Senti o autocarro como uma cáp-sula que me protegia contra uma besta, um monstro que, apesar de adormecido, tinha vida própria”. Vieram-lhe à cabeça as histórias que lhe contavam em miúdo e que faziam da Islândia um corpo com o coração em chamas a arder debai-xo de um manto de gelo. E também os relatos de turistas engolidos em

› Valter Hugo MãeA DESUMANIZAÇÃOPorto Editora, 234 pp, 16,60 euros