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SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS 188 VÍCTOR ABRAMOVICH Diretor executivo do Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS), Argentina. RESUMO O objetivo do artigo é analisar diferentes linhas de trabalho das organizações de direitos humanos que atuam no campo dos direitos econômicos, sociais e culturais. Nesse sentido, a partir da definição das principais características desses direitos e de sua estrutura, é analisada a possibilidade de exigi-los nas instâncias judiciais, enfocando também os problemas e os limites das estratégias de tutela judicial. Na segunda parte, é abordado o debate sobre o papel dos tribunais em questões vinculadas a políticas sociais e examinado, sob a perspectiva das organizações de direitos humanos, o aparente impasse entre as estratégias de incidência judicial e as de incidência política, bem como sua possível articulação. [Original em espanhol]

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  • SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS188

    VCTOR ABRAMOVICH

    Diretor executivo do Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS),

    Argentina.

    RESUMO

    O objetivo do artigo analisar diferentes linhas de trabalho das

    organizaes de direitos humanos que atuam no campo dos direitos

    econmicos, sociais e culturais. Nesse sentido, a partir da definio das

    principais caractersticas desses direitos e de sua estrutura, analisada a

    possibilidade de exigi-los nas instncias judiciais, enfocando tambm os

    problemas e os limites das estratgias de tutela judicial. Na segunda

    parte, abordado o debate sobre o papel dos tribunais em questes

    vinculadas a polticas sociais e examinado, sob a perspectiva das

    organizaes de direitos humanos, o aparente impasse entre as

    estratgias de incidncia judicial e as de incidncia poltica, bem como

    sua possvel articulao. [Original em espanhol]

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    A estrutura dos direitos econmicos,sociais e culturais e as possveis estratgias judiciais**

    Quem defende a tese de um defeito de origem nos direitoseconmicos, sociais e culturais enquanto direitos demandveisacredita que o cerne da impossibilidade de se conseguir suaexigibilidade est em sua prpria natureza. Os argumentos usadospelos opositores da aplicao judicial dos direitos econmicos,sociais e culturais se baseiam na diferena entre a natureza dessesdireitos e a natureza dos direitos civis e polticos.

    Um dos aspectos sempre reiterados para sustentar a pretensadistino dos direitos civis e polticos em relao aos econmicos,sociais e culturais o suposto carter de obrigatoriedade negativado primeiro gnero de direitos, enquanto os direitos econmicos,sociais e culturais implicariam o nascimento de obrigaes positivasque, na maioria dos casos, deveriam ser liquidadas com recursosdo errio pblico.1 De acordo com essa posio, as obrigaesnegativas se esgotariam em um no fazer por parte do Estado:no deter arbitrariamente as pessoas, no aplicar penas semjulgamento prvio, no restringir a liberdade de expresso, noviolar a correspondncia nem os papis privados, no interferir napropriedade privada etc. A estrutura dos direitos econmicos,sociais e culturais se caracterizaria, ao contrrio, por obrigar o

    LINHAS DE TRABALHO EM DIREITOS ECONMICOS,SOCIAIS E CULTURAIS: INSTRUMENTOS E ALIADOS*

    Vctor Abramovich

    * Este artigo foi elaborado com

    a colaborao de Julieta Rossi.

    ** Esta parte do texto

    expressa as concluses de um

    trabalho de pesquisa mais

    amplo, elaborado em conjunto

    com Christian Courtis (2002).

    Ver as notas deste texto a

    partir da pgina 213.

    As referncias bibliogrficas

    das fontes mencionadas neste

    texto esto na pgina 221.

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    Estado a fazer, ou seja, a prestar atendimento positivo: fornecerservios de sade, assegurar a educao, preservar o patrimniocultural e artstico da comunidade.

    No primeiro caso, bastaria limitar a atividade do Estado,proibindo sua atuao em algumas reas. No segundo, o Estadodeveria necessariamente alocar recursos para prestar os serviosexigidos, de forma positiva.2 Essas distines tm como base umaviso distorcida e naturalista do papel e do funcionamento damquina estatal, que coincide com a posio de um Estadomnimo, responsvel por garantir apenas justia, segurana edefesa.3 Entretanto, at para os pensadores mais tpicos daeconomia poltica clssica, como Adam Smith e David Ricardo,era mais do que bvia a inter-relao entre as supostas obrigaesnegativas do Estado em especial quanto garantia da liberdadede comrcio e uma longa srie de obrigaes positivas vinculadas manuteno das instituies polticas, judiciais, de segurana edefesa, condio necessria para o exerccio da liberdade individual.

    Smith, por exemplo, atribui ao Estado um papel ativo nacriao das condies institucionais e legais para a expanso domercado.4 O mesmo cabe assinalar com relao a muitos outrosdireitos civis e polticos tal como o devido processo legal, oacesso justia, a formao de associaes e o direito de eleger eser eleito que implicam a criao de condies institucionaiscorrespondentes por parte do Estado (existncia e manutenode tribunais; estabelecimento de normas e registros que tornemjuridicamente relevante a atuao coletiva de um grupo de pessoas;convocao de eleies; organizao de um sistema de partidospolticos etc.).5

    Mesmo certos direitos que parecem se ajustar com maisfacilidade caracterizao de obrigao negativa, ou seja, querequerem uma limitao na atividade do Estado a fim de nointerferir na liberdade dos cidados por exemplo, a proibio dedeteno arbitrria, de censura prvia imprensa ou de violao correspondncia e aos papis privados , acarretam intensaatividade estatal para evitar que agentes do prprio Estado, ouparticulares, interfiram nessa liberdade, de tal modo que acontrapartida pelo exerccio desses direitos passa a ser ocumprimento de funes de polcia, segurana, defesa e justiapor parte do Estado. Evidentemente, o cumprimento dessasfunes implica obrigaes positivas, caracterizadas pela alocaode recursos, no bastando a mera absteno do Estado.6

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    Em sntese, a estrutura dos direitos civis e polticos pode sercaracterizada como um complexo de obrigaes negativas epositivas do Estado: obrigao de abster-se de atuar em certosmbitos e de realizar uma srie de funes, para garantir o gozo daautonomia individual e impedir que seja prejudicada por outroscidados. Dada a coincidncia histrica dessa srie de funespositivas com a definio do Estado liberal moderno, acaracterizao dos direitos civis e polticos tende a tornar naturalessa atividade estatal e enfatizar os limites de sua atuao.

    Sob essa perspectiva, os direitos civis e polticos se distinguemdos direitos econmicos, sociais e culturais mais em uma questode grau do que em aspectos substanciais.7 Pode-se reconhecerque a faceta mais visvel dos direitos econmicos, sociais e culturaissejam as obrigaes de fazer, e por isso que s vezes sodenominados direitos-prestao.8 Contudo, no difcildescobrir, quando se observa a estrutura desses direitos, a existnciaconcomitante de obrigaes de no fazer: o direito sadecompreende a obrigao estatal de no prejudicar a sade; o direito educao pressupe a obrigao de no piorar a educao; odireito preservao do patrimnio cultural implica a obrigaode no destruir esse patrimnio.

    por essa razo que muitas das aes legais tendentes aplicao judicial dos direitos econmicos, sociais e culturais sodirecionadas para a correo da atividade estatal, quando esta deixade cumprir obrigaes de no fazer. Em suma, os direitoseconmicos, sociais e culturais tambm podem ser caracterizadoscomo um complexo de obrigaes positivas e negativas do Estado,embora nesse caso as obrigaes positivas se revistam de maiorimportncia simblica para identific-los. Assim, por exemplo,Contreras Pelez, ao perceber a impossibilidade de uma distinotaxativa entre ambos os tipos de direito, afirma que para os direitossociais [...] a prestao estatal representa verdadeiramente asubstncia, o ncleo, o contedo essencial do direito; em casoscomo o direito assistncia gratuita para a sade ou a educao, ainterveno estatal acontece todas as vezes que o direito exercido;a no-prestao desse servio pelo Estado pressupeautomaticamente a denegao do direito.9

    ainda possvel mostrar outro tipo de problema conceitualque dificulta a distino radical entre direitos civis e polticos, porum lado, e direitos econmicos, sociais e culturais, por outro,ressaltando as limitaes dessas diferenciaes e reafirmando a

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    necessidade de um tratamento terico e prtico comum em relaoa tudo que substancial. A concepo terica e inclusive aregulamentao jurdica concreta de vrios direitostradicionalmente considerados direitos de autonomia, que geramobrigaes negativas por parte do Estado tem variado de talmodo que alguns dos direitos classicamente considerados civis epolticos adquiriram um indubitvel aspecto social. A perda docarter absoluto do direito de propriedade com base no interessepblico o exemplo mais cabal a respeito, ainda que no seja onico.10 As tendncias atuais do direito de danos deresponsabilidade civil atribuem um lugar central distribuiosocial de riscos e benefcios como critrio para determinar aobrigao de reparar.

    O impetuoso surgimento de um direito do consumotransformou de modo substancial os vnculos contratuais, quandoh consumidores e usurios participando da relao.11 Aconsiderao tradicional da liberdade de expresso e de imprensaadquiriu dimenses sociais que ganham fora pela formulao daliberdade de informao como um direito de todo membro dasociedade que compreende, em certas circunstncias, a obrigaopositiva de produzir informao pblica. As liberdades de empresae de comrcio so restringidas quando seu objeto ou seudesenvolvimento acarreta um impacto sobre a sade ou o meioambiente.12 Em suma, muitos direitos que por tradio estoincludos no catlogo de direitos civis e polticos foramreinterpretados do ponto de vista social, de modo que as distinesabsolutas tambm no tm razo de ser em tais casos.13 Nessesentido, a jurisprudncia dos rgos de proteo internacional dedireitos humanos e, em especial, a Corte Europia de DireitosHumanos (CEDH), estabeleceu a obrigao positiva dos Estadosde: remover os obstculos sociais que impossibilitam o acesso jurisdio; tomar medidas apropriadas para evitar que alteraesambientais cheguem a constituir uma violao do direito vidaprivada e familiar;14 e desenvolver aes afirmativas para impedirriscos previsveis e evitveis que afetem o direito vida.15

    Dada a interdependncia dos direitos civis e polticos comos direitos econmicos, sociais e culturais, em muitos casos asviolaes dos primeiros afetam tambm os segundos, e vice-versa.A contundente diferenciao entre ambas as categorias costumadesvanecer quando se procura identificar a violao dos direitosem casos concretos. Muitas vezes, o interesse tutelado por um

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    direito civil cobre tambm o interesse tutelado pela definio deum direito social. O limite entre uma categoria e outra certamente tnue. Quando no existem mecanismos diretos detutela judicial dos direitos econmicos, sociais e culturais no direitointerno dos Estados, ou no sistema internacional de proteo aosdireitos humanos, uma estratgia indireta consiste em reformularas obrigaes sujeitas justia do Estado em matria de direitoscivis e polticos, de modo a discutir a violao por essa via. Talencaminhamento de suma importncia em pases como, porexemplo, Espanha e Chile, onde a tutela jurisdicional, por meiode aes como a de amparo, se restringiu a um catlogo fechadode direitos denominados fundamentais, que em geral coincidemcom os da lista clssica de direitos civis. Assim, fica possvel teracesso tutela jurisdicional em situaes de flagrante violao deum direito social. Nesse sentido, de suma utilidade consultar omecanismo de tutela de direitos sociais conexos com direitosfundamentais na jurisprudncia da Corte Constitucionalcolombiana, como exemplo de uma modalidade de proteoindireta dos direitos sociais a partir de sua ntima relao com umdireito civil ou poltico.16

    O uso do direito vida para proteger interesses amparadospor direitos sociais outra estratgia de proteo indireta de direitoseconmicos, sociais e culturais, adotada no nvel domstico, masque poderia ser aplicada tambm aos mecanismos de proteointernacional de direitos humanos. No sistema europeu, o direito vida tem sido utilizado como forma de proteger interessesvinculados ao direito sade e de exigir, do Estado, obrigaespositivas de proteo. No caso L. C. B. vs Reino Unido, o CEDHafirmou que o primeiro pargrafo do Artigo 2o da Convenoobriga os Estados no s a se abster de retirar a vida de algum,intencional e ilegalmente, mas tambm a adotar medidasapropriadas para garantir a vida. No caso em questo, discutia-seo alcance do dever do Estado de fornecer informao adequada requerente sobre as circunstncias que poderiam ter minimizadoou evitado a doena de que sofria.

    Tambm foi explorada, como estratgia de exigibilidadeindireta de reivindicao de direitos sociais, a ntima relao entrea escolha de um modo de vida individual e o aproveitamento debens culturais que identificam, por exemplo, uma determinadaminoria, ou um povo indgena. Nesse sentido, o direito deautonomia ou o direito de estabelecer um projeto de vida de

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    forma autnoma se aproxima do direito social de participar decertas prticas ou bens culturais. Argumentou-se, por isso, queo projeto de vida de cada membro dessa coletividade dependeprofundamente do desfrute de bens culturais lngua, religio,terra ancestral e prticas econmicas tradicionais dos povosindgenas.17

    Poderia ento ser dito que a adscrio de um direito aocatlogo de direitos civis e polticos, ou ao de direitos econmicos,sociais e culturais, tem um valor heurstico, ordenador,classificatrio; no entanto, uma conceitualizao mais rigorosalevaria a admitir um continuum de direitos, no qual o espao decada direito estaria determinado pelo peso simblico docomponente de obrigaes positivas ou negativas nele delineadas.Por esse raciocnio, alguns direitos, claramente passveis de seremcaracterizados segundo obrigaes negativas do Estado, ficamenquadrados no horizonte dos direitos civis e polticos caso,por exemplo, da liberdade de pensamento ou da liberdade deexpresso sem censura prvia. No outro extremo, alguns direitosque em sua essncia se caracterizam por obrigaes positivas doEstado estaro contidos no catlogo de direitos econmicos,sociais e culturais por exemplo, o direito moradia.18 Noespao intermedirio entre esses dois extremos h um espectrode direitos que conjugam uma combinao de obrigaespositivas e negativas, em graus diversos: identificar se um delesest na categoria dos civis e polticos, ou no grupo doseconmicos, sociais e culturais resulta de uma decisoconvencional, mais ou menos arbitrria.

    Na mesma linha do que j foi dito, autores como van Hoofou Asbjorn Eide propem um esquema interpretativo queconsiste em assinalar nveis de obrigaes estatais quecaracterizariam o complexo identificador de cada direito,independentemente de atribu-lo ao conjunto de direitos civis epolticos ou ao de direitos econmicos, sociais e culturais. Deacordo com a proposta de van Hoof,19 por exemplo, seria possveldiscernir quatro nveis: obrigaes de respeitar, de proteger,de garantir e de promover o direito em questo. As obrigaesde respeitar se definem pelo dever do Estado de no interferirnem obstaculizar ou impedir o acesso ao desfrute dos bens queconstituem o objeto do direito. As obrigaes de protegerconsistem em evitar que terceiros interfiram, obstaculizem ouimpeam o acesso a esses bens. As obrigaes de garantir

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    pressupem assegurar que o titular do direito tenha acesso aobem quando no puder faz-lo por si mesmo. As obrigaes depromover se caracterizam pelo dever de criar condies paraque os titulares do direito tenham acesso ao bem.

    Como se pode ver, o raciocnio de nveis de obrigaes perfeitamente aplicvel a todo o espectro de direitos, sejam elesclassificados como direitos civis e polticos ou como direitoseconmicos, sociais e culturais. Boa parte do trabalho dosorganismos de direitos humanos e dos rgos internacionais deaplicao das normas internacionais de direitos humanos emmatria de direito vida e direito integridade fsica e psquica (eas correspondentes proibies de morte e tortura) em geralclassificados como civis e polticos consiste em reforar osaspectos vinculados s obrigaes de proteger e satisfazer essesdireitos. Diversas medidas so utilizadas para isso, como: ainvestigao das prticas estatais violadoras; o julgamento ou oestabelecimento de responsabilidades civis ou penais a seusperpetradores; a reparao s vtimas; a modificao da legislaoque estabelece foros especiais para o julgamento de fatos de morte,desaparecimento e tortura; a modificao dos programas deformao das foras militares e de segurana; e a incluso de formasde educao em direitos humanos nos currculos escolares.

    Obrigaes positivas e obrigaes negativas

    importante repetir que a objeo aplicabilidade judicial dosdireitos econmicos, sociais e culturais parte da consideraosimplista de que esses direitos estabelecem exclusivamenteobrigaes positivas, idia que, como vimos, est longe de sercorreta.20 Tanto os direitos civis e polticos quanto os econmicos,sociais e culturais constituem um complexo de obrigaes positivase negativas. Mas convm aprofundar essa noo, pois de seuaperfeioamento dependem a extenso e o alcance da exigibilidadede ambos os tipos de direitos.

    No que se refere s obrigaes negativas, trata-se das obrigaesde se abster de realizar certa atividade por parte do Estado. Porexemplo: no impedir a expresso ou a difuso de idias; no violara correspondncia; no deter pessoas arbitrariamente; no impedira filiao de uma pessoa a um sindicato; no intervir em caso degreve; no piorar o estado de sade da populao; no impedir umapessoa de ter acesso educao.

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    Quanto s obrigaes positivas, convm estabelecer algumasdistines que nos daro a pauta do tipo de medidas que sepode exigir do Estado. Com certo automatismo, costuma-sevincular diretamente as obrigaes positivas do Estado obrigao de dispor de fundos. No h dvida de que se trata deum dos modos mais caractersticos de cumprir as obrigaes defazer ou de dar, em especial ao se falar em sade, educao eacesso moradia. No entanto, as obrigaes positivas no seesgotam em aes que se resumem a dispor de reservasoramentrias para oferecer uma prestao de servios. Asobrigaes de fornecer servios podem caracterizar-se peloestabelecimento de uma relao direta entre o Estado e obeneficirio da prestao. Mas possvel, para o Estado, asseguraro gozo de um direito por meios diferentes, com a participaoativa de outros sujeitos obrigados.

    1. Certos direitos se caracterizam pela obrigao do Estado deestabelecer algum tipo de regulamentao, sem a qual o exer-ccio de um direito no tem sentido.21 Nesses casos, a obri-gao do Estado nem sempre est vinculada transfernciade fundos ao beneficirio da prestao, mas precisamenteao estabelecimento de normas que concedam relevncia auma situao determinada ou organizao de uma estru-tura que se encarregue de pr em prtica certa atividade. Sequisermos dar um contedo operacional, o direito a asso-ciar-se livremente implica a obrigao estatal de dar rele-vncia ou reconhecimento jurdico associao que resul-tar do exerccio desse direito. Da mesma forma, o direito deconstituir um sindicato ou de se afiliar a um sindicato im-plica o direito a outorgar conseqncias jurdicas relevantesa sua atuao. O direito poltico de eleger pressupe a pos-sibilidade de eleger entre diferentes candidatos, o que porsua vez implica uma regulamentao que assegure a possi-bilidade de vrios candidatos representarem partidos polti-cos e se candidatarem s eleies. O direito informaoimplica ao menos o estabelecimento de uma legislao esta-tal, tendente a assegurar o acesso informao de origemdiversa e a pluralidade de vozes e opinies. O direito aocasamento implica a existncia de uma regulamentao ju-rdica que outorgue alguma eficincia ao fato de se contrairnpcias. O direito proteo da famlia pressupe a exis-

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    tncia de normas jurdicas que confiram existncia de umgrupo familiar algum tipo de considerao diferencial emrelao a sua inexistncia.

    O gozo desses direitos implica um complexo de normasestabelecendo conseqncias jurdicas relevantes, resultan-tes da permisso original. Mais uma vez, podem ser novasnormas permissivas (a possibilidade de uma associao ce-lebrar contratos, ou de um casal registrar sua moradia comobem de famlia, para proteg-la de possveis execues etc.);proibies para o Estado (a impossibilidade de impor restri-es arbitrrias ou discriminatrias no exerccio dos direi-tos mencionados, ou a proibio de discriminar filhos nas-cidos fora do matrimnio); ou at de obrigaes para o Es-tado (reconhecer os candidatos propostos pelos partidospolticos, ou os delegados sindicais).

    2. Em outros casos, a obrigao exige que a regulamentaoestabelecida pelo Estado limite ou restrinja os poderes doscidados ou lhes imponha obrigaes de algum tipo. As le-gislaes vinculadas aos direitos trabalhistas e sindicais emgeral compartilham essa caracterstica, tal como as normasrelativamente recentes que regem a defesa do consumidor ea proteo ao meio ambiente. Assim: o estabelecimento deum salrio-mnimo; o princpio da equiparao salarial, queestabelece a igualdade de remunerao diante da igualdadede tarefas; a obrigatoriedade de descansos, jornada de traba-lho limitada e frias pagas; a proteo contra demisso arbi-trria; as garantias dos delegados sindicais para o cumpri-mento de sua gesto etc., teriam pouco sentido se fossemexigveis ao Estado apenas quando ele atua como emprega-dor. Nas economias de mercado, o contedo dessas obriga-es estatais consiste em estabelecer uma regulamentaoque se estenda aos empregadores privados. Situao equiva-lente a das normas referentes a relaes de consumo e aobrigaes ambientais.

    H ainda casos em que a regulamentao estatal podeestabelecer limitaes ou restries livre consignao defatores econmicos por parte do mercado, de modo a pro-mover ou favorecer o acesso de setores com menos recur-sos a direitos como a moradia. A regulamentao estataldas taxas de juros em matria hipotecria e a regulamenta-

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    o das locaes para moradia familiar so exemplos dessetipo de medida. No entanto, tais restries no se limitamao campo econmico. O direito de retificao ou resposta um bom exemplo: o Estado estabelece restries a ummeio jornalstico privado em favor de um cidado que sesente afetado por uma informao inexata ou ofensiva.

    3. Por ltimo, o Estado pode cumprir sua obrigao fornecen-do servios populao, de forma exclusiva ou em modali-dades de garantia mista que incluam, alm de um aporteestatal, regulamentaes que contemplem os cidados afe-tados por restries, limitaes ou obrigaes. As medidasestatais de cumprimento das obrigaes positivas podemassumir mltiplos aspectos: organizao de um servio p-blico (por exemplo, o funcionamento dos tribunais, queassegura o direito jurisdio; a previso do cargo do defen-sor pblico, que assegura o direito de defesa em juzo aosque no podem pagar um advogado particular; ou a organi-zao do sistema educacional pblico); oferta de programasde desenvolvimento e capacitao; estabelecimento de for-mas escalonadas pblico/privadas de cobertura (por exem-plo, mediante a organizao de formas privadas de aportepara a manuteno de obras sociais que cubram o direito sade das pessoas empregadas e de suas famlias, e o estabe-lecimento de um sistema pblico de sade que cubra o di-reito das pessoas no-amparadas pela estrutura de empre-go); administrao pblica de crditos diferenciais (por exem-plo, os crditos hipotecrios destinados moradia); criaode subsdios; realizao de obras pblicas; prestao de be-nefcios fiscais ou isenes de impostos.

    Como se pode ver, o complexo de obrigaes que um direito podeabranger muitssimo variado. Os direitos econmicos, sociais eculturais se caracterizam justamente por envolver um amploespectro de obrigaes estatais. Em conseqncia, falsa aafirmao de que so escassas as possibilidades de aplicabilidadejudicial desses direitos: cada tipo de obrigao oferece um lequede aes possveis, que vo desde a denncia de descumprimentode obrigaes negativas, passando por diversas formas de controledo cumprimento de obrigaes negativas, at chegar exignciade cumprimento de obrigaes positivas descumpridas.

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    Estratgias judiciais

    Do que foi dito at agora se depreendem concluses quequestionam claramente a idia de que s os direitos civis e polticosesto no mbito da justia.22 Ora, se entendemos que todo direitogera para o Estado um complexo de obrigaes negativas epositivas, cabe analisar quais tipos de obrigao oferecem apossibilidade de ser exigidos mediante atuao judicial. Oproblema nos remete a uma das discusses clssicas em matriade definio dos direitos: a relao entre um direito e a ao judicialexistente para exigi-lo. Algumas das dificuldades conceituaispropostas por essa discusso fonte constante de respostascirculares dizem respeito estreita vinculao entre a nooclssica de direito subjetivo, a noo de propriedade e o modelode Estado liberal.23 As noes substanciais e processuais prpriasda formao jurdica continental tradicional surgem em boa partedo marco conceitual determinado por essa vinculao; por isso,muitas das respostas quase automticas diante da possvel aplicaojudicial aos direitos econmicos, sociais e culturais insistem emmostrar a falta de aes ou garantias processuais concretas quetutelem esses direitos.

    Algumas das facetas apontadas se referem ao carter coletivode muitas reivindicaes vinculadas a direitos econmicos, sociaise culturais. Referem-se tambm inadequao da estrutura e daposio do Poder Judicirio para impor obrigaes que exigemdos poderes polticos disponibilidade de fundos para seucumprimento ou desigualdade que geraria o sucesso de algumasaes individuais nas quais se tornasse exigvel um direito,enquanto se mantivesse a situao de descumprimento nos demaiscasos idnticos no questionados judicialmente. Nesse sentido,alguns autores expressam como um obstculo tutela judicial olimitado marco cognitivo de um processo judicial: o marco dedeciso do litgio judicial nem sempre o mbito mais adequadopara discutir e decidir questes de polticas pblicas que podemimplicar priorizar objetivos, distribuir recursos, equilibrarinteresses contrapostos etc.24 Outros se referem formaoprofissional dos juzes: certas questes apresentadas consideraoda judicatura requerem conhecimentos tcnicos especficos eabundante informao sobre os fatos, aspectos para os quais umaagncia administrativa especializada seria melhor que um juiz.25

    Mesmo percebendo essa dificuldade terica que

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    evidentemente coloca limites tutela judicial de algumas obrigaesque surgem de direitos econmicos, sociais e culturais necessriorealizar uma anlise mais precisa para explicitar distintos tipos desituaes nas quais a violao de direitos econmicos, sociais eculturais seria corrigvel mediante atuao judicial. precisoacrescentar, tambm, que a inexistncia de instrumentosprocessuais concretos para remediar a violao de certas obrigaesque tm como fonte direitos econmicos, sociais e culturais noimplica de forma alguma a impossibilidade tcnica de cri-los edesenvolv-los. O argumento da inexistncia de aes idneasexpe simplesmente um estado26 suscetvel de ser modificado. Oque se afirma que os instrumentos processuais tradicionais surgidos no contexto de litgios que tinham como medida ointeresse individual, o direito de propriedade e uma concepoabstencionista do Estado se mostram limitados para exigirjudicialmente tais direitos.27

    Por um lado, como dissemos, em muitos casos as violaesde direitos econmicos, sociais e culturais provm dodescumprimento de obrigaes negativas por parte do Estado.Alm de alguns dos exemplos dados, til lembrar que um dosprincpios liminares estabelecidos em matria de direitoseconmicos, sociais e culturais a obrigao estatal de nodiscriminar no exerccio desses direitos (ver Artigo 2.2 do PactoInternacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais PIDESC), o que de fato estabelece importantes obrigaesnegativas para o Estado. Violaes desse tipo abrem um enormecampo para a tutela judicial dos direitos econmicos, sociais eculturais, cujo reconhecimento passa a constituir um limite e,portanto, um padro de impugnao da atividade estatal que norespeita tais direitos.

    Pensemos, por exemplo, na violao estatal do direito sade, a partir da contaminao do meio ambiente realizadapor seus agentes; ou na violao do direito moradia, a partirdo despejo forado de habitantes de uma determinada zonasem que se lhes oferea residncia alternativa; ou na violaodo direito educao, a partir da limitao do acesso educaopor razes de sexo, nacionalidade, condio econmica ou outrofator discriminatrio; ou na violao de qualquer outro direitodesse tipo, quando a legislao na qual se estabelecem ascondies de acesso e gozo discriminatria. Nesses casos, soperfeitamente viveis muitas das aes judiciais tradicionais,

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    sejam elas aes de inconstitucionalidade, de impugnao ounulidade de atos regulamentares de alcance geral ou particular,declaratrias, de amparo, ou inclusive de perdas e danos. Aatividade positiva do Estado, que acaba por violar os limitesnegativos impostos por determinado direito econmico, socialou cultural, questionvel judicialmente e, constatada essavulnerabilidade, o juiz decidir privar de valor jurdico amanifestao viciada de vontade do Estado, obrigando-o acorrigi-la de maneira a respeitar o direito afetado.

    Por outro lado, nos deparamos com casos de descumprimentode obrigaes positivas do Estado, ou seja, omisses do Estadoem suas obrigaes de realizar aes ou tomar medidas no sentidoda proteo e da satisfao dos direitos em questo. nesse pontoque surgem mais dvidas e questionamentos em relao tutelajudicial dos direitos econmicos, sociais e culturais. No entanto,a questo apresenta uma multiplicidade de facetas, que convmrevisar. Pode-se entender que no caso limite, ou seja, nodescumprimento geral e absoluto de toda obrigao positiva porparte do Estado, seja extremamente difcil promover seucumprimento direto por meio da atuao judicial. Cabe dar razoa algumas das tradicionais objees efetuadas nessa matria: o PoderJudicirio o menos indicado para realizar planejamentos depoltica pblica; a ao judicial um meio pouco apropriado paradiscutir medidas de alcance geral; a discusso processual geraproblemas de desigualdade em relao s pessoas afetadas pelomesmo descumprimento que no participaram da ao; o PoderJudicirio carece de meios compulsrios para a execuo foradade uma suposta sentena que condene o Estado a cumprir umaprestao que havia sido omitida para todos os casos envolvidosou para editar a regulamentao omitida; a substituio de medidasgerais por decises ad hoc efetuadas pelo juiz no caso particularpode ter tambm como resultado desigualdades indesejveis; etc.

    Mesmo admitindo as dificuldades, vale a pena mostraralgumas nuanas nessas objees. Em princpio, difcil imaginaruma situao na qual o Estado descumpra integral e absolutamentetoda obrigao positiva vinculada a um direito econmico, sociale cultural. Como j comentamos, o Estado cumpre em parte suaobrigao com direitos sade, moradia ou educao mediantelegislaes que estendem obrigaes aos cidados, interferindo nomercado por meio de regulamentaes e do exerccio do poder depolcia, efetuado a priori (por autorizaes, habilitaes ou licenas)

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    SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS202

    ou a posteriori (por fiscalizao). De modo que, cumprida em partea obrigao de tomar medidas tendentes a garantir esses direitos,mesmo nos casos em que as medidas no implicam a prestaodireta de servios por parte do Estado, fica sempre aberta apossibilidade de questionar judicialmente a violao de obrigaesdo Estado, por assegurar o direito de forma discriminatria.

    As possibilidades so mais evidentes quando de fato o Estadopresta um servio de forma parcial, discriminando parcelas inteirasda populao. Podem subsistir, certo, entraves processuais eoperacionais na formulao de casos semelhantes, mas difcildiscutir que a realizao parcial ou discriminatria de umaobrigao positiva no resulte em matria passvel de tutela judicial.Nesse sentido, a apelao por julgamentos com igualdade detratamento para reivindicar direitos sociais foi uma viatradicionalmente utilizada pelos movimentos de direitos humanosem suas estratgias de litgio. Desde o movimento pelos direitosdas mulheres, que cobravam a equiparao salarial nos postos detrabalho, at o movimento de direitos civis nos Estados Unidos ao reivindicar igualdade de acesso a postos de trabalho, equiparaosalarial e equivalentes condies de educao e sade pblica , aigualdade de tratamento e a proibio de discriminao foramvias exploradas com sucesso para exigir indiretamente direitoseconmicos, sociais e culturais para grupos ou setores menosprotegidos pelo Estado. Tambm nesse ponto de grande utilidadeconsultar o desenvolvimento dos critrios e padres de igualdadee no-discriminao estabelecidos pela Corte Constitucional daColmbia, e sua aplicao em relao aos direitos sociais.28

    Em segundo lugar, alm das mltiplas dificuldades tericase prticas que se apresentam para a articulao de aes coletivas,muitas vezes o descumprimento do Estado pode se reformular,mesmo em um contexto processual tradicional, em termos deviolao individualizada e concreta, e no de forma genrica. Aviolao geral do direito sade pode se reconduzir, ou sereformular, mediante a articulao de uma ao particular lideradapor um titular individual que alegue uma violao ocasionadapela falta de produo de uma vacina; pela negao de um serviomdico do qual dependa sua vida ou sua sade; peloestabelecimento de condies discriminatrias no acesso educao ou moradia; ou ainda por pautas no-razoveis oudiscriminatrias no acesso a benefcios de assistncia social (porexemplo, a proibio de estender a imigrantes ilegais os benefcios

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    de um programa de medicamentos para tratamento da aids). Ahabilidade do questionamento fundamentar-se- na descriointeligente das violaes de obrigaes positivas e negativas, ouento na demonstrao concreta das conseqncias da violaode uma obrigao positiva baseada em um direito econmico,social e cultural, sobre o gozo de um direito civil e poltico. Se aviolao afetar um grupo amplo de pessoas, na situaodenominada pelo direito processual contemporneo de interessesou direitos individuais homogneos,29 as numerosas decisesjudiciais individuais constituiro um sinal de alerta aos poderespolticos acerca de uma situao de descumprimento generalizadode obrigaes em matrias relevantes de poltica pblica, efeitoespecialmente valioso para o aspecto de que trataremos a seguir.

    A resposta da administrao judicial s aes coletivas e diretasde direitos sociais motivadas pela inao do Estado pode assumirdiversos perfis. Em princpio, a atuao judicial pode consistirem declarar que a omisso estatal constitui uma violao do direitoem questo, e assim intimar o Estado para que assuma a condutadevida. Nesses casos, cabe ao rgo judicial indicar ao poderpblico o carter da conduta devida: seja a partir do resultadoconcreto requerido, sem considerar quais meios empregar (porexemplo, o acesso de uma parcela da populao a servios mdicosou o remanejamento de pessoas despejadas arbitrariamente); ouainda, no caso de existir uma nica medida possvel para obter-seo resultado requerido, descrevendo com preciso a ao que deveser adotada. Em tais hipteses, a informao pblica disponvel ea conduta prvia do Estado, seus atos prprios, se revestem deenorme importncia, pois contribuem para amparar a discussosobre assuntos de poltica pblica ou de ndole tcnica porexemplo, acerca das prioridades oramentrias ou de formulao,projeto ou implementao de medidas oficiais especficas. nessetipo de caso, em que os obstculos exigibilidade dos direitossociais so mais evidentes, que o Poder Judicirio costuma agircom maior reticncia.

    No resta dvida de que a implementao de direitoseconmicos, sociais e culturais depende em parte de atividades deplanejamento, previso oramentria e implementao que, porsua natureza, cabem ao poder pblico, sendo limitados os casosem que o Poder Judicirio pode cumprir a tarefa de suprir ainoperncia daquele. Mesmo em casos assim, h variadas margenspara a atuao da magistratura, e os tribunais tm encontrado a

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    SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS204

    maneira de garantir a vigncia dos direitos sociais afetados,baseando sua interveno nos padres jurdicos ditados pelasconstituies e pelos tratados de direitos humanos e buscando,em cada caso, a melhor maneira de resguardar a rbita de aodos demais poderes do Estado. Em certas ocasies, reencaminhamo caso aps estabelecer seu marco jurdico, para que seja definidaa medida, ou a poltica pblica, necessria para reparar a violaodos direitos em questo.

    A jurisprudncia dos tribunais domsticos na Amrica Latinad exemplos de algumas vias exploradas por eles com sucesso paracumprir a funo de garantir os direitos econmicos, sociais eculturais. Entre outros casos relevantes, foi por essa via que seconseguiu que os juzes obrigassem o Estado a: fornecermedicamentos a todos os portadores de aids do pas; fabricar umavacina e aplic-la a toda a populao afetada por uma doenaendmica; criar centros de atendimento materno-infantil para umgrupo social discriminado; abastecer de gua potvel toda umacomunidade indgena; estender a cobertura de um benefcioeducacional ou assistencial a um grupo originalmente excludo;reintegrar a uma escola secundria privada alunos punidos poruma expulso injustificada.30

    O papel da administrao judiciria e a articulaode estratgias legais e de incidncia poltica

    A anlise das circunstncias histricas que levaram a um maiorativismo judicial em matria de direitos econmicos, sociais eculturais na Amrica Latina est diretamente relacionada com aexistncia de fatores polticos que outorgaram ao Poder Judiciriouma especial legitimao para ocupar novos espaos de deciso,anteriormente restritos aos demais poderes do Estado. A debilidadedas instituies democrticas de representao, bem como adeteriorao dos espaos tradicionais de mediao social e poltica,contriburam para transferir esfera judicial conflitos coletivosque eram dirimidos em outros mbitos ou espaos pblicos ousociais, reeditando em especial o tema dos direitos sociais a velhapolmica sobre as margens de atuao das instncias judiciais emrelao s instncias administrativas. Em certa medida, oreconhecimento de direitos judicialmente tutelveis limita ourestringe o espao de atuao da administrao pblica. A anlisedessa questo excede o marco conceitual deste trabalho. No

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    entanto, entendemos que de modo algum essa pergunta pode serrespondida de forma abstrata, sem nos atermos ao contexto sociale institucional no qual convocada a interveno da justia.31

    Est claro, entretanto, que a interveno judicial nessescampos, no interesse de preservar sua legitimidade, deve estarfirmemente assentada sobre um padro jurdico: a regra de juzo,na qual se baseia a interveno do Poder Judicirio, s pode serum critrio de anlise da medida em questo se surgida de umanorma constitucional ou legal (por exemplo, princpios derazoabilidade, adequao ou igualdade, ou a anlise decontedos mnimos que podem advir das prprias normas queestabelecem direitos). Por isso, o Poder Judicirio no tem comotarefa projetar polticas pblicas, mas sim confrontar as polticasassumidas com os padres jurdicos aplicveis e, no caso de haverdivergncias, reenviar a questo aos poderes pertinentes para queeles ajustem sua atividade.

    Quando as normas constitucionais ou legais determinarem,para o planejamento de polticas pblicas, pautas das quais dependaa vigncia dos direitos econmicos, sociais e culturais, e os poderesrespectivos no tiverem adotado medida alguma, caber ao PoderJudicirio repreender essa omisso e reenviar a questo, para quealguma medida seja elaborada. Essa dimenso da atuao judicialpode ser conceituada como a participao em um dilogo entreos distintos poderes do Estado para a concretizao do programajurdico-poltico estabelecido pela Constituio ou pelos pactosde direitos humanos.32 Somente em circunstncias excepcionais,quando se justificou pela magnitude da violao ou pela ausnciatotal de colaborao dos poderes polticos, os juzes avanaram, apartir de seu prprio critrio, na definio concreta das medidas aserem adotadas.33

    Podemos tentar caracterizar situaes tpicas em que o PoderJudicirio assumiu a tarefa de verificar o cumprimento de padresjurdicos no projeto e na execuo de polticas pblicas.

    Um primeiro tipo de situao so as intervenes judiciaisque tendem a dar contedo jurdico a medidas de poltica pblicaassumidas pelo Estado sem valorar a prpria poltica pblica transformando medidas formuladas pelo Estado dentro de ummarco de arbitrariedade em obrigaes jurdicas e, portanto,sujeitas a sanes em caso de descumprimento. Em sua anlise, otribunal aceita a medida desenhada pelos outros poderes do Estado,mas transforma seu carter, de mera deciso arbitrria em obrigao

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    constituda. Assim, o Poder Judicirio se torna garantidor daexecuo da medida. Em muitos casos desse tipo, a medidaformulada pelo Estado coincide com a reivindicada pelosdemandantes, s que sua adoo passa a assumir um carterobrigatrio, e sua execuo no fica sujeita apenas vontade dorgo que a formulou. Um exemplo o caso Viceconte,34 no qualo Estado argentino assumira a deciso poltica de fabricar umavacina contra uma doena endmica e epidmica, elaborandoinclusive um cronograma para sua produo. O tribunal se limitoua alterar o carter dessa medida, transformando-a em umaobrigao legal; por esse motivo, citou o Estado nos termos docronograma, determinando sanes para o caso de inexecuo.

    A discusso sobre os problemas de legitimao da magistraturanesse tipo de ao coletiva, ou de impacto coletivo, tem arestasparticulares nos casos em que necessrio decidir exclusivamenteacerca do cumprimento, pela administrao, de obrigaes muitoclaras fixadas por lei ou por regulamentos sobre matria social.Supondo que isso ocorra, o tribunal no deve estabelecercomportamentos ou polticas, limitando-se a fazer cumprir, executar,o que est disposto em lei. Podemos usar como exemplo uma leireferente aids que defina com clareza os benefcios devidos spessoas afetadas, ou um regulamento do Ministrio da Sade quedetermine a abrangncia da cobertura assistencial para casos de aidsem todos os hospitais pblicos, em cumprimento a um mandatojudicial. No ocorre a a discusso sobre a existncia de umaobrigao, no sentido jurdico, de oferecer o servio, mas apenas seexamina o descumprimento por parte da administrao.

    Ainda que todo ato de interpretao da lei resulte em certamedida em um ato de criao de direito, a atuao judicial segueos contornos e as pautas fixadas pelo Congresso, o que, na teoriaclssica de diviso de poderes, a expresso da vontade polticados interesses majoritrios.35 O mesmo acontece quando a justia convocada para executar regulamentaes ou atos emanados daprpria administrao, dos quais derivam obrigaes jurdicas paraa mesma. A possvel intromisso em reas ou esferas de atuaoreservadas aos demais poderes no uma questo que possa sercolocada de forma vlida nesses casos. A justia se limita a fazercumprir obrigaes da administrao determinadas por uma lei,ou pela prpria administrao, no exerccio de suas competnciasregulamentares.

    Um segundo tipo de situao se configura naqueles casos em

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    207Ano 2 Nmero 2 2005

    que o tribunal examina a compatibilidade da poltica pblica como princpio jurdico aplicvel e, portanto, sua idoneidade parasatisfazer o direito em questo. Nessas circunstncias, se o tribunalconsiderar que essa poltica ou um aspecto dela incompatvelcom o princpio, reenvia a questo aos poderes concernentes, paraque a reformulem. Os exemplos de princpios a partir dos quais ostribunais analisam uma poltica pblica so os de razoabilidade,adequao, no-discriminao, progressividade, no-retroatividade,transparncia36 etc. Assim, por exemplo, no caso Grootboom,37 aCorte Constitucional entendeu que a poltica de moradiadesenvolvida pelo governo sul-africano no era razovel, por noprever o fornecimento imediato de solues habitacionais aos setoresda populao com necessidades imperativas de moradia o tribunalconcluiu que um aspecto da poltica era contrrio ao princpio darazoabilidade, mas no questionou a totalidade da poltica. Demaneira geral, os tribunais reconhecem aos demais poderes umaampla margem para projetar polticas pblicas, de modo que noos substituem na escolha dos contornos que se ajustem aos princpiosjurdicos aplicveis.

    Se os poderes polticos atuarem de acordo com os princpiosjurdicos, o Poder Judicirio no chegar a analisar a possibilidadede ter sido adotada alguma poltica alternativa. A margem decontrole tambm depende do princpio: a anlise de razoabilidade menos rigorosa do que uma anlise que se poderia elaborar combase na noo de medida apropriada do Pacto Internacional dosDireitos Econmicos, Sociais e Culturais. Importante destacarque, nesse tipo de caso, a atuao judicial na etapa de execuono consiste na imposio compulsria de uma condenao,entendida como uma ordem detalhada e auto-suficiente, comopor exemplo a imposio da obrigao de pagar um valor lquidoe exigvel; dada continuidade a uma instruo determinada emtermos gerais, cujo contedo concreto vai sendo construdo aolongo da instncia, a partir do dilogo entre o juiz e a autoridadepblica. De modo que a sentena, longe de constituir a culminaodo processo, opera como um ponto de inflexo que modifica osentido da atuao jurisdicional: uma vez ditada a sentena, cabeao Estado planejar o modo de cumprir as instrues do juiz, e otribunal se limitar a controlar a adequao das medidas concretasadotadas a partir do mandado expedido.

    Em um terceiro tipo de situao, o prprio Poder Judiciriose v forado a estabelecer a medida a ser adotada. Nesse caso, a

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    passividade dos demais poderes diante da vulnerabilidade de umdireito social levaria o tribunal a verificar a existncia de umanica medida de poltica pblica adequada ou seja, a inexistnciade alternativas para satisfazer o direito em questo e ordena suarealizao. Um bom exemplo pode ser o caso Beviacqua,38 emque a preservao da vida e da sade de um menino com umadoena de medula de suma gravidade requeria o tratamento comum medicamento especfico, que os pais no tinham condiesde pagar. Aqui, ao contrrio dos casos anteriores, o PoderJudicirio que assume a escolha da medida a ser adotada e,portanto, da conduta devida.

    Pode-se pensar em um quarto tipo de interveno judicial,que se limite a declarar que a omisso do Estado ilegtima, sempropor medidas de reparao. Mesmo se a sentena de um juizno resultar diretamente exeqvel, cabe ressaltar o valor de umaao judicial em que o Poder Judicirio declare que o Estado estem mora ou descumpriu obrigaes assumidas em matria dedireitos econmicos, sociais e culturais. Tanto em decisesjudiciais individuais que sejam executveis como no citadocaso Beviacqua , ou em decises judiciais que declarem odescumprimento da obrigao do Estado em determinadamatria, fazendo eventualmente o comunicado aos poderespolticos, as sentenas obtidas podem constituir importantesveculos para encaminhar aos poderes polticos as necessidades daagenda pblica, mediante uma gramtica de direitos, e no apenaspor meio de atividades de lobby, ou de demanda poltico-partidria.

    As mltiplas formas de interveno judicial, que obedecema diferentes nveis ou graus de ativismo, determinam o potencialdas diversas estratgias de incidncia legal, bem como apossibilidade de estabelecer articulaes frutferas com outrasestratgias de incidncia poltica superviso de polticas pblicassociais, lobbying nas instncias da administrao ou noParlamento, negociao, mobilizao social ou campanhas deopinio pblica. Por isso, errneo pensar nas estratgias legaiscomo excludentes de outras estratgias de incidncia poltica,ou propor como alternativas atuar nos tribunais ou faz-lo naesfera poltica pblica. Em princpio, toda estratgia dereivindicao de direitos, especialmente em casos que expressamconflitos coletivos ou situaes de interesses individuaishomogneos, tem um claro sentido poltico. Alm disso, nouniverso das aes de exigibilidade de direitos econmicos, sociais

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    209Ano 2 Nmero 2 2005

    e culturais, a chave do sucesso est exatamente na articulaodos diferentes campos, para que a resoluo do caso legal possacontribuir para transformar as deficincias institucionais, aspolticas de Estado ou as situaes sociais que esto na raiz doconflito. Em geral, as estratgias legais bem-sucedidas costumamser as que so apoiadas pela mobilizao e pelo ativismo dosprotagonistas do conflito real.

    s vezes, as vias legais resguardam ou tornam efetivas asconquistas obtidas no plano poltico.39 No marco de nossas frgeisdemocracias, a sano de leis pelo Congresso nem sempre asseguraa efetividade dos direitos reconhecidos e, como vimos, s vezes necessrio entrar em litgio para conseguir a implementao e ocumprimento dessas normas. Dessa forma, em um sistemainstitucional com fortes falhas, nem as vitrias judiciais em matriade direitos sociais nem os triunfos polticos so definitivos, e impema utilizao de todos os meios de reivindicao e de ao disponveis.

    Um dos sentidos da adoo de clusulas constitucionais, oude tratados que estabelecem direitos para as pessoas e obrigaesou compromissos para o Estado, consiste na possibilidade dereivindicar o cumprimento desses compromissos no comoconcesso gratuita, e sim como um programa de governo assumidotanto interna como internacionalmente. Parece evidente que, nessecontexto, importante estabelecer mecanismos de comunicao,debate e dilogo que lembrem aos poderes pblicos oscompromissos assumidos, forando-os a incorporar nas prioridadesde governo medidas destinadas a cumprir suas obrigaes emmatria de direitos econmicos, sociais e culturais. Nesse sentido, especialmente relevante que o prprio Poder Judiciriocomunique ao poder pblico o descumprimento de suasobrigaes em relao a essa matria.

    A lgica desse processo similar que informa o requisitodo esgotamento dos recursos internos como condio prvia paraacessar o sistema internacional de proteo aos direitos humanos:oferecer ao Estado a possibilidade de conhecimento e reparaoda violao alegada antes de apelar esfera internacional paradenunciar o descumprimento. Quando o Executivo no cumpreas obrigaes e constitudo em mora pelo Judicirio, alm daspossveis conseqncias adversas no plano internacional, ter deenfrentar a correspondente responsabilidade poltica derivada dademora em sua atuao perante seu prprio povo.

    Vimos como a margem de atuao do Poder Judicirio pode

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    SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS210

    variar consideravelmente, de acordo com as aes de exigibilidadedireta de direitos econmicos, sociais e culturais legalizar umadeciso de poltica pblica j assumida pelo Estado; executar umalei ou uma norma administrativa que determina obrigaesjurdicas em matria social; estabelecer um padro dentro do quala administrao deva planejar e implementar aes concretas esupervisionar sua execuo; determinar uma conduta a seguir;ou, em certos casos, constituir em mora o Estado em relao auma obrigao, sem impor um remdio processual ou umadeterminada medida de execuo. A articulao das aes legaisque possam conduzir a alguns desses resultados com outrasestratgias de incidncia poltica ser a chave de uma estratgiaefetiva de exigibilidade. Poderia se supor que a maior moderaocom que age a justia tornar necessrio um trabalho polticomais ativo, para conseguir que essa deciso judicial possa se traduzirna satisfao dos direitos em questo. No entanto, no existemfatores que obriguem a considerar que as estratgias legais excluemas vias polticas.

    Convm analisar outras suposies que permitam articularessas duas vias no trabalho de exigibilidade de direitos econmicos,sociais e culturais. s vezes possvel recorrer interveno judicialapenas com o objetivo de mostrar outras frentes abertas paraencaminhar demandas sobre instncias administrativas ou rgoslegislativos do Estado. So estratgias legais complementares, quepartem de uma perspectiva ou de um enfoque procedimental:no se exige uma prestao, nem se impugna diretamente umapoltica ou uma medida referente a direitos sociais. O que sepretende garantir condies que tornem possvel a adoo deprocessos deliberativos de produo de normas legislativas ou atosda administrao.

    Nessas situaes, as demandas no pretendem que a justiatenha conhecimento direto do conflito coletivo e garanta umdireito social, mas que complemente as demais aes de incidnciapoltica. Assim, por exemplo, reivindica-se justia a abertura deespaos institucionais de dilogo, o estabelecimento de seus marcoslegais e procedimentos, ou a garantia de participao das pessoaspotencialmente afetadas nesses espaos, sob condies igualitrias.Tambm se pode pedir o acesso informao pblica indispensvelpara o controle prvio das polticas e decises a serem adotadas e a legalidade delas , a produo de dados, se for o caso, bemcomo a execuo e o cumprimento dos acordos conseguidos por

  • VCTOR ABRAMOVICH

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    pessoas ou organizaes sociais, nas diversas instncias formaisou informais de intercmbio e comunicao com a administrao.

    Em alguns pases da Amrica Latina, as organizaes deusurios e consumidores desenvolveram com sucesso essas viasde ao. Reivindicaram, por exemplo, a realizao de audinciaspblicas antes da negociao de tarifas de servios domiciliares energia eltrica, gua, gs ou dos contratos com as empresasconcessionrias, pedindo acesso informao pblica indispensvelpara fazer valer seus direitos nesses mbitos e resguardando (svezes com interveno judicial) o resultado alcanado aps osprocessos deliberativos. As organizaes ambientalistas tambmdesenvolveram estratgias de incidncia judicial, com o objetivode reivindicar espaos de participao e de acesso informaoantes da adoo de medidas ou polticas que implicavam riscospara o ambiente. Na mesma modalidade de estratgia legal seenquadram as aes judiciais dos povos indgenas que buscamconseguir mecanismos de consulta e participao na tomada dedecises concernentes a seus territrios culturais.

    O movimento de direitos humanos tem muito a aprendersobre essas estratgias. Quando a administrao dispe de espaosde participao cvica para discutir ou analisar certas medidas oupolticas (audincias pblicas no parlamento ou em rgosadministrativos, elaborao participativa de normas, oramentoparticipativo, conselhos de planejamento estratgico nas cidades),as aes podem ter como meta a discusso das condies deadmisso, bem como os mecanismos de debate e dilogo, a fim degarantir regras bsicas de procedimento. Em tais situaes, aindaque se discuta formalmente o direito de participao cvica oucidad, os direitos sociais em questo podem definir o alcancedessa participao por exemplo, ao configurar a coletividadeafetada, o setor que deveria merecer ateno prioritria do Estado,ou contar com um espao institucional de participao antes daadoo de uma deciso de poltica social.

    Assim, por exemplo, no caso da Federao Independente doPovo Shuar do Equador (FIPSE) contra a empresa petroleira Arcose conseguiu, com amparo judicial, proibir que a companhianegociasse sua entrada em territrio indgena para realizaratividades de explorao sem incluir as legtimas autoridadespolticas do povo indgena. Esse caso, similar aos tradicionaisconflitos de enquadramento sindical e de legitimao de sindicatosnos processos de negociao coletiva, pretendeu resguardar as regras

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    do processo de negociao, definindo os atores legitimamenteautorizados a desenvolv-lo.40

    s vezes, a interveno judicial pode ser necessria apenaspara efetivar um acordo obtido como fruto de uma negociaocom o Estado: por exemplo, um acordo de realocao de umgrupo de pessoas exposto ao risco de despejo compulsrio. Aindaque nesses casos se trate de executar decises assumidas peloEstado, as caractersticas dos direitos sociais em questo comoo direito moradia determinam as margens de atuao dajustia e a interpretao do prprio alcance das obrigaes queemanam desses acordos.41

    Entre as aes legais que poderiam se desenvolver no marcodas estratgias legais indiretas ou procedimentais destacam-seas que buscam o acesso e a produo de informao pblica.42 Odireito informao constitui um instrumento imprescindvelpara tornar efetivo o controle cidado das polticas pblicas narea econmica e social, ao mesmo tempo que contribui para avigilncia, por parte do prprio Estado, do grau de efetividadedos direitos econmicos, sociais e culturais. O Estado deve dispordos meios necessrios para garantir o acesso informao pblicaem condies de igualdade. Em matria de direitos econmicos,sociais e culturais, especificamente, o Estado deve produzir e pr disposio dos cidados, no mnimo, informao sobre: (a) ascondies das diferentes reas afetadas, em particular quando suadescrio requer medies expressas por indicadores; e (b) ocontedo das polticas pblicas desenvolvidas ou projetadas, comexpressa meno a seus fundamentos, objetivos, prazos derealizao e recursos envolvidos. As aes de acesso informaocostumam atuar como vias legais que sustentam o trabalho desuperviso de polticas sociais e a documentao de violaes aosdireitos econmicos, sociais e culturais.43

    O que caracteriza essas aes indiretas ou complementares que as vias judiciais, longe de serem o centro da estratgia deexigibilidade dos direitos econmicos, sociais e culturais, servempara afirmar as demais aes polticas empreendidas paraencaminhar as demandas de direitos em um conflito coletivo:queixas diretas administrao, desenvolvimento de vias denegociao, ou at lobbying sobre os funcionrios, o Congressoou empresas privadas. Novamente, fica claro que no h opesexcludentes e que os instrumentos legais podem potencializar otrabalho de incidncia poltica.

  • VCTOR ABRAMOVICH

    213Ano 2 Nmero 2 2005

    NOTAS

    1. Ver F. Hayek, 1976, vol. 2, cap. 9.

    2. Outra tentativa de diferenciao consiste em correlacionar um tipo

    especfico de obrigao do Estado com cada categoria de direitos. Assim,

    para alguns autores, aos direitos civis e polticos correspondem obrigaes de

    resultado, enquanto aos direitos econmicos, sociais e culturais correspondem

    apenas obrigaes de conduta. Para maior aprofundamento, consultar

    R. Garretn Merino, 1996, p. 59; e P. Nikken, 1994. Ver tambm A. Eide,

    1993, pp. 187-219. Ver argumentos contrrios em G. H. J. van Hoof, 1984,

    pp. 97-110; e P. Alston, 1991. De fato, apesar da possibilidade de sustentar a

    distino, ela resulta pouco relevante para diferenciar os direitos civis e

    polticos dos econmicos, sociais e culturais.

    3. C. Nino (1993, p. 17) qualifica essa posio de liberalismo conservador,

    embora esclarea que mais conservador(a) que liberal.

    4. A esse respeito, ver tambm A. Smith, 1937; L. Billet, 1975, pp. 430 e ss.;

    B. de Sousa Santos, 1991, pp. 175-178.

    5. Ver van Hoof, 1984, pp. 97 e ss.

    6. Ver tambm, sobre o tema, a opinio de C. Nino, pp. 11-17. Do ponto de

    vista econmico, o argumento a tese central de S. Holmes & C. R. Sunstein,

    1999. Ver tambm R. Bin, 2000; e R. Plant, 1992.

    7. Ver tambm F. Contreras Pelez, 1994, p. 21: No existem, em resumo,

    obrigaes negativas puras (ou melhor, direitos que comportem

    exclusivamente obrigaes negativas), mas parece possvel afirmar uma

    diferena de grau no que se refere relevncia que as prestaes tm para

    um e outro tipo de direitos.

    8. Ver tambm Contreras Pelez, pp. 17-20. E ainda B. de Castro, Los

    derechos sociales: anlisis sistemtico, em Derechos econmicos, sociales y

    culturales, de vrios autores. Mrcia, 1981, pp. 15-17.

    9. Contreras Pelez, op. cit., p. 21.

    10. Ver Conveno Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de So Jos da

    Costa Rica), Artigo 21.1: Toda pessoa tem direito ao uso e gozo de seus

    bens. A lei pode subordinar esse uso e gozo ao interesse social (grifo nosso).

    11. Ver T. Bourgoignie, 1994.

  • LINHAS DE TRABALHO EM DIREITOS ECONMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS: INSTRUMENTOS E ALIADOS

    SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS214

    12. Ver S. Felgueras, 1996.

    13. Ver tambm F. Ewald, 1985, Livro IV.2.

    14. CEDH, caso Lpez Ostra vs Espanha, A 303-C (1994). CEDH, caso

    Guerra e Outros vs Itlia, 19 de fevereiro de 1988.

    15. Ver na jurisprudncia europia o caso Osman vs Reino Unido, sentena de

    28 de outubro de 1998, no qual a Corte Europia estabeleceu que entre essas

    obrigaes estava o dever primrio de garantir a vida, implementando uma

    legislao penal efetiva para evitar o cometimento de delitos contra as

    pessoas, e mantendo um sistema legal para a preveno e o castigo das

    condutas criminosas. Isso inclui, em determinadas circunstncias, a obrigao

    positiva de adotar medidas operacionais para proteger um indivduo, ou

    indivduos, cuja vida esteja em risco por atos criminosos de outros indivduos.

    A gama de obrigaes positivas impostas ao Estado varia consideravelmente.

    Assim, por exemplo, o dever do Estado de investigar oficialmente se um

    indivduo foi morto pelo uso da fora foi considerado, tambm, uma

    conseqncia do Artigo 2o, lido junto com o dever geral imposto pelo Artigo 1o

    da Conveno. Ver CEDH, Mc Cann e Outros vs Reino Unido, sentena de 27

    de setembro de 1995, e Kaya vs Turquia, sentena de 19 de fevereiro de 1998.

    Mais recentemente, em Mahmut Kaya vs Turquia, sentena de 28 de maro de

    2000, foram estabelecidos deveres positivos em relao ao direito vida

    sobre a base do direito a um recurso efetivo estabelecido no Artigo 13 da

    Conveno.

    16. A Corte Constitucional estabeleceu que a aceitao da tutela para os

    direitos econmicos, sociais e culturais s cabe nos casos em que existe

    violao de um direito fundamental, de acordo com os requisitos e critrios

    de distino correspondentes. Ver C. Const., S. Primera de Rev. Sent T-406,

    junho 5/92. Exp. T-778. M. P. Ciro Angarita Barn. Ver tambm M. J. Cepeda

    Espinosa, Derecho constitucional jurisprudencial, legis, Bogot, 2001.

    17. Este foi o argumento utilizado no caso Loverace vs Canad (1981),

    Comunicado n. 24/1977. A requerente pertencia etnicamente ao povo indgena

    Maliseet. De acordo com a legislao indgena e as regras fixadas pela

    prpria comunidade para o uso da reserva de Tobique, onde ela morava, as

    mulheres que contrassem matrimnio com um no-indgena perderiam o

    direito a habitar a reserva, mesmo tendo nascido nela. A peticionria, nascida

    na reserva, casara-se com um no-indgena mas depois, ao se divorciar,

    desejava voltar a viver na reserva como parte do povo Maliseet, ao qual

    pertencia. A comunidade lhe negou esse direito. Baseada no Pacto

    Internacional dos Direitos Civis e Polticos, a autora alegou que estava sendo

  • VCTOR ABRAMOVICH

    215Ano 2 Nmero 2 2005

    violado no s seu direito de participar da cultura da comunidade, garantido

    pelo Artigo 27, mas tambm seu direito de fixar residncia (Artigo 12), seu

    direito de no sofrer ingerncia em sua vida privada e familiar (Artigo 17), e

    de no ser discriminada por seu gnero (Artigo 26). Em sua alegao, que foi

    aceita pelo Comit de Direitos Humanos (CDH) ficou evidente a relao

    profunda entre a autonomia pessoal e o desfrute dos bens culturais. Seu plano

    de vida estava ligado ao uso do territrio cultural, pois exclusivamente

    naquela reserva existia a comunidade a que ela pertencia. O CDH entendeu

    que, no caso, o Artigo 27 devia ser lido luz dos Artigos 12, 17 e 26, entre

    outros, e considerou que a legislao canadense violava o Artigo 27 do Pacto.

    18. Mesmo nesse caso possvel apontar obrigaes negativas. De acordo

    com van Hoof, o Estado violaria o direito moradia se admitisse que as

    moradias modestas pertencentes a pessoas de parcos recursos fossem

    demolidas e substitudas por moradias de luxo, fora do alcance econmico dos

    habitantes originais, sem oferecer-lhes a alternativa de habitaes em termos

    razoveis. Ver van Hoof, p. 99. Com mais razo, o Estado deve se abster de

    realizar por si mesmo o remanejamento, em condies como essas. O exemplo

    est longe de ser terico: ver as observaes do Comit de Direitos

    Econmicos, Sociais e Culturais sobre o relatrio apresentado pela Repblica

    Dominicana (UN Doc. E/C.12/1994/15), pontos 11, 19 e 20 (citado por H.

    Steiner & P. Alston, 1996, pp. 321).

    19. Ver van Hoof, p. 99. Henry Shue (1980) sugeriu originalmente essa

    distino. No campo do direito internacional dos direitos humanos, a

    distino foi assumida com alguma correo, que reduz a enumerao a trs

    categorias: obrigaes de respeito, obrigaes de proteo e obrigaes de

    garantia, satisfao ou cumprimento nos principais documentos

    interpretativos do PIDESC: Comit de Direitos Econmicos, Sociais e

    Culturais: Observao Geral (OG) n. 3 (1990) La ndole de las Obligaciones

    de los Estados-Partes prrafo 1 del art. 2 del Pacto; OG n. 4 (1991) El

    Derecho a la Vivienda Adecuada prrafo 1 del art. 11 del Pacto; OG n. 5

    (1994) Personas con Discapacidad; OG n. 6 (1995) Los Derechos

    Econmicos, Sociales y Culturales de las Personas de Edad; Principios de

    Limburgo (1986); Principios de Maastricht (1997); CIJ, Declaracin y

    Plan de Accin de Bangalore (1995). Encontro Latino-Americano de

    Organizaes de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais: Declarao de

    Quito (1998).

    20. No mesmo sentido, ver a opinio de R. Alexy (1993, pp. 419-501), que

    defende uma concepo ampla das obrigaes positivas do Estado ou,

    segundo sua denominao, direitos a aes positivas do Estado. Estes

  • LINHAS DE TRABALHO EM DIREITOS ECONMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS: INSTRUMENTOS E ALIADOS

    SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS216

    incluiriam os direitos de proteo, os direitos organizao e ao

    procedimento e os direitos a prestaes em sentido estrito.

    21. Alexy afirma que uma ao s pode ser impossibilitada juridicamente se

    for um ato jurdico. Atos jurdicos so aes que no existiriam sem as

    normas jurdicas que as constituem. Assim, sem as normas do direito

    contratual no seria possvel o ato jurdico da celebrao de um contrato,

    sem o direito de sociedades no seria possvel o ato jurdico de fundao de

    sociedades [...] O carter constitutivo das normas que as possibilitam

    caracteriza tais aes como aes institucionais. As aes jurdicas

    institucionais so impossibilitadas se forem anuladas suas normas

    constitutivas. Portanto, entre a anulao dessas normas e a impossibilidade

    das aes institucionais existe uma relao conceitual (pp. 189-190). Nosso

    argumento complementar ao de Alexy: as aes jurdicas institucionais

    no s so impossibilitadas com a anulao das normas que so constitutivas

    para elas, mas tambm quando essas normas no so criadas. Se a

    constituio ou um pacto de direitos humanos estabelece direitos cujo

    exerccio depende conceitualmente da criao de normas, isso implica a

    obrigao estatal positiva de criar essas normas. Alexy (pp. 194-195) retoma

    o ponto quando trata dos direitos a aes positivas, distinguindo entre

    direitos a aes positivas fcticas e a aes positivas normativas. Os

    direitos a aes positivas normativas so direitos a atos estatais de

    imposio de norma.

    22. A esse respeito, ver o voto em separado do juiz Piza Escalante na

    OC4/84, de 19 de janeiro de 1984, Proposta de modificacin a la

    Constitucin Poltica de Costa Rica relacionada con la naturalizacin, da

    Corte Interamericana de Direitos Humanos, em seu ponto 6: [...] a distino

    entre direitos civis e polticos e direitos econmicos, sociais e culturais

    obedece meramente a razes histricas, e no a diferenas de natureza

    jurdica; de maneira que, na realidade, o que importa distinguir, com um

    critrio tcnico-jurdico, entre direitos subjetivos plenamente exigveis, vale

    dizer, exigveis diretamente por si mesmos, e direitos de carter progressivo,

    que se comportam de fato como direitos reflexos ou interesses legtimos, ou

    seja, exigveis indiretamente, mediante imposies polticas ou de presso,

    por um lado, e de aes judiciais de impugnao interpostas em oposio ao

    direito ou que lhe faa discriminao. Os critrios concretos para identificar

    de que tipo de direitos se trata, em cada caso, so circunstanciais e

    historicamente condicionados, mas pode-se afirmar, em geral, que quando se

    conclui que um determinado direito fundamental no diretamente exigvel

    por si mesmo, se est diante de um direito ao menos exigvel indiretamente e

    de realizao progressiva.

  • VCTOR ABRAMOVICH

    217Ano 2 Nmero 2 2005

    23. Ver, a respeito, a lcida anlise de J. R. de Lima Lopes, 1994.

    24. Ver tambm, por exemplo, Lon L. Fuller, The Forms and Limits of

    Adjudication, 92 Harvard Law Review, p. 353.

    25. Ver tambm, por exemplo, Cass R. Sunstein, Response: From Theory to

    Practice, 29 Arizona State Law Journal.

    26. Uma lacuna que determina a falta de plenitude do sistema, de acordo

    com a terminologia de Ferrajoli (1999, p. 24). Segundo o autor, deve-se

    reconhecer que para a maior parte de tais direitos [os direitos sociais] nossa

    tradio jurdica no elaborou tcnicas de garantia to eficazes como as

    estabelecidas para os direitos de liberdade. Mas isso depende, sobretudo, de

    um atraso das cincias jurdicas e polticas, que at os dias de hoje no

    teorizaram nem projetaram um Estado social de direito equiparvel ao velho

    Estado liberal; permitiram que o Estado social se desenvolvesse de fato

    mediante uma simples ampliao dos espaos de arbitrariedade dos aparatos

    administrativos, do jogo no-regulamentado dos grupos de presso e do

    clientelismo, da proliferao das discriminaes e dos privilgios e do

    crescimento do caos normativo que elas mesmas denunciam e contemplam

    agora como crise da capacidade reguladora do direito (p. 30).

    27. A falta de mecanismos ou garantias judiciais adequados nada diz sobre a

    impossibilidade conceitual de tornar passveis de tutela judicial os direitos

    econmicos, sociais e culturais, mas como j foi dito requer que sejam

    imaginados e criados instrumentos processuais aptos para levar adiante tais

    reivindicaes. Parte dos avanos do direito processual contemporneo se

    direciona para esse objetivo; as novas perspectivas da ao de amparo, as

    possibilidades de formulao de aes de inconstitucionalidade, o

    desenvolvimento da ao declaratria, as class actions, a ao civil pblica e

    os mandados de segurana e de injuno brasileiros, a legitimao do

    Ministrio Pblico ou da Defensoria Pblica para representar interesses

    coletivos, so exemplos dessa tendncia. Cabe acrescentar, alm disso, que

    outra fonte de supostas dificuldades na promoo de aes que tentam

    evidenciar o descumprimento do Estado em matria de direitos econmicos,

    sociais e culturais reside justamente nos privilgios com que o Estado conta

    quando levado a juzo, privilgios que no seriam admissveis se questes

    similares ocorressem entre cidados.

    28. Ver a pesquisa: Anlisis jurisprudencial. La igualdad en la jurisprudencia

    de la Corte Constitucional. In: Vrios Autores, Pensamiento Jurdico

    Revista de Teora del Derecho y Anlisis Jurdico. Universidad Nacional de

    Colombia, n. 15, 2002, pp. 347-369.

  • LINHAS DE TRABALHO EM DIREITOS ECONMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS: INSTRUMENTOS E ALIADOS

    SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS218

    29. Ver, a respeito, o Cdigo Brasileiro de Defesa do Consumidor, Artigo 81,

    pargrafo nico(iii).

    30. Para examinar casos relevantes em torno desse tema podem ser

    consultadas experincias desenvolvidas por Argentina, Repblica Dominicana,

    Venezuela e Nicargua na pesquisa: Los derechos econmicos, sociales y

    culturales. Un desafo impostergable (IIDH, 1999).

    31. Em Reyes desnudos. Algunos ejes de caracterizacin de la actividad

    poltica de los tribunales (indito), Christian Courtis mostra que a pergunta

    sobre a legitimidade da atuao judicial no pode ser respondida de forma

    abstrata, considerando uma ou duas variveis normativas, como a posio dos

    tribunais em uma teoria pura da democracia, ou a origem no-eletiva dos

    juzes. A questo da legitimidade requer informao emprica sobre o

    funcionamento do sistema poltico e o conhecimento concreto do contexto

    histrico no qual os juzes atuam. Nesse sentido, a anlise da legitimidade da

    atuao judicial implica a necessria comparao com a anlise da

    legitimidade da atuao dos demais poderes.

    32. Acerca da legitimidade de um tribunal constitucional em um Estado

    social e democrtico de direito, para atuar resguardando as condies

    procedimentais da gnese democrtica das leis, que inclui a garantia dos

    direitos sociais fundamentais que asseguram a insero no processo poltico,

    ver J. Habermas, 1994, pp. 311 e ss. Sobre o papel dos juzes em um Estado

    constitucional e social de direito pode-se ver, tambm, Ferrajoli (pp. 23-28).

    Outros autores justificam uma interveno judicial forte para resguardar das

    maiorias os direitos de grupos sociais em desvantagem. Ver ainda Owen Fiss,

    1999, pp. 137-159.

    33. Assim ocorreu nos mencionados litgios de reforma estrutural. til

    destacar, em resposta s objees apontadas a respeito da incapacidade da

    administrao de justia para resolver questes tcnicas, ou das limitaes do

    processo judicial para tratar questes complexas ou com mltiplos autores,

    que muitos analistas tm valorizado o papel judicial de avanar no projeto de

    polticas e na mudana de prticas institucionais. A pouca predisposio da

    administrao ou das legislaturas de reconhecer e modificar suas polticas e

    aes ilegais determinaria a estrita necessidade de que a questo fosse

    abordada e resolvida por um tribunal imparcial e independente. Ver, por

    exemplo, William Wayne, Two Faces of Judicial Activism, 61 George

    Washington Law Review 1 (1992).

    34. Cmara Nacional de Apelaciones en lo Contencioso Administrativo

    Federal, Sala IV, caso Viceconte, Mariela vs Estado Nacional-Ministerio de

  • VCTOR ABRAMOVICH

    219Ano 2 Nmero 2 2005

    Salud y Accin Social s/ amparo, 2 de junio de 1998, La Ley, Suplemento de

    Derecho Constitucional, 5 nov. 1998. Pode-se consultar o caso na pesquisa do

    IIDH: Los derechos econmicos, sociales y culturales, p. 81.

    35. Nesses casos, a discusso entre direitos tutelveis judicialmente e

    atuao livre das instncias polticas limitada, pois a poltica atua

    previamente por meio do Congresso e, de qualquer modo, se autolimita ao

    determinar para si obrigaes legais em matria de poltica social. A respeito

    da clssica discusso sobre a tenso entre democracia e direitos, com

    referncia aos direitos sociais tutelveis judicialmente, pode-se ver G.

    Pisarello, 2001, e tambm E. Rivera Ramos, 2001. Para uma viso mais geral

    do debate suscitado no Reino Unido com a incorporao do estatuto de

    direitos humanos e a conseguinte atribuio de novos poderes justia em

    detrimento do Parlamento, ver M. Loughlin, 2001.

    36. A referncia aos casos em que uma norma legal impe a obrigao de

    desenvolver processos de produo de informao e consulta por exemplo,

    aos beneficirios na etapa de projeto e avaliao de uma poltica social.

    Assim, no caso Defensora del Pueblo de la Ciudad vs INSSJP, o critrio para

    a anulao do processo de privatizao foi precisamente a falta de acesso

    informao dos usurios do sistema. Da mesma forma, em outros casos, o

    contencioso-administrativo da justia argentina anulou ajustes de tarifas de

    servios pblicos pela ausncia de audincia pblica entendida como a

    oportunidade de consulta aos usurios prvia adoo da deciso.

    37. Corte Constitucional da frica do Sul, caso CCT 11/00, Governo da

    Repblica da frica do Sul e Outros vs Irene Grootboom e Outros.

    38. CSJN, caso Campodnico de Beviacqua, Ana Carina vs Ministerio de

    Salud y Accin Social Secretara de Programas de Salud y Banco de

    Drogas Neoplsicas, sem recurso de fato, 24 out. 2000.

    39. No caso Asociacin Benghalensis, um grupo de organizaes defensoras

    dos direitos dos aidticos promoveu uma ao de interesse coletivo, que foi

    resolvida pela Corte Suprema de Justia argentina. A deciso obrigava o

    Poder Executivo a fazer cumprir a lei sobre aids referente obrigatoriedade

    do fornecimento de medicamentos. Essa lei havia sido promulgada como

    resultado de uma intensa campanha de incidncia poltica, em parte

    estimulada pelos mesmos grupos e autores que depois se viram obrigados a

    impulsionar a ao judicial para torn-la efetiva. Tambm se podem

    mencionar os casos em que organizaes de mulheres compareceram aos

    tribunais para exigir a implementao e o cumprimento da legislao sobre

    sade reprodutiva pela qual haviam lutado no Congresso.

  • LINHAS DE TRABALHO EM DIREITOS ECONMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS: INSTRUMENTOS E ALIADOS

    SUR - REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS220

    40. Ver Tarimiat, Firmes en nuestro territorio. FIPSE vs Arco. Quito: CDES,

    2001. Disponvel em .

    Acesso em 7 jan. 2005.

    41. Em um caso relativo a um acordo entre famlias despejadas e o Governo

    da Cidade de Buenos Aires foi demandado judicialmente o cumprimento das

    obrigaes estatais que j haviam sido estabelecidas: construo de casas

    em um terreno fiscal e soluo temporria para as necessidades

    habitacionais do grupo durante a execuo das obras. Nessa ao, que era

    fundamentalmente de execuo do acordo, foram utilizados os padres

    constitucionais e internacionais sobre o direito moradia para interpretar a

    abrangncia da obrigatoriedade de oferecer moradia temporria com

    determinadas caractersticas, o que foi solicitado como medida cautelar. O

    Tribunal atendeu ao pedido e ordenou que as famlias fossem abrigadas em

    hotis da cidade, sob determinados requisitos de habitabilidade. Ainda que o

    acordo tenha resultado da negociao e da presso poltica sobre o governo,

    foi o litgio que o tornou efetivo e determinou o alcance legal das obrigaes

    assumidas pelo Estado. Ver Agero Aurelio Eduvigio e Outros vs Governo da

    Cidade de Buenos Aires s/ amparo (Artigo 14 CCABA), Exp. 4437/0.

    Resoluo de 26 fev. 2002.

    42. Ao adotar o Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e

    Culturais, o Estado se obriga a levantar informaes e formular um plano,

    como destaca o Comit de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais. Em alguns

    temas como o direito moradia adequada expressamente reconhecida a

    obrigao do Estado de implementar de forma imediata uma vigilncia eficaz

    da situao da moradia em sua jurisdio, e para isso precisa realizar um

    levantamento do problema e dos grupos que se encontram em situao

    vulnervel ou em dificuldades pessoas desabrigadas e suas famlias, pessoas

    alojadas de forma inadequada, pessoas que no tm acesso a instalaes

    bsicas, pessoas que vivem em assentamentos ilegais, pessoas sujeitas a despejo

    forado e grupos de baixa renda (OG n. 4, ponto 13). Em relao ao direito

    educao primria obrigatria e gratuita, aqueles Estados que no a tiverem

    implementado no momento da ratificao assumem o compromisso de elaborar

    e adotar, dentro de um prazo de dois anos, um plano detalhado para sua

    implementao progressiva (Artigo 14, PIDESC). Essas obrigaes de

    vigilncia, reunio de informao e preparao de um plano de ao para a

    implementao progressiva so extensivas, como medidas imediatas, aos demais

    direitos consagrados no Pacto (OG n. 1, pontos 3 e 4).

    43. Ver tambm Abramovich & Courtis, 2000.

  • VCTOR ABRAMOVICH

    221Ano 2 Nmero 2 2005

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    Traduo:

    Maria Lucia de Oliveira Marques