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RELIGIÃO E CRIMINALIDADE NO BRASIL: PRIMEIRAS EVIDÊNCIAS SOB ENFOQUE ECONÔMICO Susanne Rodrigues Murta 1 Ari Francisco de Araujo Jr. 2 Cláudio D. Shikida 3 Resumo Esse trabalho tem por objetivo estudar teórica e empiricamente a relação entre o nível de criminalidade e a religiosidade do Brasil. Estudos prévios para outros países a este respeito identificaram uma relação negativa entre o nível de criminalidade e religiosidade. No Brasil, ainda não existem estudos específicos sobre o assunto. Na tentativa de preencher esse gap, esse artigo busca, através de dados estaduais e municipais, testar a significância dessa relação para o caso Brasileiro. Palavras-chave: religião, crime, homicídio. 1. INTRODUÇÃO A relação entre religião e economia é uma questão tão antiga quanto o início da própria Ciência Econômica (IANNACCONE, 1998). A tese mais popularizada a este respeito é a de Max Weber. Em uma de suas mais importantes obras, “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, este autor apresentou uma explicação para a função da religião sobre as atitudes humanas. Para ele, o protestantismo seria mais favorável às práticas de mercado (capitalistas) do que o catolicismo. Em outras palavras: 1 IBMEC - Minas Gerais. 2 IBMEC - Minas Gerais. 3 IBMEC - Minas Gerais.

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  • RELIGIO E CRIMINALIDADE NO BRASIL: PRIMEIRAS EVIDNCIAS SOB ENFOQUE ECONMICO

    Susanne Rodrigues Murta1 Ari Francisco de Araujo Jr.2

    Cludio D. Shikida3

    Resumo

    Esse trabalho tem por objetivo estudar terica e empiricamente a relao entre o nvel de criminalidade e a religiosidade do Brasil. Estudos prvios para outros pases a este respeito identicaram uma relao negativa entre o nvel de criminalidade e religiosidade. No Brasil, ainda no existem estudos especcos sobre o assunto. Na tentativa de preencher esse gap, esse artigo busca, atravs de dados estaduais e municipais, testar a signicncia dessa relao para o caso Brasileiro.

    Palavras-chave: religio, crime, homicdio.

    1. INTRODUO

    A relao entre religio e economia uma questo to antiga quanto o incio da prpria Cincia Econmica (IANNACCONE, 1998). A tese mais popularizada a este respeito a de Max Weber. Em uma de suas mais importantes obras, A tica Protestante e o Esprito do Capitalismo, este autor apresentou uma explicao para a funo da religio sobre as atitudes humanas. Para ele, o protestantismo seria mais favorvel s prticas de mercado (capitalistas) do que o catolicismo. Em outras palavras:

    1 IBMEC - Minas Gerais.2 IBMEC - Minas Gerais.3 IBMEC - Minas Gerais.

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    [...] h o fato de os protestantes [...], tanto como classe diri-gente, quanto como classe dirigida, seja como maioria, seja como minoria, terem demonstrado tendncia especica para o racionalismo econmico, que no pode ser observada entre os catlicos em qualquer uma dessas situaes. A razo dessas diferentes atitudes deve, portanto, ser procurada no carter intrnseco permanente de suas crenas religiosas (WEBER, 2001 [1905], p.21).

    Segundo Ekelund et al (1996), a tese de Weber, embora atrativa pri-meira vista, sofre de vrios problemas. Na viso weberiana, o calvinismo seria um exemplo de doutrina pr-mercado, embora a doutrina calvinista fosse explicitamente contrria ao capitalismo.

    Alm disso, mesmo sob o domnio catlico, a Europa apresentava focos de capitalismo (ou de esprito capitalista) no decorrer dos sculos XIV e XV em diversas regies como Veneza, Flandres ou Anturpia. Alm disso, os mesmos autores apontam o fato de que pases caracterizados por forte presena calvinista nem sempre apresentaram desenvolvimento capitalista, quando no o contrrio.

    Um contemporneo de Weber, Werner Sombart4, argumentava que, na verdade, o catolicismo seria a doutrina compatvel com o desenvolvimento capitalista. Alis, a tese central de Ekelund et al (1996) de que a igreja catlica teria no apenas tolerado o comrcio e o capitalismo como teria se organizado em bases econmicas para proveito prprio.

    A ligao entre religio e criminalidade deriva da abordagem original de Becker (1968). Neste trabalho, Becker argumenta que a motivao de um agente em participar de uma atividade ilcita est relacionada com um problema tradicional de escolha envolvendo risco. O agente, segundo sugere o modelo, pondera a recompensa e a penalidade em se sobrepor ao sistema legal, ou seja, compara o valor esperado dessa loteria com o valor proveniente da atividade legal. Apesar de aderente evidncia emprica, o modelo proposto por Becker (1968) apresenta limitaes. Como arma Mocan, Billups e Jody (2005): differences in individuals backgrounds, especially with respect to past participation in criminal activity, necessa-rily impact their response to incentives. It seems important to address such 4 Sombart, posteriormente, aperfeioaria sua tese incluindo o judasmo como varivel-chave no desenvolvimento capitalista. Ver, por exemplo, Sombart (2001 [1911]).

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    heterogeneity explicitly. Neste artigo consideramos que a religio pode associar-se s diferenas de backgrounds.

    Nosso objetivo estudar, especicamente, a relao entre criminalidade e religio. Para tanto, alm de uma breve reviso da literatura econmica sobre o assunto, utilizaremos o modelo de equaes simultneas proposto em Heaton (2006).

    2. REVISO DA LITERATURA

    Religio, Economia e Atitudes

    Para Iannaccone (1998), existiriam trs linhas de pesquisa em economia sobre o tema religio: (1) uma que teria foco nos ensinamentos teolgicos para a anlise de polticas econmicas; (2) outra linha a que estuda e mensu-ra as conseqncias econmicas da religio; e, ainda, (3) uma linha que teria objetivo de explicar a relao entre as crenas e as atitudes religiosas.

    Barro e McCleary (2003) podem ser citados como exemplo da segun-da linha de pesquisa identicada acima. Utilizando dados internacionais e explorando a caracterstica de painel dos mesmos, os resultados sugerem que a religiosidade (denida por crenas religiosas no cu, no inferno e na vida aps a morte) est positivamente relacionada com educao, mas negativamente relacionada com urbanizao e expectativa de vida.

    No artigo, os autores encontram que um aumento na freqncia do indivduo na instituio religiosa de religies como hindusmo e islamismo tende a reduzir o crescimento econmico. Ao contrrio, algumas crenas (cu e inferno, por exemplo) levaria a comportamento favorvel ao crescimento econmico. Isso acontece porque tais crenas inuenciam o indivduo a re-lacionar suas atitudes com recompensas e punies para o bem e o mal praticado durante a vida, acarretando em maior honestidade e tica no trabalho. Apesar do contraste dos resultados citados acima, os autores concluem que religiosidade, de forma geral, tende a estimular o crescimento econmico.

    No que diz respeito inuncia da religio especicamente nas atitudes do indivduo, Guiso, Sapienza e Zingales (2002) utilizam a vasta base de dados do World Values Surveys e encontram resultados que sugerem que, em mdia, religies crists estimulam de forma positiva as atitudes que levam ao crescimento econmico e acabam por corroborar a idia inicial

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    de Weber. Segundo os autores, isso se d devido a algumas atitudes que so inuenciadas pela religio, como por exemplo, protestantes conam mais no sistema legal e possuem menor tendncia a sonegar impostos e a receber propinas do que indivduos de religio catlica.

    Se religio forma valores? At ento, como qualquer outra instituio, a resposta sim. Contudo, em relao a outras instituies, religio mostra estar substancialmente mais avanadas na criao e conservao de valores. (IANNACCONE, 1995, p.14, traduo dos autores)

    Iannaccone (1995) arma que as religies tm poder relevante sobre a formao de valores e atitudes e suas estimativas sugerem a existncia de uma correlao negativa entre as taxas elevadas de participao religiosa e comportamentos sociais considerados problemticos, como crime, divrcio, delinqncia, dentre outros.

    Na tradio das anlises de impactos institucionais sobre o desenvolvi-mento econmico, por exemplo, Helble (2007) e Lewer & Berg (2007) encon-traram evidncias de que diferentes tipos de religio geram incentivos distintos ao desenvolvimento. Aparentemente, para Lewer & Berg (2007), pases com maior diversidade religiosa apresentam maior tendncia ao comrcio e, portan-to, ao desenvolvimento econmico. J Helble (2007) detalha os impactos de oito diferentes religies sobre o desenvolvimento econmico (Hindusmo, Budismo, Catolicismo, Judasmo, Confucionismo, Muulmanismo, Protestantismo e (Cristos) Ortodoxos) por meio das instituies5.

    Religio e Criminalidade

    Os resultados encontrados em estudos sobre a religio/crime so amb-guos. Existem estudos que sugerem correlao negativa entre a religio e o crime (entidades religiosas colaboram para o desenvolvimento de atitudes e valores que desencorajam a criminalidade) enquanto outros armam existir uma relao positiva entre as duas variveis.

    Tambm existem artigos que encontram como resultado, a no-existncia de relao importante da religio sobre o crime. Um exemplo Heaton (2006) a partir de testes em que so utilizados dados cross section de mais de 3000

    5 A religio, neste caso, pode ser pensada como uma proxy das instituies informais que, juntamente com as formais, teriam, teoricamente, impactos no desenvolvimento econmico dos pases.

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    condados americanos em um modelo de equaes simultneas. Heaton arma tambm que a religio afetada pelo crime de forma negativa. Segundo o autor, o resultado sugere que quem comete o crime apresentaria algum sentimento de culpa pelo seu ato e deixaria de freqentar a instituio religiosa.

    Baier e Wright (2001) fazem um estudo de meta-analysis6 e encontram uma relao negativa entre a religio e a criminalidade. Jensen (2006), ao contrrio, usando os dados do World Value Surveys encontra relao positiva e estatisticamente signicativa entre algumas crenas e as taxas de homicdio.

    Outro estudo sobre a relao a tese de Thirumalai (2004). O autor estuda, atravs de uma extensa base de dados dos internos de prises esta-duais e federais americanas, a relao entre o tipo de crime j cometido e as atividades religiosas do indivduo que o praticou. O autor concorda com a idia de que espiritualidade e religio tm papis importantes na deciso do individuo cometer ou no um crime e conclui que quase 60% dos deten-tos das prises americanas esto de certa forma envolvidos em atividades religiosas ainda dentro da priso, o que pode ser considerado como uma busca, ainda que tardia, de desenvolvimento de travas morais.

    Religio e Criminalidade no Brasil

    No Brasil, a possvel inuncia da religio na economia e na criminali-dade ainda no um tema muito estudado. Em sua reviso sobre o assunto, Correia (2003) apresenta uma anlise histrica da evoluo dos estudos sobre religio desde John Stuart Mill aos mais atuais estudos.

    Outros trabalhos foram realizados com a inteno de traar o cenrio religioso brasileiro. Neri (2007), de forma muito bem sucedida, criou um mapeamento da evoluo das crenas religiosas at o Censo de 2000 no Brasil. Vericou-se, por exemplo, a reduo de is na religio catlica (95,01% da populao em 1940 e 73,89% em 2000), o leve aumento de pes-soas sem-religio e a ascenso da religio evanglica (2,06% para 17,19%, no perodo de 1940 a 2000). Neri (2007) tambm descreve a proporo das religies presentes nos presdios brasileiros. A presena dos sem religio de 16,19%, mais do que o dobro da proporo encontrada no total da popula-

    6 Meta-analysis um estudo estatstico baseado na integrao sistemtica das informaes obtidas de vrios estudos j existentes sobre o mesmo assunto em questo.

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    o; a presena dos pentecostais praticamente a mesma em relao popu-lao, por volta de 10,5%. Os catlicos tm menor representatividade entre os presidirios, a proporo de 51,93% e na populao de 73,89%.

    Na tentativa de traar o perl do criminoso, Shikida, Araujo Jr., Shikida & Borilli (2006) utilizaram uma amostra de dados primria obtida a partir de entrevistas realizadas com criminosos em penitencirias do Paran. Por meio de um estudo economtrico, os autores analisaram o que determina o comportamento violento do criminoso. Os resultados sugerem que os indi-vduos jovens do sexo masculino, com ensino mdio, que no acreditam na justia, que possuem arma de fogo [...], que no trabalham, fumantes, e aqueles que so usurios atuais de drogas so mais propensos a utilizar da violncia na atividade criminosa (SHIKIDA, ARAUJO Jr., SHIKIDA, BORILLI, 2006). Os indivduos que so religiosos apresentam menor ten-dncia de praticar crime com uso de violncia.

    Em outro artigo, foi analisada a existncia de travas nas atitudes do indivduo criminoso (Shikida, Araujo Jr., Shikida, 2006). Nesse trabalho, os autores utilizaram o modelo terico de Frey7 e chegaram concluso que o fato do indivduo ser catlico e acreditar em Deus funciona como uma trava moral, podendo at alterar, em mdia, a propenso ao criminosa.

    Como citado acima, a literatura sobre religio e crime no Brasil ainda reduzida, basicamente explorada apenas do ponto de vista losco ou sociolgico (Souza, 2005). Entre economistas o assunto no foi estudado com a devida importncia. Levando em considerao esse gap na na litera-tura, o objetivo deste artigo buscar evidncias empricas iniciais sobre a relao entre religio e a criminalidade a partir de um modelo de equaes simultneas tal como proposto por Heaton (2006).

    3. PRIMEIRAS EVIDNCIAS

    Durante os ltimos anos o nmero de homicdios no Brasil tem au-mentado. De acordo com o banco de dados do Sistema nico de Sade (DATASUS), em 1998, foram 41.883 homicdios, em 2000 foram 45.340 e

    7 O modelo de Frey (1997) relaciona variveis da psicologia com variveis econmicas. Esse modelo foi que estende modelos de incentivos. O indivduo toma suas decises baseado em incentivos tradicionais, como leis e punies. Frey inclui no modelo a idia de travas morais, no qual o indivduo alm de tomar suas decises com base nos incentivos gerados pelo Estado, existem outros incentivos que influenciam suas decises, como religio, conceitos e famlia.

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    em 2002 o nmero de homicdios atingiu 49.587 (Grco I). Representan-do um aumento, de 1998 para 2002, de 18,4%. Seria isso um efeito, entre outros fatores tradicionalmente aceitos8, da falta ou reduo de travas mo-rais (religio) dos indivduos? Como mostra o Grco II, todos os estados tiveram um aumento perceptvel, entre 1991 e 2000, na porcentagem de pessoas que se dizem sem religio.

    Grco I Nmero de homicdios (1980-2002) Brasil.Fonte: Elaborao prpria.

    Grco II Percentagem de pessoas sem religio (1991 e 2000) para Estados brasileirosFonte: Elaborao prpria.

    8 Segundo Andrade e Lisboa (2000), o nvel de homicdio de determinada regio est relacionado com algumas vari-veis econmicas j tradicionalmente aceitas, como salrio real, taxa de desemprego, coeficiente de Gini e aspectos demogrficos da populao.

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    O Grco III e a Figura I (anexo) apresentam as taxas brutas de homicdio para cada 100 mil habitantes para os estados brasileiros no ano de 2002. Os estados que possuem as maiores taxas de homicdio no Brasil so, por ordem decrescente, Rio de Janeiro com 57 homicdios para cada 100.000 habitantes, Pernambuco com 55 homicdios e Esprito Santo com 51 homicdios.

    Grfico III Taxa de homicdios (2002) para Estados brasileiros (por 100.000 habitantes)Fonte: Elaborao prpria.

    possvel observar uma grande diferena entre as taxas dos estados brasileiros. Para explicar esta variabilidade nas taxas de homicdio, utiliza-se o mesmo modelo de Heaton (2006) cuja hiptese bsica no que diz respeito ao impacto da religio sobre o crime o de que travas morais (medidas pela dimenso da religiosidade) possuem impacto nas aes criminosas e, portanto, ajudariam a explicar o comportamento das taxas de homicdio. A m de testar esse modelo para o caso brasileiro sero utilizados dados do Censo 2000 e do estudo Economia das Religies realizado pela FGV em 2007.

    4. MODELO, DADOS E RESULTADOS

    Modelo Economtrico

    O modelo economtrico utilizado segue Heaton (2006). Segundo o autor, existe endogenia entre a criminalidade e religio devido simulta-

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    neidade: assim como a religio pode inuenciar o crime, a religio pode ser inuenciada pela criminalidade de uma determinada regio. Do ponto de vista economtrico:

    Crime = f (medida de religiosidade, X) +

    corr (medida de religiosidade, ) 0

    A soluo economtrica adequada para situaes deste tipo o uso do mtodo de variveis instrumentais, ou seja, escolher uma varivel Z (instrumento) que capturaria variaes exgenas da varivel explicativa endgena. Ou seja, Z deve ser exgeno e relevante:

    corr (Z, ) = 0

    corr (Z, medida de religiosidade) 0

    Heaton (2006) defende o uso do histrico religioso como instrumento para a medida de religiosidade. Segundo o autor, o histrico religioso pode ser considerado instrumento vlido da religiosidade atual devido trans-misso intergeracional de valores. Heaton (2006) sugere, desta forma, o seguinte sistema de equaes a ser estimado via MQ2E:

    Crime = 0 + 1Religiosidade + 2Punio + Demograa + (1)

    e

    Religiosidade = 0 + 1Crime + 2Histrico Religioso + Demograa + (2)

    Em que:Crime = ln (logaritmo neperiano) da taxa de homicdios por 100 mil ha-bitantes;Religiosidade = ln da porcentagem de pessoas que se declaram adeptos a qualquer religio;Punio = ln dos gastos do governo com segurana pblica em relao aos gastos totais;

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    Histrico Religioso = ln da porcentagem de pessoas que se declaram se adeptos a qualquer religio em perodo anterior;Demograa = vetor de variveis econmicas e demogrcas, incluindo renda, densidade demogrca e composio da populao por idade e raa (em ln); e = erros aleatrios.

    A equao (1) uma adaptao do modelo de Becker (1968). Becker incorpora a escolha racional do agente e considera que o criminoso, res-ponsvel pelos seus atos, calcula o custo e o benefcio de sua ao crimi-nosa. Nesse sentido, quanto mais elevada a punio e a probabilidade de ser pego, menor o valor esperado do benefcio de se cometer um crime. Uma das variveis que mais afeta a deciso do criminoso a probabilidade de ser pego, que ser retratada no modelo com a quantidade de recursos governamentais destinado segurana publica, indicando potencialmente maior nmero de policiais nas ruas, maior nmero de delegacias, etc. Te-oricamente espera-se uma relao negativa entre religio e criminalidade, ou seja, a religio poderia agir como obstculo adicional na avaliao de custo-benefcio da opo pela atividade criminosa. O vetor de variveis econmicas e demogrcas representam outros controles geralmente uti-lizados em testes empricos dos determinantes da violncia.

    A equao (2) captaria o efeito inverso, da criminalidade sobre a reli-giosidade, alm de levar em conta tambm outros fatores que interferem na religiosidade dos indivduos. A incluso da varivel de histrico religioso determinante na tentativa de suplantar o problema de simultaneidade entre religio e crime.

    Fonte de Dados

    No Brasil, a base de dados referente religio precria, o que di-culta os testes a serem realizados. Contudo, como j citado na reviso da literatura, existe um estudo sobre religio feito pela FGV, Economia das Religies que tenta retratar, atravs de ranking e listas, a porcentagem da populao brasileira adepta a diversas religies nos anos de 1991 e 2000, tabulaes dos dados primrios dos Censos Demogrcos do IBGE. Sero

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    ento utilizados os dados obtidos neste estudo para testar a relao entre religio e criminalidade nos estados e municpios brasileiros.

    A varivel Religiosidade foi medida da seguinte forma: porcentagem daqueles que se declaram praticantes de alguma religio (catlica, evang-lica, esprita, orientais ou outra religio) em relao populao total no ano de 2000. Espera-se um coeciente estimado negativo. Outra medida ligada religio utilizada o Histrico Religioso. A proxy do Histrico Religioso foi a porcentagem daqueles que se declaram praticantes de al-guma religio (catlica, evanglica, esprita, orientais ou outra religio) em relao populao total no ano de 1991. Assim, trata-se de uma Religiosidade defasada no tempo.

    A criminalidade captada a partir das taxas de homicdios para 100 mil habitantes, tabuladas dos dados do DATASUS. A proxy para Punio utilizada foi calculada como a proporo dos gastos governamentais dire-cionados para a segurana nacional e defesa pblica (Secretaria do Tesouro Nacional, Ministrio da Fazenda) em relao aos gastos totais. Espera-se que quanto maior os gastos em segurana pblica menor, segundo Becker, a quantidade de crimes cometidos.

    Outras variveis como renda per capita, composio da populao por idade e raa, densidade populacional e nvel de pobreza tambm so utilizadas como controles adicionais na tentativa de explicar a caracterstica demogrca dos estados e municpios. As tabelas I e II no Anexo apresen-tam as estatsticas descritivas das variveis utilizadas no modelo estadual e municipal, respectivamente. Os dados foram ento tabulados para os estados (27 observaes) e municpios (4368 observaes).

    Resultados

    Os resultados das estimativas da equao principal do sistema pelo mtodo de MQ2E so apresentados nas Tabelas 1 e 29. Na Tabela 1 so reportadas as estimativas da relao entre religiosidade e crime a partir dos dados estaduais (N=27).

    9 Para testar se um nico regressor da equao realmente endgeno basta comparar o teste F de MQO e MQ2E. No caso da regresso para dados estaduais, os Fs calculados so muito prximos, 0,022 e 0,30, respectivamente. Os Fs calculados a partir das estimativas com os dados municipais apresentaram-se maiores em MQ2E (8,965 contra 6,466 de MQO). Isto que sugere que o regressor religiosidade endgeno e que as estimativas de MQO so viesadas.

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    Tabela 1 - Resultados Economtricos _ estados (N=27)MQ2E

    double-logCoeciente Estatstica t

    Religiosidade -8,506* -1,508Punio -0,026 -0,167Renda 0,707* 2,315Densidade Demogrca -0,004 -0,047Jovens (15 22 anos) -4,607* -1,606Negros 0,779* 2,048Prob F 0,030Estatstica F 2,977

    Fonte: Elaborao prpria.Nota: * varivel signicativa a um nvel de 10%.

    O coeciente estimado da maioria das variveis explicativas apresenta sinal esperado e so signicativas (NS = 10%). Especicamente, o coe-ciente estimado da varivel religiosidade negativo e signicativo ao nvel de 10%. Quantitativamente, a cada aumento de 1% no nvel de religiosidade estadual reduziria a criminalidade em 8,5%, tudo mais mantido constante.

    Na Tabela 2 so apresentadas as estimativas da relao entre religiosidade e crime a partir dos dados municipais (N=4368). Alm disso, varivel Negros foi excluda do modelo, pois tal varivel no existe tabulada para os municpios brasileiros no Atlas de Desenvolvimento Humano ou IPEADATA.

    Tabela 2 - Resultados Economtricos _ municpios (N = 4368)MQ2E

    double-logCoeciente Estatstica t

    Religiosidade -4,688* -5,521Punio -0,029* -1,344Renda 0,042 0,454Densidade Demogrca 0,000 0,009Jovens (15 22 anos) -1,244* -2,235Prob F 0,000Estatstica F 8,965

    Fonte: Elaborao prpria.Nota: * varivel signicativa a um nvel de 10%.

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    O parmetro estimado da varivel religiosidade se mostrou negativo e signicativo ao nvel de 1%. Quantitativamente, a cada aumento de 1% no nvel de religiosidade municipal a criminalidade reduz-se em 4,7%, tudo mais mantido constante.

    O coeciente da varivel punio tambm sugere impacto negativo e estatisticamente signicativo ao nvel de 10%. A cada aumento de 1% nos gastos do governo com segurana pblica ocorre, em mdia, uma reduo de 0,03% na taxa de homicdio, ceteris paribus.

    5. CONCLUSO

    Neste artigo procurou-se estudar a relao entre o nvel de religiosida-de e a criminalidade no Brasil. Foi desenvolvido um estudo economtrico baseado no modelo de Heaton (2006) com algumas adequaes na base de dados para levar em conta a realidade brasileira.

    Os resultados sugerem a existncia de uma relao negativa entre o nvel de religiosidade de um determinado estado/municpio e sua taxa de homi-cdio, o que uma evidncia a favor do argumento da religio como trava moral s aes dos criminosos. A varivel gastos com segurana pblica tambm apresentou um coeciente negativo (signicativa no modelo com dados municipais). Isto sugere que se os gastos governamentais destinados a segurana pblica captam o efeito esperado da punio no modelo.

    Em outras palavras, h evidncias de que a religio um complemento s polticas pblicas que visam a minimizao da ocorrncia de crimes no Brasil, especicamente, crimes violentos como o homicdio.

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    RELIGION AND CRIME IN BRAZIL: INITIAL EVIDENCES FROM AN ECONOMIC POINT OF VIEW

    Abstract

    This paper aims to study theoretically and empirically the relationship between the level of crime and religiosity in Brazil. Previous studies on other countries concerning this subject identied a negative relation between the level of crime and religiosity. In Brazil, specic studies for this relationship do not exist yet. In the attempt to ll this gap, this paper tests, through state and county data, the signicance of this relationship for the Brazilian case.

    Keywords: religion, crime, homicide.

    JEL: K42, Z12, Z13.

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    ANEXOS

    Figura 1 - Taxa de homicdios em 2000 (100.000 habitantes) - Brasil

    Fonte: IpeaDATA

    Tabela I - Estatsticas Descritivas - Dados Estaduais (N = 27)

    Crime Religiosidade Punio Renda Densidade Demogrca Jovens Negros

    Mdia 24,5574 92,8133 0,0705 246,6831 59,0330 17,1474 53,8555Mediana 19,8800 93,0200 0,0729 211,3900 30,4600 17,1701 56,9402Mximo 53,8200 98,0300 0,1529 605,4060 352,1600 18,7321 73,2505Mnimo 6,0900 84,2400 0,0016 110,3710 1,4500 14,7186 9,6889Desv.Pad. 14,2058 3,1311 0,0325 114,1074 88,9210 1,1679 18,2393Fonte: Elaborao Prpria.

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    Religio e criminalidade no Brasil: primeiras evidncias sob enfoque econmico

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    Tabela II - Estatsticas Descritivas - Dados Municipais (N = 4368)

    Crime Religiosidade Punio Renda Densidade Demogrca Jovens

    Mdia 19,3080 91,6603 0,0019 179,8267 109,5487 16,2638

    Mediana 13,9606 96,5900 0,0000 170,8050 25,8000 16,1523

    Mximo 122,9471 100,0000 0,1040 954,6500 12881,4000 21,6011

    Mnimo 0,2541 0,0000 0,0000 36,9600 0,1000 11,0630Desv.Pad. 16,7361 18,7429 0,0055 98,9915 577,0092 1,6523

    Fonte: Elaborao Prpria.