9. Mito da Doença Mental › pluginfile.php › 2148566...doenças mentais são deste tipo. Éfeita...

5
9. o Mito da Doença Mental Thomas S. Szas: médicos e outros cientistas sustentam esta opinião. Esta posição implica que as pessoas não possam ter problemas - expressos no que se chama atualmente "doenças men- tais" - por causa das diferenças nas necessidades pes- soais, opiniões, aspirações sociais, valores e assim por diante. Todos os problemas na vida são atribuídos aos processos psicoquímicos que no tempo devido serão des- cobertos através da pesquisa médica. As "doenças mentais" são dessa forma consideradas basicamente como não diferentes de todas as outras doen- , ças (isto é, do corpo). A única diferença, neste ponto de vista, entre as doenças mentais e as do corpo é que as primeiras, que afetam o cérebro, manifestam-se por meio de sintomas mentais; ao passo que as últimas, que afetam outros sistemas de órgãos (por exemplo, a pele, o fígado etc.), manifestam-se por meio de sintomas referentes àque- las partes do corpo. Esta opinião baseia-se e expressa o que, na minha opinião, são dois erros fundarnentais., Em primeiro lugar, que sintomas do sistema nervoso central poderiam corresponder a uma erupção na pele ou a uma fratura? Não poderia ser alguma emoção ou uma parte complexa do comportamento. Pelo contrário.rpode- ria ser a cegueira ou a paralisia de alguma parte do corpo. O dilema da questão é que uma doença do cérebro, aná- loga a uma doença da pele ou do tecido ósseo, é um de- feito euroló ico..s não 11m prob!ema..n.a vida Por exemplo, um defeito no campo visual de uma pessoà pode ser satisfatoriamente explicado correlacionando-o a certas lesões definidas no sistema nervoso. Por putro lado, a crença de uma pessoa - seja ela no cristianismo, no comunismo, ou na idéia de que os seus órgãos internos t estão "apodrecidos" e que o seu corpo, de fato, já está deJjrantes~ nas ~uais se sabe que as pessoas manifestam morto - não pode ser explicada por um defeito ou uma várias . 'ida es ou esordens do pensamento e do doença do sistema nervoso. Explicações deste tipo de comportameotQ- Corretamente falando, entretanto, es ocorrência - admitindo--se que se está interessado na pró- ~~.as...slo cérebro e 030 da mente. Dê acordo com::" pria crença e que não se está considerando-a simplesmente uma escola de pensamento, todas as assim chamadas como um "sintoma" ou expressão de alguma coisa além doenças mentais são deste tipo. É feita a suposição de que que é mais interessante - devem ser 'procuradas em dife- algum defeito neurológico, talvez muito sutil, será final- rentes linhas. mente encontrado para todas as desordens do pensamento O segundo erro ao considerar o comportamento psicos- e do comportamento. Muitos psiquiatras contemporâneos, social complexo, que consiste em comunicações sobre nós mesmos e sobre o mundo à nossa volta, como simples sin- tomas do funcionamento neurológico é epistemológico. Em outras palavras, é um erro que não diz respeito a Minha intenção neste ensaio é levantar a questão "Existe uma ta! coisa como a doença mental?", e demons- trar que não. Desde que a noção da doe~ça mental é hoje extensamente usada, examinar os diversos modos nos quais este termo é empregado parece ser especialmente in- dicado. A doença mental, naturalmente, não é literalmente uma "coisa" - ou objeto físico - e por isso ela só pode "existir" em situação idêntica à de outros conceitos teóri- cos. No entanto, teorias familiares têm o hábito de fazer-se passar, mais cedo ou mais tarde - pelo menos àqueles que acreditam nelas - por "verdades objetivas" (ou "fatos"). Durante certos períodos históricos, conceitos explanativos como divindades, bruxas e microrganismos apareceram não apenas como teorias, mas também como causas evi- dentes de um grande número de acontecimentos. Alego que a doença mental atualmente é grandemente conside- rada de uma maneira algo semelhante, isto é, como a causa de uma diversidade de acontecimentos. Como um antídoto ao uso insensato da noção da doença mental - quer como um fenômeno evidente, teoria ou causa - vamos fazer esta pergunta: Q Que significa a afirmação de que alguém ~entalmente doente?..,.. No que se segue descreverei brevemente os principais usos nos quais o conceito da doença mental tem sido feito. Demonstrarei que esta noção sobreviveu a todas as utili- dades que ela poderia ter tido e q e ela funciona hoje sim- plesmente como um mito conveniente. A DOENÇA MENTAL COMO UM SINAL DO DANO CEREBRAL DaAm". Psychol.15:113-118. 1960, com a permissão da American Psycho- logical Association e do autor. 58

Transcript of 9. Mito da Doença Mental › pluginfile.php › 2148566...doenças mentais são deste tipo. Éfeita...

Page 1: 9. Mito da Doença Mental › pluginfile.php › 2148566...doenças mentais são deste tipo. Éfeita a suposição de que que é mais interessante - devem ser 'procuradas em dife-algum

9. o Mito da Doença Mental

Thomas S. Szas:

médicos e outros cientistas sustentam esta opinião. Estaposição implica que as pessoas não possam ter problemas- expressos no que se chama atualmente "doenças men-tais" - por causa das diferenças nas necessidades pes-soais, opiniões, aspirações sociais, valores e assim pordiante. Todos os problemas na vida são atribuídos aosprocessos psicoquímicos que no tempo devido serão des-cobertos através da pesquisa médica.

As "doenças mentais" são dessa forma consideradasbasicamente como não diferentes de todas as outras doen-

, ças (isto é, do corpo). A única diferença, neste ponto devista, entre as doenças mentais e as do corpo é que asprimeiras, que afetam o cérebro, manifestam-se por meiode sintomas mentais; ao passo que as últimas, que afetamoutros sistemas de órgãos (por exemplo, a pele, o fígadoetc.), manifestam-se por meio de sintomas referentes àque-las partes do corpo. Esta opinião baseia-se e expressa oque, na minha opinião, são dois erros fundarnentais.,

Em primeiro lugar, que sintomas do sistema nervosocentral poderiam corresponder a uma erupção na pele ou auma fratura? Não poderia ser alguma emoção ou umaparte complexa do comportamento. Pelo contrário.rpode-ria ser a cegueira ou a paralisia de alguma parte do corpo.O dilema da questão é que uma doença do cérebro, aná-loga a uma doença da pele ou do tecido ósseo, é um de-feito euroló ico..s não 11m prob!ema..n.a vida Porexemplo, um defeito no campo visual de uma pessoà podeser satisfatoriamente explicado correlacionando-o a certaslesões definidas no sistema nervoso. Por putro lado, acrença de uma pessoa - seja ela no cristianismo, nocomunismo, ou na idéia de que os seus órgãos internost estão "apodrecidos" e que o seu corpo, de fato, já está

deJjrantes~ nas ~uais se sabe que as pessoas manifestam morto - não pode ser explicada por um defeito ou umavárias . 'ida es ou esordens do pensamento e do doença do sistema nervoso. Explicações deste tipo decomportameotQ- Corretamente falando, entretanto, es ocorrência - admitindo--se que se está interessado na pró-

~~.as...slo cérebro e 030 da mente. Dê acordo com::" pria crença e que não se está considerando-a simplesmenteuma escola de pensamento, todas as assim chamadas como um "sintoma" ou expressão de alguma coisa alémdoenças mentais são deste tipo. É feita a suposição de que que é mais interessante - devem ser 'procuradas em dife-algum defeito neurológico, talvez muito sutil, será final- rentes linhas.mente encontrado para todas as desordens do pensamento O segundo erro ao considerar o comportamento psicos-e do comportamento. Muitos psiquiatras contemporâneos, social complexo, que consiste em comunicações sobre nós

mesmos e sobre o mundo à nossa volta, como simples sin-tomas do funcionamento neurológico é epistemológico.Em outras palavras, é um erro que não diz respeito a

Minha intenção neste ensaio é levantar a questão"Existe uma ta! coisa como a doença mental?", e demons-trar que não. Desde que a noção da doe~ça mental éhoje extensamente usada, examinar os diversos modos nosquais este termo é empregado parece ser especialmente in-dicado. A doença mental, naturalmente, não é literalmenteuma "coisa" - ou objeto físico - e por isso ela só pode"existir" em situação idêntica à de outros conceitos teóri-cos. No entanto, teorias familiares têm o hábito de fazer-sepassar, mais cedo ou mais tarde - pelo menos àqueles queacreditam nelas - por "verdades objetivas" (ou "fatos").Durante certos períodos históricos, conceitos explanativoscomo divindades, bruxas e microrganismos apareceramnão apenas como teorias, mas também como causas evi-dentes de um grande número de acontecimentos. Alegoque a doença mental atualmente é grandemente conside-rada de uma maneira algo semelhante, isto é, como a causade uma diversidade de acontecimentos. Como um antídotoao uso insensato da noção da doença mental - quer comoum fenômeno evidente, teoria ou causa - vamos fazeresta pergunta: Q Que significa a afirmação de que alguém~entalmente doente?..,..

No que se segue descreverei brevemente os principaisusos nos quais o conceito da doença mental tem sido feito.Demonstrarei que esta noção sobreviveu a todas as utili-dades que ela poderia ter tido e q e ela funciona hoje sim-plesmente como um mito conveniente.

A DOENÇA MENTAL COMO UM SINALDO DANO CEREBRAL

DaAm". Psychol.15:113-118. 1960, com a permissão da American Psycho-logical Association e do autor.

58

Page 2: 9. Mito da Doença Mental › pluginfile.php › 2148566...doenças mentais são deste tipo. Éfeita a suposição de que que é mais interessante - devem ser 'procuradas em dife-algum

AVALIAÇÃO CRíTICA

quaisquer enganos na observação ou no raciocínio, comotais, mas preferivelmente à maneira pela qual organizamose expressamos o nosso conhecimento. No presente caso,encontra-se o erro ao ser feito um dualismo simétrico entreos sintomas físicos (corporais) e mentais, um dualismo queé simplesmente um vício da linguagem e ao qual nenhumadas observações conhecidas podem corresponder. Vamosverificar se isto ocorre desta forma. Na prática médica,quando falamos de distúrbios físicos, queremos dizer si-nais (por exemplo, uma febre) e/ou sintomas (por exemplo,dor). Falamos dos sintomas mentais, por outro lado,quando nos referimos às comunicações do paciente sobreele mesmo, sobre os outros e sobre o mundo à sua volta.Ele poderia afirmar que ele é Napoleâo ou que ele estásendo perseguido pelos comunistas. Estes poderiam serconsiderados sintomas mentais apenas se o observadoracreditasse que o paciente não era Napoleão ou que elelIlio estivesse sendo perseguido pelos comunistas. Istotoma visível que a afirmação de que "X é um sintomamental" envolve a descrição de um julgamento. O julga-mento engloba, além disso, uma comparação secreta deuma comparação das idéias, dos conceitos e das crençasdo paciente com as do observador e da sociedade na qualeles vivem. A noção do sintoma mental está, portanto, li-gada de uma maneira insolúvel ao contexto social (in-cluindoo ético) no qual ele é construído da mesma maneiraquea noção do sintoma corporal está ligada a um contextoanatõmico e genético (Szasz, 1957a, 1957b).

Para recapitular o que foi dito até aqui: Tentei mostrarpara aqueles que consideram os sintomas mentais comosinaisde doença cerebral, que o conceito de doença men-talé desnecessário e enganador. Porque o que eles queremdizeré que as pessoas assim rotuladas sofrem de doençascerebrais;e, se isto é o que eles exprimem, pareceria me-lhorem consideração à claridade dizer isto e nada mais.

A DOENÇA MENTAL COMO UM NOME PARA OSPROBLEMAS NA VIDA

o termo "doença mental" é grandemente usado parádescreveralgo que é muito diferente do que a doença docérebro.Muitas pessoas atualmente admitem que viver é umprocessoárduo. A sua opressão para o homem moderno,alémdo mais, deriva não tanto de uma luta pela sobrevi-vênciabiológica quanto das tensões e dos esforços ineren-tes no intercâmbio social das complexas personalidadeshumanas. Neste contexto, a noção da doença mental éusadapara identificar ou descrever alguma característicasda assim chamada personalidade de u indivíduo. Adoençamental - como uma deformidade da personali-dade,por assim dizer - é então considerada como a causadadiscórdia humana. Está implícito nesta visão que o in-tercâmbiosicial entre as pessoas é considerado como algoinerentemente harmonioso, a sua perturbação sendo so-mentedevida à presença da "doença mental" em muitaspessoas.Isto é obviamente um raciocínio enganador, vistoqueele converte a abstração "doença mental" em umacal/sa,embora esta abstração tenha sido criada em pri-meirolugar para servir apenas como uma expressão taqui-gráfica para certos tipos de comportamento humano.Toma-seagora necessário perguntar: "Que tipos de com-portamentosão considerados como indicadores da doençamentale por quem?"

O conceito de doença, seja ela corporal ou mental, im-plicaem um afastamento de alguma norma claramente de-finida.No caso da doença física, a norma é a integridadefuncionale estrutural do corpo humano. Assim, embora aconveniência da saúde física, como tal, seja um valor

59

ético, essa saúde pode ser expressa em termos anatômicose fisiológicos. Qual é o afastamento da norma que é consi-derado como doença mental? Esta pergunta não pode serfacilmente respondida. Mas seja qual for esta norma, po-demos estar certos de uma coisa apenas: isto é, que ela éuma norma que deve ser apresentada em termos de concei-tos psicossociais, éticos e legais. Por exemplo, noções taiscomo "repressão excessiva" ou "atuando um impulso in-consciente" ilustram o uso de conceitos psicológicos parajulgar as (assim chamadas) doença e saúde mental. A idéiade que a hostilidade crônica, a vingança ou o divórcio sãoindicadores de doença mental seriam ilustraçôes do usodas normas éticas (isto é, a necessidade de um relaciona-mento conjugal amoroso, generoso e estável). Finalmente,a opinião psiquiátrica muito difundida de que uma pessoamentalmente doente poderia cometer um homicídio ilustrao uso de um conceito legal como uma norma da saúdemental. A norma cujo afastamento dela é medido quandose fala de uma doença mental é uma norma psicossocial eética. Entretanto, o tratamento é procurado em termos demedidas médicas que - assim se espera e se admite -estão livres de amplas diferenças de valor ético. A defini-ção da desordem e os termos nos quais o seu tratamento éprocurado estão, portanto, em desigualdades sérias entresi. A importância prática deste conflito dissimulado entre anatureza alegada do defeito e o tratamento dificilmentepode ser exagerada.

Tendo identificado as normas usadas para medir os afas-tamentos nos casos da doença mental, iremos agora voltarà questão: "Quem define as normas e, portanto, o afasta-mento?" Duas respostas básicas podem ser propostas: (a)Pode ser a própria pessoa (isto é, o paciente) que decide seele está se afastando da norma. Por exemplo, um artistapode achar que sofre de uma inibição do trabalho; e elepode chegar a esta conclusão buscando a ajudade um psi-coterapeuta. (h) Pode ser alguém diferente do paciente quedecide que o último está se desviando (por exemplo, fami-lares, médicos, autoridades legais, geralrnejite a sociedadeetc.). Em tal caso um psiquiatra pode ser empregado poroutros para fazer algo para o paciente a fim de corrigir oafastamento.

Estas consideraçôes sublinham a importância de fazer apergunta: "Agente de quem é o psiquiatra?" e de dar umaresposta honesta a ela (Szasz, 1956, 1958). O psiquiatra(psicólogo e psicoterapeuta não-médico), isto agora se re-vela, pode ser o agente do paciente. dos familiares, da es-cola, dos serviços militares, de uma organização comer-cial, de uma corte da lei, e assim por diante. Ao se falar dopsiquiatra como o agente destas pessoas ou organizaçôes,não está implicado que os seus valores relativos às nor-mas, ou as suas idéias e propósitos relativos à naturezaprópria da ação do tratamento necessitem coincidir exata-mente com as do seu empregador. Por exemplo, um pa-ciente em psicoterapia individual pode acreditar que a suasalvação se baseia em uma nova relação conjugal, o seupsicoterapeuta não necessita participar desta hipótese.Como agente do paciente, entretanto, ele deve abster-sede trazer forças legais ou sociais para relacionar-se com opaciente que poderiam evitá-lo em colocar as suas convic-ções em ação. Se o seu contrato é com o paciente, o psi-quiatra (psicoterapeuta) deve discordar dele ou interrom-per o tratamento, mas não pode comprometer-se com ou-tros para dificultar as aspirações do paciente. Igualmente,se um psiquiatra está comprometido com um tribunal paradeterminar a sanidade de um criminoso, ele não precisacompartilhar inteiramente com os valores e intenções dasautoridades legais em relação ao criminoso e com os meiosutilizados para lidar com ele. Contudo, o psiquiatra é ex-pressamente impedido de afirmar, por exemplo, que não é

Page 3: 9. Mito da Doença Mental › pluginfile.php › 2148566...doenças mentais são deste tipo. Éfeita a suposição de que que é mais interessante - devem ser 'procuradas em dife-algum

60o criminosoquem está "louco", mas sim os homens queescreveram as leis sobre as bases das quais as própriasações que estão 'sendo julgadas são consideradas "crimi-nosas". Tal opinião poderia ser. expressa, naturalmente,mas não em uma sala de tribunal, e não por um psiquiatraque faz a sua prática na assistência de uma corte na reali-zação do seu trabalho diário.

Para recapitular: No uso contemporâneo social real, adescoberta de uma doença mental é feita pelo estabeleci-mento de um desvio no comportamento de certas normaslegais, éticas e psicossociais. O julgamento pode ser feito,como na medicina, pelo paciente, pelo médico (psiquiatra),ou por outros. A ação curativa, finalmente, tende a serprocurada em uma estrutura terapêutica - ou velada-mente médica - criando assim uma situação na qual osafastamentos psicossociais, éticos e/ou legais são reivindi-cados para que sejam corrigidos por uma ação (assim cha-mada) médica. Desde que a ação médica seja planejadapara corrigir apenas desvios médicos, parece logicamenteabsurdo que ela ajude a resolver problemas cuja existênciafoi definida e estabelecida em bases não-médicas. Achoque essas considerações podem ser proveitosamente apli-cadas no uso atual dos tranqüilizantes e, de uma maneirageral, ao que poderia ser esperado das drogas de qualquertipo em consideração à melhora ou solução dos problemasna vida humana.

A FUNÇAO DA ÉTICA NA PSIQUIATRIA

Qualquer coisa que as pessoas façam - em contrasteàs coisas que aconteçam a elas (Peters, 1958)- ocorremdentro de um contexto de valor. Neste sentido amplo, ne-nhuma atividade humana é desprovida de implicações éti-cas. Quando os valores subjacentes a certas atividades sãoamplamente compartilhados, aqueles que participam nasua busca podem os perder de vista completamente, A dis-ciplina da medicina, tanto como uma ciência pura (porexemplo, a pesquisa) quanto como uma tecnologia (porexemplo, a terapia), contém muitas considerações e julga-mentos éticos. Infelizmente, estes fatos são muitas vezesnegados, minimizados ou mantidos fora de foco; para omodelo ideal da profissão médica, bem como para as pes-soas a quem ele serve, parece estar havendo um sistemade medicina (a1egadamente) livre de valores éticos. Estanoção sentimental é expressa por tais fatos como: a boavontade do médico de tratar e ajudar os pacientes inde-pendente das suas crenças religiosas e políticas, sejam elespobres ou ricos etc. Enquanto possa haver alguns funda-mentos par este ponto de vista - embora esta seja umavisão que não é real mesmo nestes aspecto - permaneceo fato de que as considerações éticas abran em um grandealcance de ocupações humanas. Fazer a prática da medi-cina neutra em relação a algumas questões expecíficas devalor não significa necessariamente, nem pode significar,que ela deva ser mantida livre de todos estes valores. Aprática da medicina está intimamente ligada à ética; e aprimeira coisa que devemos fazer, parece-me, é tentar tor-nar isto claro e explícito. Eu deixarei esta questão de lado,pois ela não nos interessa especificamente neste ensaio.Para que não haja nenhuma incerteza, entretanto, sobrecomo e onde a ética e a medicina se encontram, lembrareiao leitor tais questões como o controle da natalidade, oaborto, o suicídio e a eutanásia como apenas alguns pou-cos pontos das principais áreas da atual controvérsiaético-médica.

A psiquiatria está muito mais ligada aos problemas daética do que a medicina. Uso a palavra "psiquiatria" aquipara referir-me àquela disciplina contemporânea que estáenvolvida com os problemas da vida (e não com as doen-ças cerebrais, que são problemas para a neurologia). Os

TEORIAS BIOFíSICAS

problemas na relação humana podem ser analisados, inter-pretados e dados' significados apenas dentro de contextossociais e éticos. Conseqüentemente, sefaz uma diferença- os argumentos em contrário não resistem - quais sejamas orientações sócio-éticas do psiquiatra; porque estas in-fluenciarão suas idéias sobre o que está errado com o pa-ciente, o que merece observação ou interpretação, em quedireções possíveis poderia ser desejada a mudança, eassim por diante. Mesmo na própria medicina, estes fato-res tomam parte, como por exemplo, nas divergentesorientações que os médicos, dependendo de suas afiliaçóesreligiosas, têm para tais coisas como o controle da natali-dade e o aborto terapêutico. Pode alguém realmente acre-ditar que as idéias de um psicoterapeuta em relação àcrença religiosa, escravidão ou outras questões sernelhan-tes não tomam parte alguma no seu trabalho prático? Seelas fazem uma diferença, o que concluímos disso? Nãoparece razoável que deveríamos ter terapias psiquiátricasdiferentes - cada uma expressamente reconhecida para asposições éticas que ela incorpora - digamos, para católi-cos e judeus, pessoas religiosas e agnósticas, democratas ecomunistas, brancos supremacistas e negros, e assim pordiante? Certamente, se olharmos como a psiquiatria é pra-ticada hoje (especialmente nos Estados Unidos), descobri-remos que as pessoas procuram a ajuda psiquiátrica deacordo com o seu "status" social e suas convicções éticas(Hollingshead and Redlich, 1958).Isto realmente não nos de-veria surpreender mais do que ouvirmos dizer que católi-cos praticantes raramente freqüentam clínicas de controleda natalidade.

A posição anterior que sustenta que os psicoterapeutascontemporâneos lidam com os problemas da vida, ;"0 invésde lidarem com doenças-mentais e suas curas, se opõem àopinião que predomina atualmente, de acordo com a qualadoença mental é tão "real" e "objetiva" quanto a doençacorporal. Esta é uma opinião confusa desde que não sejanunca conhecido o que se entende por tais palavras como"real" e "objetiva". Suspeito, entretanto, que o que éplanejado pelos patrocinadores desta opinião é criar a idéiana mente popular de que a doença mental é alguma espéciede entidade mórbida, tal como uma infecção ou uma ma-lignidade. Se isto fosse verdade, poder-se-ia apanhar oupegar uma "doença mental", poder-se-ia tê-Ia ou abrigá-Ia, transmiti-Ia dOS outros e finalmente poder-se-ia livrar-sedela. Na minha opinião, não há nem um pouco de evidên-cia para sustentar esta idéia. Pelo contrário, toda a evidên-cia é para o outro aspecto, e sustenta a opinião de que oque as pessoas chamam atualmente de doenças mentaissão para a maior parte comunicações que expressam idéiasinaceitáveis muitas vezes dispostas em um idioma nãousual. O alcance deste ensaio não me permite mais do quemencionar esta abordagem teórica alternativa para esteproblema (Szasz, 1957c).

Este não é o lugar para considerar em detalhes as seme-lhanças e diferenças entre as doenças mentais e corporais.Para nós será 'suficiente enfatizar aqui apenas uma impor-tante diferença entre elas: a saber, que enquanto a doençacorporal refere-se a ocorrências públicas e fisioquímicas, anoção da doença mental é usada para codificar aconteci-mentos mais particulares, sociopsicológicos dos quais oobservador (diagnosticador) faz parte. Em outras palavras,o psiquiatra não permanece à parte do que ele observa,mas é nas palavras apropriadas de Harry Stack Sullivan,um "observador participante". Isto significa que ele estácomprometido com algum quadro do que ele considera arealidade - e com o que ele pensa que a sociedade consi-dera como realidade - e ele observa e julga o comporta-mento do paciente tendo em mente estas considerações.Isto aproxima-se da nossa observação anterior de que a

Page 4: 9. Mito da Doença Mental › pluginfile.php › 2148566...doenças mentais são deste tipo. Éfeita a suposição de que que é mais interessante - devem ser 'procuradas em dife-algum

AVALIAÇÃO CRiTICA

noção do próprio sintoma mental implica em uma compa-ração entre o observador e o observado, o psiquiatra e opaciente. Isto é tão óbvio que eu posso ser acusado dee~tar ridicularizando trivialidades. Deixem-me, portanto,dizer mais 'uma vez que a minha intenção ao apresentaresta argumentação foi expressamente de criticar e de veri-ficar a tendência contemporânea predominante de negar osaspectos legais da psiquiatria (e da psicoterapia) e desubstituí-Ias por considerações médicas presumivelmentelivres de valores. A psicoterapia, por exemplo, está sendoamplamente praticada como se ela não trouxesse nadaalém do que o restabelecimento do paciente de um estadode doença mental para um de saúde mental. Enquanto égeralmente aceito que a doença mental tem alguma coisa aver com as relações sociais (ou interpessoais) do homem, éparadoxalmente afirmado que os problemas ou valores(isto é, da ética) não aparecem neste processo." Entre-tanto, em um sentido, muito da psicoterapia deve girar emvolta da elucidação e da ponderação dos objetivos e dosvalores - muitos dos quais podem ser mutuamente con-traditórios - e os meios pelos quais eles podem ser me-lhor harmonizados, realizados ou renunciados.

A diversidade dos valores humanos e dos métodos pormeio dos quais eles podem ser realizados é tão grande, emuitos deles permanecem tão irreconhecidos que eles nãopodem falhar mas levam a conflitos nas relações humanas.Na verdade, para dizer que as relações humanas em todosos níveis - da mãe à criança, do marido à esposa, denação para nação - são providas de pressão, tensão e de-sarmonia é mais uma vez tomar explícito o óbvio. No en-tanto, o que pode ser óbvio pode também ser pouco com-preendido. Acho que este é o caso. Por isso me parece que- ao menos nas nossas teorias do comportamento - fra-cassamos em aceitar o simples fato de que as relações hu-manas são inerentemente providas de dificuldades e quepara tomá-Ias até mesmo relativamente harmoniosas serequer muita paciência e um árduo trabalho. Alego que aidéia da doença mental está sendo atualmente posta a fun-cionar para ocultar certas dificuldades que no presentepodem ser inerentes - não que elas necessitem ser imutá-veis - nos intercâmbios sociais das pessoas. Se isto forverdade, o conceito funciona como um disfarce; pois aoinvés de chamar atenção para as necessidades humanasconflitantes, aspirações e valores, a noção da doença men-tal fornece uma "coisa" amoral e impessoal (uma"doença") como uma explicação para os problemas davida (Szasz, 1959). Podemos recordar com relação a issoque há não muito tempo eram as divindades e as bru-xas responsabilizadas pelos problemas do homem navida social. A crença na doença mental co o algo além doproblema do homem em dar-se bem com seu semelhante éa própria sucessora da crença na demonologia e na feitiça-ria. A doença mental existe ou é .. real", exatamente nomesmo sentido em que as bruxas existiram ou eram"reais" .

ESCOLHA, RESPONSABILIDADE E PSIQUIATRIA

Enquanto argumentei que as doenças mentais não exis-tem, eu obviamente não sugeri que as ocorrências sociais epsicológicas às quais este rótulo está sendo ligado tambémnão existe. Assim como os problemas sociais e pessoais

"Freud foi tão longe ao dizer que: "Eu considero a ética para ser tomadacomo garantia. Realmente eu nunca fiz uma coisa insignificante." (Jones,1957. pág. 247.) Isto seguramente é uma coisa estranha de dizer de alguém queestudou o homem como um ser social como o fez Freud. Menciono istoaqui p~a mostrar como a noção de "doença" (no caso da psicanálise. "psico-patologia", ou "doença mental") foi usada por Freud - e pela maioria deseus seguidores - como um meio de clarificar certas formas de comporta-mento humano como caindo dentro do alcance da medicina, e por isso (pordecreto} fora da ética!

61

que as pessoas tinham na Idade Média, elas são bastantereais. São os rótulos que damos a elas que nos interessa e,tendo-as rotulado o que fazemos? Embora eu não possaentrar em implicações ramificadas deste problema, nesteensaio, é importante notar que uma concepção demonoló-gica dos problemas da vida deu origem à terapia em linhasteóricas. Hoje, a crença na doença mental implica - maisainda, exige - uma terapia em linhas médicas ou psicote-rapêuticas.

O que está implicado nesta linha de pensamento apre-sentado aqui é algo completamente diferente. Não ten-ciono propor uma nova concepção da "doença psiquiá-trica" nem uma nova forma de "terapia". A minha inten-ção é mais modesta e também mais ambiciosa. Ela é a desugerir que os fenômenos atualmente chamados de doen-ças mentais sejam revistos de uma maneira mais simples,que eles sejam removidos da categoria das doenças, e quesejam considerados como as expressões da luta do homemcontra o problema de como ele deveria viver. O últimoproblema mencionado é obviamente amplo, a sua anormi-dade refletindo não apenas a incapacidade do homem de-enfrentar o seu meio ambiente, mas ainda a sua crescenteauto-reflexão.

Por problemas na vida, me refiro então àquela reaçãoem cadeia verdadeiramente explosiva que começa com aqueda do homem da graça divina por comer do fruto daárvore do conhecimento. A consciência do homem de simesmo e do mundo à sua volta parece ser uma consciênciaem expansão constante, trazendo no seu despertar umacarga de compreensão jamais tão grande (uma expressãotomada emprestada de Susanne Langer, 1953). Esta carga,então, é para ser aguar-lado e não deve ser mal interpre-tada. Os nossos meios apenas racionais para esclarecê-Ia émais uma ação apropriada e compreensiva, baseada em talcompreensão. A principal alternati .•a consiste em agircomo se a carga não fosse o que de fato percebemos sere se refugiasse em uma visão teórica do homem antiquada.Na visão mais recente, o homem não adapta a sua vida emuito do mundo a seu redor, mas simplesmente sobreviveo seu destino em um mundo criado por seus superiores.Isto deve levar logicamente a alegar a irresponsabilidadeface a semelhantes problemas e dificuldades inexcrutáveis.No entanto, se o homem falha em tomar responsabilidadescrescentes por suas ações, individual ou coletivamente,parece improvável que algum poder ou seres superioresencarregariam-se desta tarefa e levariam esta carga paraeles. Além disso, este parece dificilmente o tempo apro-priado na história humana para obscurecer a questão daresponsabilidade do homem pelas suas ações, ocultando-aatrás da saia de uma concepção toda explicativa da doençamental.

CONCLUSÓES

Tentei mostrar que a noção da doença mental sobrevi-veu a todas as utilidades que ela poderia ter tido e queagora funciona simplesmente como um mito conveniente.Como tal, ela é uma herdeira verdadeira dos mitos religio-sos em geral, e da crença na feitiçaria em particular; opapel de todos estes sistemas de crenças tem sido o deagir como tranqiiilizador social, assim encorajando aesperança de que a vitória de certos problemas específicospossa ser alcançada por meio de operações (simbólicos -mágicas) substitutivas. A noção da doença mental assimserve principalmente para obscurecer o fato diário de quea vida para a maioria das pessoas é uma luta contínua, nãopela sobrevivência biológica, mas para um "lugar ao sol",para a "paz de espírito", ou algum outro valor humano.Para o homem cônscio de si mesmo e do mundo a sua

Page 5: 9. Mito da Doença Mental › pluginfile.php › 2148566...doenças mentais são deste tipo. Éfeita a suposição de que que é mais interessante - devem ser 'procuradas em dife-algum

62

volta tendo sido mais ou menos satisfeitas as necessidadesde preservar o corpo (e talvez a raça) surge o problema deo que ele deveria fazer para ele mesmo. A adesão mantidaao mito da doença mental permite às pessoas que evitemencarar este problema, acreditando que a saúde mental,concebida como a ausência da doença mental, automati-camente garante a tomada de opções certas e seguras nadireção da própria vida. Mas os fatos ocorrem. todos deuma outra maneira. É a tomada de boas opções na vidaque os outros consideram retrospectivamente como saúdemental!

O mito da doença mental nos encoraja, além disso, aacreditar no seu corolário lógico: que o intercâmbio socialseria harmonioso, satisfatório, e a base segura de uma"boa vida" se não fosse pelas influências destruidoras dadoença mental ou da "psicopatologia". A potencialidadepara a felicidade humana universal, ao menos dessa forma,parece-me um outro exemplo do tipo de fantasia "eu-queria-que-isto-fosse-verdade". Eu acredito que a felici-dade humana ou o bem-estar em uma larga escala até agorainconcebível e não apenas para alguns poucos seleciona-dos, é possível. Este objetivo poderia só ser alcançado,

Hollingshead, A. H., and Redlich, F. C. Socialc/ass and mental illness. New York: Wiley,/958.

Jones, E. The life and work of Sigmund Freud.Vol. IJI. New York: Basic Books. 1957.

Langer, S. K. Philosophy in a new key. NewYork: Mentor Books, 1953.

Peters, R. S. The concept of motivation. London:Routledge & Kegan Paul, 1958.

Szasz, T. S. Malingering: "Diagnosis" or socialcondemnation? AMA Areh Neuro/. Psychiat.,1956,76, 432-443.

TEORIAS BIOFíSICAS

entretanto, a custa de muitos homens, e não apenas unspoucos dispostos e capazes de resolver os seus conflitospessoais, sociais e éticos. Isto significa ter a coragem e aintegridade de ir à frente de batalhas travadas em frentesfalsas, encontrando soluções para os problemas substitutos- por exemplo, lutando a batalha da acidez do estômagocontra a fadiga crônica ao invés de encarar um conflitoconjugal.

Os nossos adversários não são demônios, bruxas, destinoou a doença mental. Nós não temos nenhum inimigocontra o qual não possamos lutar, exorcizar ou dispersarpela "cura". O que temos são problemas na vida -sejam eles biológicos, econômicos, políticos ou sócio-psico-lógicos. Neste ensaio estive interessado apenas com osproblemas da última categoria mencionada, e dentro destegrupo principalmente aqueles pertencentes aos valoresmorais. O campo ao qual a psiquiatria moderna se divide évasto, e não fiz nenhum esforço para abrangê-lo total-mente. O meu argumento foi limitado à proposição de quea doença mental é um mito, cuja função é ocultar e assimtomar mais saborosa a pílula amarga dos conflitos moraisdas relações humanas.

Referências

Szasz, T. S. Pain and pleasure; A study of bodilyfeelings, New York: Basic Books, 1957. (a)

Szasz, T. S. The prob1em of psychiatric nosol-ogy:· A contribution to a situational anal-ysis of psychiatric operations. Amer. J. Psy-chiat., 1957,1/4,405-413. (b)

Szasz, T. S. On the theory of psychoanalytictreatment. lnt . J. Psycho-Anal., 1957, 38,166-182. (c)

Szasz, T. S. Psychiatry, ethics and the criminallaw. Columbia Law Rev., 1958, 58, 183-198.

Szasz, T. S. Moral conflict and psychiatry, YaleRev., 1959, in press.