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Universidade h ... Apresenta .. iio de Machado de Assis - /. Teixeira A literatura hispano-americana - J. Jose/ A civiliza .. iio helenistica - P. Petit A literatum grega - F. Robert A religiio grega -F. Robert A psicologia social - J. Maisonneuve 0 inconsciente - 1.-C. Filloux A critica literlioria - P. Brnnel, D. Madetenat, J.-M. Gliksohn e D. Couty Sociologia do direito - JJ. Lby-Brnhf As teorias da personaJidade - S. Clapier- Valladon Literatura brasileira - L. Stegagno Picchio A critica de arte - A. Richard As primeiras civiliza-;Oes do Mediterriineo - J. Gabriel- Leroux A economia dos Estados Unidos - P. George A idCia de cultura - V. Hell Hist6ria da educa ..iio - R. Gal Hist6ria dos Estados Unidos - R. Remond Em prepara¢o As empresas japonl!SSS - M. Y oshimori Descartes - G. Pascal Os celtas - V. Kruta Universidade hoje HISTORIA DOS ESTADOS UNIDOS ReneRemond Martins Fontes

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Universidade h ...

Apresenta .. iio de Machado de Assis - /. Teixeira A literatura hispano-americana - J. Jose/

A civiliza .. iio helenistica - P. Petit A literatum grega - F. Robert A religiio grega -F. Robert A psicologia social - J. Maisonneuve 0 inconsciente - 1.-C. Filloux A critica literlioria - P. Brnnel, D. Madetenat, J.-M. Gliksohn e D. Couty Sociologia do direito - JJ. Lby-Brnhf As teorias da personaJidade - S. Clapier- Valladon Literatura brasileira - L. Stegagno Picchio A critica de arte - A. Richard As primeiras civiliza-;Oes do Mediterriineo - J. Gabriel-Leroux A economia dos Estados Unidos - P. George A idCia de cultura - V. Hell Hist6ria da educa .. iio - R. Gal Hist6ria dos Estados Unidos - R. Remond

Em prepara¢o

As empresas japonl!SSS - M. Y oshimori Descartes - G. Pascal Os celtas - V. Kruta

Universidade hoje

HISTORIA DOS ESTADOS UNIDOS

ReneRemond

Martins Fontes

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Titulo original: HISTOIRE DES ET ATS-UNIS Publicado por: Presses Universitaires de France Copyright © Presses Universitaires de France, 1959 Copyright© Livraria Martins Fontes Editora Ltda., para esta tradU!;ao

1 :' edit;iio brasileira: agosto de 1989

Tradur;tio: Alvaro Cabral Revisiio da tradut;iio: Mitsue Morissawa Revisiio tipogrdjica: Mauricio Balthazar Leal e Claudia Cavicchia

Produt;iio grdjica: Geraldo Alves Composit;iio: Artel - Artes Graficas

Capa - Projeto: MF Arte-jinal: Moacir K. Matsusaki

Daooo da Catologooio .. P""Uooolo (CIPJ !ototnoo!onol (Cim"'a til>oollol•o do u,.o, $P, S.ool~

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Todos os direitos para a lfngua portuguesa reservados il LIVRARIA MARTINS FONTES EDITORA L TDA. Rua Conselheiro Ramalho, 330/340- Tel.: 239-3677 01325 - Sao Paulo - SP - Brasil

fndice

CAPITULO I - As primeiras coiOnias (1607-1763) Analogias e pontos comuns. 9

CAPITULO II - A lndependencia (1763-1783) .. I. As causas do rornpimento, 15

11. A Guerra de lndependencia, 21

CAPITULO III - A Conslitui.;iio dos Eslados Unidos .......................................................... .

L Da fragmenta{,:iio it unidade- E pluribus unum, 25 Jl. 0 nascimemo dm partidos. 31

CAPITULO IV - 0 Oesle e a democracia americana .................................... .

Uma nova socicdadc, 50

CAPITULO V - A escravalura e a Guerra de Secessao ....

CAPITULO VI - lnduslrialismo e democracia .....

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CAPiTULO VII - lsolacionismo e imperialismo ... 85

CAPITULO VIII - 0 New Deale a responsabilidade mundial ........................... .............................. 97

CAPITULO IX - A superpolencia: de Truman a Reagan ........................................................... 115

Bibliografia sumdria ................. . 127

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CAPITULO I

As primeiras colonias (1607-1763)

Lugar e heram;a da era colonial- Essa primeira fase da hist6ria do povoamento europeu do territ6rio dos Esta­dos Unidos de hoje, chamada de periodo colonial, muito provavelmente pareceni aos contemponlneos do presidente Reagan e da conquista do espa~o tao distante da realidade presente do pals quanta a Atenas de Pericles esta na Gn!cia mode rna. Se ela j:i niio tern para n6s outro interesse ail~m dos possiveis atrativos do exotismo ou do pitoresco de seus David Crockett e hist6rias de indios, sera de fato conve­niente desviar algumas destas p3.ginas, que poderiio fazer falta quando da descri«;:iio dos Estados Unidos de hoje, para falar do que, em Ultima instlincia, e apenas a sua pre-his­t6ria? Ceder a tal escnipulo seria, no entanto, subestimar a import:incia desse perfodo em si mesmo e na seqUencia da hist6ria.

Sua dura~iio e aproximadamente a mesma de toda a existencia dos Estaaos Unidos como sociedade politica or­ganizada. Desde a funda~iio de Jamestown, a mais antiga colOnia anglo-saxdnica do Novo Mundo (1607), ate a Decla­ra~ao de Independencia (1776), transcorreram exatamente tantos anos quanta desta Ultima data ate o fim da Segunda Guerra Mundial (1945). Colocando esse mesmo dado fun­damental em outros termos, a constitui(_;iiO das col6nias divi­de a hist6ria dessa regiiio do globo em dois perfodos iguais, o primeiro dos quais e o colonial, por vezes injustamente negligenciado. Seu conhecimento e importante para o da hist6ria dos Estados Unidos propriamente dita, ainda sob urn outro aspecto: ele a prenuncia. 0 pais recebeu desse perfodo o legado de uma popul3(_;3o, de uma sociedade, de uma economia, de uma mentalidade, de uma parte de suas institui(_;()es politicas, de suas tradi~es jurfdicas e insti­tui(_;Oes judici3.rias, e tambem de alguns de seus problemas,

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como a quest<io do negro. Impassive! compreender o desen­volvimento da arvore sem se observar primeiro a semente lam;:ada a terrae suas primeiras genninaif6es.

Ocuparlio tardia - A parte do litoral americana que se estende aproximadamente da bafa de Fundy, ao norte, ate a foz do rio Savannah, ao sui, futuro be~o da grandeza americana, ingressou com atraso na hist6ria da coloniza«;<io europeia do Novo Continente, muito depois da America Centrale Meridional, e mesmo depois do vale do Sao Lou­ren«;o. Entre o Canada, reconhecido pelos france~s desde me ados do seculo XVI, e a FlOrida, anexada pelos espanh6is a seu vasto imperio, a localizaifao dos futuros Estados Uni­dos lembra a de urn sftio desprezado. Para esse prolongado desfavor existiam causas naturais: o clima ora glacial ora sufocante; uma costa geralmente in6spita, pantanosa e cor­tada por Iagunas ao sui, rochosa e juncada de arrecifes ao norte, nao propiciando a penetra~.rao para o interior nenhu­ma via companivel ao sao LoureO!fO ou ao Mississipi; enfim, uma floresta densa e cerrada. A regi3o tampouco possuia o que atraia ent<io os exploradores: especiarias ou metais preciosos. Seria necessaria, para acoloniza!f<io, que homens fossem levados para Ia por outros interesses que mio os me­ramente mercantis ou porque as outras regi6es jli estivessem ocupadas.

Efetivamente, os prim6rdios da coloniza«;<io coincidi­ram com a entrada em cena de uma nova potencia colonial: a lnglaterra. Nessa parte do mundo, como em todas as ou­tras, os ingleses chegaram por Ultimo, muito depois dos por­tugueses e dos espanh6is, e mesmo ap6s os franceses: sua voca«;<io colonial desenhou-se tardiamente, no reinado de Elizabeth. Suas primeiras colOnias tern, com uma diferen«;a de escassos vinte anos, a mesma antigiiidade no norte e no sui: sir Walter Raleigh desembarcou na Virgfnia no final do seculo XVI, e foi em 1620 que os 120 peregrinos, chega­dos das Provfncias Unidas a bordo do famoso Mayflower, desembarcaram perto de Cape Cod e fonnaram o embriao de Massachusetts. 0 que n<io se esperava era que, tendo largado com atraso na corrida as colOnias, desfavorecidos

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sob todos os aspectos, eles levariam a melhor sabre seus concorrentes. Durante o seculo XVII, mediante guerra ou negocia.y<io, os ingleses eliminaram urn ap6s outro os encla­ves, vestigios de coloniza«;<io estrangeira: holandeses na de­sembocadura do Hudson, suecos nas margens do Delaware. No final desse seculo, a Gr<i-Bretanha era senhora de toda a costa. Esse exito imprevisfvel explica-se em parte pela vitalidade do povoamento, suas qualidades naturais, sua po­tencia numerica tam bern.

Um povoamento variado - 0 povoamento foi muito variado sob todos os aspectos. Numa composi!f<lo etnica he­terogenea, o nUdeo principal contou com ingleses, escoce­ses e galeses, mas chegaram tambem imigrantes das Provin­cias Unidas, da Suecia, da Alemanha, da prOpria Fran~Ya. pois a revoga«;<io do Edito de Nantes, em 1685, gerou uma corrente de emigra«;ao protestante para a America. A diver­sidade de opiniOes politicas e de cren«;as religiosas nao era menor. Todos os que fugiam ao dominio de uma facif30 rival ou tinham raz6es para temer por sua te desembarcavam nas margens do Potomac ou do Hudson. A hist6ria politica e religiosa inglesa do seculo XVII inscreve-se assim, por via de conseqiiencia, na do povoamento americana: todas as perturba«;Oes de urn periodo particularmente tertii em agita«;6es de mUitipla ordem concorreram para engrossar a corrente de emigra!f<io. Ap6s os dissidentes perseguidos pela rea«;ao anglicana, chegaram os cavaleiros, aristocratas e realistas ca«;ados pelos "cabe~YaS redondas", depois os pu­ritanos, banidos pela Restaura~ao, e os jacobitas, que prefe· riram expatriar-se a reconhecer o usurpador. As vicissitudes dram<iticas da hist6ria inglesa intema acarretaram efeitos beneficos para a coloniza«;<io britlinica. Essa emigra~Y<iO teve urn car:iter especifico que deixou uma marca indelevel na mentalidade americana. Puritanos ou cat61icos, os emigra­dos obedeceram a considera~YOeS religiosas: colocaram a li­berdade de crer e de praticar seu culto acima das vantagens de carreira e de seu bem-estar pessoal.

Formado com o tempo de sucessivas contribui¢es hu­manas, o povoamento do litoral atllintico dos futuros Esta-

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dos Unidos tambem foi descontinuo no espa~o: compu­nha-se de coiOnias disseminadas de Ionge em Ionge, geral­mente na foz de urn rio, nas margens de alguma baia. Esses nUcleos populacionais, no come~o bastante modes­tos, estendidos de norte a sui desde a fronteira canadense ate os confins da FlOrida espanhola, ao Iongo de quase 2.000 km, separados uns dos outros por intervalos que a coloniza~ao ainda nao arrancara a floresta, a savana ou aos indios, tornaram-se pouco a pouco o centro de outras tantas col6nias independentes entre si, as quais tinham Londres por capital co mum.

Tr€s grupos de col6nias- Ao crescerem, essas co!Onias individualizavam-se, sua originalidade adquiria contomos mais precisos. Esbo~aram-se tres grupos principais, diferen­ciados em suas atividades produtivas, em suas formas de sociedade politica, e ate mesmo em seu estilo se vida. Basta­ria o clima para tom:i-las diferentes: m1o se espalhavam elas ao Iongo de 15° de latitude? As demais condi~Oes naturais tambem concorreram para tal diferencia~ao. 0 constraste mais acentuado opunha o grupo mais setentrional ao das co!Onias meridionais e seria de extrema import:incia para o futuro, pois trazia consigo o germe do antagonismo entre o Norte eo Sui, cuja exacerba'<ao levou a Guerra de Se­cess:io.

0 grupo daN ova lnglaterra-No s6culo XVIII, a Nova lnglaterra, que agrupava quatro col6nias de dimensOes desi­guais - New Hampshire, Massachusetts, Connecticut e Rhode Island -, apresentava ja uma economia com urn grau relativamente elevado de complexidade: alem da agri­culturae da pecu<iria, havia a pesca, o comercio, urn come~o de indUstria. 0 litoral rochoso, profusamente recortado, propiciava a cria~iio de uma quanti dade de boos portos natu­rais; a proximidade das florestas facilitava aos estaleiros na­vais o fomecimento da madeira necessaria; tripula'<Oes bern treinadas partiarn todos os anos para proveitosas campanhas de pesca do bacalhau, nos cardumes da Terra Nova, ou,

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para mais Ionge, atnis das baleias. Zarpando de Newport ou de Portsmouth, os navias iam ate as Antilhas, on de carre­gavam, infringindoo pactocolonial, o rum, o mela~o e todos os produtos das ilhas. Enfim, pequenas oficinas tinham se fixado junto aos numerosos cursos fluviais que desciam das montanhas e planaltos do interior: eram moinhos, usinas de a~Ucar, f<ibricas de papel, serrarias, que transformavam sumariamente os produtos da terra ou as contribui~Oes do comercio. A combina~ao dessas atividades variadas gerava trabalho e proporcionava apreciaveis lucros a uma popu­la~<io empreendedora, acostumada a ver no trabalho uma razao de vida e urn dever, e no sucesso material, consagrado pela riqueza, urn sinal de benevolencia divina.

Povoadas em sua maioria por puritanos, essas colOnias foram aquelas em que o car<iter religioso era mais acentuado e imprimira mais profundamente sua marca na fisionomia morale na vida pUblica. Esses homens, que preferiram ex­patriar-se e correr os perigos de uma travessia perigosa a transigir com as imposi'<Oes do principe ou a admitir acomo­da!_<Oes com a Igreja estabelecida, estavam determinados a viver em conformidade com sua f6 e a guiar por ela a vida de suas pequenas comunidades. A religi<io governava ai nao s6 a vida privada, familiar, mas tambem a vida pUbli­ca. Nada mais distante do ideal de tolef<incia universal defi­nido por Franklin e Jefferson do que essas sociedades primi­tivas, ciosamente devotadas a unidade da fe, perseguindo quem nao pensasse como a coletividade com o mesmo zelo eo mesmo vigor dos que os haviam perseguido antes. Nessa mentalidade, Estado e Igreja encontravam-se estreitamente unidos, e quem quer que se afastasse da lgreja excluia-se ipso facto da sociedade civil. A intolenincia estendeu-se das cren~as aos costumes, arrogando-se a comunidade o direito de zelar pel a estrita observ:incia das leis de Deus e da Igreja: urn a regulamenta~<io minuciosa ( o C6digo Azul) instaurou uma ordem moral rigorosa; os contraventores eram punidos impiedosamente: era aepoca da ca~a as bruxas. Essa repres­s:io religiosa e moral difundiu em toda a sociedade urn sem­blante de austeridade: os mais inocentes divertimentos pare­ciam suspeitos; o tempo devia ser todo ele dedicado ao tra-

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balho e aos grandes deveres da existCncia. A religi<io presi­dia ate as atividades intelectuais, que nasceram na Nova lnglaterra mais cedo do que em qualquer outra parte. A atividade econ6mica, a busca do lucro, mlo fariam mal a vida do espirito: foi hi que se fundaram os primeiros co\e­gios, embri6es das futuras universidades do Leste: a Har­vard e de 1636. Nocome.yo, eram institui~6escom finsessen­cialmente religiosos: serviam a formac;ao dos futuros minis­tros. Essa marca deixada pela religiao nos primeiros estabe­lecimentos de ensino nao desapareceu inteiramente dos Es­tadoS Unidos: mesmo sua politica externa inspira-se com freqUCncia, em seu moralismo, nas mesmas considerac;6es que regiam essas pequenas comunidades.

A religiao exerceu influCncia tambem sobre a vida poli­tica. Esses nao-confonnistas abra.yaram em geral seitas deri­vadas da Refonna calvinista. Dispensavam a existencia de urn episcopado; seus ministros dependiam dos not<iveis da comunidade; suas pequenas igrejas estavam habituadas a administrar-se livremente. Os habitantes transferiam para suas vidas de cidadaos seus habitos de fieis; discutiam entre si os interesses do burgo, tal como deliberavam em comum sobre os da Igreja. Esse pacto celebrado pelos passageiros do Mayjlo~er jli estipulava expressamente a subordina~o das preferCncias pessoais aos interesses da comunidade. As­sim, as cren~as religiosas, a disciplina eclesi<istica, adaptan­do inconscientemente pr<iticas democdticas, orientaram a sociedade da Nova Inglaterra para uma democracia de fato. Nos agrupamentos que se constituiam em redor dos portos, nas encruzilhadas das estradas, nas proximidades de peque­nas oficinas, nos mercados rurais, desenvolvia-se a vida mu­nicipal.

Atividade econ6mica diferenciada e lucrativa, indole religiosa, pr<iticademocr<itica, tradic;ao intelectual, todas es­sas caracteristicas da Nova Inglaterra consubstanciaram-se numa cidade: Boston, que contava com cerca de 20 mil habi­tantes em me ados do seculo XVIII. Setentrional demais pa­ra poder pretender mais tarde guindar-se a categoria de ca­pital dos Estados Unidos, Boston constituia plenamente a metr6pole da Nova Inglaterra. cuja fisionomia moral ex-

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pressava. Foi uma das primciras cidades a pegar em armas pel a independCncia.

0 grupo do Sui- Em tudo distinto foi o tipo de socie­dade constituido pelas cinco col6nias meridionais, na outra extremidade. Do norte para o sui, eram elas: Maryland, assim batizada em homenagem a Virgem Maria pelos cat6-licos de Lorde Baltimore; a Virginia, que recebeu esse nome de sir Walter Raleigh, desejoso de fazer uma cortesia a sua soberana, Elizabeth I, a "Rainha Virgem"; as duas Caroli­nas, do Norte e do Sui; e a GeOrgia, uma das Ultimas co\6-nias fundadas, honrando a George I, rei da Inglaterra desde 1714. A superficie media de cada uma dessas col6nias era nitidamente superior a das co16nias mais setentrionais, sem que por isso fossem mais povoadas; pelo contr<i~io, elas apresentavam uma densidade mais fraca, raras ctd.ades e alguns portos pouco ativos. lsso deveu-se ao fato de vtverem quase exclusivamente da terra. Adotaram uma forma de ocupac;ao e explorac;ao do solo muito diferente da que se verificou na Nova Inglaterra, mais concentrada e mais ex­tensiva: a plantation, com a ajuda da miio-de-obra negra importada da Africa e que o tratico negreiro renovava e aumentava continuamente. A partir do seculo XVIII, os negros eram ai mais numerosos do que os brancos •. e. havia mais escravos do que homens livres. Na falta de atiVIdades complementares, toda a vida dessas co16nias e sua riqueza dependiam da colheita de alguns produtos adaptados ao eli­rna quente e !imido - tabaco, arroz, indigo, mais tarde o algodao, cultivados em grandes extens6es. Produzindo mais do que o necesstirio para consumo interno, os planta­dores tinham de vender para o exterior: sua dependencia natural em relac;ao as condi~6es atmosfericas e refo~c;ada pela dependencia comercial em relac;ao aos compradores. AI genninava a fraqueza da economia, enqu~nto a escr~va­tura tomava a sociedade vulnerlivel. Essa SOctedade, ansto­cr<itica em seus fundamentos e em seus gostos, era o mais diferente possivel das sociedades democniticas da ~ova 1~­glaterra: acima da massa de escravos reinava uma ohgar~ma de plantadores que tinha a propriedade da terra, faZJ.a-se

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representar nas assembleias e governava a co16nia. Entre escravos e oligarcas, havia poucos elementos intennedi<i­rios. Culta, requintada, essa classe que descendia em parte de cavaleiros e levava urn a existencia de nobreza rural, transplantou para a America as maneiras de viver da aristo­cracia europeia. Nessa sociedade hospitaleira que adorava receber, que vivia prodigamente, que atribuia menos valor ao dinheiro do que ao uso que se podia fazer dele, a Europa era mais transparente do que nos burgueses da Nova Ingla­terra e como que reencontrava nela urn peda'SQ de si mesma.

0 grupo intermeditirio - Por muito distintos que fos­sem esses dois grupos de col6nias, suas diferen~as nao susci­taram nenhum problema no seculo XVIII; etas nao faziam parte de urn con junto, de urn todo comum; estavam simples­mente justapostas. Nenhuma institui~o comum conferia efeito jurfdico a analogia de seus generos de vida ou de suas atividades: a autonomia de carla co16nia era total. A rela~ao entre a extensao e a popula~ao tornava impens<ivel urn conflito. Se faltavam interesses comuns, as co16nias tam­ponca alimentavam antagonismos. Por outro lado, esses dois grupos, aos quais atribuimos uma homogeneidade de que eles pr6prios nao tinham consciencia, estavam separa­dos urn do outro por v<irias centenas de quil6metros. Inter­pasta a eles havia urn terceiro grupo de quatro col6nias (Nova York, Nova Jersey, Delaware e Pensilviinia), que mio se assemelhava a nenhum dos dois, embora possuisse talvez mais trac;os em comum como primeiro. E a parte me­nos homogenea, em virtude de suas origens e de seu po­voamento: os vestigios da coloniza~ao holandesa (Nova York chamava-se originalmente Nova Amsterd:i) e da pre­sen~a sueca (no Delaware) conviviam com os imigrantes das Ilhas Britlinicas. A Pensilvlinia, uma col6nia muito origi­nal, que leva o nome de seu fundador, William Penn, foi povoada pelos quakers. Sua capital, Filadelfia, cujo nome exprime a virtude que os amigos tern por regra, era a maior e mais admirada cidade norte-americana: seu urbanismo era muito avan~ado, mesmo em compara~ao com a Europa. Contava com cerca de 30 mil habitantes, numa epoca em

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que urn burgo, com tres ou quatro vezes menos residentes, j;i fazia figura de pequena capital. A singularidade de seus ~ostumes, o tratamento informal, o uso constante de cha­peu, a simplicidade do vestu<irio, a beleza das jovens qua­kers, atrafam a curiosidade e edipsavam no espirito dos via­jantes qualidades menos estranhas: a reputac;ao de virtude, 0 escnipulo de honestidade nos neg6cios.que nao entravou seu sucesso comercial.

A diversidade do povoamento dessas col6nias permitia vaticinar que a imigrac;ao seria uma constante da hist6ria dos Estados Unidos. Sua posi~iio central, a meio caminho da Nova Inglaterra e do Sui, como no ponto de partida das principais vias de penetra<;ao para o Oeste, conferia-lhes uma posi~iio de arbitrio: foi a localiza<;ao destinada de ate­mao as capitais federais, a asilos provis6rios do Congresso continentale depois sede definitiva do govemo federal; foi tambem palco e alva dos combates ferozes entre nortistas e sulistas. Mas, de momenta, Norte e Sui sequer sonhavam combater-se.

Analogias e pontos comuns

Com essas diferen~as em sua economia, na composi~ao da sociedade enos costumes, as treze co16nias tinham entre si, no entanto, algum parentesco: as origens semelhantes, o povoamento, a dependencia comum da Coroa, certas tra­di~Oes polfticas, inclusive a do parlamentarismo britfulico, suas institui~Oes politicas. Eram dotadas de constitui~Oes: a primeira foi redigida para a Virginia em 1609. Sob formas juridicas variadas (co!Onias da Coroa, govemos proprieta­rios, co16nias com carta constitucional outorgada), em qua­se todas se encontravam mecanismos funcionando de ma­neira semelhante: urn govemador que representava a Co­roa, geralmente escolhido entre as familias mais antigas da col6nia, uma assembleia eleita pelos propriet<irios para re· presentar os colonos. Esbo«_<ava-se entre eles uma distribui­~ao de poderes de acordo com o modelo fomecido pela evolu~iio constitucional inglesa: era a assembleiaque votava

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o imposto e estava estabelecido que o govemador neces· sitava da anm!ncia deJa para levantar tributos. Nessas as· sembleias recrutadas numa sociedade bastante reMrita, abastada, culta, formava·se uma elite polftica, uma pnitica dos neg6cios ptlblicos, uma maneira de pensar comum. Es· sas analogias, entretanto, niio eram suficientemente fortes para por si s6 inspirarem nas col6nias o sentimento de uma personalidade comum e de uma identidade de destino.

0 perigo indigena -A !uta contra os inimigos comuns teve muito mais exito: primeiro, o frances e o indio; em seguida, o ingles. 0 Continente, de fato, n.iio era absoluta· mente virgem. 0 indigena, que foi obstinadamente chama· do de "indio" em conseqiiencia do equfvoco geognifico ini· cia! dos primeiros descobridores, era o inimigo natural. Foi lutando contra ele que os primeiros colonos pisaram na terra americana: o exemplo de urn William Penn, que quis firmar urn contrato na forma da lei com os nativos e comprar-lhes o territ6rio, niio fez escola. Em seguida, as povoa~t6es man· tiveram-se em estado de alerta permanente, a fim de preve· nir contra·ofensivas amea~;adoras. A coabita~;iio das duas ra~;as era virtualmente impossfvel: seus modos de vida eram dessemelhantes demais: os indios, habituados a uma exis· tencia livre e aventureira, semin6mades, vivendo sobretudo da cal{a, procuravam o abrigo da floresta e tinham necessi· dade de grandes espalfOS. Os colo,nos, agricultores, sedent<i· rios, desmatavam e cultivavam. A medida que cresciam em mimero, iam penetrando cada vez mais no interior e repe· Iindo para mais Ionge as tribos. Com intervalos de acalmia e treguas sucedendo as grandes investidas, a guerra foi a forma de rela~;.iio normal entre antigos e novos americanos: e assim continuou sendo ate finais do seculo XIX. Essa pe· quena guerra, feita de emboscadas, escaramm;as, ataques de surpresa, deu a na~;iio americana a epopeia de que qual· quer hist6ria nacional necessita: essas Cruzadas encontra· ram sua Chanson de Roland. As peripecias dessa !uta de dais stculos c meio fomeceram o enredo para a maioria dos romances de Fenimore Cooper, ou seja, da literatura americana nascente, antes de inspirar incont<lveis westerns,

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revistas infantis e jogos de escoteiros. Mas, antes de conver· ter·se em mito, o perigo indigena foi, no seculo XVIII, uma realidade: as col6nias ainda estavam entiio espremidas entre o oceano e a floresta. Instaladas em toda uma extensiio de 2.000 km, elas niio dispunham de mais de algumas deze­nas de quil6metros para o interior. Suas cidades situavam-se a apenas alguns dias de marcha do "deserto". Felizmente, essa parte do continente americana estava Ionge de ser tao povoada de indigenas quanta a America espanhola. Mas os indios compensavam seu pequeno mimero com sua mobi· lidade e virtudes guerreiras: seus ardis e o que se dizia de sua ferocidade compuseram em tomo deles uma reputal{iio de horror e semearam o pavor.

0 cerco pelos franceses - A amea~;a indigena junta· va·se urn segundo perigo que a tomava ainda mais terrivel: o perigo frances. Tendo chegado tardiamente ao novo conti· nente, os britiinicos deixaram-se ultrapassar pelos espanh6is e franceses. Com os espanh6is, os colonos tinham muito poucos pontos de contesta~;ao. 0 mesmo n.iio ocorria com os sUditos do rei da Fran~;a. Estes encontravam-se estabele· cidos no Canada muito antes da instala~;iio dos primeiros colonos ingleses. Por muito tempo houvera bastante espa~;o vazio entre eles para impedir que as duas coloniza~;Oes tives· sem qualquer oportunidade de colisiio. A partir do seculo XVIII, entretanto, tornou·se inevit<ivel o conflito pela pos­se, justamente, de territ6rios desocupados. De urn !ado, os colonos ingleses, achando insuficiente o espa90 que ocu· pavam no litoral, extravasaram na dire~;iio do interior: pelo gosto da independencia ou pelo amor a aventura; para es· quivar-se, no Norte, as imposi~;Oes marais da Igreja e, no Sui, a autoridade dos propriet<lrios; porque a terra ia ficando escassa, os homens, imitando seus pais, davam as costas ao litoral, penetravam na dire~;.iio do Oeste, instalando·se ao Iongo dos vales, transpondo os desfiladeiros dos Alleghe· nies: suas vanguardas desembocavam e espraiavam-se nas vertentes opostas. Mas iam deparar os postos avan~ados franceses. Desde o final do seculo XVII, partindo de suas bases canadcnses, missiomlrios jesuftas ou recoletos e os

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negociantes de peles reconheceram pouco a pouco os Gran­des Lagos, os mananciais do Mississipi, desceram o grande rio ate a foz, penetraram em seus afluentes da margem es­qucrda e tomaram posse, em nome do rei da Fran~a. do imenso territ6rio que se estende da foz do Sao Louren~o a do Mississipi: a Luisiana. Urn imperio frances da America foi assim constituido, cujo area imenso, abrangendo milha­res de quil6metros, cercava por completo as treze col6nias, impedindo-Jhes totalmente a penetra~ao para o interior e amea~ando-as ate de serem jogadas no mar se persistissem em seus intentos. Para os colonos ingleses, eram seu futuro e sua prOpria existencia que estavam em jogo. Cada uma das duas potencias inimigas explorava as rivalidades entre tribos indigenas e a~ulava seus aliados peles-vennelhas con­tra o advers<i.rio. Entrecruzavam-se duas pollticas indigenas.

A ameara francesa e afastada - Na maratona a que se entregavam as duas na~Oes beligerantes pe\a posse de toda a America do Norte, os franceses levavam vantagem, aparentemente: tinham espa~.r0 e mobilidade. Mas outros dados eram mais decisivos para o futuro, monnente oS nu­mericos. Ao passo que os anglo-americanos se avizinhavam do milhao e meio concentrado num territ6rio relativamente apertado, eles mlo chegavam a uns 60 mil diluidos num espa­~o de dimens6es continentals. Alem disso, os colonos ingle­ses recebiam da metr6pole uma ajuda mais substancial do que eles: a Marinha brit<i.nica assegurava as comunica~Oes e interceptava os refon;os franceses. As col6nias inglesas tiravam proveito de cada guerra franco-brit<inica para me­lhorar suas posi~es: de conflito em conflito, o equilibria de for~as invertia-se em beneficia delas. Em 1748, os france­ses perderam os acessos do Sao Louren~o. de Terra Nova e da Ad.dia; viram-se ameac;:ados de, a todo momenta, se­rem isolados da Franr;a, com suas comunica¢es a merce das esquadras inimigas, cnquanto que eles pr6prios conti­nuavam cercando por terra as col6nias inglesas. Mas a Guer­ra dos Sete Anos p6s fim a essa situac;:ao inst<ivel: os france­ses sucumbiram diante da superioridade numerica do ad­vers<irio e perderam todas as suas posi¢es. 0 Canada pas-

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sou para a lnglaterra; a Luisiana, para a Espanha. 0 imperio frances da America estava liquidado. As col6nias inglesas estavam salvas, o futuro assegurado, o acesso ao Oeste foi­\hes reaberto. Nessa !uta contra os franceses e seus aliados indigenas, os colonos afirmaram sua for~a. suas miiicias ad­quiriram experiencia de guerra, seus oficiais distinguiram­se: urn deles, sobretudo, gozou daf em diante de uma repu­ta.;ao de bravura e sangue-frio: George Washington. Eles adquiriram, a\em disso, consciencia de uma certa comuni­dade de interesses. Afastados os inimigos tradicionais, a comunidade viria a afirmar-se de novo, ap6s tantas peripe­cias e incertezas, desta vez contra a metr6polc.

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CAPITULO II

A Independencia (1763-1783)

I. As causas do rompimento

A secessiio, conseqiiencia indireta da vit6ria sabre os fran­ceses- 1763: elimina~iio do perigo frances e vitOria comum da metr6pole e das col6nias. 1776: as col6nias rompem com a metr6pole. Treze anos separam os dais eventos. Nada, em 1763, pennitia prever uma evolU~;:iio nesse sentido: ninguem, entre os anglo-americanos, plane java e ainda menos desejava urn rompimento; e mesmo quando ele pareceu inevit8vel muitos hesitaram em consum3.-lo. E, no entanto, a indepen­dCncia das co!Onias resultou, sem dllvida, da vit6riacomum: por urn encadeamento de cam.as e efeitos em que os mal-en­tendidos desempenharam urn papel mais importante do que as vontades deliberadas. A diversidade dessas origens auto­riza uma certa diversidade de interpretar;;Oes, entre as quais os historiadores da Independencia escolheram aquelas que mais se harmonizavam com suas filosofias pessoais.

Primeira causa: essa mesma vit6ria, que de sllbito tor­non menos indispens:lvel o apoio da metr6pole. A principal raz<io, aos olhos dos colonos, da manutenr;;<io de tropas in­glesas em solo americana tinha assim desaparecido; eles consideravam-se em condir;;Oes, daf em diante, de promover sua prOpria defesa. Uma certa ciumeira opunha os milicia­nos aos regimentos do rei. Menos necessaria, portanto me­nos desejada, a presenr;;a inglesa parecia mais penosa. Ora, foi precisamente esse o momenta que a metr6pole escolheu para multiplicar as medidas vexat6rias e ineptas que lesavam os interesses das col6nias e feriam seu amor-pr6prio. Essas mcdidas foram impostas, em parte, pelas finanr;;as depaupe­radas em conseqiiencia da guerra; outro aspecto con juntural donde se depreende que a Independencia resultou indireta­mente da vit6ria.

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0 governo de Sua Majestadc considerava natural que as col6nias da America suportassem sua parcela das despe­sas cfetuadas principalmente no prOprio interesse delas. Ele dispunha-se, ao mesmo tempo, a repor em vigor o regime do pacta colonial e a fazer votar novas impastos. Essas duas ordens de medidas tenderam indiretamcnte a questionar de novo o status das relar;Oes entre a metr6pole e suas col6nias. 0 sistema de exclusividade, que proibia as col6nias comer­dar com outros pa(ses que mlo a metr6pole e as condenava a ter uma economia estritamente complementar da daquela, vinha de longa data apresentando brechas. 0 restabeleci­mento efetivo da aplicar;ao rigorosa desse estatuto trazia em seu bojo o germe da ruina de toda uma classe de nego­ciantes, armadores e. marinheiros que tinham baseado sua fortuna no comercio com as Antilhas francesas e espanho­las. Significava forr;<i-los a escolher entre os vinculos politi­cos com a Inglaterra e as rela~es comerciais com as ilhas, entre a fidelidade a Coroa e seus interesses. Nao obtiveram sequer as compensar;Oes que o Oeste teria podido oferecer­lhes: tendo combatido para expulsar os franceses, contavam que estes territ6rios lhes seriam concedidos. Ora, o governo de Londres, em parte para agradar a seus novos sUditos canadenses, decidiu reservll-los para estes e fech<i-los a pe­netrar;ao dos colonos americanos. 0 ressentimento que isso lhes causou contribuiu em muito para a alterar;ao de suas relar;Oes com as col6nias.

0 debate de principia- Os novos tributos, essencial­mente os impastos sabre o consumo, nao tiveram melhor acolhimento; alem de onerarem os colonos com encargos suplementares, tocavam num ponto de direito cuja discus­sao ocupou urn Iugar cada vez mais preponderante na cres­cente discord<incia entre os dois parceiros. 0 governo ing\Cs teria o direito de cobrar esses impastos? Uma interrogar;ao que envolvia o grande principia constitucional ing!Cs: ne­nhum novo impasto sem o consentimento dos representan­tes. As col6nias da America n:io seriam filhas da Gni-Bre­tanha se n:io estivessem prontas para mobilizar-se e, se nc­cess<irio, para bater-se pelo respeito a esse principia: de

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fato, elas nunca estiveram tao pr6ximas em espirito a sua metrOpole quanto no momenta em que optaram pela seces­sao. Na verdade, a discord<incia mlo envolvia o principio, que ninguem contestava, mas sua interpretar;ao: na circuns· t<incia, deram as col6nias seu consentimento ao voto do Par­lamento de Londres? Esta era a tese defendida pelo gover­no: o Parlamento representava todos os sllditos da Coroa. Mas os americanos nao entendiam assim: eles nao tinham rcpresentantes no Parlamento; somente suas assembh~ias coloniais estavam qualificadas para autorizar o impasto em nome deles. 0 ponto de vista do govemo londrino amear;ava o podcr de controle de que estas haviam gradualmente se apoderado: ap6s sua autonomia comercial, as co16nias viam agora amear;ada sua autonomia politica. Era, portanto, o con junto das relar;Qes entre metr6pole e col6nias que estava em vias de revisao, num sentido desfavodvel as col6nias. Esse debate de principia que alguns historiadores parecem considerar secund<irio e no qual pretendem ver apenas a mascara de uma competir;ao de interesses precipitou o surgi­mento, na America do Norte, de uma reflexao politica. Isso iria tam bern conduzir a secessao: incapazes de obter da Gra­Bretanha a aplicar;ao dos principios constitucionais ingleses, nao podendo ser totalmente ingleses, os colonos e seus des­cendentes preferinio ser apenas americanos.

As etapas do rompimento- S6 se chegaria a essa con­dusao depois de muitas incertezas e do fracasso de varias tentativas de conciliar;iio. De urn !ado e outro do Ati<'intico, a opini:io estava profundamente dividida. A causa ameri­cana tinha em Londres e ate nos Comuns defensares convic­tos, c, com freqiiencia, eloqU.entes: Edmund Burke justifi­cava em plena Parlamento as reivindicar;6es das col6nias. 0 governo real fez alternar as medidas rigorosas e as conces­s6es: em 1770, o Parlamento aceitou revogar quase todos os tributos que constitufam materia de litigio, com excer;ao do impasto sabre o cha. Mas esse gesto de boa vontade nao produziu o apaziguamento esperado, pais eximira-se de ceder no ponto principal: a questao de direito. Nada resguardava as col6nias contra o retorno de medidas seme-

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lhantes: clas continuavam dependentes da boa ou rna vonta­de do Parlamento de Londres, do arbitrio regia.

Por seu !ado, a maioria dos americanos estava Ionge de querer o rom pimento. Muitos manifestavam sua apreen­sao em face da possibilidade de ficarem s6s e nao acredi­tavam que as co!Onias pudessem prescindir do socorro brit:i­nico e, com mais fortes raz6es, que pudessem subtrair-se pela for~a a dominar.;ao inglesa. Nao se deve perder de vista que ainda n<i.o existia nenhum 6rg<i.o qualificado para falar em nome das col6nias reunidas, coordenar sua a~ao ou sim­plesmente capaz de adquirir conscit!ncia de seus interesses comuns. Solur.;ao temida, raramente dese jada, o rom pimen­to, entretanto, iria prevalecer. Por urn encadeamento em que o "rigor dos fatos" desempenhou urn papel tao decisivo quanta a vontade dos homens, a prova de forr.;a tomava-se de ano para ano uma eventualidade mais prov:lvel. Aconte­cimentos e opini<i.o pUblica reagiam reciprocamente: ex­traiam-se da situar.;ao conseqiit!ncias que na vespera ainda eram imprevisfveis e, pouco a pouco, os espfritos acostuma­vam-se a ideia de uma secessao que antes lhes parecera rematada loucura. A partir de 1773, uma sucess<io de inci­dentes, de gravidade crescente, ora inopinados, ora provo­carlos, forjariam a corrente em cuja extremidade se vislum­bravam a guerra e a independencia. Esses epis6dios consti­tuem os anais gloriosos da liberdade americana.

A 16 de dezembro de 1773, no porto de Boston, urn grupo de cinqiienta cidad<ios disfarr.;ados de indios subiu du­rante a noite a bordo dos navios da Companhia das fndias e lanr.;ou a <igua toda a carga. A passividade das autoridades locais foi uma demonstra~o de conivt!ncia. 0 govemo ingles decidiu responder a esse desafio com uma firmeza exemplar: cinco decretos arruinaram o comt!rcio de Boston e reduziram a zero as liberdades em Massachusetts. Londres queria que isso servisse de exemplo, mas tudo o que conseguiu foi preci­pitar o nascimento da solidariedade continental. As outras coi6nias colocaram-se ao !ado de Massachusetts. Dando conti­nuidade a uma ideia de Franklin, urn primeiro Congresso Con­tinental reuniu-se em Filadelfia, em setembro de 1774: no espirito daqueles que se intitulavam "delegados designados pelo born povo das col6nias", ainda estava fora de questao

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romper com a lnglaterra ou fonnar urn govemo com urn: trata­va-se somente de ponderar sabre os meios adequados para obter o reconhecimento de seus direitos pela negoci~ao.

Mas, nesse meio tempo, todos as elementos de urn dis­posilivo insurrecional cstavam sendo montadds pouco a pouco. Constituiam-se por toda a parte comites de corres­pondencia que formavam nas col6nias uma rede compacta; armas foram reunidas, as milicias treinavam. Improvisaram­se legislaturas revolucion<lrias. Duas col6nias estavam a tes­ta do movimento: Massachusetts e Virginia. A conjuri~o dessas duas coiOnias ricas e populosas teria para o futuro do movimento uma vantagem decisiva: limitado este a uma Unica regiiio, levaria a crer que se tratasse de urn caso de agita<;iio local; animado por col6nias que pertenciam uma a Nova Inglaterra e a outra ao grupo meridional, o movi­mento adquiria uma significa<;:io continental. Era urn pe­nhor de unidade futura. Bostonianos e virginianos conser­variam a preeminencia na Uniao durante mais de meio secu­lo, exatamente ate 1829, quando a elei~ao de Andrew Jack­son manifestaria a interven~<io de urn terceiro elemento: o Oeste. Pouco a pouco, os intransigentes suplantaram os conciliadores e apoderaram-se da dire~ao do movimento: esses patriotas eram geralmente radicais que esperavam, beneficiando-se da independencia, reconstruir a sociedade ~obre alicerces mais democr<lticos. Sua atividade expandiu­se: multiplicaram-se os panfletos, os jomais. A revolur.;<io americana foi a primeira na qual a imprensa desempenhou urn papel importante.

Em 18 de abril de 1775 ocorreu a fuzilaria de Lexington. 0 general ingles que comandava a guarni~B.o de Boston en­viou uma col una para apoderar-se de urn depOsito de armas e muni~6es instalado em Concord por urn comit€ insurre­cional. Os patriot as forarn i.mediatamente alertados: os fa­zcndeiros das vizinhan~as acodiam de todos os lados e, ern­boscados atnis das cercas, alvejavam os soldados ingleses. Foi o primeiro choque entre os redcoats* e os voluntarios

• Alcunha dos soldados ingleses. cujo unifonne inclu(a a caracte­ristica veste vermelha. (N. T.)

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americanos. Emerson disse que o ruldo dessa fuzilaria dera a volta a Terra. Dais meses depois, em Bunker Hill, as portas da pr6pria Boston, travou-se a primeira batalha em moldes convencionais: a infantaria inglesa, lanc;ando-se ao assalto de uma colina, onde os americanos estavam entrin­cheirados, perdeu urn milhar de homens (17 de junho de 1775).

A independencia reivindicada e proclamada - Entre essas duas refregas reuniu-se o segundo Congresso Conti­nental, que decidiu fonnar urn exercito continentale confiar o comando supremo a George Washington. Escolha deci­siva: a independencia americana, a confianc;a dos insurgen­tes no Cxito de sua causa, sua reputac;ao a\em dos mares, deveram mais ao desinteresse desse homem, as suas virtu des cfvicas e militares, do que a todo e qualquer outro fator. Dai em diante, a independencia estava adquirida nos fatos, mesmo antes de ser reivindicada. 0 movimento dos espiri­tos, a expressao na literatura somar-se-iam a realidade urn ano mais tarde, com a Declarat;ao de lndependCncia (4 de julho de 1776). Este texto, justamente famoso, cujo aniver­s!irio a repUblica americana comernora religiosamente ano ap6s ano, fundamentava no direito a insurreic;iio e enun­ciava urn sistema de valores aos quais se refeririam todas as gerac;6es de homens de Estado: ela forma ainda em nossos elias a base da filosofia politica do povo americana. Corn­p6e-se principalmente de uma recapitulac;ao das queixas das co!Onias contra a Inglaterra, mas rnarca tambem urna data da hist6ria universal: antes de Declarac;ao dos Direitos do Homem e do Cidadao, e pela primeira vez no rnundo, uma nac;ao proclamava solenemente urn certo mimero de princf­pios fundamentais sobre os quais de via repousar a existencia das sociedades politicas. Essa declarac;ao est:i na origem de dais movimentos hist6ricos. Por urn !ado, era a primeira vez que co16nias se emancipavam: a sublevac;ao americana anunciava, assim, por antecipac;<i.o, todos os movimentos de independencia colonial. Implantou no <imago da menta­lidade americana o reflexo anticolonialista. Nao devem os Estados Unidos sua existencia a recusa de depender de uma

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metr6pole? Por outro !ado, foi a origem da onda revolucio­miria que, reatada e ampliada pela Revoluc;ao Francesa, iria derrubar, urn ap6s outro, os regimes estabelecidos ate a Revoluc;<io Rossa de 1917: a Revoluc;<io Americana 6, si­multaneamente, a mae das revoluc;6es e dos movimentos de independencia.

11. A Guerra de Independtncia

Proclamada a independCncia, restava ainda conquis­t<i-la. Quase sete anos foram necess<irios para alcanc;ar esse objetivo: a Jonga durac;ao e uma caracteristica constante dessas guerras coloniais que pOem frente a frente exercitos regulares e tropas improvisadas, uma potCncia organizada e reconhecida e autoridades insurretas. Em soma, a empresa teve inicialmente urn car!iter alga desesperado: tudo ou qua­se tudo faltava aos insurretos. A guerra apresentava mtilti­plos problemas. Urn problema propriamente militar: os in­surgentes contavam apenas com urn exercito de milicia para combater as melhores tropas regulares da Europa. Alem disso, contra urn exercito profissional e permanente, esses milicianos nao passavam de voluntarios, metade soldados e metade agricultores, com urn olho em suas terras ou em seus neg6cios; s6 dependia deles continuar servindo na tro­pa ou p6r urn ponto final no alistamento e ir embora: na ausencia de urn princlpio.de disciplina, o comando via, em certos momentos, seus efetivos sumirem literalmente. Co­mo, em tais condit;Oes, executar urn plano de campanha? A esse ex6rcito, era imprescindivel dar coes<i.o, equip<i-lo, abasted-lo. Ora, as co16nias nao possulam indU.strias, eo Con­gresso Continental nao estava habilitado para criar impastos.

A alian~a francesa -Noma correlac;iio de forc;as tao desvantajosa-, a busca de aliados era uma necessidade impe­riosa. Contra a Inglaterra, os insurgentes s6 podiam diri­gir-se a outra potencia maritima da 6poca, a Franc;a: era aceitar por aliados aqueles mesmos contra os quais as colO­nias estavam combatendo havia quinze anos. Essa invers<io

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das alian~a~ mio amea~aria ressuscitar urn perigo que cle~ tinham feito tudo por afastar? Franklin foi o h<ibil nego­ciador dessa alian~a. cujo desenvolvimento se enquadra en­tre duas vit6rias: a capitulafYfiO em Saratoga (17 de outubro de 1777) de uma coluna inglesa em terreno plano e desco­berto, cercada pelas milicias. fez o govemo frances dcci­dir-sc a assinar o tratado de alianc;a; cinco ano~ depois, qua­se no mesmo dia (19 de outubro de 17H2). outra capitula~;Uo, desta vcz a de uma guarni~fio entrincheirada num forte em Yorktown, veio coroar as opcrac;6cs combinadas de terra e mar entre insurgentes e francescs. A Franc;a forneceu a America dinhciro. armas. urn corpo expedicion:irio, uma esquadra e a alianfYa espanhola.

0 aspecto mais dclicado da situa~iio talvcz fosse ainda o politico: para levantar urn exercito, contratar alianc;a~. subscrevcr empn!stimos, era indispens<ivel a existencia de uma autoridade polltica. Ora, as col6nias niio tinham gover­no; tampouco pretendiam te-Io. Os treze Estados entiio so­beranos eram por demais ciosos de sua recCm-adquirida in­dependencia pard aceitar o sacrificio de uma parte dcla, ainda que fosse para garantir sua conserva~fio. 0 Congres­so Continental, esse embrifio de governo central, mlo dispu­nha de nenhum poder cocrcivo para impor a execu~iio de suas decis6es: ele dependia em tudo da vontade dos tre.-:c Estados. Sua impotencia prolongou a durac;fio da guerra. Na ausencia de urn poder central, a autoridade pessoal de Washington supria o que lhe faltava de autoridade funcio­naL Foi preciso csperar par marfYo de 1781 para que, tendo todos os Estados adotado o~ artigos de uma Confedera-,:Uo, o governo central fosse finalmente investido de urn comec;o de poder efctivo. Se o problema militar foi apenas razoavel­mente resolvido e o diplom<itico o foi totalmente, o proble­ma politico, entretanto, niio recebeu so\uc;<io satisfat6ria em conseqllencia de toda a guerra. .

A vit6ria e a paz - Nesse meio tempo, a Inglaterra resignou-se a negociar: convcrsac;6es secrctas culminaram numa paz separada (30 de novembro de 1782). Ela reconhe­ceu a indepcndencia de suas antigascol6nias, cedendo inclu-

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;,ivc todo o territ6rio compreendido entre os Grande;, La­gos. ao norte, o Mississ(pi, a oeste, e as possess6es espanho­!as, ao sui. Suntuoso prcscnte. Uma negocia<;iio geral com os aliados dm insurgcntcs teve seu desfecho no tratado de Versalhes (3 de setembro de 1783). Dcsforra para a Fran<;a Jo dcsastroso tratado de Paris, mas uma vitOria completa para a~ cx-col6nias inglesas: em vinte anos, estas tinham logrado recha<;ar a Franc;a e rejeitar a dominac;iio inglesa. Sua hist6ria prOpria estava entao comcc;ando: a hi~t6ria de uma nova AmCrica independente, ao mesmo tempo prolon­gamento da Europa e separada deJa, herdeira da lnglaterra e na~cida de uma rebeliiio contra scu governo.

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CAPITULO III

A Constituic;ao dos Estados Unidos

1. Da fragmenta~o 3. unidade E pluribus unum

0 fracasso do governo confederado - Os insurgentes tinham ganho a guerra, mas mlo tinham a paz. De infcio, p6de ate parecer que a jovem America ia mergulhar na desordem e na anarquia. 0 problema politico permanecia scm· solm:;::io: as mesmas causas, tanto na paz quanto na guerra, continuavam produzindo os mesmos efeitos. Antes impotente para conduzir a guerra, o Congresso niio estava entiio menos para solucionar os problemas nascidos da paz: cxecm;ao de tratados, pagamento de emprestimos, negocia­~6es comerciais. Diante dos fatos concretos criados pela no­va realidade, o governo de tipo confederado estabelecido pelos artigos da Confederar;<io revelava-se radicalmente in­ferior a sua tarefa: a cl<iusula da unanimidade dos Estados paralisava-o. A situa<;ao interna degradou-se rapidamente: as despesas excediam infinitamente os recursos; a dfvida inchou; a moeda depreciou-se; o exercito desagregou-se ou amotinou-se, soldados marcharam sabre Filadelfia, cujo Congresso fugiu. A opiniiio pUblica estava descontente, a agitafYiiO alastrava-se, as potencias julgavam com severidade a impotencia dessa nafYiiO. Ficou evidenciado que a vit6ria, se emancipou as coldnias, mio fez delas nem uma potencia ncm uma nafYiio, por ausencia de urn Estado. Os patriotas estavam desolados. Niio teriam alcanfYando mais do que uma vit6ria de Pirro, e consumido tanta energia para afinal mer­gulhar na anarquia? Esses anos crfticos, freqiientemente es­camoteados na descri~;:io do nascimento dos Estados Uni­dos, foram capitais para o seu futuro; foram eles os que conquistaram os espfritos para a ideia de uma revisao impe­riosa das institui~;6es.

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A convenr;iio- A salva<;li.o viria de iniciativas tomadas fora do Congresso para suprir a autoridade enfraquecida, com a cau<;li.o do mais ilustre cidadli.o norte-americana, George Washington. Ap6s v:irios adiamentos, os delegados designados por todos os Estados. salvo Rhode Island, "para examinar as disposi<;<les que lhes pare<;am necess:irias a fim de tornar a Constitui({<'iO do governo federal adequada as exigencias da Unitio", reuniram-se em Filadelfia a 25 de maio de 1787. Participaram 55 delegados em todos ou em parte dos trabalhos dessa assembleia, a qual congregou qua­se tudo o que os Estados possufam de personalidades de talento e de ilustra~_;:io (somcnte Jefferson estava ausentc, par ocupar ent<lo o cargo de embaixador na Fran<;a). A maioria j:i possuia experiencia de neg6cios ptiblicos: 39 ti­nham participado dos Congressos Continentais, 22 cram graduados por universidades e 31, au seja, mais de metade, eram juristas de profissao. Apesar desses antecedentes, a media de idade dos constituintes mal passava dos quarenta anos; e mesmo alguns dos que iam ter uma participa~_;ao ativa nas delibera~_;Oes eram muito mais jovens: Hamilton tinha apenas trinta e Madison, 36. Tal era a composi~_;:io dessa assembleia excepcional que os historiadores ameri­canos, na esteira dos contemporaneos, compararam a urn concJ1io de semideuses.

Desde a abertura dos trabalhos, os delegados compro­meteram-se a nada rcvelar publicamente sobre o tear de suas discussOes: o sigilo foi observado escrupulosamente. Essa disposi~_;ao, afastando as paixOes do exterior, ajudou de maneira consider:ivel a aproximar pontos de vista opos­tos. Entrctanto, divergencias aparentemente insupeniveis surgiram com bastante rapidez, mormente entre delegados de pequenos e de grandes Estados: a for~_;a de compreensao mUtua, chegava-se quase sempre a urn acordo. A bonomia sorridente de Franklin, seu espirito arguto e senso de opor­tunidade, seu genio conciliador tam bern contribuiram para isso. Washington, levado de imediato a presid€ncia por con­sentirnento unanirne. exerceu suas fun~_;Oes para satisfa~_;ao de todos. As delibera~_;Oes durararn quase quatro rneses, de 25 de maio a 17 setembro de 1787, e ocuparam talvez urn

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total de trezentas horas. Dai resultou urn texto cuja concis:io n:io e uma de suas qualidades menos impressionantes. Os amadores de estatfsticas calcularam que ele eompunha-se de 89 frases e 4 mil palavras: sua leitura em voz alta exigiria apenas 23 minutos. Em sua brevidade, nern por isso deixa­ram de ser previstas todas as eventualidades, porquanto e essa Constitui~_;ao que ainda hoje rege o funeionamento das instituii_;Oes poHticas americanas. As emendas adotadas de­pais, 22 no total e das quais as dez primeiras, prornulgadas em 1791, sao suas contemponineas, mio modificaram essen­cialmente a arquitetura da carta magna.

Entretanto, essa constitui<;iio tinha urn caniter eminen­temente circunstancial. Os constituintes nao obedeceram a nenhum espirito de sistema. Embora ambicionando har­monizar o governo da Uniao com os princfpios fundamen­tals de toda a sociedade politica, eles decidiram fazer, sobre­tudo, obra de circunstfulcia e responder aos problemas apre­sentados pela situa~o: sempre essa mi-stura tao caracteris­tica de idealismo e de pragmatismo. Pacientemente, con­frontaram seus pontos de vista, testaram a solidez de seus argumentos: pouco a pouco, as discordlincias forarn reduzi­das, as concep<;Oes aproxirnadas, os ajustes concretizados gra~_;as a concessOes rnlltuas. A Constitui~_;iio resultou desse processo transacional. Se nao houve quem se reeusasse ao conceder sua assinatura no final dos trabalhos, tambem e verdade que ninguern se considerou inteirarnente satisfeito com os resultados. E precisarnente por esse seu caniter tran­~acional que essa cons~itui~_;ao tern durado rnais do que ne­nhurna outra: sua flexibilidade proporcionou-lhe sua facul­dade de adapta~_;ao.

Estado federal e Estados - Dois problemas precisos, que pareciam igualmente insoltiveis, apresentavam-se a sa­gacidade dos constituintes. Como conciliar a necessidade, que o fracasso dos artigos da Confedera~_;:io tornou mani­festa, de urn fortalecimento do poder central com a recusa dos Estados de alienarem uma parte de sua soberania? Exi­gencias aparentemente incompatfveis que, nao obstante, a habilidade de um ~ompromisso harmonizou. A nova ideia.

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cuja fecundidade seni demonstrada logo adiante, consistia em criar urn sistema duplo de soberanias inteiras e distintas. Acima dos Estados, cada urn dos quais conservava sua sobe­rania, erigia-se urn Estado federal igualmente soberano em sua esfera. Entre eles, a Constitui~ao procedia a uma parti­lha de competencias: ao Estado federal cabia de direito a polftica externa, a defesa, o comercio como Exterior e entre os Estados; tudo o que nao era expressamente delegado ao governo federal continuava sendo de competencia exclu­siva dos Estados. Nos limites de suas atribui(JOes, as duas soberanias cram plenas e exerciam-se scm limita~o nenhu­ma. Os cidadiios encontravam-se, pois, simultaneamente de­pendentes da autoridade de dois Estados, urn no limite de seus direitos reservados, o outro - o federal -no limite de seus direitos delegados, e estavam submetidos a duas ordens de deveres. Doravante, a vida politica desenrolar­se-ia em dois niveis sobrepostos. Os Estados Unidos ofere­ciam assim ao mundo o primeiro exemplo de federalismo aplicado.

0 segundo problema niio era menos <irduo, e as diver­gencias a seu prop6sito por pouco niio frustraram, mais de uma vez, o esfor(JO de concilia(J!lo: como p6r de acordo os grandes Estados, naturalmente desejosos de dispor no novo sistema de uma influencia proporcional a import<incia de suas popula(J6es, de suas riquezas e atividades, e os peque­nos Estados, temerosos de serem absorvidos e firmemente resolvidos a nao transigir no tocante a igualdade de todos? Ainda sobre esse ponto, o espirito de concilia~iioencarnado por Franklin imaginou uma solu(Jiio engenhosa: represen­tw;ao igual no Senado, onde todos os Estados, pequenos ou grandes, teriam duas cadeiras, e representa(Jiio propor­cional na C<imara dos Representantes. Ficou estabelecido que esses pontos nao seriam suscetfveis de revisiio.

A organizac;do dos poderes - 0 espirito pragm:itico e a fidelidade a urn pequeno nUmero de- principios tidos por essenciais presidiram tambem a organiza(JiiO dos pode­res que comp6em o governo federal e a articula~iio de suas rela(J6es mtituas. Os constituintes niio seriam pessoas de

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:c.eu tempo se mio alimentassem uma desconfian(Ja instintiva em rela(JiiO ao poder excessivamente concentrado; eles ade­riam ao postulado da filosofia liberal de que o poder deve ser Jimitado e fracionado. Por isso criaram urn mecanismo sutil e engenhoso, o qual agradava a imagina(Jao da epoca. Mecanismo aparentemente complexo e delicado, mas cuja robustez foi revelada pela experiencia, porquanto tern resis­tido ao tempo. Cuidadosamente separados, os poderes sao independentes uns dos outros: em caso de desacordo, ne­nhum disp6e de meios para pOr fim a existencia de urn dos outros. Por isso tampouco existe responsabilidade do Exe­cutivo perante o Legislativo: o Presidente escolhe seus mi­nistros conforme seja de seu agrado, os quais s6 sao respon­s<iveis perante ele. Reciprocamente, o Presidente nao pode dissolver uma c<imara do Congresso. A Constitui(JiiO zeta pelo equilfbrio desses poderes: para evitar que em suas res­pectivas esferas eles nao se tomem onipotentes, cada poder e indiretamente controlado ·pelos outros e tern necessidade de seu concurso. Assim, os atos legislativos do Congresso, para adquirirem for~a de lei, devem receber a assinatura do Presidente, que pode opor-lhe seu veto. Por outro lado, o Presidente necessita da aprova~ao do Congresso no pro­cesso legislativo e para vota~ao do or~amento; nao pode efetivar a nomea~iio de certos funciomirios (Secret:irio de Estado, embaixadores) sem o consentimento do Senado, cujo acordo, freqlientemente recusado, e tambem neces­s<irio, por maioria de dois ter~os, para a ratifica~ao de tra­tados. :E admitido, com efeito, que o Senado eo Executivo tern urn poder conjunto no que se refere a condu~ao da politica externa.

Esse sistema visa essencialmente preservar os direitos do individuo. Uma outra disposi~ao, uma das mais originais dessa constitui~iio que contem tantas, assegura-lhe uma ga­rantia preciosa: aquela que faz do poder judici<irio urn poder superior aos outros. Com efeito, a igualdade nao e absoluta entre os tres poderes: os atos do Executivo, as decis6es do Legislativo, podem ser levados a aprecia~iio do Judici<irio. Na cUpula da hierarquia judici<iria, o Supremo Tribunal de Justi~a tern o poderde interpretar a Constitui~o. lsso, com-

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binado com a tradi~<<io consuetudimiria do judici<irio ingles. institui urn verdadeiro "governo dos jufzes".

Tudo esta calculado para impedir que urn poder se so­breponha aos outros, que o Estado federal sufoque os direi­tos dos Estados, que os poderes pllblicos infrinjam a liber· dade dos indivfduos. Sistema profundamente liberal, mas de modo algum democnitico. Os constituintes desconfiavam do povo, temiam o despotismo da maioria; muitos admira­vam o governo britinico e duvidavam de que pudesse existir urn modo de govemo superior. Corria ate o boato de que eles consideravam a possibilidade de uma restaura~<<io mo­mirquica. De fato, eles instituiram urn governo represen­tativo e republicano, mas cujas disposi1<6es tendiam todas a atenuar os mqvimentos de opiniao: em nenhuma parte o sufr<igio era universal; os senadores eram designados pel as legislaturas estaduais, o Presidente escolhido por urn colegio restrito de eleitores. 0 princfpio do equilibria de poderes aplicava-se tambem ao poderio da opiniiio pUblica.

Perenidade do texto e des vias da prdtica - Tais eram as disposi1<6es fundamentais do texto produzido pelas deli­bera~<6es da Conven~<iio. Essa Constitui~<ao elaborada para uma na~<<io nascida na vespera, formada por alguns milh6es de habitantes entre o Atl<'intico e os Alleghenies, entregues ao trabalho da terra, a pesca e ao comercio, preside ainda hoje aos destinos de urn aglomerado de mais de 210 milh6es de seres humanos, repartidos de urn oceano ao outro, e que se tomou nesse intervalo a primeira potencia do mundo e a na~<<'i.O mais industrializada. A hist6ria oferece poucos exemplos de semelhante perenidade associada a transfor­ma~<6es igualmente profundas. Ela e - e de Ionge - a mais antiga de todas as constitui1<6es hoje em vigor. E., em parte, a respons<ivel por esse futuro, ao fazer dos Estados Unidos uma na~<iio: sua existencia como sociedade polftica organizada data da ado~<iio do texto constitucional. 0 patrio­tismo americana percebe-o claramente, sente que se dirige tanto ftsinstitui1<6es quanto ao pr6prio solo, o que o diferen­cia do patriotismo dos povos europeus. Franklin foi urn born profeta quando, no Ultimo dia da Conven¢o, assegurou

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que o sol gravado no espaldar da cadeira do presidente, que muitos haviam indagado com freqiiencia ao Iongo daqueles quatro meses se ele nascia ou se punha, era urn sol nascente.

A mesma Constitui~<<io rege ainda hoje o funcionamen­to dos poderes pUblicos. Ouer isso dizer que sua aplica~<<io se faz em conformidade exata como que seus autores tinham previsto? Precisamente por terem querido fazer obra de cir­cunstincia e se recusado a dispor de antemiio sobre todas as eventualidades futuras, o texto deixava uma extensa mar­gem a interpreta~<<io. Aquela que prevaleceu est<i, sem dUvi­da, bastante distanciada do estado de.espfrito dos consti­tuintes. A pnitica levou o sistema a oscilar entre duas dire­~Oes principals: de urn !ado, uma evolu~<iio democnitica fez saltarem todos os ferrolhos com que o liberalismodos funda­dores bloquearam a manifesta~<<'i.O de impulsos populares, e a opiniiio pUblica passou a ser o poder fundamental e a foote de todos os outros; de outro !ado, a novidade e a multiplicidade de questOes apresentadas as sociedades mo­demas pela industrializa'<ao, e o choque dos imperialismos iriam romper o equihbrio estabelecido entre os Estados e o Estado federal: o centro de gravidade passou hoje dos primeiros para o segundo.

A ratifica~do - Os convencionais tinham disposto que, para entraf em vigor, a Constitui9io deveria congregar pelo menos nove dos treze Estados. Foi preciso urn ano para o conseguir: somente em tres Estados a Constitui~<<io foi ratificada sem controversia; dois Estados recusaram-se por v<irios anos a entrar na nova na~<iio. Preenchidas finalmente as condii_<Oes, o novo govemo federal p6de entrar em funcio­namento: com a elei~ao, a 4 de mar~<O de 1789, de George Washington como primeiro presidente dos Estados Unidos, chegou ao fim uma epoca, ados anos criticos, e uma outra hist6ria COffiCI<Oll.

II. 0 nascimento dos partidos

Duas interpreta~6es: federalistas e republicanos -Washington tinha sido eleito sem concorrente: sua pessoa

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mi.o era contestada; mas sua administrac;:io o foi. Sea unani­midade reinou em 1789, n:io tardaria muito a desfazer-se. Na verdade, for am as divergencias de 1787 que ressurgiram. A propOsito de questOes pni.ticas, instituic;ao de urn banco nacional com ou sem privilegio estatal, impastos federais etc. foram definidas e fixadas duas escolas de pensamento cujo desacordo questionava a prOpria interpretac;ao do pac­ta federal e a divisao de competencias entre os govemos estaduais e o poder federal. As posic;Oes vinculavam-se a simpatias ou aversOes pela democracia. Estava em causa nada menos do que a evoluc;ao democrB.tica da nova repU­blica. Com base nessas interpreta¢es, constituiram-se os primeiros partidos polfticos, urn fator a que a Constituic;ao, com boos motivos, nao fez menc;ao e cuja intervenc;ao modi­ficou sensivelmente o funcionamento das instituic;Oes.

Uma primeira escola aspirava a reforc;ar o poder fede­ral: daiseu nome de "federalista". Umgovemo central forte parecia-lhe duplamente necess<irio: o Estado nao podia dis­pensar urn Executivo eficaz nem a sociedade urn instrumen­to capaz de manter a ordem pUblica e de imp6-la tanto as facc;Oes quanta as paix6es. Em seu foro intima, mesmo ten­do combatido a arbitrariedade do governo ingles, eles conti­nuavam convencidos de que a monarquia era a melhor for­ma de govemo e sonhavam instaurar uma, sem monarca, no ambito da nova Constituic;:io. Por isso desejavam dotar o jovem govemo federal com todos os atributos e meios de execuc;ao de urn verdadeiro Estado: urn banco com privi­i<!gio de Estado, urn sistema de impastos que !he assegurasse recursos regulares. Suas inclinac;Oes mon:irquicas faziam-se acornpanhar de urna desconfianc;a instintiva em relac;:io ao povo e de sentimentos aristocniticos: a conduc;ao dos neg6-cios pU.blicos devia caber aqueles que para isso haviarn sido preparados, pela riqueza, pela educac;ao e por uma tradic;ao familiar de lideranc;a. Ap6s a Guerra de Independencia, e\es pensaram em reagrupar os veteranos nurna ordem, a dos Cincinnati, que teria podido tornar-se o germe de uma nova aristocracia: a oposic;ao de Franklin a transmissao he­redit<iria das prerrogativas vinculadas a ordem fizera o pro­jeto fracassar.

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Com efeito, urna segunda escola estava determinada a opor-se a toda tentativa de restaurac;ao momirquica. Ali­mcntados pelas grandes mem6rias da Antiguidade greco­latina. os repu.b/icanos queriam fazer dos Estados Unidos uma repUblica, donde o nome por eles adotado, como ideal de uma Arcadia americana, sociedade democr:itica de pe-4uenos propriet:irios, livres e iguais, vivendo de seu traba­Jho, sem nada dever a ninguem e desfrutando de urn bem­cstar honesto. Tratava-se de restabelecer na terra a ldade de Ouro. Concepc;:io arcaizante que deve tanto a aurea me­diocritas de Horacia quanta a fi\osofia de natureza de Jean­Jacques Rousseau. Apegados a liberdade individual, que para eles era mais bern defendida pelos Estados, manti­nham-se de pe atr<is com o poder central, que receavam ver tornar-se o instrumento de uma ambic;:io pessoal ou de domfnio de uma facc;ao, e cuidavam para que, por uma inter­pretac;ao restritiva da Constituic;ao, o poder federal nao se arrogasse outras atribuic;Oes alem daquelas que !he eram expressamente delegadas pelos Estados, cujos direitos eles dcfendiam ciosamente.

Hamilton contra Jefferson - Federalistas e republica­nos: a oposic;:io desses dois sistemas de pensamento, dessas duas filosofias polfticas, atinge, desde o nascimento dosEs­tados Unidos, a simplicidade dramatica dos grandes confli­tos que dividem a opiniB.o pUblica nos Estados modemos. A principal clientela dos federalistas era predominantemen­te urbana, ao passo que os agricultores foram naturalmente lcvados a apoiar o ponto de vista republicano. A oposic;:io de do is homens do ministerio forma do por Washington, que adquiriram tftu\os eminentes que os recomendaram a grati­d:io nacional, simbolizou a oposic;ao das duas escolas. Ale­xander Hamilton, o primeiro Secret<irio do Tesouro, cuja campanha veemente levou o Estado de Nova York a aderir a Constituic;ao, era o lider dos federalistas. Thomas Jeffer­son, o primeiro Secret<irio de Estado da Uniao, redator da Dedarac;ao de Independencia, era o porta-voz e o fil6sofo dos republicanos. Tanto urn como o outro eram dotados dos mais belos dons do espirito.

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A discordancia sobreviveria a essa gerar;ao de homens politicos: os partidos continuariam, Cpoca apOs Cpoca, a opor-sc na questao dos direitos dos Estados versus direitos do Estado fcde~al. Foi o debate que op6s Jackson a Calhoun c a Carolina do Sui na querela, pacificamente resolvida, da revogar;iio de uma lei federal por parte de urn Estado, em seu territOrio; foi o mesmo debate que op6s Lincoln eo Norte ao Sui. e arrastou a Uniao para a pavorosa tragCdia da guerra civil; foi ainda esse debate que, quarenta anos depois, antagonizou os partidlirios e os adverslirios do New Deal. Mas houve uma mudanr;a nos termos de debate e na pos.ir;iio das duas escolas. Em 1789, as alternativas eram as seguintes: fortalecimento do poder federal, concomitante a uma sociedade aristocrlitica, ou democratizar;iio, a qual implicava a autonomia mais ampla possfvel dos Estados. 0 paradoxa da evolur;iio polftica americana estli em que os termos do dilcmadissociaram-se e reagruparam-se segun­do novas combinar;6es: o programa Hamilton foi realizado muito mais tarde, mas pelos herdeiros espirituais de Jeffer­son, de Jackson a Roosevelt. A evolur;iio politica dos Esta­dos Unidos operou-se simultaneamente no sentido de urn considerlivel recrudescimento dos poderes do Estado fede­ral e de uma democratizar;iio acentuada da vida politica.

Divergencias a prop6silo da Revolurlio Francesa- Du­rante a presidencia de Washington, uma circunst:incia exte­rior veio exacerbar a divergencia entre as duas facr;Qes: a Revo\ur;:'io Francesa e a guerra na Europa. Os federalistas, e Washington com eles, por gratid:'io pela ajuda francesa ou precisamente por reconhecimento ao rei, reprovaram de imediato as vio!encias de que a Revolw;iio se fez acompa­nhar, os excessos perpetrados pelos jaeobinos, por medo de cont<igio, por convicr;ao monarquista, expressaram sua preferencia pela Inglaterra. Os republicanos, pelo contra­rio, aplaudiram a Revolur;:io Francesa e formularam aberta­mente votos por seu exito. Washington procurou como p6de manter o pafs a margem dos redemoinhos provocados por essa formid<ivel onda de subversao e preservar sua neutrali­dade: os Estados Unidos nada tinham a fazer ou a lucrar

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no conflito que dilacerava a Europa. Sua Ultima recomen­dar;iio, em seu discurso de despedida ao povo americana, algo como seu testamento politico, foi para que o pais se conservasse fora das querelas europCias. A polftica externa dos Estados Unidos permaneceu fie! a esse principia por mais de urn sCculo, e a opiniiio pUblica norte-americana por mais tempo ainda.

A elei~;lio de Jefferson- Cansado dos ataques dos repu­blicanos, que o acusavam de nao manter uma posir;<io de cquilibrio entre os beligerantes, de arrastar os Estados Uni­dos para uma guerra virtual contra a Franr;a e de p6r em perigo as liberdades mediante uma legislar;ao de excer;iio, Washington, fie! a sua personagem de Cincinnato ameri­cana, recusou apresentar-se uma terceira vez como candi­dato a Presidencia e retornou a seu querido Mount Vernon: esse precedente criou uma tradir;iio tao forte como se esti­vesse inscrita na prOpria Constituir;<'i.o, e foram necess<irias circunst<incias tao excepcionais quanto a Segunda Guerra Mundial para que fosse quebrada em 1940 e 1944. Desde enti.io, uma Emenda, a 22\ adotada em 1951, obstruiu a renovar;ao de semelhante eventualidade e fez do exemplo dado por Washington uma regra de direito. Ap6s John Adams (1797-1801), urn federalista, foi o lfder do Partido Republicano, Jefferson, quem ascendeu a presidencia: o even to marcou urn momenta decisivo na hist6ria dos Esta­dos Unidos, e nao apenas porque o novo presidente trans­feriu o govemo para a nova capital federal, cuja criar;ao a partir do nada era duplamente simb6lica da novidade do poder federal e do comer;o absoluto da hist6ria do povo americana.

Antes de mais nada, isso se deveu a personalidade do novo presidente, igualmente dotado em numerosos aspec­tos. J;i tinha atr<is de si uma carreira que era suficiente para deixar seu nome na memOria de seu povo: fora autor da Dedara(fiio de Independencia, representante dos Estados Unidos junto a corrente da Franr;a, depois de Franklin, e primeiro Secretario de Estado. Mas seus atos contaram me­nos do que seus pensamentos. Esse fil6sofo, apaixonado

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pela arquitetura, que desenhou ele prOprio o projeto de sua residencia em Monticello, preocupado com as quest6es de ensino ( considerava ele que urn dos principals motivos de seu reconhecimento pela postcridade era o fato de ter fundado a Universidade da Virginia), curiosa de tudo, que tinha por amigos todos os ide61ogos franceses, que seus ad­vers:irios suspeitavam de atefsmo, professava uma filosofia otimista a maneira de Condorcet. Acreditava no desenvol­vimento do esplrito humano, na raz:io, na toler:incia, detes­tava a arbitrariedade e a desigualdade. Scm extrair de ime­diato desse fato todas as conseqUencias 16gicas (Jefferson tinha numerosos escravos), aderiu aos prindpios da demo­cracia. Sua presidtncia eliminou as virtualidades momirqui­cas e aristocniticas da Constituic;:io. Ele prOprio incutiu ao exercicio de suas func;Oes uma simplicidade propriamente democnitica e aplicou-se a tarefa de realizar o ideal de urn governo praticamente inexistente e pouco dispendioso, em conformidade com a filosofia liberal.

Foi como urn a segunda fundac;3.o das instituic;Oes, compa­r:ivel a que foi a ascenc;<io de Jules Grevy a presidencia da RepUblica francesa. Os dois mandatos presidenciais de Jeffer­son (1801-1809), seguidos de uma longa serie de presidentes inspirados pelo mesmo espirito, fonnaram a primeira etapa de uma evoluc;<io democr:itica marcada por sucessivos impul­sos, OS mais importantes dos quais ievaram a presid6ncia dos Estados Unidos Jackson, Lincoln eo segundo Roosevelt.

A era dos bons sentimentos -A orientac;llo imprimida por Jefferson foi bern defendida: ninguem sonhava sequer em renunciar a ela. Essa aceitac;llo razo<ivel das coisas funda­mentals e caracterfstica da vida polftica americana e explica sua estabilidade. As institui~6es sao aceitas por todos. A facc;:io federalista dissipou-se; as lutas partid<irias acalma­ram-se; os pr6prios partidos que perderam a noc;<io do que os separava pareceram desaparecer; as eleir;6es desenrola· vam-se na maior tranqiiilidade do mundo; Madisom (1809-1817) e Monroe (1817-1825) sucederam a Jefferson sem choques. E a era of good feelings, a era dos bons·senti­mentos. Urn povo feliz n3.o tern hist6ria.

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As quest6es externas: da aquisip'i.o da Luisiana a dou-·na Monroe (1803-1823)- A hist6ria chegou-lhe de fora:

~~z sua intrus:io no destino dos jovens _Estados Un~d~s P?r · termedio das relac;Qes como estrangelfo. Nada extshu ms­: que mio estivesse estritamente em conformid~de com

0 pensamento orientador da Constituic;3.o, que fazJa das re­

lac;6cs externaso dominio prOprio do govern~ federa~. Nes­se contexto, tres ou quatro acontecimentos ttveram tmpo~­t3ncia hist6rica para o desenvolvimento dos Estados Um­dos, que romperam a phicida continuidade dos a~os_e_foram tambem repercuss6es do grande abalo revoluctonano que ~acudiu a Europa. Em 1803 Bonaparte propOs aos Estados Unidos ceder-lhes a Luisiana, que acabara de lhe ser devol­vida pela Espanha. Jefferson aproveitou a ocasi<io e co~­prou, por 15 milh6es de d6lares, urn territ6rio que. mats do que duplicou a superficie da Uniao. 0 te6rico da_ m~er­pretac;ao restritiva da Constituic;<io, o defensor dos dt_r~tt?s dos Estados contra o Est ado federal tomou ai uma das tmcta­tivas mais prenhes de conseqii6ncias que urn presidente _dos Estados Unidos podia tomar. Assim procedendo, ele onen­tou o futuro de urn modo talvez ainda mais decisivo do que aquele como usou os poderes ptiblicos.

Entre 1812 e 1815 repetiu-se o conflito com a lngla­terra, a que. se deu o nome de Segunda Guerra _de Indepen­dencia. A guerra foi deflagrada em conseqii6ncta da preten­sao inglesa de interditar todo o comercio entr~ a Fran~a e os Estados Unidos, e das medidas de bloqueto tomadas pela Marinha britanica: Madison queria fazer respeitar o_s direitos dos neutros. Urn seculo mais tarde, a mesma combt­nac;ao de considerac;Oes juridicas e de motivo_s in!eresseiros decidiria a entrada dos Estados Unidos na Pnmetra Guerra Mundial. Essa identidade de motivos revela a continuidade da polftica comercial e externa norte-americana de 181~ a 1917. As operac;Oes militares comportaram poucas ac;oes brilhantes: os brit<'inicos incendiaram Washington; os norte­americanos registraram uma vit6ria diante de Nova Orleans (8 de janeiro de 1815), onde puseram em debanda urn cor~o expedicion:irio. Esse exito sobre os vencedores de Napoleao persuadiu-os de que eram os melhores soldados do mundo

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e foi o ponto de partida para a glOria de seu general, Andrew Jackson. 0 tratado de Gand, assinado dois meses antes (no­vern bra de 1814), confinnava a independCneia americana sem modificar as disposi~Oes territoriais de 1783 e sem nada c~tipular sabre os direitos dos neutros.

Em 1819, usando alternadamente da amea~a e da per­suasi'io, os Estados Unidos convenceram a Espanha, em guerra contra suas col6nias revoltadas, a ceder-lhes, com a FlOrida, a pon;iio do litoral que ela ainda possufa entre o Atl3.nticoe o curso inferior do Mississfpi, c que os separava do golfo do Mexico. Foi ainda a propOsito da Espanha, mais precisamente a respeito de suas col6nias revoltadas da America. que o presidente Monroe definiu a posi~ao dos Estados Unidos numa declara~iio famosa, chamada a reger, por gera~Oes, sua linha de conduta: o conhecimento das circunst3.ncias e indispens<ivel a sua justa compreensi'io. Uma expedi~iio francesa acabara de restabelecer a autori­dadc de Fernando VII na Espanha: a circunst3.ncia propi­ciava a cren~a em boatos segundo os quais as potencias euro­pCias planejavam intervir na America, a fim de restabeleccr a obediencia das col6nias revoltadas a seu lcgftimo sobe­rano. Que iriam fazer os Estados Unidos? Tudo os levava a criar obst<iculos a esse plano de interven~i'io: a simpatia pelos insurretos. que nada mais faziam do que imitar o cxemplo dado por eles; o interesse que niio era certamente o de ter de novo as grandes potencias instaladas nas vizi­nhan~as de suas fronteiras, quando obviamente lhes convi­nha muito mais ter como vizinhos Estados jovens e ainda fracas. 0 presidente Monroe decidiu, portanto, reconhecer os governos insurretos e fazer uma advertencia a Europa. Numa mensagem aq Congresso, defmiu os princfpios de sua administra~i'io, que no con junto viriam a ser designados por "doutrina Monroe". Ela reafinnava o princfpio de neu­tralidade legado por Washington, mas definia-lhe com pre.­cisiio as modalidades e ampliava seu campo de aplica~ao a todo o Novo Mundo. Os Est ados Unidos desejavam per­manecer em boos termos com a Europa e abstinham-se de se imiscuir em seus assuntos internos. Em contnipartida, solicitavam as potencias europeias que se abstivessem de

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toda e qualquer intervcn~iio nos assuntos do continente americana: negavam-lhes o direito de estender sua domi­na~iio a territOrios ainda livres de sua coloniza~iio; sobre­rudo notificavam-nas de que com.iderariam toda e qualquer m,:ao contra urn governo que tivesse proclamado sua indepen­dCncia como urn ato inamistoso para a na~iio americana. a~ governos europeus ni'io levaram muito em conta essa dcdarac;:iio, uma vez que os Estados Unidos seriam incapa­ze~ de assegurar-lhe o respeito, e apenas viram nela uma fanfarronada ou urn gesto para uso intemo. Mas nem por is­so o texto deixa de possuir urn grande valor: foi a primeira men~iio de uma doutrina continental a fonnular de mancira bastante exata as palavras de ordem: A America para os americanos! e a cooter o germc, por intermCdio do pan-ame­ricanismo, de uma hegemonia de facto da grande RepUblica sabre as duas Americas.

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CAPITULO IV

0 Oeste e a democracia americana

Num plano secund<irio em rela~ao a esses eventos mili­tares e diplom<iticos, a essas rivalidades partid<i.rias, desen­volve-se uma outra hist6ria, que mlo importa menos para o futuro dos Estados Unidos e que, em todo o caso, contri­buiu mais para a sua originalidade: o povoamento do Oeste. Pais, em Ultima analise, o destino que federalistas e republi­canos queriam para o pais deles mio constitufa uma novi­dade radical: os primeiros imaginavam-no segundo o mo­delo da monarquia britiinica; os segundos davam aparente­mente prova de mais aud<icia em seus pontos de vista e sonhavam-no a imagem e semelham;a das sociedades anti­gas. Mas, em definitivo, foi algo muito diferente o que se materializou, em conseqiiencia da entrada em cena de urn tcrceiro elemento, igualmente distinto do Norte (sed dora­vantc necess<i.rio dizer Nordeste) e do Sui: o Oeste.

Par diferente que fosse a sociedade que af se formava, em muitos aspectos, sobretudo em seus come~;os, do resto dos Estados Unidos, a hist6ria do Oeste n3.o foi urn epis6dio pitoresco e exOtica a margem da hist6ria americana, como o foi, por exemplo, a das possess6es coloniais da Fran~;a em rela~;3.o a metr6pole, no seculo XIX. Constitui, de fato, parte integrante dela. Melhor ainda: foi freqiientemente ela que determinou o curso da hist6ria geral do povo americana par suas repercuss6es sabre todos os aspectos principals de sua existencia: a imigra\;iio que para at afluiu; a economia, cu jo desenvolvimento ela estimulou par seus recursos e seu espa~;o; a rela~;ao das for~;as politicas, cujo equilibria ela rompeu, fazendo pender a balan~;a em favor do Norte; a questao do negro que ela exacerbou; o impulso democr<itico que precipitou; em suma, o car<i.ter nacional que ela marcou tao fortemente. Sem contar que fomeceu urn alimento ines­got<i.vel para a imagina~;3.o e deu aos Estados Unidos sua

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grande epopCia nacional, equivalente a gesta imperial para a Fran~a e a forma~ii.o do imperio colonial para OS britii­nicos. Talvcz nem todos se apercebam de que os Estados Unidos situam-se <\ testa de todos os povos colonizadores e que, pela aniplitude dos territ6rios c dos movimentos de popula~6es, o povoamento do Oeste americana fonna o capitulo mais importante da expansiio branca na supcrflcie do globo durante o seculo XIX.

A ordenar;do do Noroeste (!787) - Este capitulo e tiio antigo quanto a prOpria na~ao americana; ate mais antigo, porquanto o vimos desempenhar urn papel no conflito entre a metr6pole e as col6nias. Em 1776, cerca de 100 mil pionei­ros j<i tinham transposto os montes Alleghenies. A paz dei­xou aos novas Estados o vasto espa~o. ainda praticamente virgem, delimitado pelos Grandes Lagos, o Mississipi e as Fl6ridas espanholas. 0 desenvolvimento desse territ6rio e o dos Estados Unidos dependiam do status que se atribufsse aquele. Reparti-lo em urn nllmero de parcclas equivalente ao de Estados existentes e conceder a propriedade plena de uma a cada urn significava enriquece-los, mas tambem reduzir para semprc essas parcelas a condir,::io de depen­dencias coloniais. A opiniiio prevalecente cuidava muito melhor do futuro: os Estados legaram esse territ6rio a Uni:io, concessao bastante companivel a remincia da sobe­rania que eles declararam no mesmo ano, na Constituir,:ao. em favor do governo federal. Assim, os Estados dotavam a Uni<"io de urna riqueza praticarncnte inesgot<ivel, que po­deria garantir novos emprestimos e permitir o reernbolso da divida federal. A grande ordenar,:iio de 1787 trar,:ava tam­bern urn quadro para o futuro: as regi6es do Oeste pode­riarn, por urna serie de etapas, constituir territ6rios aut6no­mos e ate, ap6s urn certo prazo, ter acesso ao estaturo de Estado, desfrutando de plena igualdade de direitos com os treze Estados constitutivos. Os primeiros a estabelecerem­se ali reccbiam assim a garantia de que, em vez de continuar dependendo, como cidad:ios de segunda classe, de uma au­toridade longlnqua, poderiam administrar-se livremente e tornar-se, desde que fosse atingido o quOrum (60 mil), cida-

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dfim de pleno direito de urn Estado soberano. A adw;ao dessa ordenar;riio bern como a redar;riio da Constituir,:iio fazern duplamente de 1787 o ano do nascimento efetivo dos Esta­dos Unidos: os dois textos nao apenas sao contemporiineos como concorrem, cada urn em seu nivel, para o assenta­mento dos alicerces da grandeza americana. Essa ordenar,:ao do Oeste mio tardou em produzir seus primeiros efeitos: 0 territ6rio do Kentucky ingressa na Uniiio, na qualidade de novo Estado, a partir de 1792; depois, a intervalos cuja brevidade denota a rapidez do povoamento, outras estrelas vtm ocupar seu Iugar ao lado das dos Estados fundadores na bandeira federal: o Tennessee (17%); o Ohio (1803). 0 princfpio desse processo original de crescimento espon­tfineo ainda niio esgotou suas virtudes, pais a admissiio do Alasca (1958) e do Havaf (1959) elevou para cinqiienta o nllmero de EStados. E urn trar,:o de semelhanr;ra suplementar entre a Constituir,::io e a ordenar,:ao do Noroeste: elas conti­nuam regendo a existencia da Unilio.

As ampliap5es sucessivas (1803-1853)- Sea mencio­nada ordenar,:ao teve conseqUencias tao amplas- o nasci­mento de 35 novos Estados -, foi porque seu campo de aplica~Y<iO se ampliou consideravelmente: no territ6rio cedi­do em 1782 pela Inglaterra s6 era possfvel trar,:ar, no maxi­mo, sete ou oito novos Estados. Mas esse quadro iria am­pliar-se prodigiosamente em meio seculo, grar,:as a suces­sivas investidas. Em certos pontos, o povoamento precedeu a anexar;rao; na maioria dos casos, porem, ocorreu o in verso, tendo a incorporar,:<io ao territ6rio federal precedido a ocu~ pa~Y<IO efetiva. Essas amplia~Y6es foram todas feitas, e clara, em detrimento dos antigos impCrios coloniais frances, espa­nhol, brit3.nico, ou de seus herdeiros: a expansiio dos Esta­dos Unidos prolongou assim o movimento de emancipar;rao. Em 1803, Jefferson adquiriu do Primeiro COnsul toda a Lui­siana: imenso territ6rio cuja incorporar,:ao duplicou de uma s6 vez a superficie dos Estados Unidos (na verdade, nin­guem sabia on de passavam seus limites extremos); a entrada em Nova Orleans abriu uma safda maritima direta para os novos Estados do vale do Mississipi; as perspectivas de ex-

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pans<io pareciam en tao ilimitadas, pelo Missouri ou por Ar­kansas, na dire~_;ao das Montanhas Rochosas e mais ah!m, talvez, ate o Pacifico. Jefferson tomou imediatamente posse desse novo domfnio: a partir de 1804, sob seu patro­cinio e com o apoio do exercito federaL os exploradores Lewis e Clark subiram os afluentes da margem direita do Mississfpi. Em 1819, a anexa~_;ao do enclave espanhol das Fl6ridas representou, comparativamente, apenas urn a amplia~_;ao limitada, mas derrubou a cortina existente en­tao entre os Estados Unidos e o golfo do Mexico, ligou a GeOrgia a Luisiana e estabeleceu uma fachada maritima nacional continua desde a Nova EscOcia ate o delta do Mississipi.

Uns trinta a_nos depois, nova investida, penetrando si­multaneamente em v3rias dire~_;6es, dilata ainda mais as fronteiras da Uniao, antes mesmo que todo o espa~_;o fosse preenchido. No noroeste, apOs 25 anos de contesta~_;ao, a Inglaterra cedeu aos Estados Unidos, sem urn U.nico tiro, o territ6rio do Oregon, onde o afluxo de imigrantes ameri­canos superou os colonos inglcses. Foi como os Estados Unidos ganharam uma janela para o Pacifico (1846). A su­doeste e a oeste, eles obrigaram o Mexico, ap6s uma guerra, a reconhecer ao Texas o direito de entrada na Uniao e a ceder-lhes duas imensas provincias - o Novo Mexico e a CalifOrnia-, de cuja riquezaem metais ainda nao se susRei­tava, algumas semanas antes da descoberta do ouro (1848). Cinco anos depois, a anexa~_;ao de uma faixa alongada ao sui do Novo Mexico e a oeste do rio Grande (tratado Gads­den, 1853), acabaria de dar ao territ6rio federal seus cantor­nos definitivos. Esta Ultima onda de aquisi~_;6es representava urn crescimento mais consider3vel ainda do que o da Luisia­na. Exatamente em meio seculo, de 1803 a 1853, os Estados Unidos tinham mais do que triplicado sua superffcie: de urn oceano ao outro, abrangiam agora 7.800.000 km2, uma extensao equivalente a quatro quintos da Europa, com uma popula~_;lio dez ou vinte vezes menor. Urn campo pratica­mente vazio que se oferecia ao povoamento, urn espa~_;o vasto como urn continente no qual se desenrolou do come~_;o ao fim do seculo XIX a epopeia do Oeste.

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A expulsiio dos indigenas- 0 espa~_;o era praticamente vat:io, mas n:io absolutamente. Uma vez afastadas asantigas potCncias coloniais, havia outra e mais antiga hipoteca. Ain­da que se comportassem como primeiros ocupantes, os pio­nciros americanos deparavam antecessores: os indfgenas. St:ndo, de infcio, dois povoamentos pouco numerosos, mio !hcs teria sido posslvel coabitarem born entendimento'? Sem !evar em conta o desprezo dos brancos pelos indios eo res­~entimento destes para com seus espoliadores, havia a opo­:-i~_;:io de seus modos de vida: sem dUvida, o povoamento indigena era muito esparso, mas olio se pode esquecer da condi~_;ao semin6made dessas populas:Oes que se alimenta­vam esscncialmente do produto de suas ca~_;adas: bis6es, ani­mais de peles. Portanto, elas precisavam acompanhar a ca~_;a em seus deslocamentos, primeiro atraves das florestas, mais tarde na pradaria. Ora, na retaguarda de uma raJa cortina de franco-atiradores, ca~_;adores e traficantes de peles, cujo modo de vida assemelhava-se ao do indio, o grosso dos pio­neiros era formado de gente sedentliria, mesmo tendo de mudarde lugarpor diversas vezes na vida: eles desmatavam, arroteavam, semeavam. Suas povoalf<)es lan~_;avam sabre os tcrritOrios de ca~_;a dos Indios uma rede que lhes entravava os movimentos. Os interesses dos dois grupos cram incom­patlveis. Conflitoeterno entre o sedentlirioe o n6made que, expulso o indio, repercutiria mais a oeste entre o agricultor e o criador de gado. Somem-se a isso todas as causas de mal-entendidos que resultaram naturalmente da diferens:a de mentalidades e que alimentaram a desconfian~_;a reef pro­ca. De tempos em tempos, o antagonismo explodia em a~_;6es limitadas: uma tribo fndia lan<;ava-se inopinadamente sabre algumas povoalf<)es, massacrava de surpresa os habitantes, devastava as planta~_;6es; milicia e tropa federal organizavam cntao uma opera~_;ao punitiva. Tudo voltava a ordem ate o alerta seguinte. Nessas pequenas guerras de escaramu~_;as, as milfcias treinavam para o combate, os comandantes ad­quiriam a glOria: foi assim que Jackson, Harrison e muitos outros ganharam sua reputa~_;<io. As tribos indigenas podiam realmente inquietar os agricultores com suas incurs6es, mas cram incapazes de cooter o caudal ininterrupto que chegava

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do Leste com a cumplicidade ativa das autoridades, locais ou federais.

· Cada Estado tinha sua prOpria polftica indigena, sem­pre voltada a desapropriar;ao dos nativos. Mas o problema cstava presente em quase todos os Estados e ultrapassava a competencia de cada urn, de modo que seu equaciona­mento dependia tambem de Washington; foi uma das atri­buir;Oes que a Constituir;ao delegou explicitamente ao go­verna federal. Com urn pouco mais de respeito formal, uma preocupa~.r:io mais aparente de eqiiidade, os prazos menos curtos na execur;:io, o Escrit6rio de Assuntos lndigenas che­gou ao mesmo resultado dos Estados: os nativos foram pro­gressivamente empurrados a forr;a para o Oeste. Em 1826, foi dado urn gtande passo: eles foram todos transferidos para aoutra margem do Mississfpi. A hipoteca estava defini­tivamente liquidada para todos os territ6rios da margem esquerda. 0 problema s6 voltaria a apresentar-se com agu­deza quarenta anos mais tarde, ap6s a Guerra de Secessao.

A apropriarao das terras- Ressalvada a quest<io indi­gena, havia disponfvel, portanto, uma imensa extens:io de terras cuja superficie niio parava de aumentar e se manteria, no seculo XIX. quase constantemente superior ados Esta­dos constituidos. Propriedade federal pela Ordenar;<io do Noroeste, ela aguardava tomador; as condi(,X)es de apro­priao:;.iio fixadas pelo legislador eram das mais liberals. Em­bora as terras pliblicas niio fossem distribuidas gratuitamen­te, o prer;o de venda era f1xado a urn a taxa muito baixa, em media urn d61ar o acre (havia 640 acres num quadrado de uma milha de !ado), destinada a n:io desencorajar ne­nhum candidato. 0 governo autorizava ate os que n:io dis­punham de fundos suficientes a se instalarem como ocupan­tes sem titulos de posse: deixava-lhes a opo:;fto de comprar a parcela ap6s desbrav<i-la e arroteli-la ou de vende-Ia com direito a indeniza9llo pelos trabalhos e benfeitorias efetua­dos para recomec;ar em outro Iugar. Todas essas terras eram medidas, cadastradas, subdivididas em parcelas de forma regular e superficies iguais, as quais recebiam nUmeros de ordem: as compras eram registradas, os titulos de proprie-

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dade entregues e garantidos pela administrar;fto. Imensa opcrar;:'io sem precedentes: ali<is, tendo a apropriar;:'io do solo precedido sempre o reinado do direito e a instituir;iio de urn a administrar;ao regular, a origem do dire ito de pro­priedade perdeu-se na obscuridade; os Est ados Unidos esta­beleceram-no com grande clareza e do nada criaram uma classe de propriet<irios rurais. lsso significou fazer pela apro­priar;<io individual da terra o que a hist6ria fez coletivamente par eles: urn povo que comer;ou com total clareza; uma nar;ao de origens perfeitamente conhecidas. A novidade ab­soluta da operar;<io manifestava-se ate na configurar;iio dos Estados, cujo desenho reproduzia, ampliado, o tra~.rado des­sa multidao de parcelas que a vontade do homem extraia do nada. Sob esse aspecto, a diferenc;a com os Estados do Leste salta aos olhos: aqui, as fronteiras dos Estados, dos condados, obedecem a investidas caprichosas, descrevem curvas, fazem desvios sem raz6es aparentes, exatamente co­mo as da Europa. Transpostos os Alleghenies, as fronteiras administrativas nao conheciam outras leis seniio as da geo­metria abstrata: fronteiras tra~.radas a cordel, acompanhan­do a rede convencional de meridianos e paralelos. N:io havia passado nem geografia arespeitar. Esse contraste visual cor­respondia a uma difereno:;a efetiva: o Leste era ainda urn pedar;o da velha Europa; o Atliintico mais reline do que separa essas duas margens de urn mar interior. Os Alleghe­nies separam dais mundos: do !ado de l:i estava verdadei­ramente a t3.bua rasa onde se iniciava uma experiencia sem precedentes, onde a hist6ria recomeo:;ava, o cadinho de uma nova sociedade.

A ocupapio do solo - A partir de que elementos? 0 povoamento do Oeste esta em rela~.rao estreita com o outro grande capitulo demogratico da hist6ria americana, a imigra9iio europeia. Durante todo o seculo XIX, uma car­rente continua, primeiro exigua como urn riacho, depois engrossando incessantemente, sobretudo a partir de 1848, atC se converter numa onda torrencial, despejou milh6es de europeus na America. Imigra~.rao muito dfspar em todos os aspectos: depois de 1848, a contribuir;iio alema ultrapas-

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sou o elemento britlinico ou escandinavo; o proscrito polf­tico acotovelava-se como filho de famflia cheio de dividas, o comerciante falido com o openirio desempregado; todos iam refazer sua vida, esperando encontrar liberdade e fortu­na. Mas a correla~.rao entre a chegada dos europeus eo po­voamento do Oeste niio e direta: niio foi essa imigra~.riio que alimentou diretamente o movimento para o Oeste, pais os recem-chegados procuravam obter trabalho, de prefe­n~ncia, nos portos ou em suas proximidades, substituindo os americanos de cepa mais antiga que haviam partido rumo ao Oeste. A imigra~ao da Europa e o movimento para o Oeste constitufram assim as etapas distintas de urn ciclo em dais termos que deslocou pouco a pouco o centro de gravi­dade da popula~ao americana das costas para o interior, de Nova York para Cincinnati. Os pioneiros abandonaram as cidades, as regi6es habitadas, atendendo ao chamado da aventura que seus ancestrais j<i tin ham ouvido. Nada havia neles que lembrasse esse apego quase religioso do campones europeu a nesga de terra onde dormiam seus av6s. 0 farmer americana preferia sua atividade livre e sua solid<io ao solo onde ele a exercia. Por isso mio era raro que agricultores retomassem tres ou quatro vezes em sua existencia o cami­nho do Oeste: o caso do pai de Lincoln, freqli.entemente citado, que passou sucessivamente do Kentucky para India­na e da Indiana para Illinois, esta Ionge de ser excepcional. Humanidade errante que precedia a civiliza<;3.o e retomava sua marcha assim que esta a alcan<;asse. Sua progressao fez­se por saltos sucessivos: a hist6ria do povoamento do Oeste e a de dais movimentos sobrepostos.

A fronteira de povoamento assinalada pela linha de demarcac:;:ao entre os territ6rios desbravados e o espac:;:o ain­da virgem era uma frente perpetuamente m6vel: ora avan­c:;:ada, ora recuada, raramente coincidia com a fronteira poll­tica. Por outro !ado, a mesma localidade via passar ocupan­tes sucessivos; foi esse revezamento continuo que deu a van­guarda forc:;:a bastante para avanc:;:ar sempre, cada vez mais fundo e mais Ionge, rumo ao Oeste. Primeiro, penetraram nos poucos passos que permitiam transpor e veneer as gar­gantas dos Alleghenies; depois, desceram a vertente oposta

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c seguiram ao Iongo dos rios que abriam profundas cicatrizes no espesso manto da floresta: o Ohio era a principal via de penetrac:;:ao, com seu sistema de afluentes. A via fluvial foi tambem urn caminho que avan<;ava: passava-se da carro­~a a jangada, construfda rapidamente poresseshomens afei­tos ao trabalho de lenhadores; meia dllzia de golpes de ma­chado e embarcava-se num barco de fundo chato (flat boat) 4ue permitia escapar aos traic:;:oeiros bancos de areia que o rio cscondia. Mais tarde, no delta do Mississipi, seriam utilizados sobretudo os wagons, carroc:;:6es com toldos de lona, puxados por cavalos ou uma parelha de bois. Atingido o final da longa viagem, marcado pelo limite extrema do povoamento, descarregava-se a embarca<;iio, cujas t<ibuas iriam servir para erguer urn abrigo provis6rio; derrubavam­se as :irvores em redor do barraco, deixando para arrancar os tocos mais tarde, e semeava-se urn pouco de trigo ou milho na clareira; criavam-se algumas galinhas. No ano se­guinte, destocava-se o terreno, ampliava-se o perlmetro da clareira, faziam-se melhorias no barraco. Alguns pioneiros vinham logo estabelecer-se nas vizinhant;as, ou seja, a uma ou duas milhas de dist<'incia. Por toda a parte, de Iugar em lugar, sob os machados, a floresta era aberta em mil clarei­ras, as quais se uniam pouco a pouco, ligadas pelas sendas c atalhos dos lenhadores. Niio tardava que algum comer­ciante esperto abrisse urn armazem com uma taverna anexa, onde os pioneiros encontravam os artigos indispensliveis: scmente, p6lvora, sal, pregos, ferraduras, tecidos. Esbo~.ra­va-se urn come!;O de vida coletiva, entrava-se em entendi­mentos para edificar em comum urn ediffcio que funcionasse simultaneamente como escola, templo e tribunal, RQ dia em que urn juiz estivesse de passagem, elegiam os respon­s<iveis para zelar pelos interesses da pequena comunidade. Nascia uma aldeia: aventura emocionante em que a civili~ za<;<lo se propagava com uma vitalidade maravilhosa. Esse longfnquo pedat;o de terra estava desde entao ligado ao res­to do mundo: uma estrada de liga!;:io, urn posto do correio federal, urn agente delegado da administra(f<lo pUblicae ei-lo incorporado a vida da Da!;<lO. Aqueles que preferiam a solidao a sociedade dos homens e a aventura individual 3.

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explorac;ao regular ja haviam retomado sua marcha e reco­mec;avam mais adiante uma segunda e uma terceira expe­riencia. Como isso se repetia ano apOs ano, nasciam assim centenas de novas povoados. Foi esse conjunto de inicia­tivas de desbravamento em toda uma extensa frente que fez expandir todos os anos o corpo dos Estados Unidos; foi tambem a soma dessas aventuras individuais que forjou uma nova nac;ao.

Uma nova sodedade

Se o modo de vida tern algum efeito sabre o comporta­mento, poucas..situac;6es se prestariam melhor ao nascimen­to de urn novo tipo de homem: trabalhador esfor~ado, pron­to para brigar, inca paz de ardis, tacitumo com efus6es brus­cas, realista e, no entanto, prenhe de grandes impulsos de idealismo politico ou religioso, ele isolou e ampliou alguns dos tra~s mais tipicos do caniter americana. Esses homens rudes eram os herdeiros legitimos dos peregrinos do Mayflo­wer, mesmo que os descendentes naturais destes llltimos nao os reconhecessem e ficassem desconcertados com suas maneuas.

A pr6pria vida religiosa adaptou-se ao modo de vida e ao humor deles: pregadores itinerantes, batistas ou meto­distas, visitavam-nos de Ionge em Ionge e realizavam reu­ni6es ao ar livre com eles, cujo misticismo primitivo e devo­~iio manifesta escandalizavam as fieis das Igrejas oficiais quase tanto quanta os viajantes europeus. 0 Oeste era a terra chissica das campanhas religiosas, o domfnio de elei~iio de todas as seitas, dos m6nnons aos adventistas. Essa socie­dade nova era igualitaria; nenhuma diferen~a de fortuna, no come~;o, entre esses homens: filhos de seu trabalho e de suas obras, menosprezavam as superioridades sociais ba­seadas no nascimento ou na heranc;a; cada homem valia, aos olhos deles, a for~;a de seus brac;os, sua tenacidade, resis­tencia ou habilidade. 0 fennento democnltico inclufdo nes­sa existencia iria transformar, pouco a pouco, toda a socie­dade americana.

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Os novas Estados - Primeiro, em nivel local, como 0 afluxo de imigrantes, a populac;iio do Oeste aumentou rapidamente: de 700 mil, no inicio do seculo, passou para urn milh:'io em 1810 (recenseamentos decenais), ultrapassou os dais milh6es em 1820 e aproximou-se dos tres milh6es em 1830, comparada a uma populac;<io nacional de 12,9 mi­lh6es. As condic;6es impostas pela Ordenac;:'io de 1787 aos territ6rios para tomarem-se Estados eram rapidamente preenchidas. Da nebulosa primitiva desprendeu-se urn mi­mcro crescente de Estados. Em 1820 j<i eram oito: Luisiana (1812), Indiana (1816), Mississipi (1817), Illinois (1818) e Alabama (1819). Esses novas Estados, que mio tinham de considerar situac;6es adquiridas nem tradic;6es, e ainda me­nos de atender a uma classe de propriet<irios ( constituiam t<ibua rasa do ponto de vista das instituic;6es), outorgavam­se constituic;Oes nitidamente democr<iticas: o sufnigio uni­versal era af a regra geral (em Ohio, desde 1803). Foram as primeiras sociedades organizadas a fazer essa experien­cta.

Riscos de desunido e progresso das comunica{:6es -0 surgimento desses novas Estados rulo deixou de apre­~cntar urn problema a Uni<io e de fazer pesar uma ameas:a para sua unidade polftica e moral: como manter unido urn territ6rio tao vasto e que mlo parava de crescer? As dist<in­cias aumentavam de forma incessante, as rela¢es disten­diam-se. Numa epoca em que o passo dos cavalos ainda fixava o comprimento das etapas, alguns desses Estados en­contravam-se a semanas de Washington: como podia a ad­ministras:ao fazer sentir sua influencia e exercer urn controle a tais distancias? 0 risco de uma secess:'io de fato nao era imagimirio. 0 mesmo problema ocorria nas relat;Oes comer­ciais. E seria multo pior depois de 1848: a CalifOrnia s6 poderia comunicar-se com as regi6es do Leste pelos istmos da America Central ou pelo cabo Horn. 0 desenvolvimento dos meios de comunicac;ao - estradas e canais- tornou-se preocupac;ao constante e uma das principais tarefas do go­verna federal e dos Estados, no sentido de evitar urn possivel desmembramento. Os Estados do Leste conheceram na de-

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cada de 1820 uma febre de canais, esfor~ando-se cada urn dos grandes portos por atrair para si o tnifego do Oeste: Nova York, Baltimore, Filadelfia. A abertura do canal Erie, em 1825,ligando o vale do Hudson ao !ago Erie pela depres­siio do Mohawk entre Albany e Buffalo, aproximou brusca­mente dos portos atl<inticos a regi:io dos Grandes Lagos. Nessa circunst3ncia, a unidade americana foi seiVida pelo progresso tecnico: a revolm;ao dos transportes foi, em defi­nitivo, o melhor agente da coes:io dos Estados Unidos -a estrada de ferro ontem, o aviao hoje. Os meios de comuni­ca~ao sempre tiveram nos Estados Unidos, em virtude de sua imensidade, mais import<incia do que em outros pafses: indispens:iveis ao funcionamento normal do Estado, con­correram tambem para o nascimento de uma consciencia comum.

Mas o desenvolvimento do Oeste n:io comprometia a unidade americana apenas em conseqiiencia da dilatar;<io do territ6rio: submetia-a a uma rude prova pelas dissens6es que continha em germe. Num certo sentido, o progresso das comunicar;6es amea~ava ate agrav<i-las: esses lenhado­res, esses desbravadores de terras iriam, na conviv€ncia mais freqiiente, descobrir-se muito diferentes dos advoga­dos e comerciantes da Nova Inglaterra, dos grandes latifun­di<irios da Virginia, por seus costumes e tambem por seus interesses. Nao era sem relut.iincia que aceitavam a tutela dos banqueirose negociantes do Leste. Quais seriam as rela­¢es entre essa nova America, que, Ionge de renegar os princfpios de 1776, deles extrala todas as conseqii€ncias, e a antiga, ainda que bastante jovem?

A era de Jackson eo impulso democrtitico- 0 mal-en­tendido seria evitado em virtude das instituir;Oes. 0 ardor igualit:lrio dos novas Estados contaminava os Estados mais antigos, que reviam suas constituir;6es a fim de introduzir tambem nelas disposir;6es mais democr:iticas, eleir;<io por sufr:lgio universal para presidente, membros do Congresso, juizes, funcion:irios locais. Consumaram a separar;:io entre o Estado e as Igrejas. Sobretudo o Oeste pesava cada vez mais no equilibria de forr;as: o centro de gravidade politico

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deslocou-se em dire<;:<io a ele. Em novembro de 1828, pela primeira vez, ap6s uma tentativa infrutifera em 1824, o Oes­te fez eleger urn dos seus para a presidencia. A elei~ao de Jackson interrompeu a serie de presidentes virginianos e p6s fim ao monop61io da magistratura suprema pelos anti­gas Estados. 0 Oeste reencontrou nele suas quali~ade~ e seus defeitos: energia e brutalidade, fraqueza e obstmar;ao. Sucessivamente agricultor, mestre-escola, advogado, mili­tar, Jackson exerceu todos os offcios, guerreou contra os indios, perseguiu os espanh6is, jogou os ingleses ao ma_r c combateu seus advers:irios politicos com a mesma tenact­dade com que enfrentou os inimigos de seu pals. Sua elei¢? foi duplamente simb6lica: significava que o Oeste era efetl­vamente parte integrante da Uniao e atingia finalmente a igualdade de direitos; marcou tambem uma etapa no ca­minho da evolu~ao democnitica, companivel a eleir;:io de Jefferson. Os dois aspectos eshio ligados entre si: foi o avan­r,:o rumo ao Oeste que acentuou a evolur;ao democr:itica. Sob a presidencia de Jackson (1829-1837), a sociedade ame­ricana desenvolveu suas virtualidades democniticas: abriu­se uma nova era, deflagrou-se uma verdadeira revolu¢o nas instituir;6es que, de liberais, tornaram-se efetivamente dcmocr:iticas. Foi o quadro dessa transfonnar;ao, que nao ~c realizou sem efervescencia e cuja amplitude surpreende o observador europeu, que Tocqueville trar;ou em sua I!e­mocracia na America. Fie! a concepr;:io jeffersoniana da m­dependencia dos Estados, Jackson travou !uta contra o pri­vilegio do Banco Nacional que, aos olhos do Oeste, enc~r· nava o capitalismo do Leste. Inaugurou, numa escala tao ampla quanta lhe pennitia a extensao da admini~tra~ao, o spoils system, que contribuiria muito para sua tmpopu~a· ridade na Europa, mas era inteiramente adequado ao prm­cfpio democr<itico, porquanto delegava o exercicio das funr;6es administrativas aqueles que tivessem obtido a con­fianr;a da maioria. Os Estados acabaram por adaptar suas constituir;6es as novas condir;Oes da vida politica: por toda parte as oligarquias tradicionais foram despojadas de seus privi\egios polfticos. A escola eo jornal, esses dais pilares do regime democnitico, esteios da ascensao social, conhe-

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ceram urn desenvolvimento paralelo: gra~as a eles, o povo estava apto a fazer parte crescente da vida polftica. Tanto politica quanta socialmente, sob a press:io dessa sociedade nova que crescia, os Estados Unidos estavam em condi~6es de se tomarem uma democracia.

Ao mesmo tempo, o pais assumia uma consciencia mais clara de uma originalidade que se afirmava no mais alto grau. Ele experimentava a democracia efetiva, ao passo que os Estados europeus, mesmo as mais evoluidos, viviam ain­da sob urn regime estreitamente censitfirio. A originalidade americana exprimia-se ate no dominio do espirito: duas ge­ra~()es de escritores obrigaram a Europa a rever suas convic­c:;::io de que os Estados Unidos jamais teriam uma literatura nacional. Ap6s Washington Irving e Fenimore Cooper -cuja reputac:;:iio se iguala ados maiores enos quais se salida urn Walter Scott americana-, Melville, Hawthorne e Poe asseguraram a continuidade. Uma grande revista, a North American Review, sustentava a compara~iio com as revistas brit<inicas. Emerson elaborou uma doutrina filos6fica origi­nal, de acordo com o idealismo e o pragmatismo amcri­c_anos. 0 unitarismo propOs uma religiao, urn dogma simpli­flcado. Por toda parte explodia a vitalidade desse povo que niio tinha mais motivos para temer a comparac:;::io com os demais e podia estar legitimamente orgulhoso de seu exito e_m todos os dominios: encontrou o seu pr6prio caminho, tmha confiam;a em seu destino e persuadiu-se de poder ir tiio Ionge quanta quisesse.

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CAPITULOV

A escravatura e a Guerra de Secessao

Divergencias entre Norte e Sui- Assim, o desenvol­vimento intenso do sistema de comunica9-)es e a evolu~:io democnitica da socidade americana trabalharam em con­junto para aproximar os novas Estados dos antigos: uma solidariedade de interesses esbo~ava-se entre as economias do Estado industrial e as do Oeste agricola: os costumes e os espfritos hannonizavam-se. Ao mesmo tempo, e quase no mesmo ritmo, o Norte afastava-se do Sui, os vfnculos entre eles enfraqueciam e as divergencias acentuavam-se. A independencia dos Estados Unidos alicerc:;:ara-se na asso­ciac:;:ao das colOnias das duas regi6es; a solidez da Uniao passara a basear-se depois no govemo em comum de bosto­nianos e virginianos. A partir de 1830, urn con junto de cau­~as levou ao questionamento progressivo, em todos os pia­nos, desse entendimento fundamental.

Em primeiro Iugar, foi o desenvolvimento econ6mico da Uni:io que fez divergirem o Norte e o Sui. 0 Nordeste industrializava-se, o Sui permanecia exclusivamente agrico­la, mas, em vez de tomfi-los complementares, tal distinc:;::io colocava os respectivos interesses em contradic:;:ao. A indUs­tria do Nordeste, principalmente a textil, essencialmente mec<inica, teve seu progresso favorecido pela segunda guer­ra de independencia, que interrompera as correntes comer­ciais habituais e privara bruscamente o mercado americana dos produtos brit<inicos. Restabelecida a paz, o Congresso, a pedido dos fabricantes incapazes de lutar contra a concor­rencia das manufaturas europeias, prolongou esse isolamen­to artificial atraves de tarifas aduaneiras. Protegida por essas barreiras, periodicamente aumentadas, a indUstria da Nova lnglaterra dispOs do monop6lio do mercado nacional.

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0 interesse do Sui tornou-se exatamente contnirio, com a expansiio da cultura do algod:io, que pouco a pouco suplantou as outras; sobretudo depois da invem;:iio da desca­ror;adora (1793), o algodao invadiu todos os terrenos, domi­nou a economia. No Sui, tudo passou a subordinar-se a ele. Essa monocultura orientou a economia sulista para o estrangeiro, do qual ela se tomou dependente no mais alto grau: era para os fabricantes do Lancashire que os fazen­deiros vendiam o grosso de suas safras de algod<io; recipro­camente, estes se supriam na Inglaterra; erarn levados a isso com freqiiencia por cl<iusulas financeiras: tendo pouca liquidez, vendiam suas colheitas antecipadamente e viviam de adiantamentos por conta concedidos pelos bancos ingle­ses. De gostos refinados, amando o luxo a que estavarn hereditariamente acosturnados, preferiarn os artigos euro­peus, cu ja qualidade era habitualmente superior a dos fabri­cantes americanos. De todo modo, o interesse deles residia em manter a concorrencia entre produtos europeus e ameri­canos. Outras tantas raz6es para defenderem o livre comer­cia e para se enfurecerem ao ver o Congresso anuir aos pedidos dos fabricantes do Nordeste.

A querelae a nulifica~ao- 0 antagonismo a prop6sito das tarifas alfandeg<irias tomou-se t:io agudo que foi trans­posto para o plano constitucional e perturbou mornenta­neamente a uni:io dos Estados. Houve no Sui homens polfti­cos para indagar seriamente se urn Estado, dividido entre a defesa de seus interesses vitais e a obediencia a legisla(_;:<io federal, nao teria o direito de considerar nul as as disposi96es que comprometiam sua existencia. Calhoun elaborou a teo­ria da nulificariio, e a Carolina do Sui, que estaria sempre a testa de todos os movirnentos em defesa dos direitos dos Estados, aliou-se a esse modo de pensar. Ressurgia com toda a for!_<3 a velha controvt!rsia sobre os direitos respec­tivos do Estado federal e dos Estados, entre federalistas e republicanos. Calhoun e a Carolina encontraram com quem medir forr;as: o presidente era Jackson, que se mos­trava resolvido a usar de todos os meios para reduzir o Est a­do dissidente a obediencia. Paradoxalrnente, o homem a

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quem incurnbia a tarefa de fazer respeitar a autoridade do govcrno federal era o herdeiro espiritual desses republica­nos t:io aferrados aos direitos dos Estados. A firmeza de Jackson foi eficaz: a Carolina n:io conseguiu arrastar os ou­tros Estados; a gente do Sui n:io desejava o rompirnento; Henry Clay interveio como rnediador: estabeleceram-se os termos de urn compromisso. 0 rompimentofoi evitado, mas os pontos de vista nem por isso se aproximaram.

A escravatura em questiio- Em seguida, o objeto do dcsacordo muda: de econOmi'co, torna-se social - deixa de ser o regime aduaneiro para passar a sera escravatura. Os Estados Unidos n:io tinham a menor responsabilidade pela origem da instituir;:io desta Ultima e quase nenhuma par sua manutenr;ao. Fora uma heranr;a da dominar;ao brita­nica, do perlodo colonial: o novo govemo recebera-a com tudo mais, sob reserva de verificar;ao. A questao da abolir;ao fora apresentada em 1787, mas os constituintes nao se reco­nheceram como direito de decidir a respeito, sendo a escra­vatura uma forma de propriedade. Consideraram mais avi­sado confiar na a~_;:ao do tempo, esperando que se extinguisse gradualmente. Pensavam ter feito o bastante ao fixar o pra­w de vinte anos para a total abolir;ao do trafico de escravos: o mal estaria assim circunscrito. Sabre esse ponto, o otimis­mo dos fundadores, confiantes no progresso dos espiritos, foi frustrado: Ionge de desaparecer por si mesma, a escrava­tura, apesar da entrada em vigor da abolic;:io do tnifico (1807), tomou urn impulso imprevisto; nunca conhecera tal desenvolvimento. Simplesmente, a criac;<io havia substitu(­do a importac;:io. 0 responsavel era ainda o algod<io, cuja cultura em areas sempre crescentes exigia uma m:io-de-obra servil e cada vez mais numerosa. N<io se acreditava que sua produr;ao, mormente a colheita penosa, sob urn sufo­cante_ calor Umido, pudesse ser assegurada por trabalhado­res brancos. Nas grandes plantations, os rebanhos de escra­vos, rudemente conduzidos por capatazes, comer;avam a ~ubstituir alguns negros que faziam parte da familia. A es­cravatura, ao desenvolver-se, tornava-se ainda mais desu­mana. Ao mesmo tempo, sua necessidade conferia-lhe uma

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aparencia de justificac;::io e fazia dela a pedra angular de toda a economia do Sui.

E tambem de sua ordem social: a plantation n:io podia mais passar sem cia. Sua supress:io teria acarretado a frag­mentac;::io da propriedade, a rufna material dos fazendeiros e tambem o desmoronamento dessa sociedade que lhes pa­recia preservar valores de civilizac;::io superiores aos dos ian­ques. 0 charme dessa sociedade elegante, hospitaleira, cul­tivada, dependia da conservac;:ao da escravatura. Assim, era por tudo o que lhes era caro - recordac;:6es da "inft.inda, tradic;:6es familiares, costumes sociais - que os sulistas achavam-se vinculados a escravocracia. cuja manutenc;:iio significava tam bern a garantia de sua liberdade, o sinal de poderem conservar suas instituic;:6es particu\ares. Parado­xalmente, a perda definitiva da liberdade dosnegros tornou­se o simbolo da liberdade do Sui.

A campanha abolicionista- No Norte, a consciencia pUblica comec;:ava a sentir-se abalada diante de urn estado de coisas que manchava a reputac;:<io da Uniao e contradizia os grandes prindpios da Constituic;::io. Alguns precursores, em especial os quakers, j<i vinham de longa data fazendo campanha peia abolic;:iio da escravatura. Eram. no comec;:o. vozes iso\adas, generosas e exaltadas, que denunciavam sem discemimento a crueldade da escravatura: Garrison, Love­joy, com freqiiencia indivfduos muito malvistos por seus concidadiios, e v;irios deles perderam a vida em tumultos de rua. Conquistaram pouco a pouco para suas ideias setores cada vez mais amplos da opiniiio; as Igrejas intervieram; sobretudo, o movimento aderiu a corrente filantr6pica e humanit<iria que atravessava a sociedade americana e crista­lizou em seu proveito as aspirac;:6es profundamente idea­listas sempre \atentes na alma do povo. 0 problema, por muito tempo considerado secund:irio - assunto dos Esta­dos do Sui-, eclipsou pouco a pouco todos os outros, ate converter-se no problema nacional. A partir da publicac;:<io do famoso romance de Harriet Beecher-Stowe, A cabana de Pai Tomas (1852), que conheceu urn sucesso fulminante tanto nos Estados Unidos como no estrangeiro, nenhum

americana pOde abster-se no debate entre defensores da cscravatura e partid<irios de sua abolic;::io. Trocaram-se argu­mentos de toda natureza: considerac;:Oes gerais e dados cir­cunstanciais se entrecruzaram. Os abolicionistas tomaram a iniciativa: subiinharam com veemencia a profunda injus­tic;:a e a desumanidade de uma instituic;::io que rebaixava se­res humanos a condic;::io de coisas, que os vendia em leilao, mlo levando em conta os la.c;:os de casamento, separando o~ maridos das mulheres, os fithos dos pais, num incita­mento permanente a devassidiio. N:io se compactuaria com o mal: a escravatura devia, pura e simplesmente, ser aboli­da, e, tanto quanto Q tratico, tambem a criac;::io de escravos tinha de ser proibida. Conversa de ide6logos, replicavam os anti-abolicionistas, que se entrincheiravam no imperativo cconOmico. Pessimo argumento: nao era uma constante, amplamente comprovada, que o rendimento da mao-de­obra assalariada fosse superior ao da servil? Em Ultimo re­curso, o argumento supremo dos escravocratas foi o direito dos Estados a pronunciarem-se livremente sobre urn proble­ma que s6 a eles dizia respeito e que afetava seus interesses superiores. Argumento perigoso, porque transferia a con­troversia para o terreno constitucional e colocava em xeque o prOprio fundamento da Uniiio: faca de dois gumes, por­quanto podia muito bern voitar-se contra o Sui, se fosse provado que a escravatura comprometia a liberdade ou os interesses do Norte.

0 Oeste tornou-se o objeto, da competifiio - Ora, era precisamente esse o caso. Taivez o debate tivesse podido manter-se no ambito te6rico num pais est<ivel, de contornos definidos de tonga data, de desenvolvimento tao Iento quan­ta regular: Norte e Sui teriam podido chegar a acordo com base em algumas concess6es mdtuas. Foi o prOprio dina­mismo dos Estados Unidos, mormente sua expans:io territo­rial e seu crescimento econOmico, que colocou a quest:io da escravatura no centro da vida politica, tornando periodi­camente caduca o equilfbrio provis6rio instaurado a custa de acomodamentos entre Estados livres e Estados escravo­cratas. Norte e Sui entregaram-se a uma acerba competic;::io

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em que o Oeste estava em jogo. 0 Sui tinha necessidade dessas terras novas para ampiiar o reino do algodao, cuja cultura extenuava o solo; co\onizou o Arkansas, subiu ate o Missouri. Mas a terra nada significava para o Sui sem a faculdade de usar os escravos no cultivo; portanto, dai se originou a campanha sulis ta para ten tar fazer com que csses novas Estados adotassem constitui~Oes admitindo a escravatura. Foi ent<io a vez do Norte temer por suas pr6-prias institui~6es. A introdu<;<io da escravatura nos novos Estados seria, em curto prazo, a expuls<io dos agricultores livres. Iniciou-se uma corrida de velocidade entre os dois grupos de Estados, cuja meta era a maioria no Senado, on de cada Estado, antigo ou novo, dispunha de duas cadei­ras. Disso dependia, para as duas partes, sua existt!ncia, seu modo de vida, uma forma de civiliza<;<io, como tambCm a manuten<;<io e o futuro da Uni<io. 0 Suilutava com toda a energia que !he restava, aqueia que o desespero inspira nas sociedades que se sentem doravante condenadas pela for<;a dos fatos. A Inglaterra suprimiu a escravatura em suas col6nias a partir de 1833, a Fran~a fez o mesmo em 1848. A escravatura declinava por toda a superficie do globo. Na RUssia, estudava-se a aboli<;iio da servid<io.

Os compromissos sucessivos- Mtituas concess6es pu­deram, por urn tempo, conciliar os pontos de vista e adiar o conflito. Urn primeiro cornpromisso, o chamado Acordo do Missouri, em 1820, cornpensou a admissiio do Missouri, Estado com escravos, pelado Maine: no futuro, urn limite fixado no 36°30. de latitude separaria os dois grupos: a liber­dade da servidiio. Os poderes cuidavam zelosamente de manter o equilfbrio: os Estados entravam aos pares na Uniiio, urn Estado livre fazendo contrapeso a urn escravo­crata e reciprocamente. Mas o crescimento nipido da Uniiio transtornou essas s<ibias combina<;6es: qual seria o status dos territ6rios cedidos pelo Mexico, boa parte dos quais estava situada ao sui do fatfdico paraielo? E se esses nume­rosos Estados proibissem a escravatura, como foi o caso da CalifOrnia, teria o Sui algoma justifica~ao para impd-la contra a vontade deles? Por outro !ado, que fazer dos escra-

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vos fugitivos, refugiados no territ6rio de Estados livres'! 0 Sui exigia sua restitui<;iio; no Norte. a opiniiio pUblica, insti­gada pelos abolicionistas, revoltava-se com semelhante idCia. Novo ajuste em 1850, sugerido de novo por Henry Clay, urn conciliador nato, e adotado no Senado ap6s deba­tes patCticos: admissiio da CalifOrnia como Estado livre; restitui<;iio dos esci"avos fugitivos a seus propriet<irios; su­pressao do comCrcio de escravos no distrito federal, onde a presen<;a dos mercados de gado humano insultava perma­nenternente a majestade do governofederal, o Novo MCxico e Utah decidiram livremente sobre a admissiio ou a aboli<;iio da escravatura. A trCgua durou tres anos. Nova transa<;iio em 1854, por instiga<;iio do senador Douglas: a linha do paralelo 36°30' caducou, e desde entiio os novos Estados teriam pronunciamento prOprio sobre a politica a adotar. Era uma aplica~ao do princfpio da soberania dos Estados; era tambem uma vitdria do Sui, que via abrir-se para si a possibilidade de invadir novos territ6rios. Os dois primei­ros territ6rios a exercer sua escolha foram o Kansas e Ne­braska, bern ao norte da antiga linha. Prevendo o resultado da vota.<;iio, o Sui despejou nesses dois territ6rios uma leva de imigrantes; o Norte replicou, enviando outra leva de pio­neiros.

Essas Iotas repercutiram muito alem desses dais territ6-rios: em toda a Uniiio, tornados de uma crise de consciCncia nacional que dividia as familias, os partidos, os pr6prios cidadiios, os partidos cindiam-se, desagregavam-se, opera­va-se urn realinhamento em fun<;iio das posi~6es assumidas em rela~ao a escravatura: desacreditados por sua polftica protelat6ria, os politicos whigs defrontaram a concorrencia de uma nova forma<;ao polltica, o Partido Republicano, constituido em 1854. Seu programa: cooter a escravatura em seu domfnio tradicional, na impossibilidade de sua aboli­<;<io, e manter a Uni<io. Estava decidido a frustar a chanta· gem da secessao que o Sui praticava cada vez mais aberta­mente. Por seu lado, os not<iveis do Sui encaravam seria­mente essa possibilidade, se fosse necess<irio optar entre a Unilio e a manuten~o da escravatura. Caminhava-se de urn !ado e de outro para a separa<;iio. As paix6es adensa-

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vam-se. 0 ac6rd<io do Supremo Tribunal nocaso Dred Scott (1857), negando ao Congresso o direito de excluir aescrava­tura dos territ6rios, revoltou os defensores do Free Soil (So­lo Livre}. A lament:ivel aventura de John Browne seu desfe­cho levaram os sentimentos a urn paroxismo (1859): John Brown, urn exaltado, tentara assaltar o arsenal federal de Harper's Ferry, na Virginia, para sublevar os escravos. Cap­turado, foi condenado e enforcado. 0 Norte, embora m'io aprovando seu gesto, reverenci:ou-o como urn m:irtir; o Sui, inquieto com a possibilidade de reedi((<io desses ataques as suas institui((6es, considerou-se em estado de legitima defesa.

A eleip'io de Lincoln - Nessas condi~6es. a elei\<'iO que devia designar o sucessor do presidente Buchanan, elei­to em 1856 como apoio do Sui, revestia-se de import<incia capital. A multiplicidade de candidaturas atestava a excep­cional gravidade da situa~ao e as profundas divis6es dos partidos. 0 sistema tradicional j:i nao funcionava: quatro candidatos, em vezdos dois concorrentes habituais, disputa­vam os sufnigios. A conven\<'iO democrata, mlo tendo podi­do chegar a urn acordo consensual, levou os democratas do Sul,_ que reclamavam uma legisla~ao que protegesse a escravatura, a escolher Breckinridge, ao passo que os do Norte apresentaram a candidatura do senador Douglas, de Illinois, o inspirador do compromisso Kansas-Nebrasca, cujo desejo era contemporizar com o Sui. Essa divis3o dos democratas faria o jogo de seus advers<irios. 0 jovem Partido Republicano escolheu urn advogado de Illinois, Abraham Lincoln, a quem uma veemente campanha eleitoral contra o senador Douglas (1858) tomou repentinamente cele­bre em todo o pafs: Douglas fora derrotado, mas a contro­versia contribufra muito para esclarecer posi\()es. A conven­yio republicana m'io poderia ter feito melhor escolha: alem de ter suas qualidades pessoais, seu ar de sinceridade, sua for\a de persuas:io, os eleitores do Oeste reconheciam-se nele. Urn quarto candidato, Bell, colocara-se entre os pretendentes.

A Secessiio- Nenhum dos candidatos obteve a maio ria absoluta, mas Lincoln despontou com 40% dos votos. Os

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dois democratas, Douglas e Breckinridge, somavam entre des 375 mil votos a mais do que Lincoln, mas a divisao do Partido Democrata abriu a Casa Branca para o candida to rcpublicano. Ah!m da renova~ao do pessoal politico, a elei­((<iO de Lincoln iria acarretar as mais graves conseqUCncias. Scm mesmo esperar a posse do novo presidente, ou que ele definisse suas inten~.r6es de governo, a Carolina do Sui, sempre na vanguarda da dissidCncia, fosse contra Jackson ou Lincoln, considerando que o Norte elegera urn homem hostil a escravatura, tomou a iniciativa de sair da Uni<io (20 de dezembro de 1860); v:irios Estados sulistas segui­ram-lhe o exemplo. No inicio de fevereiro de 1861, os dele­gados de sete Estados, reunidos em Montgomery, no Alaba­ma, constitulram uma nova unidade polftica- os Estados Confederados- e elegeram urn presidente: Jefferson Da­vis. Quatro outros Estados, ap6s hesitarem entre a fideli­dade a Uni<io e a solidariedade sulista, aderiram aqueles. A questao da escravatura estava entao superada: o que se colocava em jogo era o direito de urn Estado de optar pela Secess<io. de retomar sua liberdade. Lincoln foi categ6rico: depois de sua posse, contestou peremptoriamente aos Esta­dos secessionistas o direito de romper unilateralmente o pacto federal. A Secessao ainda nao era a guerra: as guami­\<les federais no Sui abstiveram-se de toda e qualquer provo­ca((<'io. Foi mais uma vez do Sui que partiu a iniciativa: na madrugada de 12 de abril de 1861, a artilharia sulista abriu fogo contra Fort Sumter, a fortaleza federal que defendia o acesso ao porto de Charleston. A guerra foi deflagrada - aquela a que chamamos de Guerra de Secessao -, uma das mais atrozes guerras civis que a Hist6ria conheceu e tambem uma das rnais longas: ela durani, com a diferen~.ra de apenas tres dias, quatro anos completos, desde o ataque a Fort Sumter (12 de abril de 1861) ate a capitula~.rao de Appomatox (9 de abril de 1865).

A Guerra de Secessao ocupa urn Iugar excepcional­mente importante na hist6ria dos Estados Unidos. 0 corte que ela efetua nesta divide-a em duas partes quase iguais: mlo transcorremm muito menos anos desde a nomea\30 de Washington como comandante supremo ate o ataque

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a Fort Sumter do que entre a capitular;.iio do general Robert E. Lee e a presidencia do general Dwight Eisenhower. Sua importiincia n.iio consiste apenas em ser urn marco de refe­rencia. Ela divide efetivamente a hist6ria americana em duas epocas: encerra uma era e inaugura uma outra, que duraria pelo menos ate a grande crise de 1929, se e que niio se prolonga para alem dela, ao menos em certos aspec­tos. A Guerra de Secess.iio ainda hoje divide os espfritos. Ocupa na consciencia nacional urn Iugar superior ate aos epis6dios da Independencia, compar:ivel somente a Revo­lw;.iio de 1789 para a opiniiio francesa. Tal como essa revolu­~.r.iio continua sendo para os franceses urn assunto de contra­di~.r.iio, a !uta do Norte contra o Sui nos Estados Unidos ainda e urn tema de disc6rdia. 0 Sui evoca com nostalgia as lembran~.ras de seu antigo esplendor; com o distancia­mento no tempo, a Ieoda toma o Iugar da verdade hist6rica; esse periodo exerce sabre os esplritos, os escritores, os pr6-prios historiadores, urn misterioso fascfnio.

Norte contra Sui - No infcio do conflito, a !uta niio parecia muito igual entre os dais advers<irios. Eram fieis a Uniiio 23 Estados (em breve 25, com a constituir;.iio da Virginia Ociental e a admiss.iio do Kansas); 11 desligaram­se; 22 milh6es de homens no Norte contra 9 milh6es no Sui, e mesmo assim incluidos os 3 milh6es e meio de escravos negros, cuja presen~.ra inspirava o temor de uma rebeli.iio. A compara~.riio de recursos e de sociedades era ainda mais desvantajosa para o Sui: o Norte tinha a seu favor uma economia evoluida, todos os grandes centros industrials, os portos mais ativos, a mais densa rede ferrovi<iria, o sistema banc3rio mais aperfeir;oado, os recursos financeiros mais consider<iveis. Dispunha, sobretudo, dos meios necess<irios para bloquear as costas do Sui. Os mimeros e a organiza~.iio prometiam a vit6ria ao Norte e, no entanto, o Sui retardaria em quatro anos a bora da decisiio final: certos dados psico16-gicos e politicos anularam temporariamente o efeito dos fa­tares estrategicos e econ6micos. 0 Sui tamara a inidativa do rompimento; tomou tamb6m a das operar;6es. Possufa, mais do que o Norte, o sentimento de combater por sua

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cxistencia e essa convicr;.iio insuflou-lhe uma energia ind6-mita: as disputas partid<irias paralisaram o Norte. 0 Sui, mais do que o Norte, jogava na balanr;a a totalidade de ~uas forr;as: estabeleceu o servir;o militar obrigat6rio em 1862; o Norte somente urn ana depois, e seu recrutamento comportou grande ntimero de dispensas, ao passo que seu oponcnte mobilizou todos os homens disponiveis, jovens e velhos. Alem disso, o Sui estava mais bern preparado para sustentar uma guerra: como sociedade rural, de estrutura aristocnitica, teve mais condi~.r6es para transformar-se numa ~ocidade militar do que a sociedade urbana, industrial e democr<itica do rival. Habituados a viver ao ar livre, exerci­tados nas longas cavalgadas, amanda a a~.ra:o, os sulistas de­ram naturalmente excelentes soldados, e seus chefes milita­res eram muito superiores aos dos nortistas. Eies aliavam a iniciativa a disciplina. Desfrutavam tambem da mal disfar­~ada simpatia de varias grandes potencias. Mas, a Iongo prazo, essas qualidades niio puderam compensar a inferio­ridade numerica: os sulistas combatiam na proporr;a:o de urn contra tres ou quatro. De ano para ano, o Norte cerrava fileiras em torno do presidente, treinava para a guerra, man­dava para a frente efetivos carla vez mais consider:i.veis. Quando o desequilfbrio se to masse demas.iado flagrante, a guerra estaria ganha.

Por sua dura~.rao e amplitude, a Guerra da Secessao prenunciou as grandes guerras do seculo XX: eta j:i consti­tuiu uma guerra total, do tipo em que os advers:i.rios empc­nham todos os seus recursos e todas as suas forr;as. Alinhou efetivos consideniveis - dais milh6es de homens para o Norte, entre 700 mile urn milhiio para o Sui-, cujo equipa­mento, abastecimento em material, munir;Oes, subsisten­cia, criaram para os estados-maiores e para os govemos problemas delicados e mobilizaram todos os recursos da economia. Acondur;ao das operar;6es tambem lembra a.Pri­meira Guerra Mundial; guerra de posi~.riio em campo rasa, organizar;iio do tercena, trincheiras, combates furiosos e pro\ongados para resultados aparentemente desproporcio­nais as perdas (a batalha diante de Richmond durou sete dias. a de Gettysburg, tres), intensidade dos bombardeios,

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amplitude das baixas (mais de 600 mil mortos); no mar. a primeira utilizar;;:iodo navio encourar;;ado. Foi, enfim. uma guerra de material: o Norte esmagou o Sui sob o nlimcro e o peso de seu armamento.

Durante longos meses, as operar;;Oes marcaram passo, nenhum dos campos logrando alcanr;;ar uma vantagem acen­tuada sobre o outro. As duas capitais, Washington e Rich­mond, estavam a 200 km uma da outra, nessa plan(cie baixa compreendida entre o Atlintico e os Alleghenies, passando o front entre as duas. Nenhum dos dois exercitos conseguia tomar a capital inimiga. A decisiio viria do Oeste. Politica­mente, o Sui estava virtualmente condenado, a partir do momenta em que nao conseguira arrastar o Oeste. Estrate­gicamente, as tropas da Uni:io tornaram-se pouco a pouco senhoras de todo o vale do Mississipi, desde Vicksburg, a grande prar;;a sulista, ate Nova Orleans. Em 1864, o exercito do Oeste, sob o comando de William Sherman, avanr;;ou na direr;;:io sudeste, depois para leste, num amplo movimen­to que envo\veu a frente sulista pela retaguarda. Ocupou Atlanta, centro de toda a rede de comunicar;;Oes do Sui, e atingiu a costa em Savannah. As liltimas semanas pre­senciaram a agonia do Sui. Lee abandonou Richmond, e sua capitular;;:io, a 9 de abril de 1865, marcou o Ultimo ato da resistencia militar sulista. Nao foi o fim de sua resistencia psico16gica: o Sui, ainda hoje, leva a derrota para o julgamento da Hist6ria, por intermedio de seus escritores.

A derrota do Sui e a questiio do negro - A vit6ria do Norte resolveu definitivamente a questao, pendente des­de a fundar;;:io dos Estados Unidos, da hegemonia na Uni:io: dos dois modos de vida que ai coexistiam, qual predomi· naria? A civilizar;;ao oriunda da Nova lnglaterra- puritana, igualit<iria e democnitica, de predominio urbano e industrial - triunfou sobre a civilizar;;<io dos fazendeiros do Sui, aristo­cr<itica e ruraL A direr;;:io da Uni:io passou irremediavel· mente para o Norte. A democracia levou a melhor, e a evolw;<io iniciada por Jefferson, reatada por Jackson, teria seu prosseguimento com Lincoln.

lili

_0 Sui mlo s6 perdeu sua oportunidade de participar na duer;;ao comum, mas foi profundamente atingido e teve grandes dificuldades para recuperar-se do desastre. A guer­ra desenvolvida em seu prOprio solo semeou-o de rufnas; tropas federais ocuparam-no durante anos; govemos impas­tos pelo Norte substitu(ram os que tinham sido eleitos para tomar em m:ios a condur;;ao de seus neg6cios. As conse­qUencias da guerra, somadas a supressao do trabalho escra­vo, arruinaram a economia tradicional do Sui e sua aristo­cracia de proprietarios: as grandes plantations fragmenta­ram-se; a miio-de-obra dispersou-se; desfeitas as suas elites dirigentes. uma sociedade morreu. Na ocasiao, o problema da escravatura encontrava-se resolvido: em 1863, lincoln decidiu-se a alforriar os negros dos Estados revoltosos. Mas nem por isso a questao dos negros ficou resolvida: apenas mudou de aspecto. Quase urn seculo depois, os repetidos in­cidentes suscitados pela candidatura de negros a admiss<io em universidades do Sui mostram claramente que a Guerra de Secessiio, se resolveu brutalmente urn conflito, esteve Ion­ge de solucionar a quest3o do negro. Apreci:iveis progressos foram, entretanto, recentemente registrados: a decis:io do Supremo Tribunal de 17 de maio de 1954, declarando anti­constitucional a segregar;;iio escolar, marcou uma etapa deci­siva na integrar;:io dos negros; o republicano Eisenhower, em Little Rock, o democrata Kennedy, em Oxford (Missis­sfpi), impuseram o respeito a sentenr;a judici<iria enviando tropas federais para essas localidades.

A reconstru~iio - 0 Sui ja nao possu(a autoridades nem poderes regulares; era preciso preencher esse vazio, reconstituir governos, restabelecer uma vida politica e rein­tegrar os Estados vencidos na Uni:io. Tarefa infinitamente delicada, cuja execur;;ao uma circunstancia inopinada tornou ainda mais diffcil: o brusco desaparecimento do presidente Lincoln, assassinado por urn fan<itico, o ator Booth, cinco dias ap6s a capitular;ao de Appomatox (14 de abril de 1865), num momenta em que suas qualidades de inteligencia e de cora!;<iO eram ainda mais indispensliveis para reconciliar os irmlios inimigos e restabelecer a concOrdia do que haviam

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sido para cooduzir o Norte a vit6ria. Quem sabe, s6 en tao pudesse vir a ser avaliada a mcdida precisa de sua estatura de estadista. Seu sucessor, Andrew Johnson, era urn homem bem-intencionado, cuja intenr;ao teria sido a de continuar a poUtica de Lincoln. Mas ele entrou em conflito aberto com o Congresso, que o considerava demasiado fraco em relar;<i.o ao Sui. A Camara dos Representantes quis ate abrir processo contra ele. Niio foi reeleito em 1868: os republi­canos mais intransigentes, os radicais. fizeram eleger seu candidato, o general Ulysses Grant, o vencedor do Sui, cu­jas qualidades politicas estavam muito abaixo de seus talen­tos militares. Grant foi pessimamente assessorado, e a su­cessao de esc<lndalos e falcatruas em que se envolveram membros de seu govemo provocaram seu descredito. Em outros tempos, essa carencia do Executivo s6 teria acarre­tado pequenos inconvenientes; ao sair da guerra, pon!m, o desaparecimento de Lincoln, a fraqueza de Johnson e a imperfcia de Grant deixaram frente a frente, sem <irbitro, vencedorese vencidos. A rivalidade do Norte e do Sui soma­va-se uma competi<;:<io de partidos, entre republicanos e de­mocratas, que redundou num ajuste de contas. Os republi­canos praticaram a distribuir;<i.o de cargos pUblicos entre seus membros, como depois de uma eleir;iio, mas com uma dife­renr;a: o sistema foi aplicado em todos os Estados vencidos. Assirn, a "reconstrur;ao" foi feita num clirna de revanchis­mo, de 6dio e de ressentimento, que deixou tra~s profun­dos nas rnentalidades e pesou por Iongo tempo sabre a vida polftica americana, perrnanecendo o Sui inabalavelmente fie! aos dernocratas, ate nossos dias, por rancor aos repu­blicanos.

Aceitando sua derrota, a partir de 1865 o Sui reconhe­ceu a abolir;<i.o da escravatura e admitiu a superioridade da legislat;ao federal sabre ados Estados: consagrar;iio jurfdica da vit6ria militar do Norte. Entretanto, os politicos republi­canos entenderam assegurar-se da execur;lio desses princf­pios e colher os frutos de sua vit6ria. Uma emenda 3. Consti­tuir;:io, a 14~ (1866), ao mesmo tempo que declarava nula a divida dos Estados Confederados, fixou sanr;Oes contra os Estados que privariam alguns de seus cidad<i.os do uso

de seus direitos: por conseguinte, sua representar;iio no Con­gresso seria reduzida. Por outro !ado, todos os deputados 00 funcion<irios que tinham participado na insurreir;<i.o tive­ram retirados seus direitos polfticos: n<i.o podiam ser rnem­bros do Congresso nem ocupar nenhum emprego civil ou militar. lsso significava a exclus:io da vida polftica de rodas as personalidades sulistas. Lei de repres<ilias cuja du­rcza chocou o Sui e criou urn vazio que politicos do Norte .se aprcssararn em preencher. Eram aventureiros sem tost<lo,

4ue, ao chegar, s6 traziam urn pequeno saco de viagem, donde o apelido que ganharam de carpetbaggers: eleitos pe­los negros analfabetos, aos quais uma outra emenda, a 15~. concedera o direito de voto, apoiados nas tropas federais que ocupavam o pais, eles constituiram govemos ficticios, inescrupulosos, tomando, em nome do Sui, compromissos que a popular;iio, em seu foro intirno, repudiava. Esta, que nao se reconhecia nesses governos estrangeiros, nascidos da conjunr;:io dos ianques execrados e dos negros despre­zados, recorreu aos meios utilizados por todas as popular;Oes submetidas a uma ocupar;:io estrangeira ou cuja express:io politica natural fosse entravada por urn regime de excer;:io: sociedade secretas (Ku Klux Klan), ar;Qes clandestinas, ter­rorismo dirigido contra os brancos traidores de seu pais e de sua rar;a (scalawags), que nao temiam ligar seu destino ao dos polfticos do Norte, e contra os negros (linchamentos).

Pouco a pouco •. o tempo fez sua obra de apaziguamen­to: o desejo de vinganr;a esfumou-se, as pr6prias vioJencias dos sulistas acabaram por atrair a atenr;<i.o da opini:io pUblica do Norte para a situar;ao do Sui. Em 1872, uma lei de anistia anulou a incapacidade poli"tica da maioria dos brancos. Par­tanto, estes reconquistararn, urn ap6s outro, seus Estados pclo jogo normal das competir;Oes eleitorais: os carpetbag­gers foram afastados, as tropasfederais, retiradas. Em 1874, o Sui voltou a ser senhor de seu destino. A Reconstrur;:io estava tenninada.

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CAPITULO VI

Industrialismo e democracia

0 periodo que come~ava ent<'io e se prolongou, quase scm interrup~o considenivel, ate o preh1dio da grande De­pressiio (a participa~iio dos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial quase niio afetou seu desenvolvimento), durante uns sessenta anos, desconcerta -o historiador que niio mais discerne ai seus pontos de refen!ncia ordimirios: j<i niio h<i. o frescor idllico dos come~s. o heroismo ou a sabedoria dos tempos de Washington e de Jefferson, tam­ponca a tragedia da guerra civil. As cores empalideceram. A hist6ria perdeu seu interesse: a vida politica arrastou-se, sem vigor nem expressao, entre s6rdidas rivalidades que ~6 mediocremente afetaram a opiniiio pUblica. Onde esta­vam aqueles grandes impulsos sentimentais ou misticos que a agitavam de tempos em tempos? Busca-se em vao o reflexo de sse idealismo que parecia ser constitutivo do espirito ame­ncano.

Entretanto, esse perfodo, onde o que tece por toda parte a tram ada hist6ria se reduz ate desaparecer' e precisa­mente aquele em que a originalidade da hist6ria americana mais brilha. E tambem aquele a que melhor se aplica a intcrpreta~ao de alguns de seus historiadores (Charles A. Beard) que acreditaram poder reduzir todos os movimentos ao jogo das for~as econOmicas e as combina~6es de inte­resses dos principais grupos da sociedade americana. Tudo estava ordenado em fun~o da busca de Jucro; a adminis­tra~ao das coisas tinha prioridade sobre o govemo das pes­soas. Evolm;ao, afinal, em estrita conformidade com a con­cep~<io liberal do papel do Estado e da iniciativa individual, rejuvenescida pela filosofia de Spencer e Darwin: na !uta pela vida, a sele~ao natural devia favorecer os melhores para o bern da especie. Na ordem econOmica, o livre jogo da concorrencia devia igualmente agir no interesse de todos.

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Os fatos principals desse perfodo foram o avan~o demo­gnifico consecutivo ao movimento de imigra~ao, a conti­nua~ao da investida para o Oeste e a ocupayao do solo, a industrializac;;lo eo desenvolvimento econ6mico. Nenhum desses fatos afetou diretamente a polltica, mas todos !he interessaram indiretamente por seus contragolpes, entre ou­tros, por seus efeitos sobre as estruturas da sociedade. que, por sua vez, modificaram o equilfbrio das fo~as P?lfttcas:

A UnHio mio tinha esperado que a Reconstruc;ao tenm­nasse para retomar, segundo a metafora chissica que con­vern muito bern ao dinamismo desse povo, sua marcha para a frente. A bern dizer, a guerra ate que \he serviu de estimu­lo; o povoamento, por exemplo, mio. arrefece~, tendo o govemo federal usado de todos os metos para vmcular es­treitamente o Oeste aos territ6rios que permaneceram obe­dientes a Washington. Foi em plena guerra (1862) que o Congresso adotou o Homestead Act, que outorgava 160 acres de terra a quem os tivesse cultivado durante cinco anos; o liberalismo desse texto imprimiu urn novo impulso a imigra~ao e a ocupa~ao do solo. Foi tambem em plena guerra que se empreenderam as primeiras ferrovias trans­continentals.

0 melting pot - 0 nlpido e continuo aumento da popu­la~ao foi urn dos dados fundamentals do desenvol~mento dos Estados Unidos. De 31 milh6es, em 1860, nas vesperas da guerra, ela passou para 92 milh6es em 1910; portanto, quase triplicou em meio seculo. A hist6ria ofer~ce pou~s exemplos de urn crescimento tao nipido. Este deveu-se mats a imigrac;io do que ao crescimento natural: o volume de imigrantes aumentou ao ponto de, em certos anos (por exemplo, 1905), atingir o milbao. A cada dia, os Estados Unidos absorviam varios milhares de recem-chegados. Os americanos rejubilaram inicialmente com essa contribui~ao e felicitaram-se pela excepcional aptidlio do pais para ass~­milar esses estrangeiros e fazer deles outros tantos boos o­dadlios: exaltou-se o crisol (melting pot) americana. Mas, paralelamente ao crescimento numerico, operou-se uma mudam;a na origem dos recem-chegados: o povoamento se·

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tcntrional, brit<inico, escandinavo e germ<inico, continuou sendo importante em nUmeros absolutos, mas perdeu em import<lncia relativa: em 1890, pela primeira vez, entraram nos Estados Unidos tantos Iatinos e eslavos quanta origin<i­rios dos pafses n6rdicos. Essa inversao das propon;:6es nao ameac;ava alterar a composi~iio da sociedade americana? ~lgu~s o temiam e inquietavam-se com o que isso podia stgniftcar para a originalidade da civiliza~ao e a pureza da ra~a; preconizavam restric;Oes a imigra~ao. Essas apreen­s6es nao constituiam novidade, elas inspiravam periodica­mente rea~es de americanismo e de xenofobia (nativismo, know nothing*) contra os elementos estrangeiros. Mas o ~ri?? assumiu, em fins do seculo XIX, propor~Oes que JUShftcaram os alarmes. Entretanto, de momenta, os efeitos da imigrar;Ao continuavam sendo incontestavelmente bene­ficas: ela fomecia mio-de-obra para a indUstria, clientes para a indUstria naciona\, ocupantes para os territ6rios ainda vazios; sobretudo, os imigrantes imprimiam flexibilidade e mobilidade a sociedade americana. 0 exito surpreenden­temente ni.pido de tantos amcricanos que partir am da estaca z~ro e a facilida.de das rela~es sociais foram as conseqiien­ctas do afluxo mcessante de novos elementos na base da pir<i.mide social: era como uma corrente ascendente que le­vantava todo o ediflcio.

0 Jim da fronteira - Alimentada permanentemente pelo afluxo de imigrantes vindos da Europa, a investida para o. Oeste, ~ue nem mesmo a guerra interrompera, ganhou amda mats vigor. Atraldo pel as facilidades de con cessio de terras, depois pela descoberta em v<irias regi6es das Mon­tanhas Rochosas de jazidas met<ilicas (ouro, prata. cobre), o caudal humano submergiu a grande planlcie que se esten­de do Mississipi ate as primeiras eleva~6es, e depois foi bater

* K1Ww nothing era o ape lido dos filiados a urn partido politico secre­to dos Estados Unidos. na dt!cada de 1850, cujo programa consistia em manter fora de qualquer cargo pUblico quem nao fosse americano nato. Em linguagem coloquial, a expressao significa "e~!Upido·· ou "ignorante". (N. T.)

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nas Rochosas. A conclusao das ferrovias transcontinentais, prolongando a revolm;ao dos transportes iniciada quarenta anos antes, secundou a ocupar;;:ao de novas terras e ligou solidamente as novas povoal_r()es aos territ6rios mais antigos e j;i organizados. 0 dia de abril de 1869 em que, em Utah, juntaram-se as duas turmas que tinham partido hli v<irios anos ao encontro uma da outra, foi _uma data capital no crescimento da Uni:io: afastou os riscos de secessao quase tao eficientemente quanta a derrota dos Confederados e realiwu efetivamente a unidade de sse vasto continente. Desse momenta em diante, nao houve deserto nem Rocho­sas: o espar;;:o foi vencido, os dais oceanos ligados. A resis­tencia indigena desagregou-se: o Ultimo dos gran?es chefe_s indios, Touro Sentado, teve de confessar-se venctdo; as tn­bos foram rechar;;:adas, desarmadas, internadas em reser­vas, onde elas se deixaram domesticar, conquistadas para a civilizat;;::io branca ou vencidas por ela. A abertura a colonizar;;::io da reserva indigena de Oklahoma, em abril de 1889, exatamente vinte anos ap6s a conclus:io da pri­meira estrada de ferro transcontinental, foi urn momenta mais importante ainda. Constituiu o Ultimo ato de uma epopeia de quase quatro seculos que comer;;:ara no dia em que os primeiros europeus desembarcaram no Continen­te, a muitos milhares de qui\6metros dali: o homem bran­eo tomou-se senhor absoluto de todo o territ6rio. As con­dit;;:6es de ocupat;;::iO do solo variaram com as condit;;:6es naturais: aqui, onde a floresta cobria tudo, ele desmatou, semeou, cultivou; ali, na pradaria, criou gada; ainda mais a Oeste, na montanha, escavou o solo e extraiu minerios. Mas par toda parte introduziu seus modos de atividade e suas preocupar;;:Oes: ele valorizou, explorou, transfor­mou. A civilizar;;::io da Europa tomou posse da America: a estrada de ferro passou por onde o indio cat;;:ava. Era o fim da aventura, o fim da fronteira. Em alguns decenios, todo o Oeste foi explorado, povoado, colonizado, repar­tido em Estados incorporados a Uniiio. Os Ultimos a in­gressar na Uni:io foram o Arizona eo Novo Mexico, em 1912. Os Estados Unidos atingiram ent:io sua estatura definitiva.

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Expansiio econ6mica e livre iniciativa - Ao mesmo tempo, a economia americana conheceu uma expansiio ful­minante. Nas vesperas da Guerra de Secess:io, mal conse­guia eliminar seu atraso em relat;;::io a Europa ocidental: a guerra precipitou o movimento. Os Estados Unidos reu­niam urn conjuhto de trunfos pouco comum: variedade e abund:incia de recursos natura is ( descobriu-se nas Rochosas uma grande quantidade de jazidas de minerios; em breve scria o petr61eo), extens:io do mercado interno, com dimen­s6es continentais, sem alf:indegas interiores e protegido par tarifas, afluxo de capitais e de trabalhadores estrangeiros; cnfim, as disposil_r()es de espfrito mais adequadas para tirar partido de todas essas possibilidades. No momenta em que o territ6rio nacional estava inteiramente reconhecido, a energia e o espirito de iniciativa que tiveram livre curso no Oeste concentravam-se na atividade produtiva. 0 Ultimo decenio do seculo XIX e tido como aque\e que marcou o fim da fronteira; mas a fronteira nada mais fez do que se transferir da agricultura para a indUstria, da ocupar;;:iio do solo para a transformat;;:ao de produtos e a organizar;;:iio do cn!dito. 0 pioneiro niio morreu: ele inventou o fon6grafo, fabricou em s6rie as latas de conserva, ou monopolizou o comercio do petr61eo. A opini:io pUblica conhecia-o bern c admirava os reis do al_r(), da came ou da borracha. Tres tipos de homem se destacavam no front:io dessas arquite­turas industriais: o capitalista. o inventor e o filantropo. Alilis. siio freqUentemente a mesma pessoa: o inventor que sou be tirar proveito de sua descoberta e empregou em segui­da com munifia!ncia a fortuna adquirida. Neles a sociedade americana honrou o principia de sua atividade e encontrou a justificat;;::io de seu esfort;;:o voltado para o Iuera. Os pr6-prios assalariados niio pensavam em criticar o sistema em vigor e nao pediam outra coisa sen:io receber uma parcela mais substancial de suas vantagens: o sindicalismo ameri­cana, cujo surgimento foi re\ativamente tardio (Knights of Labor,1869; American Federation of Labor. 1886). diferen­temente do movimento openir:io europeu, n:io questionava o regime. Ele era quase completamente desprovido de tradi­<;:6cs e de preocupat;;:6es ideol6gicas: Samuel Gompers, o

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animador da AFL. era resolutamente refonnista. Tratava­se, de resto, de urn sindicalismo de elite, limitado a uma aristocracia profissional de openirios qualificados.

Quer isso dizer que a prosperidade econOmica mlo comporta sombras nem vftimas? Esse quadro brilhante tern seu reverso: de Ionge em Ionge, algoma crise viria abalar a economia. Mas nunca durou muito tempo, eo movimento para a frente recome<_;:ou ainda com maior vigor, como se o abalo tivesse servido para eliminar os organismos parasi­t~irios. A experic!ncia fornece urn desmentido mais serio ao postulado liberal que quer que todos extraiam beneficia da aplica<_;:<io ilimitada da concorn!ncia: em diversos domfnios, os mais fortes ou mais habeis apossaram-se do monop6lio da fabrica<_;:<io ou do comercio de urn dado produto. Ei-los dai em diante aptos a fixar-lhe o pre<_;:o a seu bel-prazer, sem considerar nada mais do que seu pr6prio interesse. Ocorria ate de a qualidade do produto degenerar ou deixar de oferecer suficientes garantias ao consumidor. Alguns co­me<_;:aram a duvidar dos beneficios absolutos do sistema. En­tim, aqui ou ali, entre as categorias mais desfavorecidas de assalariados, nas profiss6es mais duras ou mais expostas, sob a diret;<'io de lfderes mais resolutos, foram deflagrados bruscos movimentos de descontentamento, cuja vio!Cncia brusca denunciou uma c6lera acumulada e fez pressentir uma aspira<_;:<io favonivel a profundas reformas.

A situapio no campo- Nao foi, porem, dos trabalha­dores industriais que partiram as reivindica<_;:Oes mais radi­cais, mas daqueles que cultivavam a terra: essa aparente anomalia foi urn dos tra<_;:as mais originais da sociedade ame­ricana. Desde o seculo XIX, o campesinato era geralmente considerado na Europa ocidental uma for<_;:a conservadora, em face das multid6es urbanas. Nos Estados Unidos, as cidades eram calmas e o campo turbulento. 0 radicalismo americana era mais rural do que urbana: isso j:l fora consta­tado ao tempo de Jackson; verificou-se igualmente com os presidentes Cleveland e McKinley. lsso deveu-se tam bern ao fato de os farmers serem muito diferentes dos campo­neses europeus: suas condi<_;:6es em nada se assemelhavam,

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a mlo ser pelo dado de uns e outros vivcrem da terra. Sua turbuiCncia explicava-se precisamente par suas condit;Oes de vida e sua situa<_;:<io econOmica, ela pr6pria reflexo e con­seqUencia da estrutura particular da economia americana.

0 cam pones europeu (sobretudo no seculo XIX) culti­vava para si mesmo e para os seus: o excedente de que ele podia dispor para venda era apenas uma frat;ao despre­zfvel de sua produ<_;:ao. Pelo contnirio, o agricultor ameri­cana produzia essencialmente para vender. Se vivia gera\­mente melhor do que seu hom6logo europeu, a necessidade de escoar seus produtos colocou-o na dependCncia de inte­resses exteriores, tal como o plantador do Sui em rela<_;:<lo aos compradores europeus. 0 farmer dependia dos corre­tores do mercado de cereais, dos compradores de gada, dos especuladores que jogavam na baixa da Balsa de Chica­go, das companhias ferrovi<irias que !he impunham tarifas elevadas para o transporte de seus produtos ate os grandes centros consumidores. Impotente para reduzir seus pre(_;os de custo, n<'io tinha controle nenhum sabre o estabeleci­mento dos pre<_;:os de venda: nao tendo onde annazenar sua colheita, pressionado para aceitar o pret;o, via-se coagido a desfazer-se dos produtos no momenta mais desvantajoso para ele, quando as cota<;:Oes estavam em seu nivel mais baixo, e no mais vantajoso para o corretor, que dispunha de meios de annazenagem na expectativa da alta. 0 meca­nismo de fixa<_;:<'io dos pre<_;:os, na medida em que I he escapava em suas duas pontas, fez com que o farmer fosse derrotado de antemao na competi<_;:<'io de interesses. Ja perdera a espe­rant;a de ver a situa<_;:<'i.o recuperar-se a Iongo prazo, dado que a tendencia geral dos pre<_;:as estava orientada para a baixa, por raz6es que, algumas delas, extravasavam o qua­dro do mercado americana. Ora, o pre<_;:o do que ele com­prava nao diminuia: protegidos da concorrCncia estrangeira pelas tarifas alfandegfirias, cujos reajustamentos peri6dicos para cima eram periodicamente obtidos pelos industriais (em 1890, McKinley elevou as tarifas a urn nfvel sem pre­cendente), mantidos pelos entendimentos entre produtores, OS pret;OS das ferramentas, das mfiquinas, dos insumos, dOS artigos domesticos permaneciam caros. Melhor dizendo, o

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progrcsso tl~cnico continuo eo inccssante desenvolvimcnto da maquinaria agricola levaram o agricultor a despesas cres­ccntes. Ele estava assim dividido entre duas curvas em sen­tido contnirio: a dos pre~os agrlcolas, que declinavam de forma inexonivel, e a dos pre~os industrials, que tendiam a aumentar. A concorn!ncia atuava nos dais sentidos para sua desvantagem. Incapaz de liquidar sua faturas, com pres­sa de ver de volta o seu dinheiro, dirigia-se aos bancos, que !he concediam adiantamentos contra hipotecas- mas como poderia ele reembols<i-\os? Estava a mew~ das cir­cunst:incias atmosfericas: bastava que sobreviesse uma safra ruim para que e\e nao pudesse pagar os juros de sua divida e veria, assalariado de sua prOpria terra, a propriedade desta passar para as miios do organismo de credito de que ele era devedor. Assim, a agricultura tecnica e economicamente mais evolufda do mundo viu-se paradoxalmente a bra~s com esse antigo problema do endividamento permanente tao caracterfstico das sociedades rurais primitivas.

0 radicalismo agrUrio - Esse marasma cr6nico teve conseqiiencias poHticas: os farmers irritaram-se por serem p<irias da sociedade americana e suportarem os Onus da prosperidade geral. 0 descontentamento deles, que se ex­primia em impulsos intermitentes, alimentou os germes de dissensao para a Uni<io. Com efeito, verificou-se que a ani­mosidade entre farmers e industrials, entre o campo e a cidade, fez-se acompanhar de uma rivalidade regional e de uma compcti~iio entre partidos politicos. De fato, as pro­priedades agricolas estavam divididas no Oeste. de urn lado e outro do Mississlpi, dos Alleghenies as Rochosas. As in­dUstrias que vendiam tiio caro seus produtos aos farmers, os bancos de quem estes eram devedores, as companhias fcrrovi<irias, quase todos tinham suas matrizes no Leste. Portanto, o Oeste sentia-se explorado pelo Leste. A evolu-9iio das estruturas e a especializa~ao das atividades produ­tivas acabaram par reconstituir uma dualidade e por colo­car, pelo menos vez por outra, Leste e Oeste face a face, duas AmCricas cujas rela~6es mlituas lembravam as das me­tr6poles com suas dependencias coloniais. 0 azedume dos

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homens do Oeste era grande: afinal, seus ancestrais ter-se­iam emancipado da coloniza~:io brit:inica, seus pais ou eles pr6prios teriam abandonado a Europa e seus regimes autori­t<irios, para acabarem caindo sob o juga dos financistas do Lestc?

0 descontentamento social, o ressentimento regional prolongaram-se no plano politico e procuraram exprimir-se pelo canal partidario. Desde seu estabelecimento, o regime politico americana baseou-se na existencia de dais e somen­te dais partidos: ap6s a Guerra de Secessao, os republicanos e os democratas. Estava praticamente exclufdo que a gente do Oeste votasse nos republicanos. N<io por raz6es de dou­trina: em seu conjunto, o papel das considera~Oes ideol6-gicas sempre foi multo fraco na vida polftica americana e mais ainda nas determina¢es dos lfderes partid<irios; a preocup~:io em satisfazer as reivindica0es de tal ou tal gru­po de interesses era mais imperiosa; disso decorria que a sociedade polftica americana estivesse mais voltada para a administra~iio das coisas do que para o governo das pessoas. Ora, os republicanosestavam comprometidos com os indus­trials e os banqueiros do Leste, ou seja, os advemirios natu­rais do Oeste. Tambem os eleitores do Centro-Oeste acor­riam para o Partido Democrata, ao qual procuravam fazer com que adotasse o programa deles.

lnsistiam, sobretudo, em dais pontos essenciais. Em primeiro Iugar, na redu~ao de tarifas: essa reivindica~ao era antiga, mas o aumento peri6dico dos direitos aduaneiros, sob a pressao das indUstrias do Leste, tornava-se semprc atual. 0 bimetalismo era o segundo ponto; tornou-se na decada de 1890 o tema principal das Iotas politicas: o Lestc, em rela~Oes comerciais com a Europa, defendia a estabili­dade monet<iria e a manuten~ao do monometalismo lastrea­do no ouro. 0 Oeste fazia campanha a favor do bimetalismo ouro e prata: os Estados das Montanhas Rochosas possuiam minas de prata; sobretudo os propriet<irios rurais, com o peso de seus votos, pediam uma politica de dinheiro abun­dante e barato. Urn surto inflacion<irio elevaria os pre~s dos produtos agr(colas e desincharia o montante de suas dlvidas. Em torno dessa questao de aparencia puramente

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tecnica, dais sistemas de interesses se chocavam, atraves de duas concepr;6es da economia. Reencontrar-se-ia uma disposir;iio de fon;as amiloga no momenta do New Deal. Brvan, o candidato democrata a presidencia, em 1896, fez­se 'a porta-voz das reivindicar;Oes do Oeste e desenvolveu uma campanha que ficou celebre em defesa do bimetalismo e da redur;ao de tarifas. Sem exito: foi derrotado pelo repu­blicano William McKinley.

Os repetidos fracassos dos democratas, bern como a desconfianr;a, mais ou menos fundada, de que o Partido Democrata s6 sustentava o ponto de vista dos farmers para car;ar-lhes os votos, mas sobretudo a aspirar;ao profunda de todos os movimentos de insatisfar;ao agniria exprimin­do-se a margem das forr;as poHticas organizadas, acabaram suscitando urn a sCrie de movimentos de protesto que, com freqiiencia, degeneraram em agitar;ao amirquica. Houve primeiro os greenbackers: a greenback, cedula cujo reverso era de cor verde, foi o papel-moeda emitido pelo governo da Uni<io durante a guerra e retirado progressivamente de circula<;ijo, a pedido dos banqueiros. Osfarmers, cujos pro­dutos eram pagos em papel-moeda, tinham de fazer suas compras e qui tar seus impastos em especies met!ilicas. Por esse motivo eles se insurgiram pelo adiamento da decisiio de retirar valor legal ao papel, que deveria entrar em vigor a 1 ~ de janeiro de 1879. Obtiveram momentaneamente ga­nho de causa. Houve em seguida os grangers. As granges cram associar;6es de agricultores que estiveram na origem de grande nUmero de instituir;Oes tecnicas e cooperativas, tam bern levadas a intervir no dominio politico: em 1887, obtiveram a criar;ao de uma comissao federal para zelar pel a aplicar;ao de tarifas uniformes pelas companhias de estradas de ferro.

0 descontentamento do Oeste deu ate origem a uma nova formar;ao poUtica, independente dos dais grandes par­tidos: o Partido Populista que, sem nunca ter posto seria­mente em perigo a prepondenincia daqueles nem conse­guido fazer eleger urn dos seus para a presidencia, obteve grandes exitos nos Estados do Oeste. Ao mesmo tempo que exprimia uma tendencia muito antiga do espirito ameri-

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cano, a mesma que Jackson encarnara, o radicalismo agnirio foi urn dos componentes de urn grande movimento demo­cnitico que imp6s todo urn con junto de refonnas.

0 movimento de reformas, sob as presidencias de Theo­dore Roosevelt e de Woodrow Wilson - Essa sociedade ativa, pr6spera, encerrava, com efeito, fennentos reformis­tas: o Oeste agnirio, o sindicalismo, uma tradir;iio intelec­tua\. Nos primeiros anos do~eulo XX., jornalistas e roman­cistas, que receberiam o apeHdo de muckrakers (remexe­dores de lama), atacaramcom. vig0r, em revistas, romances, reportagens jornalfsticas, os defeitos do sistema econ6mico, denunciaram as pniticas condemiveis dos industriais, seus meios de pressiio: os trustes controlavam os partidos; subju­gavam as universidades, domesticavam a imprensa. A de­mocracia corria perigo de morte em virtude das manobras dos "barOes-piratas". As campanhas dos muckrakers agita­ram a opiniao pUblica e reacenderam o movimento refor­mista que se desenvolveu em duas direr;Oes: a econ6mica e a politica. No plano econ6mico, suscitou uma regulamen­ta~<ao e organismos de controle que vieram temperar a apli­car;ao dos principios liberais. J:i em 1890 o Congresso tinha sancionado uma lei antitruste, o Sherman Act, que limitava severamente o direito a fonnar;ao de conven(JOes entre in­dustriais do mesmo setor e punha urn freio a concentrar;ao: mas sua aplica'<iio era delicada; os trustes cram exlmios em frustrar os tribunais e a pericia de seus jurisconsultos era inigual:ivel em contornar a lei. Essa legislar;fi.o nao impediu que a US Steel Company agrupasse a maior parte das usinas siderU.rgicas em 1901. A !uta contra os trustes atingiu uma nova etapa com a chegada a presidencia (em sucessiio ao presidente McKinley, assassinado por urn anarquista) de uma personalidade din<imica, rubicunda: Theodore Roose­velt. Durante seus dais mandatos presidenciais (1901-1908), endureceu muito a vida dos trustes: instaurou processos con­tra alguns, acabou com o habito de colocar tropas federais a servi(Jo deles nos conflitos sociais, amea!JOU ate Morgan, em conflito com os mineiros em greve, de ordenar a inter­vcnr;ao do Exercito e obrigou-o a ceder (1902). Ampliou

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consideravelmcnte o campo de intervem;ao do poder presi~ dencial: agiu por intermtdio do comercio entre Estados, cuja compctencia a Constitui<_;:iio delega expressamente ao governo federal. Criou urn Departamento de Comercio e Trabalho, fez votar uma regulamenta<_;:<i.o sobre ferrovias, instituiu o controle de produtos alimentares e farmaceuticos (Pure Food lind Drug Act, 1906). Deu provas, em todos esses domfnios, de uma atividade insaci<ivel: prote<_;:iio dos recursos naturais, !uta contra a erosiio dos solos. Foi uma maneira de revolu<_;:iio no equiltbrio tradicional dos poderes.

0 movimento de reforma desenvolveu*se paralelamen­te no plano polftico. Nos Estados do Oeste, onde nasceu, ele inspirou modifica~;Oes que tendiam todas a colocar as institui<_;:Oes e a vida polftica mais de acordo com a demo­cracia. Com isso ampliou o controle dos eleitores sobre seus representantes, ampliando-lhes o direito de iniciativa; a pr<i­tica de distribui<;:iio de cargos pllblicos entre os membros do partido vitorioso (spoils system), cujos efeitos sobre o funcionamento da administra<_;:iio se apresentam cada vez mais nefastos com a complexidade crescente dos problemas a resolver, foi atenuada por uma reorganiza<_;:iio do Servi<;:o PUblico: a competencia viu serem reconhecidos os seus di­reitos acima da fidelidade partid<iria. Em escala municipal, nas grandes cidades, prevaleceram as solu<;:Oes que se inspi­raram na mesma preocupa<_;:<io. 0 movimento de reformas para uma democracia efetiva alcam;ou as pr6prias institui­<_;:Oes federais e triunfou com Wilson, eleito em 1912. 0 Par­tido Republicano detinha a presidencia desde Lincoln: so­mente Cleveland, por duas vezes (do is mandatos separados pelo retorno de urn republicano), tinha interrompido esse Iongo periodo de predomfnio republicano. A divisiio dos republicanos, apresentando-se Theodore Roosevelt contra o presidente cessante, Taft, e arrastando para a dissidencia uma parte do eleitorado, permitiu ao candidato democrata reconquistar a Casa Branca par maioria relativa. Woodrow Wilson era urn professor universit3rio que lecionava Ciencia Politica em Princeton. Seu nome tornar-se-ia no mundo si­ndnimo do idealismo americana. No plano intemo, sua pas­sagem pela presidencia assinalou uma retomada do impulso

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dcmocratico e uma amplia<_;:iio da atividade do govemo fede­ral: a 16~ emenda, que autorizou o Congresso a estabelecer urn impasto de renda federal, garantiu recursos adicionais ao govcrno de Washington e deslOcou a fronteira dos pode­res entre os Estados eo Estado (1913); a 17~ emenda, ratifi­cada igualmente em 1913, dispunha que os senadores, desig­nados ate entao a vontade dos Estados, geralmente pelos legislativos estaduais, seriam da( em diante cleitos por sufr<i­gio universal. A 19~ emenda, adotada nos p6s-guerra, esten­deu o direito de voto as mulheres (1920). Pela primeira vez, desde longa data, as tarifas aduaneiras foram modificadas para baixo. Uma comissao foi especialmente encarregada de zelar pelo respeito a legisla<_;::io sabre trustes, refor<_;:ada pelo Clayton Act. Para limitar a especula<;:<i.o financeira, o Federal Reserve Act instituiu uma organiza<_;:ao federal de credito: o territ6rio dos Estados Unidos foi dividido em doze distritos, em cada urn dos quais urn estabelecimento federal de crtdito assegurava as opera<_;:Oes banc<irias: urn Conselho Federal da Reserva, em Washington, presidia ao con junto do sistema, do qual se esperava que prevenisse o retorno dessas crises que periodicamente perturbavam a economia dos Estados Unidos. Que caminho percorrido desde o tem­po em que Jackson empenhava sua existencia polftica contra as institui<;:Oes bancirias! Que evolw;;:io, tam bern, desde o tem­po em que a elei~;ao de Jefferson significou a vit6ria da inter­preta~;:io restritiva dos direitos do Estado federal! Entre­tanto, Jefferson, Jackson, Wilson pertenciam amesma fami­lia politica, e todos os tres se prevaleceram da mesma tradi­<;:ilo filos6fica. Mas entre a era de Jackson e a de Wilson a sociedade americana transfonnara-se profundamente: a industrializa<_;:<io, a concentra~;ao financeira fizeram surgir poderosos grupos de interesses, cujas ambi<;:Oes e recursos tornaram necessaria a interven~ao do poder pUblico. Os me­canismos concebidos pelo liberalismo cl<issico para reger as rela<_;:Oesentre indivfduos j<i nao eram suficientes: foi a fideli­dade ao prOprio espfrito da sociedade liberal que lcvou a reve-los. 0 fendmeno n:io era especifico dos Estados Uni­dos, mas apresentou-se ai mais cedo. com maior agudeza, e a evolu<_;:<io foi ainda mais impressionante.

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CAPITULO VII

Isolacionismo e imperialismo

Uma outra mudan~a imp6s aos poderes constituidos e a opiniao pUblica uma adapta~iio tambem delicada: aquela que, ao fazer dos Estados Unidos uma grande potencia, projetou-os no cemi.rio da grande politica intemacional. Es­sa transforma~;ao foi a conseqiiencia de seu crescimento in­terno; foi igualmente a de uma evolm;iio que levou o con jun­to do continente americana, por largo tempo situado como que na orla do mundo, para o centro das rela~6es interna­cionais, com a abertura do Extrema Oriente a penetra~iio ocidental eo despertar da Asia.

Doutrina Monroe e pan-americanismo- Em materia de rela<;Qes exteriores, o sonho dos americanos era te-!as o menos possivel: seu distanciamento da Europa, entiio o centro da pol(tica mundial, e a ausencia em suas fronteiras de vizinhoscapazes de inquiet<i-los, permitiu-lhes por muito tempo manterem-se fora de complicai!;Oes diplom<iticas. A declara'!;iiO de Monroe viera fixar precisamente o domfnio e as orienta'!;6es de poHtica exterior dos Estados Unidos: sua politica eraestritamente continental, mas, dentro desses limites, visava preservar a independencia de todo o Conti­nente. Dai em diante, todas as grandes potencias que tenta­ram colocar sob sua influencia algum territ6rio ou exercer pressiio sobre urn Estado americana para resolver direta­mente urn litigio encontraram os Estados Unidos de per­meio entre etas e seus interlocutores.

Em 1823, a intervenl!;iiO norte-americana era ainda mais simb61ica do que efetiva, e os Estados Unidos ver-se-iam em apuros para fazer respeitar suas declara'!;Oes de princi­pia. Mas, a medida que o Sl!culo avan~ava, seu peso aumen­tava e sua autoridade crescia. Napole:io III sO empreendeu a expedil!;iio do Mexico porque se beneficiou da Guerra de

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Secess<io, que paralisara a diplomacia federal; restabelecida a paz. a pressiio dos Estados Unidos concorreu para obrigar a Fran~;a a abandonar seu projeto de cria~;ao, na AmCrica Central, de urn imperio cat6lico e Iatino que fizesse contra­peso a potencia protestante c anglo-saxOnica e erguessc uma barreira contra sua expansao para o sui (1867). Trinta anos depois, a Gr:i-Bretanha estava em litfgio com a Venezuela em tomo de uma regi:io limftrofe da Guiana lnglesa: tendo a Venezuela solicitado o apoio dos Estados Unidos, o gover­no ingles teve de resignar-se, ap6s urn momenta de mal disfan;ada irrita~;:io, a admitir a arbitragem do presidente Cleveland. Em 1903. interditaram a Alemanha uma inter­ven~;<io contra a Venezuela. Entre as grandes potencias eu­ropCias e as dCbei_s repllblicas da America Latina, a inter­ven~<iiO dos Estados Unidos restabelecia o equihbrio.

Ocasionalmente, os Estados Unidos dedicavam-se tam­bern a subtrair outros territ6rios ao jugo de potCncias estran­geiras. A iniciativa de Jefferson, comprando a Luisiana, fez escola. Em 1867, o czar Alexandre II procurava desfazer-se do A Iasca: os Estados Unidos foram seus compradores pela soma de 7 milh6es de d6lares; a descoberta ulterior de seus recursos aurfferos ( 1896) justificani retrospectivamente essa aquisi~<<io, que fora muito criticada na Cpoca.

0 governo americana, reatando por sua conta e numa escala mais vasta os projetos de federa~;ao americana forma­dos outrora por Sim6n Bolivar e que ele prOprio contribuira para fazer fracassar, tentou, a partir de 1889, por iniciativa do Secret8rio de Estado Blaine, coordenar a a~;ao das repll­blicas americanas e dar ao Continente uma relativa unidade. Oaf em diante, conferencias peri6dicas reuniriam os minis­tros de todos os Estados americanos; comiss6es especia­lizadas examinaram as possibilidades de unifica~;ao dos siste­mas de pesos e medidas, das moedas; estudaram-se os meios de tradu~;ao em decis6es pr8ticas dos principios do pan-ame­ricanismo. Mas o balan~;o desses encontros e conversa~;6cs foi fraco: a potencia dos Estados Unidos tornou-se forte demais para mio sobressaltar a suscetibilidade de alguns vizi­nhos. Urn a colabora~;ao em pede igualdade era quase incon­cebivel entre a grande RepUblica e as pequenas na~;6cs ao

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1-ul do rio Grande; elas desconfiavam de que o interesse tardio dos Estados Unidos pelo pan-americanismo mio pas­~a~se de urn meio indireto de impor sua hegemonia a todo o Contincnte.

0 nascimento do imperialismo norte-americana- Te­mor tanto mais justificado, porquanto, na mesma Cpoca­o Ultimo decenio do seculo XIX-, afirmava-se urn come­~o de imperialismo norte-americana, distinto das preocu­pa.;Oes de grandeza nacional, que tinham inspirado ate en­tao a oonduta do pais, e singularmente mais ousado. Os homens de neg6cio americanos oome.;aram a lan'<ar seus olhares para atem dos limites do mercado nacional: volta­ram suas vistas para os mercados de matCrias-primas, cobi­~aram mercados para a coloca.;ao de seus produtos. Certos grupos de interesses particularmente poderosos e bern orga­nizados exerceram pressao eficaz sobre o Congresso e a Ad­ministra~ao para que prevalecesse uma polftica ativa. Mc­Kinley foi ativamente sustentado por esses lobbies. Foi pre­cisamente o momenta em que o capitalismo norte-ameri­cana em plena ascens:io, muito pouco afetado por crises, mudou de posi.;<'io e adotou novas dimens6es e estruturas: a ambi'r<io chegou simultaneamente com os meios. Os trus~ tes que oontrolavam a imprensa prepararam e amoldaram a opiniao pUblica, que n:io pedia outra ooisa sen:io ser con­vencida de que incumbia aos Estados Unidos a missao civili~ zadora ditada por sua superioridade moral: o idealismo inc­rente ao caniter nacional americana transferia-se para o im­perialismo e fornecia-lhe uma justifica'r:iO. Alfred T. Mahan formulou a teoria da supremacia maritima e insistiu sobre a importancia estrategica das bases navais. 0 fim da fron­teira tomou disponiveis as energias que a expans<'io para o Oeste tinha absorvido. A na'r:iO, transbordante de vitali­dade, inebriada de dinamismo e excitada por seus exitos, aspirava a grandes empreendimentos.

Ate mesmo o anticolonialismo tradicional veio engros­~ar a corrente: nas vizinhan~<as dos Estados Unidos, a Espa­nha mantinha uma domina~o mal aceita sobre a grande ilha de Cuba, sacudida por agita'r:io cr6nica. 0 governo

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americana, sem procurar o conflito, aproveirou a ocasi<io que se lhe apresentou: urn encourac;ado americana, anco­rado em Havana, foi destruido por uma explos<io cujas cau­sas nunca foram esclarecidas (fevereiro de 1898). Era tenta­dor responsabilizar a Espanha pelo sinistro. Ap6s urn ulti­mata, e embora a Espanha se declarasse pronta a aceitar as exig6ncias americanas, os Estados Unidos entraram em guerra. 0 Exercito e a Marinha federais obtiveram vit6rias f<iceis em terra e no mar: em poucos meses, as esquadras espanholas foram aniquiladas ao largo de Manila e de San­tiago; Cuba e Porto Rico, ocupados. A Franc;a interveio: a Espanha cedeu Cuba, a qual OS Estados Unidos deram logo a independencia, Porto Rico e, por 20 milh6es de d6la­res, as Filipinas.

0 evento teve uma repercuss<io enorme, que sua im­port<lncia justificava amplamente: era o fim da epopeia colo­nial da Espanha, que assim perdia os Ultimos vestigios de seu imperio ultramarino; era tambem a primeira derrota da Europa e a vit6ria do Novo Mundo sabre o Antigo; era, enfim, para os Estados Unidos, seu comec;o de pot6ncia colonial. Eles possuiam, desde 1878, uma dependencia nas ilhas Samoa, em participac;iio com a Inglaterra e a Alema­nha, mas uma coisa era interessar-se, como tinham se inte­ressado ate ent!'io, pelos paises das margens do Pacifico, mormente pelo Japiio, para faze-los abrirem-se ao comer­cia, e outra era apossar-se dos despojos de uma antiga po­tencia colonial. Dai em diante, o campo de ac;ao dos Estados Unidos estendeu-se muito alem do hemisferio ocidental.

As intervenrOes na politica mundial - Com Theodore Roosevelt, o sucessor do presidente McKinley, a politica extema americana transp6s uma nova etapa: tornou-se mundial. 0 presidente multiplicou as iniciativas e as inter­vcnc;Oes: a recomendac;<io de Washington, o compromisso de Monroe de manter-sea margem dos assuntos europeus, foram esquecidos. Roosevelt fez-se representar na confe­n!ncia de Algeciras para solucionar o litigio franco-alem<io sobre o Marrocos (1906); esteve igualmente presente na Confen!ncia de Paz em Haia, em 1907; propOs sua mediac;<io

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a RUssia e ao Jap<io, e foi nos Estados Unidos que se assinou o tratado que p6s fim a guerra russo-japonesa. Embora li­sonjeira para o amor-pr6prio nacional, essa nlpida arnplia­c;ao das responsabilidades internacionais dos Estados Uni­dos foi prematura: n<io \evava em considerac;ao o profunda apego do povo americana a neutralidade, urn sentimento que em breve teria ocasi<io de rnanifestar-se. Quando foi defla­grada a guerra na Europa, o povo norte-americana foi umini­me em sua vontade de ficar fora do conflito. Seriam neces­s<irios 32 meses e uma convergencia de causas para que os Estados Unidos passassem da neutralidade a beliger<lncia: a salvaguarda das somas emprestadas aos Aliados pelos grandes bancos americanos, a defesa dos direitos dos neu­tros, comprometidos pelo modo como a Alernanha conduzia a guerra submarina, as inquieta~es suscitadas pelas intrigas alem<is na America Central, as simpatias tradicionais pela Franc;a e ·a Inglaterra, o idealismo generoso dos Estados Unidos, sua fidelidade inquebrant<ivel as institui~es demo­cr<iticas, participaram, em graus diffceis de avaliar, no movi­mento que levou o Congresso, em 4 de abril de 1917, a declarar guerra a Alemanha.

Os Estados Unidos nao estavam preparados para en­frentar a potencia rnilitar alemii: desprovidos de tradic;Oes militares, apesar da guerra do Mexico, da Guerra de Seces­sao e da guerra contra a Espanha, mio dispunham pratica­mente de exercito pennanente e ignoravarn o seiVic;o militar obrigat6rio. Mas seu espirito de iniciativa e seu genio orga­nizador aplicados a conduc;:io da guerra fariam prodfgios. Seus irnensos recursos foram mobilizados, o governo foi do­tado de poderes excepcionais, e a guerra ajudou a acentuar ainda mais a transferencia de poderio dos Estados para o Estado federal e do Congresso para o Executivo. Milh6es de homens foram alistados, centenas de milhares enviados a Franc;a. No prazo de urn ano, dezenove divis6es estavarn prontas para entrar em cornbate. No ver<io de 1918, sob o comando do general Pershing, as tropas que fonnavam o corpo expedicion<irio americana receberam seu batismo de fogo e iniciaram suas primeiras ofensivas em Saint-Mi­chel e em Argonne. A guerra terminou cedo dernais para

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que as tropas americanas tenham podido descmpenhar ncla urn papel decisivo. Mas o governo dos Estados Unidos. na pessoa de seu presidente, teve uma participar;ao dccisiva nas negociar;6es de paz. Em janeiro de 1918, Wilson tinha enunciado os objetivos da guerra e as condir;6es de paz dos Aliados: esse programa em catorze pontos seduzira a opi­ni:io pUblica europeia por sua nitidez e a generosidade de seus pontos de vista. Uma vez mais, o idealismo americana propunha urn rosto para a esperanr;a dos homens. Multid6es entusi:isticas acolheram Wilson, chegado a Europa a fim de participar da Conferencia de Paz: discussao laboriosa em que a intransigencia de princfpios teve de se hannonizar com as situar;6es de fato, em que Wilson se viu freqiien­temente em desacordo com Lloyd George c Clemenceau. 0 resultado dessas negociar;6es. bastante distanciado dos catorze pontos, s6 I he agradaria pel a metade.

A volta ao isolacionismo- Uma outra contrariedade o esperava em seu regresso: seus adversarios polfticos apro­veitaram-se de sua ausencia; os republicanos tinham recupe­rado em 1918 a maioria no Congresso; ele prOprio perdera o contato com a opini<io pUblica; os defensores da Consti­tuir;:io denunciaram o crescimento constante dos poderes do Executivo; o Senado, que s6 a muito custo perdoava ao presidente suas iniciativas e cuja anuencia era indispen­S<ivel em materia de politica extema. felicissimo por fazer sentir seu poder, recusou-se a ratificar o tratado de Versa­lhes (novembro de 1919). 0 homem que durante oito anos governara os Estados Unidos e simbolizara a vontade de refonna e a vontade de paz da nar;ao teve urn triste final de vida; seu candidato foi derrotado nas eleir;Oes de 1920. Assim, os Estados Unidos iriam ficar fora dessa Liga das Nar;Oes que seu representante contribuira tanto para fundar. A recusa do Senado acentuava a vontade de limitar a au tori­dade presidencial, talvez de p6r fim as experiencias refor­mistas: era tambem uma condenar;ao global de toda a poli­tica extema dos Ultimos presidentes e exprimia o desejo do pais de voltar a antiga tradir;ao de estrita neutralidade. Triunfou o isolacionismo. A vit6ria dos republicanos em

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1 ~20 significou tam bern a importlincia crescente das popula­r;oes do Centro-Oeste, que mio queriam ter nada em co mum com a velha Europa. Trazia em seu bojo o genne das leis restritivas a imigrar;ao votadas em 1921 e 1924. A America fe~hou-se sobre ~i mesma e, uma vez superada a pequena cnsc de adaptar;ao que se seguiu ao fim da guerra, decidiu consagrar-se exclusivamente a busca da felicidade e da pros­peridade.

Americanismo e prosperity (1920-1929)- A vit6ria re­public_ana de. 1920 _teve assi_m alcance maior do que o de uma Simples mversao de ma1oria: n;io foi urn mero acidente de politica intema, mas o fim de urn capitulo. Embora sua participar;iio nos assuntos internacionais lhes tenha valido feit~s as contas, mais vantagens do que prejufzos, osEstado~ Umdos entenderam de nao se deixar arrastar mais para as querelas do Velho Mundo que, vistas do outro !ado do Atl:intico, pareciam-lhes absurdas brigas de familia. Atem disso, tamar partido nessas disc6rdias nao deixava de envol­ver urn certo risco para a unidade moral do povo americana: nao era este composto de descendentes de todas essas na­r;6es da Europa? A presenr;a de urn forte nUcleo de germa­no-americanos causara niio poucas inquietar;Oes durante a guerra contra a Alemanha. Portanto, a composir;iio da po­pular;<io americana, tanto quanto seus interesses, impunham o retorno a uma estrita neutralidade. Por diversas vezes, a legisla9lo reforr;aria as precaur;Oes destinadas a impedir a renova~iio das surpresas que, em 1917, tinham arrastado os Estados Unidos para a guerra.

Mais do que isso: eles voltaram resolutamente as costas a Europa e empenharam-se em reduziT ao minimo suas rela­r;6es com ela. Ao impulso entusilistico da intervenr;:io suce­deram depressa a retirada e a decepr;ao: s6 extrairam deJa motivos de desventura. A paz frustrou seu idealismo; a rna vontade dos Aliados em liquidar suas dividas feria a concep· r;ao americana de honestidade comercial. Em todos os domi­nios, os Estados Unidos fecharam-se em si mesmos e levan­taram barricadas a sua volta. Fazendo jus, pela primeira vcz, ao ponto de vista de esplritos inquietos que temiam

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ver os americanos com "hffen" superarem numericamente os verdadeiros americanos, o Congresso estabeleceu restri­<;:6es rigorosas a admissao de novas imigrantes: ate ent<io, somente os asi<iticos, por quem os Estados da costa do Paci­fico temiam ser invadidos, tinham sido objeto de medidas dessa ordem. A lei de 1924, agravando as disposi<;:Oes da de 1921, estabelecia cotas: carla pals europeu viu limitado o contingente de seus nacionais admitidos em 3% do mime­ro fixado em 1890, o Ultimo ano em que elementos prove­nientes dos pafses n6rdicos superaram os eslavos e os Iati­nos. 0 Est ado mais liberal do mundo no tocante a circula~¥3o das pessoas converteu-se num daqueles de mais dificil aces­so. De cerca de urn milh3o, o m.imero media anual de imi­grantes caiu para uns cern mil. A America acreditava ter salvo sua civiliza'¥<io; patr6es e openirios felicitavam-se par terem afastado agitadores e concorrentes no mercado de trabalho. Mas os Estados Unidos, talvez sem se apercebe­rem disso, secaram uma das fontes de sua espantosa prospe­ridade.

Tendo por largo tempo acolhido os homens, os Estados Unidos nunca deram o mesmo acolhimento aos produtos da Europa: o protecionismo alfandeg<irio foi ainda refor­<;:ado pela administra!¥30 republicana. 0 pais fechou-se tam­bern as ideias, as teorias consideradas subversivas, a tudo o que pudesse contaminar os esplritos e alterar o regime ou o sistema de vida. Uma certa tradi~¥3o polftica e moral, imbulda da superioridade da America, severa para o incon­fonnismo. xen6foba e ate racista, aquela que inspirara a vota~¥30 da Lei do Estrangeiro (Alien Bill) na administra~¥3o John Adams, o movimento nativista, o do Know-Nothing e o Ku Klux Klan, ressurgiu das profundezas da na'¥<io e fez a lei. N3o era muito saud<ivel ser estrange ira ou professar opini6es heterodoxas: dais infelizes anarquistas italianos, Sacco e Vanzetti, suspeitos de urn crime que obstinadamen­te negaram, foram enviados para a cadeira eletrica em 1927, ap6s anos de espera; a execm;<io deles suscitou na Europa uma onda de indigna<;:<io que anunciou o alvorm;o provo­carlo mais tarde pelo caso Rosenberg. A Legi<io Americana denunciou infiltra~¥6es comunistas. A America protestante

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desconfiava dos papistas, o catolicismo fez Alfred s · h d'd d =. o can 1 ato emocrata nas eleic;Oes de 1928, perder uma

parte dos votos do Sui e concorrer para o sucesso de seu advers<irio .republica~o, Herbert Hoover. A America puri­tana das se1tas e das hgas de temperan'¥a traduzia sua preo­cupa!¥<iO de moralidade atraves de disposi~¥6eS legais: uma 18~ emenda a Constitui~¥<io proibiu a fabrica~o. o comercio e o consumo de qualquer bebida alco6\ica, mesmo as de teor minima de ~Ucool em todo o territOrio dos Estados U ni­dos (1919). A fraude suscitou urn gigantesco trafico cuja amplitude s6 foi igualada pela do dispositivo policial desti­nado a reprimi-la: as lutas entre bootleggers (contrabandis­tas de bebidas alco6licas) e policiais alimentavam os notici<i­rios jornalfsticos, eo regime da Lei Seca propagou a imagem de uma America puritana, hip6crita e conformista.

Essas tendencias de raiz exprimiam-se, na ordem pollti­ca, pelas repetidas vit6rias do Partido Republicano. No sis­tema partid<irio americana, os republicanos encamavam mais, de fato, o conjunto das velhas qualidades morais e intelectuais, as tendencias boas e mas que constitufam como que urn capital de fundo tipicamente americana; votar nos republicanos constituia urn diploma de antigiiidade, ao pas .. so que os recem-chegados mostravam aberta preferencia pelos democratas. Tres republicanos se sucederam em dez anos na Casa Branca: Harding, que morreu subitamente (agosto de 1923) e em torno de quem certos esc<lnda!os tinham criado uma reputa~ao que lembrava incomodamente os tempos de Grant; seu vice-presidente Coolidge, reeleito em 1924; e Hoover, eleito em 1928 contra Smith. Herbert Hoover era umseljmade man, que fizera rapidamente fortu­na, urn tecnico que gozava da reputa~ao de administrador proficiente. Sua personalidade era eminentemente repre­sentativa de certos tra<;:os e qualidades do carB.ter ameri­cana. Suas aptid6es qualificavam-no para presidir aos desti­nos de uma sociedade tecnica.

Com efeito, se, depois de 1920, os Estados Unidos pa­reciam voltar-se para seu passado e querer suspender o mo­vimento da Hist6ria, pelo menos num dominio, o da econo­mia, eles esfor<;:avam-se par apressar o passo e faziam tudo

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por levar a dianteira no curso das coisas. A Primeira Guerra precipitara o movimento natural de sua expans~o: a necessi­dade de prover as necessidades dos Aliados, bern como de equipar adequadamente seu prOprio exercito, tinha estimu. !ado a industrializa'<ao. Sua posi'<ao financeira invertera-se: de devedores, os Estados Unidos tinham-se tornado credo­res, n<i.o tendo os governos europeusoutra alternativa seniio liquidar seus investimentos e contrair emprCstimos. Todo o pals se empenhou com ardor na corrida para a prospe~ ridadc. Os metodos americanos, nonnaliza'<ao, standardi­za~ao, tayloriza'<iio, as estruturas de sua economia, concen­tra'<ao, especializas:ao, somaram seus efeitos, os quais se engendraram por urn desses processos cumulativos pr6prios dos desenvolvimentos econ6micos. 0 credito multiplicou-se ao infinito. AsopiniOes de Henry Ford sobre a remuneras:ao do trabalho, que come'<avam a prevalecer, modificaram to­talmente as rela¢es patronais com os assalariados: o au­menta dos sai<irios, Ionge de ser nocivo a emprcsa, era de seu interesse: aumentava o poder de compra c fazia de cada openirio urn consumidor. A eleva~ao regular do nivel de vida ampliou assim continuamentc o mercado e dissimulou as conseqiiCncias da suspensao da imigras:<io: o big business prosperou e, com ele, todosos americanos. Os novos setores da indUstria em particular, o autom6vel, o cinema, estavam a testa do movimento. A administra<;:<io aplicava scm muito zelo a legislar;:io antitruste. Os republicanos cstavam, assim, de acordo, simultaneamente, com sua ortodoxia liberal e com a opini:io pUblica, que via na prosperidade a recom­pensa eo efcito do liberalismo. A polftica apagou-se diante do econ6mico: a deflas:<i.o, a redu~ao on;ament:iria, as redu­'<6es fiscais, a supress<io de todos os controles govemamcn­tais facilitaram a expansao. Isolacionismo e liberalismo constituiam os dais principios fundamentals da administra­'<ao republicana. Uma prosperidade fabulosa veio demons­tear a correr;<io dessa politica.

Na verdade, algumas sombras manchavam o brilho des­se quadw: a extras:ao carbonifera e as indUstrias tCxteis per­maneciam muito atr<is dos setores mais pr6speros. A agri­cultura, sobretudo, mlo participava na euforia geral: numa

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economia em ascensao, as cotar;6es dos produtos agricolas mantinham-se estacion:irias, c muitos farmers, incapazes de ~a\dar suas hipotecas, tinham-se tornado empregados deal­gum banco em suas pr6prias terras ou partido em busca de uabalho em outros lugares. A questiio racial tampouco deixava de ser preocupante: com o desenvolvimento das indUstrias de guerra, que tinham atrafdo para o Norte uma abundante m<i.o-de-obra negra oriunda dos Estados sulistas, 0 problema apresentava-se agora na totalidade dos Estados Unidos. Mas todas essas nuvens negras passavam desperce­bida~ em face dos Cxitos e, em qualquer caso, n<i.ochegavam a perturbarootimismo gcral. A legitimidade dasinstituic;Oes polfticas, a excelencia do sistema econ6mico e a superio­ridadc do American way of life eram artigos de te. Alias, a continuidade da prosperidade, o aumento regular da renda nacional, a eleva~ao indefinida do nfvel de vida, n<io tinham peso de prova?

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CAPITULO VIII

0 New Deal e a responsabilidade mundial

Ora, eis que dais fatos, igua\mente tmprevtstvets no momenta em que os Estados Unidos elegeram Herbert Hoover. vieram desmentir, cada urn por seu !ado, os dais principios b<isicos da politica republicana - o liberalismo em economia e o isolacionismo nas rela~6es exteriores -e abalar a confian<;:a nos pr6prios fundamentos da sociedade americana. Urn era de ordem econdmica e destrula a pros­peridade: a Grande Depressiio de 1929; o outro era exterior aos Estados Unidos e ameac;:ava sua seguram;a: a ascensao dos regimes totalit<irios eo exito crescente de suas iniciativas de dominac;:ao do mundo. 0 primeiro teve por efeito o aban­dono do liberalismo e a experiencia do New Deal; o outro fez caducar a tradic;:3o de neutralidade e arrastou os Estados Unidos para urn novo conflito mundial, no qual assumiram responsabilidades muito mais extensas do que em 1917. As duas evolu~<Oes tiveram por conseqiiencia comum uma am­plia'<ao consider3vel dos poderes do Executivo federal. A testa dessas grandes transforma1<6es estava urn dos maiores presidentes que os Estados Unidos conheceram ate hoje: Franklin Delano Roosevelt.

A grande crise- Tudo come'<ou com urn simples aci­dente da conjuntura bolsista. A 21 de outubro de 1929, no Wall Street, v<irios milhOes de titulos foram propostos sem encontrar comprador. A 23, foram postos em venda 6 milh6es de titulos. A 24, a baixa acentuou-se; cerca de 13 milhOes de titulos foram lan'<ados no mercado, os quais dificilmente encontrariam tomador. 0 aparelho que trans­mitia as cota'<Oes, o ticker, estava congestionado e funcio­nava com urn atraso de quatro horas. Com uma altern:incia

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de altos e baixos, a queda prosseguiu inexoravelmente; a 29, eram mais de 16 milhOes de titulos que se abatiam sobre o mercado. Em dez dias, os "dez dias negros'', dezenas de milhOes de tftulos mudaram de m:ios, perdendo de 30% a 40% do seu valor. por vezes ate 50%, e o valor global das a~;6es cotadas no Wall Street, estimado em 89 bilh6es de d6lares em 1~ de setembro, tinha caido para 71 bilh6es, ou seja, com uma deprecia!fli.O global de 20%. A clientela inquietava-se, mas sem excessos: que vantagem l!_avia em afobar-se? A histOria financeira dQ~Estados Unidos ja tinha conhecido outras crises. No final de outubro, as cota~;6es reencontraram seu nivel do come1;0 do ano. Foi apenas uma daquelas pequenas crises indispens<iveis ao saneamento do mercado.

0 raciocinio pecava por excesso de confian~;a. Reduzir o desabamento das cota~;6es a urn puro acidente bolsista era minimizar o Iugar do credito na economia americana. Tudo baseava-se nele; o credito era o principia de tudo, tanto do consumo quanto da produ!fli.o; a prOpria agricul­tura, como jli vimos, dele dependia em grande parte. Foi tambem o ponto mais vulnedvel. Para uma economia tao ligada ao crCdito, uma crise financeira era como uma parada cardiaca: se o cora~;iio falhasse, a circula~;:io ficaria compro­metida em todo esse grande corpo. As empresas, industriais ou comerciais, viam sua tesouraria secar; os bancos, incapa­zes de satisfazer a toda a demanda, quebraram uns ap6s outros, arrastando por sua vez para a fa!encia numerosas empresas. Aquelas que nao fecharam as portas diminuiram sua atividade e demitiram parte do pessoal: eram outros tantos compradores a menos. Os estoques acumularam-se, o dinheiro custava a reentrar; logo, novas falencias. Por urn encadeamento inexonivel, todos os mecanismos econ6-micos que concorriam num dia para a crescente prospe­ridade atuavam no outro em sentido inverso: era urn ciclo infernal. A diminui~;iio de atividade acarretou o desempre­go: o desemprego reduziu a atividade, cada urn restringindo a for~;a ou por precau~;iio suas compras. 0 desemprego alas­trou-se: 3 milh6es, seis meses mais tarde; 4, ao firn de urn ano; 7, apOs dais anos; 11, em outubro de 1932, ou seja,

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10% da popula~;ao tot"al e mais de uma quarta parte da popu­la(f:io ativa. A produ~;iio industrial caiu entiio abaixo dame­tade de seu nivel de 1929.

Inicialmente, a situa!fli.O foi encarada com otimismo: era impossivel que ela se prolongasse. Era o que assegurava o presidente Hoover, que se esfor~;ava par tranqliilizar seus concidadiios: "A prosperidade espera-os na esquina da rna", prognOstico tambCm de quase todos os especialistas. Mas logo foi preciso render-se a evidencia: a crise prosse­guia, a baixa prolongava-se, o marasma instalava-se. Aque­la mlo era decididamente uma crise como as outras, e a opiniiio pUblica americana, em sua confus3o e em sua per­plexidade, come1;0u a duvidar de que pudesse entrever uma saida. Uma tal crise, que atingia todas as estruturas da eco­nomia e abalava a sociedade americana em seus alicerces, nao teria sido conseqiiencia de sua organiza~;ao? Talvez fos­se esse o efeito mais grave da depress<i.o: a crise moral que engendrou. Os americanos perdiam, pela primeira vez, sua confian~;a no dogma da livre iniciativa, nas virtu des da inicia­tiva privada e na solidez dos pressupostos liberais. 0 otimis­mo que inspirava a experiencia americana e que de seu exito extrafa sua prOpria justifica~;iio foi duramente atingido: a dtivida crescia. A na~;ao americana atravessava uma crise de confian(fa, a mais grave de sua hist6ria, a qual deixaria recordafSOes duradouras. Vinte anos seriam necess<irios, se­niio para apag:i-las inteiramente, pelo menos para atenu:i­las: o tempo, para a gera~;<i.o que viveu a crise, de ser substi­tuida pela seguinte.

Vinte anos foi tambem o periodo de dura~;<i.o da admi­nistra~;<i.o democrata (1933-1953). Com efeito, a depress<i.o acarretou tambem conseqiiencias politicas: os republicanos deram prova de uma total impotencia para compreender a situa(fiio e remedi:i-la; foram atacados acerbamente por sua ina~;ao. Desacreditado por seus progn6sticos otimistas que os fatos se encarregavam em seguida de desmentir, o infeliz presidente Hoover reapresentou-se as elei~;6es de no­vembro de 1932 sem ilusOes. A situa~;ao era catastr6fica. a curva estava em seu ponto mais baixo: 12 milhOes de de­sempregados, o fndice da produ~;ao industrial em 48,7 (100

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em 1929), as cotac;Oes do trigo e do algod3.o em urn tcrc;o de seu nfvel de 1929. Uma vit6ria dos democratas estava na 16gica das coisas: eles j:i dispunham da maioria na Cama­ra dos Representantes desde novembro de 1930. Que mais nao fosse para mudar, os eleitores teriam votado no primei­ro que aparecesse.

Franklin Roosevelt- Acontece que o candida to demo­crata estava muito Ionge de ser o primeiro que aparecesse. Essa foi a sorte do Partido Democrata, tam bern darepllblica norte-americana e. sem dUvida. do mundo livre - a de encontrar nesse momenta crucial uma pcrsonalidade de pri­meirissimo plano. Franklin Delano Roosevelt reunia urn con junto de dotes pr6prios para seduzir o eleitor: urn sorriso eminentemente fotogenico, uma voz persuasiva (foi a pri­meira campanha eleitoral com intervenc;ao do r:idio), uma forc;a de car:iter que !he fizera suportar e ate mesmo superar parcialmente a doenc;a que o atingiu (a poliomielite), o no­me que ostentava (Theodore era seu prima), sua experien­cia em neg6cios pUblioos: tinha sido sub-secret3.rio da Mari­nha durante a Primeira Guerra Mundial e govemador do Estado de Nova York, urn daqueles que desempenham urn papel decisivo na designac;ao do Presidente. Seu bcito, asse­gurado de todas as maneiras, assumiu uma amplitude sem precedentes: obteve a maioria em 42 dos 48 Estados, alguns dos quais quase sempre haviam votado nos candidatos repu­blicanos, e arrebatou cerca de 23 milh6es de votos contra menos de 16 milh6es dados a seu conoorrente. Raras vezes urn presidente dispusera, ao assumir o poder, de semelhante capital de confianc;a.

A vit6ria dos democratas- 0 genio politico de Roose­velt seria o de transformar esse exito de circunstancia num triunfo duradouro e o de obter a adesao passageira dos elei­tores num s6lido apoio ao Partido Democrata. Uma frac;ao importante do eleitorado americana e, com efeito, inst<i.vel, e seu voto flutuante decide com freqiiencia a disputa entre republicanos e democratas. Desde 1865, o Partido Repu­blicano assegurara-se da maioria: Wilson s6 conseguira tor-

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nar-se presidente em virtude de uma cisao dos republicanos. A crise reconduziu os democratas a Casa Branca. Roosevelt ai os manteria por vinte anos. A relac;<io de forc;as entre os dois partidos inverteu-se.

Acidentalmente, a crise reaproximou v:irios grupos de tradic;6es e interesses distintos, que as circunst<incias, a evo­luc;<io da situac;3.o e a habilidade poUtica de Roosevelt, chefe de partido tanto quanto chefe de Estado, manteriam estrei­tamente unidos. Havia, em primeiro Iugar, o Sui, o solid South, assim chamado em virtude de sua indefectfvel fideli­dade ao partido: no interior da coalizao democrata, era urn elemento conservador, mesmo reaciomirio, deliberadamen­te racista e veementemente oposto a toda igualdade efetiva de direitos entre brancos e negros. 0 que nao impedia os eleitores negros, pelo menos aqueles que exerciam seus di­reitos politicos, uma minoria, de votar tam bern pelos demo­cratas. Osfarmers fonnavam urn outro grupo, o qual estava grato a administrac;ao democrata por te-Io tirado de uma situac;ao desastrosa: a desvalorizac;3.o do d6lar e a politica inflaciomiria reabsorveram as dividas deles, ao passo que as medidas de sustentac;ao· dos prec;os agricolas os prote­geram das flutuar;Oes econ6micas. Raz6es semelhantes liga­vam o operariado industrial aos democratas: a!Cm da redu­c;<io do desemprego, os sindicatos mostravam-se satisfeitos com a administrac;ao que os chamara a colaborar na prepa­rac;ao de algumas de suas decis6es. 0 sindicalismo realizou grandes progressos sob a presidencia de Roosevelt: consti­tuida na base do profissional qualificado, a velha American Federation of Labor (AFL) passou a ter a concorrencia de uma organizac;ao mais din<imica, o Congress of Industrial Organization (CIO), que enquadrava por federac;Oes de in­dUstria as categorias profissionais que nao interessavam a aristocracia do trabalho (1936). A competic;3.o entre as duas centrais sindicais era proveitosa para o mundo do trabalho, as filiac;6es contavam-se por milh6es. 0 interesse dos sindi­catos foi despertado para as quest6es polfticas: eles em­preenderam a educac;iio de seus adeptos. Os americanos novos, os imigrados recentes, ou aqueles que eram mais dificeis de assimilar-se, porque conservavam suas particula-

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ridades, ou porque suas origens os distanciavam mais da heram;:a anglo-sax6nica, tambCm votavam nos democratas: os irlandeses, os italianos, os eslavos, a maioria dos cat61i­cos, os judeus. todas as minorias Ctnicas. Por isso Nova York, a maior cidade judia do mundo, tambem aquela onde se encontravam mais irlandeses, uma das metr6JX>Ies eslavas, era igualmente urn baluarte democrata. Os brancos do Sui, o voto do negro, os farmers, o sindicalismo, as minorias religio­sas ou raciais, eis os elementos heterogCneos cuja coaliziio conduziu triunfalmente a presidCncia o candidato democrata Roosevelt, que vai mantC-los unidos durante toda a sua vida.

Eleito em novembro de 1932, Roosevelt s6 devia tamar JX>sse e entrar em fun<_;:Oes a 4 de mar<_;:o de 1933. Durante esses quatro meses, a situa<_;:<io agravou-se ainda mais; ode­semprego alastrou-se; a paralisia propagou-se, os ban cos continuaram falindo em serie (5.500 desde 1930). A 4 de mar<_;:o, os estabelecimentos de crCdito fecharam suas portas em todo o territ6rio. A economia americana atingiu o fundo do abismo: tudo estava em suspenso, na expectativa das iniciativas da nova administra<_;:iio; raras vezes urn presidente tera, ao mesmo tempo, encontrado uma situa<_;:<io tao desas­trosa, sentido o peso de tamanha responsabilidade e dispos­to de possibilidades de a<_;:<io t<io extensas.

0 New Deal- Roosevelt agiu imediatamente com uma determina<_;:iio que restabeleceu a confian<_;:a. 0 Congresso, que nada tinha a recusar-lhe, votou sem hesitar, com enor­mes maiorias, freqiientemente unanimemente, todas as pro­pastas que ele !he remeteu. A atividade legislativaera prodi­giosa. Em pouco mais de trCs meses, de 9 de mar<_;:o a 16 de junho de 1933- os Cern Dias da experiCncia do New Deal -as C<imaras adotaram mais textos do que nos quatro anos da administra<_;:<io Hoover. 0 processo foi de uma rapi­dez extraordimiria: alguns textos erarn redigidos, apresen­tados, discutidos, votados e assinados num mesmo dia. 0 alcance de muitos deles foi sem precedentes, e o conjunto modificou profundamente os h:ibitos, as tradi<;:Oes e as estru­turas da sociedade, da economia e da politica norte·ame­ricanas.

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As principals medidas foram preparadas entre novem­bro e mar<_;:o, entre o presidente co pequeno grupo de inte­lectuais e de especialistas que compunham seu brain trust. A import<'incia das entourages presidenciais aumentou com o poder do presidente. 0 rol dessas leis, que afetavam todos os dominios, niio formava, entretanto, urn conjunto siste­matico: Roosevelt mio era urn doutrimirio. 0 New Deal exprimia menos urn programa do que uma atitude funda­mental: os republicanos assistiam impotentes as devasta<_;:Oes da crise: Roosevelt decidiu reagir. 0 New Deal foi, antes de rnais nada, urn ato de fC nas virtudes da a<_;:<io, a recusa em admitir a fatalidade da Depressiio. Eo sentido daexpres­sao: nova distribui<_;:<io das cartas e retomada do jogo em bases mais justas. A experiCncia Roosevelt increve-se, por isso, mesrno que suas modalidades tenham sido inovadoras, na tradi<;:iio otimista do gCnio americana. Alguns postulados inspiraram o New Deal: para reanimar a atividade, estimu­lar a demanda e, para consegui-lo, aumentar o poder de compra de openirios e camponeses; no marasma existente, o Estado federal era o Unico detentor de recursos; a ele competia, portanto, iniciar a retomada. A politica deflacio­n:iria dos republicanos tinha fracassado: a administra<_;:iio dc­mocrata praticou uma infla<;:iio controlada. 0 abandono do padr<io-ouro, a desvaloriza<_;:<io do d6lar (de 30% a 40%), os adiantamentos do Tesouro e as grandes facilidades de crCdito deviam revigorar a economia. A experiCncia tam­bern condenou as m:iximas do liberalismo e dernonstrou a nocividade de uma concorrCncia ilimitada: o Estado devia intervir para regulament:i-la, organizar as rela<;:Oes sociais e defender os interesses legitimos dos assalariados; as orien­ta<;:Qes econ6micas do New Deal estenderam-se a urn pro­grama social. Esses prindpios tra<_;:avam urn quadro para a a<_;:iio administrativa: em sua aplica<_;:<io, Roosevelt, cuja conduta se regia pelo ernpirismo, inspirou-se nas circuns­t<incias com a preocupa<_;:iio de remediar as situa<;:Des mais prementes e de adotar as inspira<_;:Oes da opiniao pUblica.

Estavam os bancos todos fechados e o cn!dito parali­sado? Uma lei de urgCncia, proposta e votada a 9 de mar<_;:o, conferiu grandes podercs aos organismos federais, regula-

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mentou todas as transa~;Oes a vista e a prazo, proibiu o ente­souramento e a exporta~;iio do ouro; uma morat6ria outor­gou urn sursis aos bancos. Oito dias depois, cinco mil bancos estavam reabrindo suas portas. Os desempregados conta­vam-se por milh6es? Washington colocou 500 milh6es de d6lares a disposi~;iio dos Estados e empreendeu urn vasto programa de obras ptiblicas: a constru~;:io de escolas, a re­modela!;iiO de aeroportos, os projetos de irriga!;iio propor­cionavam trabalho a milh6es de desempregados que reen­contraram, com a esperan~;a e a dignidade, urn poder de compra do qual a produ~;ao n:io tardou em beneficiar-se. 0 ordenamento de todo o vale do Tennessee, para a eletrifi­ca~;:io, irriga~;iio e controle de enchentes em todas as regi6es circunvizinhas, foi iniciado sob a 6gide da Tennessee Valley Authority (TV A): grandiosoempreendimento que transfor­maria a paisagem e as condi1<6es de vida numa vasta area. Urn corpo de defesa civil ocupou 250 mil homens no reflo­restamento. Os agricultores sofriam com as dificuldades de venda, a deteriora~;iio das cota~;Oes, e sucumbiam a enormes divfdas? 0 Agricultural Adjustment Act (AAA, 12 de maio de 1933) e diversas leis organizaram o cr6dito agricola, inci­taram os agricultores a reduzir a produ<;ao de generos ali­menticios geradores de excedentes mediante urn jogo de subven~;6es proporcionais as superficies n:io cultivadas, es­tabelecerarn urn sistema de pre~;os garantidos. Empr6stimos a Iongo prazo, a juros m6dicos, e a infla~;iio continua ajuda­ram os agricultores a libertar-se. Entre 1933 e 1939. a renda m6dia dos agricultores quase duplicou: ei-los no gozo da estabilidade a que aspiravam. 0 National Industrial Reco­very Act (NIRA, 16 de junho de 1933) empreendeu para os industrials e os assalariados o que o AAA fez para os farmers; a fixa~;:io de pre~;os minimos, a redu~;:io da jornada de trabalho, OOdigos de concorrencia leal redigidos com base num modelo uniforme, que o presidente tinha a faculdade de impor as indU.strias que nao as aplicassem espontanea­mente, de via restringir a oferta e reabsorver os excedentes; a demanda foi estimulada pelos adiantamentos de cr6dito e pelas grandes obras. Essa regulamenta!;iiO comportava ga­rantias para os trabalhadores, que viram seus sahirios res-

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tabelecidos, sua tranqiiilidade assegurada, seus delegados participando na reda!;iiO dos c6digos, admitidos na mesa de negocia!;Oes de conven~;Oes coletivas.

Quando o Congresso entrou em recesso de terias a 16 de junho, os Estados Unidos consumavam uma esp6cie de revolu~;ao: encerrava-se urn capitulo de sua existencia~ ini­ciava-se urn outro. Mesmo aqueles que lhe contestavam o espirito .ou !he criticavam os m6todos tinham de admitir que o saldo da experiencia era nitidamente positivo: o de­semprego estava em regress<io, a economia reanimada, os indices de atividade em aumento, os bancos reabertos, os agricultores vendiam seus produtos a pre~;os mais remune­radores. Roosevelt salvou os Estados Unidos da cat<istrofe financeira, evitou as convuls6es polfticas, talvez a revolu­~;<io. Deu ao povo americana confiam;a em seu destino e no valor de suas institui~;Oes.

As estruturas da economia americana safram da crise profundamente modificadas: a interven~;<io do poder ptibli­co, o desenvolvimento legislativo, a organiza!;li.O dos sindi­catos retrafram singularmente o campo de aplica~;iio do libe­ralismo e transformaram o capitalismo, salvando-o talvez. A ordem polftica tambem foi afetada: o equilibria entre o Est ado e os Estados foi quebrada em beneficia do govemo federal. A regulamenta~;<io econOmica e a legisla<;ao social passaram a ser de sua compet€ncia; a evolu!;li.O tendia a fazer dos Estados agentes de execu~;<io da politica decidida em Washington. Era a inversao da concep<;<io que inspirara os constituintes de 1787 e o Ultimo estligio de uma evolu~;ao em curso desde longa data. A administra'<ao federal inchou seus servi!;OS e seus efetivos, Washington adquiriu a fisiono· mia de uma grande capital administrativa.

As resist~ncias ao New Deal - Essa atividade e suas conseqii€ncias niio eram do gosto de todos. Acolhido no infcio com urn alivio praticamente universal - quase todas as suas disposi~;Oes fundamentals foram adotadas pelo Con­gresso por quase unanimidade -, o New Deal enfrentou uma crescente oposi~;iio: dos patr6es descontentes por ve­rem o Estado apoiar as reivindica1<6es de seus empregados

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e constrangidos pelas novas medidas disciplinadora~; dos Estados submetidos ao governo federal; dos repubhcanos enciumados pelos triunfos de seus rivais politicos; e dos ju­ristas ciosos da legalidade. Roosevelt encontrou advers:irios em seu prOprio partido: conservadores que protestavam ~~­tra o que consideravam pr:iticas socialistas. Essa opos11;a? dfspar reagrupou-se no terreno juridico e contestou. a constJ­tucionalidade do New Deal. Ora, o Supremo Tnbunal, a mais alta autoridade na materia, declarou inconstitucionais o NIRA (maio de 1935) eo AAA (janeiro de 1936). Mas o New Deal tambem tinha fervorosos partid:irios; Roosevelt inaugurou novas fonnas de relacionamento com a opi~i~o pUblica, dirigindo-se a ela pelo r:idio, em conversas famJh~­res "ao pe da Jareira". Os desempregados de ontem, os agn­cultores, todas as vftimas da crise se recordavam de sua recente e aflitiva situa~ao. Em novembro de 1936, Roosevelt foi reeleito com uma margem ainda mais folgada de votos sobre seu concorrente republicano: cerca de 28 milh6es de votos contra menos de 17 milh6es do opositor. Os demo­cratas detinham no Congresso uma maioria esmagadora: 7/8 do Senado e 3/4 da Camara de Representantes. A causa foi entendida: o pafs aprovava o New Deal. Roosevelt era tao capaz de flexibilidade quanta de finneza: ap6s ter amea­~ado o Supremo Tribunal de reduzir o limite de idade de seus membros, esbo~tou-se uma reaproxima~tao. Roosevelt nao deu seguimento a seu projeto eo Supremo mostrou-se mais conciliador. A habilidade do presidente poupou aos Estados Unidos urn conflito constitucional an:ilogo ao que opusera o presidente Jackson ao Congresso. Os adverStirios tiveram de se render a evidencia: muitas disposii(Oes do New Deal j:i tinham se integrado aos habitos da popula~t<io; era ilus6rio pensar num retorno ao estado de coisas anterior. A controversia acalmou-se. 0 agravamento da situa~t<io in­ternacional contribuiu para isso, ao desviar as aten~6es do presidente dos problemasinternos e ao fornecer uma justifi­ca~t<io suplementar para a interven~ao cada vez maior do poder federal na vida da na~t<io.

Fora dos Estados Unidos, a experiencia Roosevelt teve considenivel repercuss:io: estudada, enaltecida, imitada (a

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politica econOmica do governo de LCon Blum inspirou-sc nela), parecia abrirum caminho intcnnedio entre a anarquia do liberalismo eo rigor do dirigismo planificador. entre a impotencia da democracia classica e os excessos dos regimes totalit<irios.

A po/itica externa de Roosevelt- No decorrer de seu segundo mandata presidencial (1937-1941), as preocupa­~6es externas iriam ter cada vez maior prioridade sobre as quest6es internas.

Roosevelt tinha pela polftica externa o pendor natural de todos os homens de Estado que sonham com a politica em grande estilo: nos Estados Unidos, alem disso, era esse setor conf1ado prioritariamente a atividade do presidente. Por tradi~t<io familiar e experiencia pessoal, Roosevelt co­nhecia o mundo e interessava-se pela Europa. Sem demora, imprimiu a polftica externa, assistido por seu Secret:irio de Estado, Cordell Hull, a marca de sua personalidade. Em novembro de 1933, reconheceu o governo sovietico, que a diplomacia americana ignorava obstinadamente desde a Revolu~ao, como mais tarde ocorreria tambem com a China de .Mao-Tse-Tung. Foi sobretudo nas rela~6es com as outras repUblicas americanas que a originalidade de sua linha polf­tica ganhou maior brilho: seus precursores, desde McKin­ley, interpretando a doutrina Monroe numa perspectiva im­perialista, tinham trabalhado para estender a tutela politica e econOmica dos Estados Unidos aos outros Estados do Continente, e logrado fazer do mar do Caribe urn I ago ame­ricana; nos Ultimos vinte anos. as tropas federais tinham realizado interven~6es em Cuba, Sao Domingos e Mexico. Roosevelt, tanto por diplomacia quanta por convic~ao, rompeu ostensivamente com o que seu primo denominava a polftica do big stick (varapau) e inaugurou as rela~6es de boa vizinhan~a. A sinceridade de suaSinten~t6es foi mate­rializada em gestos: a partir de 1933, retirou da Nicar:igua as tropas norte-americanas ali estacionadas; a Emenda Platt. que desde 1901 estabelecia uma especie de proteto­rado sobre Cuba, foi revogada em 1934. Agiu no mesmo espfrito no Haiti e em Sao Domingos. Os Estados ameri~

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canos, tranqiiilizados par cssas demonstrar;6es de boa von­tade, abriram o caminho para urn estreitamento de relar;6es: o pan-americanismo reencontrou urn sentido na confianr;a mUtua, desenhou-se uma solidaricdade continental, cujos alicerces foram criados par uma serie de conferencias intera­mericanas. Durante a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos colheram os beneffcios dessa atitude clarividente e generosa.

0 abandono progressivo da neutralidade - A atenr;iio do presidente niio tardaria em ter de se concentrar na Euro­pa, onde nuvensde mau agoura se adensavam no horizonte. Entre a eleir;iio e a posse na presidencia de Roosevelt, Adolf Hitler tinha-se instalado na chancelaria (30 de janeiro de 1933): as iniciativas do novo senhor da Alemanha, diplom<i­ticas e militares, iriam p6r a paz em perigo. A partir de 1935, a Europa ingressou em liguas perigosas: a expedir;iio italiana na Eti6pia, a guerra civil da Espanha multiplica­ram os riscos e demonstraram, para quem niio quisesse igno­rli-la, a vontade de dominar;ao das potencias totalit<irias. Roosevelt pressentiu o perigo, mas o povo americana niio via ou niio queria ver: continuava defendendo a neutrali· dade como fundamento da paz e garantia de sua seguranr;a. Ausente da Liga das Nar;Oes, freadopela disposir;iio do povo americana e pela desconfianr;a do Congresso, Roosevelt te· ve sua liberdade de ar;Ao internacional singularmente res· tringida. Nessa posir;iio diffcil, encurralado entre uma situa· r;Ao cujo rlipido agravamento confirmava seus pressenti­mentos pessimistas e uma opiniao pUblica que defendia ce­gamente 0 isolacionismo e imaginava poder manter-se a margem do conflito, Roosevelt revelou a medida de suas qualidades de homem de Estado: niio renunciou a agir, mas evitou repetir o erro de Wilson, engajando-se sem estar cer­to de ser seguido. Dosando habilidade e audlicia, usou pie· namente todas as possibilidades que a legislar;iio I he conferia e, ao mesmo tempo, trabalhou para modificli-la: uma emen­da a lei da neutralidade (1937) autorizou a venda de armas aos beligerantes, sob a condir;Ao de que pagassem a vista e assegurassem por conta prOpria o transporte (cash and

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carry); essa disposir;iio, que suavizava o regime definido em 1935, sob o pretexto de tratar todas as potencias em pe de igualdade, beneficiou de fato as democracias ocidentais, que dispunham do ouro e dos meios de proter;iio para suas comunicar;6es marftimas com os Estados Unidos. Sem for­r;ar o eleitor ou congressista, Roosevelt trabaJhou paciente­mente para colocar a opiniiio pUblica em face das realidades: ora precedendo-a, ora formulando sentimentos de que ela ainda niio tamara consciencia, fe-la percorrer o caminho que o Jevaria a aceitar suas responsabilidades. Em outubro de 1937, urn discurso proferido em Chicago marcou uma etapa: Roosevelt constatou o fracasso do isolacionismo e introduziu entre os ditadores e as democracias uma dife­renr;a de julgamento, cuja ideia estava seguramente em con­formidade com a inspirar;iio democnitica das instituir;6es americanas, mas em desacordo fundamental como princfpio de neutralidade. Mas os acontecimentos desenrolaram-se mais depressa do que a opiniiio pUblica americana: a solici­tar;iio angustiada de Paul Reynaud, suplicando aos Estados Unidos que nao deixassem a Franr;a ser esmagada, Roose­velt s6 p6de responder com uma manifestar;iio de simpatia plat6nica. No decorrer da campanha eleitoral do outono de 1940, Roosevelt, que se apresentava uma terceira vez - fato sem precedente na hist6ria dos Estados Unidos e que somente a excepcional gravidade da situar;iio tornava concebfvel-, acreditava dever prometer, contra sua convic­r;iio Intima, que o pais niio entrariaem guerra. Sua reeleir;iio, mais diflcil do que em 1936, conferiu-lhe suficiente autori­dade para obter do Congresso a aprovar;iio de crCditos e de medidas necessarias a seguranr;a dos Estados Unidos, entendida em sua acepr;iio mais ampla. J3. no dia seguinte ao da derrota da Franr;a, indo ate o limite extrema dos com­promissos possfveis sem entrar na guerra, ele providenciou a transferencia para a Grii-Bretanha de cinqiienta contrator­pedeiros, em troca do aluguel de bases necess<lrias a defesa dos acessos ao golfo do Mexico. Ap6s sua reeleir;iio, Roose­velt fez com que fosse adotada pelo Congresso a fOrmula de emprestimo e arrendamento, que o autorizava a fomecer aos pafses que defendiam a democracia e, indiretamente,

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os Estados Unidos, tudo o que lhes fosse necess;irio e que a penUria de divisas os impcdia de adquirir. 0 emprCstimo e arrendamento foi inventado para a Inglaterra, mas sua aplicag;io estender-se-ia a muitos outros pafses, inclusive a URSS. que, a partir do venia de 1941, foi urn de seus benefici<itios. Os Estados U nidos converteram-se no arsenal das dcmocracias. Embora pcrmanecendo aquCm da fron­teira que separava a paz da guerra. Roosevelt assinalou cada vez mais claramente com quem estavam as simpatias norte­americanas: Roosevelt e Churchill concordaram ate num programa comum que definia os objetivos da guerra desses dais paises que cram aliados sem o serem (1941). Os oito pontos da Carta do Atlintico. que retomavam a tradigao dos catorzc pontos de Wilson, exprimiam a maravilha o idealismo gcneroso dos Estados Unidos: eles teriam uma incalcul<ivel repercussao. Na guerra, encamavam a esperanga dos povos e ganharam numerosas simpatias para a causa dos Aliados. Na paz, inspirariam as reivindica~.rOes dos po­vos coloniais e modclariam a nova fisionomia do universo.

A entrada na guerra- A margem entre a paz e a guerra continuou a reduzir-se. 0 Japao poupou aosEstados Unidos a decisao de dar esse passo. Na madrugada de 8 de dezembro de 1941, interrompendo bruscamente as convcrsac;:6es que, nos Ultimos meses, tinham servido de biombo para seus pre­parativos militares, avi6es japoneses atacaram de surpresa a grande base americana de Pearl Harbor, no Havaf. A esquadra americana, surpreendida ancorada, sofreu danos consider<iveis. 0 potencial bClico americana levar<i meses recompondo-se do desastre, ao passo que o Japiio apro­veitou essa folga para se apoderar de todo o Sudeste Asia­tica. Mas a agress::lo nip6nica prestou indiretamentc urn grande servic;:o ao presidente e ao povo americanos: eles foram langados na guerra pela vontade do inimigo. No di.i seguinte, a Alemanha declarou guerra aos Estados Unidos, que j<i nao precisavam interrogar-se mais sobre o que convi­nha fazerou deixar de fazer; todas as hesitac;:6es foram varri­das, as discordincias entre partidos, apagadas; a politica pessoal de Roosevelt e a vontade do pais deram-se as miios.

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Os Estados Unidos tinham apenas urn objetivo: fazer a guer­ra e ganh<i-la. Durante quatro anos, sua hist6ria vai confun­dir-se com ada Segunda Guerra Mundial.

Apesar das advertencia~ de Roosevelt, os Estados Uni­dos encontravam-se bern Ionge de estar preparados: a ajuda prestada ii. Gni-Bretanha enfraqueceu. inclusive, a potencia norte-americana de combate. Durante urn Iongo periodo de tempo, os Estados Unidos sofreram sucessivos reveses. Tudo, ou quase tudo, estava por fazcr simultaneamente: mobilizar exCrcitos, instruir os recrutas, formar os oficiais, fabricar as armas, construir as f<ibricas para produzi-las. A amplitude da tarefa teria podido desencorajar outros povos; cia serviu de estfmulo aos americanos. A 6 de janeiro de 1942, a mensagem do presidente sabre o cstado da Uni<io fixou os objetivos que a produgao nacional deveria atingir antes do final do ano: os mimeros pareciam desproposi­tados: 60 mil aviOes, 45 mil tanques, 20 mil canh6es antiaC­reos, 18 milhOes de toneladas em navios. 0 programa seria executado. Os Estados Unidos colocaram ao servigo da ali­mentag<io da guerra as mesmas aptid6es de que davam pro­vas na paz; sua economia transfonnou-se toda em economia de guerra; o territ6rio estadunidense era urn imenso arsenal que supria as necessidades nao s6 dos exCrcitos e das frotas americanas mas as de todos os seus aliados. Foram criadas centenas de novas f<ibricas, sobretudo na CalifOrnia c nos Estados do Sui, que trabalhavam 24 horas par dia; a capaci­dade de produgiio das siderurgias elevou-se a cifras fabu\o­sas; as f<ibricas e os estaleiros trabalharam num ritmo cada vez mais r<ipido, os liberty ships foram construidos em doze dias. 0 povo americana curvou-se espontaneamente as re­gulamentac;:6es de uma economia de guerra. A guerra assu­mia urn caniter industrial; a abundincia de seus rccursos e a perfeic;:ao de sua organizag<'io permitiram aos Estados Unidos economizar homens e esmagar o inimigo sob o peso de material fabricado em grande sCrie. Esse esforc;:o gigan­tesco teve resultados decisivos principalmente em dois pon­tos: no mar, onde a atividade dos estaleiros navais ganhou a corrida de velocidade com os submarinos alemaes e penni­tiu os desembarques na Africa do Norte, no Pacifico e na

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Normandia; e nos ares, onde a aviar;ao aliada depressa con­quistou a superioridade. Foi o domlnio conjugado dos ocea­nos e dos ares que abriu o caminho a conquista do continente curopeu.

Esse esforr;o nao tardou em fazcr sentir seus efeitos no curso das operar;6es. A Jnglaterra e a URSS tinham con­tido o advers<irio: os Estados Unidos iriam retomar a inicia­tiva. A partir de novembro de 1942, eles estavam em condi­r;6es de levar a cabo urn grande desembarque, a milhares de milhas de suas bases, na Africa do Norte. No ano seguin­te, foi o desembarque na Sicilia; depois, na lt!ilia peninsular. A 6 de junho de 1944 abriu-se a segunda frente na Norman­dia. A nomear;<io do general Eisenhower para o supremo comando dos exCrcitos aliados consagrou a posir;ao domi­nante dos Estados Unidos na coligar;<io. Onze meses depois, a capitular;ao da Alemanha afastou em definitivo uma das maiores amear;as que pesou sabre a liberdade dos homens. Nesse desfecho decisivo. a diplomacia e as armas ameri­canas desempenharam urn papel capital. Com efeito, os di­plomatas nao tinham abdicado de seus direitos. Toda uma sCrie de conferencias entre Roosevelt e os chefes das outras grandes nar;6es aliadas tinha estreitado os vfnculos, coorde­nado os esforr;os e lanr;ado as bases para o estabelecimento da paz: Casablanca (janeiro de 1943), onde os anglo-sax6es decidem exigir uma rendir;ao incondicional ao inimigo; Que­bec (agosto de 1943); Cairo, onde Roosevelt e Churchill conferenciam com Chang Kai-chek; Teera (novembro­dezembro de 1943) e Yalta (fevereiro de 1945), entre os tres grandes Aliados. '

0 mCrito dos Estados Unidos foi tanto mais extraor­dimirio porquanto tiveram de conduzir a !uta simultanea­mente em duas frentes. A prioridade concedida ao setor europeu mio tinha impedido as forr;as americanas do Pad­fico de executar contra o Jap:io uma sCrie de operar;6es duras e custosas. Reconstitufdas as esquadras, tinham passa­do ao ataque e desalojado os japoneses de arquipClago em arquipClago, fechando o cerco em redor do Jap:io. Duas bombas at6micas explodiram sabre Hiroxima e Nagas<lqui, desferindo o derradeiro golpe na resistencia nip6nica: a ca-

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pitular;ao assinada a bordo do Missouri ( 15 de agosto de 1945) complementava a capitular;ao da Alemanha. Tanto aqui como ali, urn chefe militar americana tinha exercido o comando supremo. Eisenhower contra a Alemanha, MacArthur contra o Japiio. Os Estados Unidos foram, com a URSS, os grandes vencedorcs.

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CAPITULO IX

A superpotencia: de Truman a Reagan

A sucessiio de Roosevelt- Roosevelt, que fora reeleito em novembro de 1944. para urn quarto mandata presiden­cial, morreu cedo demais para assistir a esse duplo triunfo, do qual ele foi o principal artesao: uma parada cardiaca pusera fim, em 12 de abril de 1945, a mais longa presidencia da hist6ria norte-americana. Seu brusco desaparecimento poderia lanr;ar os Estados Unidos num transe compar3.vel ao que se seguira a morte de Lincoln: como substituir inopi­nadamente semelhante personalidade que, nos Ultimos doze a nos, concentrara em suas miios poderes excepcionais e pre­sidira a mais prodigiosa transforma!Jiio de toda a hist6ria do pals? Os Estados Unidos tinham-se elevado ao primeiro pla­no em todos os aspectos- econ6mico, militar, politico-, mas tudo estava iniciado, nada concluido. A guerra estava virtualmente ganha, mas a paz poderia perder-se. Quis a sorte, porem, que o sucessor de Roosevelt, Harry Truman, fosse urn homem de Estado a altura dessas vastas responsa­bilidades: esse pequeno lojista que ingressara na polftica depois de falir nos neg6cios, escolhido para ser o substituto de Roosevelt, revelou-se urn dos melhores presidentes dos Estados Unidos. Em diversas circunst.iincias, ele soube to­mar decis6es capitais sem vacila~tiio, sustent<i-las e faze-las executar (emprego da bomba at6mica, doutrina Truman, interven~tiio na Coreia, destitui~tiio de MacArthur). 0 Par­tido Democrata encontrou nele, assim, urn excelente chefe, prudente, combativo, magnffico estrategista em politica eleitoral, o que !he propiciou em 1948 uma inesperada vit6-ria nas urnas.

Iriam os Estados Unidos renovar os erros do primeiro p6s-guerra? Tal como 25 anos antes, o corpo eleitoral trans-

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feriu sua confian'<a para os republicanos que, nas elei'<6es de novembro de 1946, arrebataram a maioria nas duas Casas do Congrcsso. 0 presidente Truman encontrou-sc, entao. numa situa<;:<io amiloga a de Wilson em face de urn Con­gresso republicano. Tambem como ent<io, sob a pressao de uma opiniao pUblica impaciente par retomar o curso ha­bitual de suas ocupa<;:Oes e apagar· o mais depressa possfvel os tra'<os da guerra no governo e na economia, a adminis­tra'<ao teve de revogar as medidas de exce<;:<io, suprimir os con troles, repatriar as tropas: num prazo muito curta, cerca de 9 milh6es de homens sao repatriados e enviados para seus lares. A America desmobilizou ainda mais rapidamente do que tinha mobilizado: essa precipita'<<io criou no centro da Europa urn vazio que torna a URSS senhora da situa<;:<io e leva o Exerdto Vermelho e os partidos comunistas nacio­nais a tentar preenche-lo. Mas o paralelo como outro p6s­guerra ficou nisso: os Estados Unidos iriam menos Ionge no retorno ao isolacionismo; nao repudiaram toda a respon­sabilidade, o Senado aprovou (dezembro de 1946) a entrada dos Estados Unidos na Organiza<;:<io das Na<;:6es Unidas, cu ja Carta foi estabelecida pelos vencedores na Confcrencia de Sao Franc,isco da CalifOrnia.

A Guerra Fria e a lideram;a mundial- A deteriora.;ao da situa<;:;io intemacional e o temor do imperialismo soviC­tico levaram os Estados Unidos a repudiar rapidamente o isolacionismo. Truman anunciou, em 12 de mar<;:o de 1947, que prestaria assistencia econ6mica e militar aos pafses amea<;:ados e decidiu substituir a Gra-Brctanha na GrCcia e na Turquia. A 5 de junho, seu Secret<irio de Estado, o general George Marshall, num discurso histOrico, convidou as na<;:6es europeias a p6r-se de acordo, a fim de se benefi­ciarem de urn plano de a juda econ6mica financiado pelos Estados Unidos: o Plano Marshall salvou a Europa ociden­tal do desmoronamento econ6mico, da desordem social e da subvers<io politica. Dois anos depois, a contribui.;ao ame­ricana para a defesa da Europa ganhou urn aspecto militar: a pedido dos governos europeus, assustados com o "golpe de Praga", foi criado urn sistema de alian<;:a, o Pacta do

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At13.ntico Norte (4 de abril de 1949): Eisenhower torna-se comandante supremo das fon;as da OT AN. Pel a terce ira vez, contingentes americanos desembarcaram na Europa, mas em plena paz, a titulo preventivo e em decorrencia de uma alian<;:a previamente conclufda.

A amea<;:a comunista inspirava preocupa<;:6es aos Esta­dos Unidos no outro extrema do planeta. N<io conseguiram estabelecer urn entendimento entre os comunistas chineses e o aliado de Washington, Chang Kai-chek, nem impedir os primeiros de se apoderarem de toda a China (1949). Em 25 de junho de 1950, as for<;:as da Con.~ia do Norte invadiram a Con!ia do Sui: primeira ruptura do equilfbrio resultante da guerra. Truman reagiu em 24 horas e ordenou a interven­~ao das tropas americanas estacionadas no Jap<io. A ONU caucionou a opera<;:<io, outras na<;:6es enviaram contigentes, colocados sob o comando de MacArthur. A situa~ao lem­brava ada Segunda Guerra Mundial: na Europa e na Asia, duas coaliza<;:6es foram reconstituldas, tendo a testa os mes­mos comandantes-em-chefe. S6o advers:irio mudara: o alia­do de ontem, o comunismo sovietico e chines. Mas Truman nao pretendia deixar-se arrastar para urn conflito genera­lizado: a 11 de abril de 1951, exonerou de seu comando o general MacArthur, cujas iniciativas amea<;:avam a paz do mundo. Ap6s intennimiveis negocia<;:6es, acedendo aos desejos da na<;:<io, o presidente Eisenhower pOs fim a essa guerra por urn armistlcio que devolveu uma paz de compro­misso nessa parte do mundo (1953).

A Guerra Fria levou os Estados Unidos a urn envolvi­mento cada vez maior: a era do isolacionismo estava marta e enterrada. Eles faziam parte de varios sistemas de alian<;:as (OTAN, OTASE, ANZUS), assinaram acordos bilaterais com numerosos palses, subscreveram compromissos que os obrigavam a estar presentes. Mantinham, fora do territ6rio norte-americana, mais de uma centena de bases militares, navais e aereas, em todos os continentes e em todos os ocea­nos; conservavam uma esquadra no Mediterrineo e uma outra nos mares da China. Todos os paises com dificuldades financeiras e falta de capitais para seu desenvolvimento, solicitavam ajuda americana; se esta lhes fosse recusada,

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recorriam a Uniiio SoviCtica; se lhes fosse concedida, nem por isso ficavam agradecidos aos Estados Unidos que, aos olhos deles, eram portadores de uma tara irremedi:ivel: a riqueza. Os Estados Unidos sustentavam militar e financei­ramente o peso do mundo: de 1945 a 1951, ototal de creditos de ajuda ao estrangeiro, militar e econ6mico, elevou-se a 143 bilh6es de d6lares. Uma carga possivelmente esmaga­dora para qualquer outro pais. mas que era o pre~ de sua superioridade econ6mica e estrategica.

Onde quer que suspeitassem de amea~as de subversao, os Estados Unidos intervinham: sobretudo nas Americas, que consideravam indispensaveis a suaseguran~a: em Cuba, Kennedy fez Moscou recuar; forneceram ajuda aos gover­nos que combatiam a guerrilha. No Vietm'i, envolvem-se progressivamente ate se verem implicados numa verdadeira guerra: envio de conselheiros militares, depois de tropas, cujos efetivos acabariio por superar os 500.000 homens, fi­nalmente os bombardeios maci~os desfechados contra o Vietmi do Norte.

Entretanto, a confronta~o com a URSS orientou-se para uma nonnaliza~ao das rela~Oes ap6s a crise de Cuba (outubro de~1962): a consciCncia do perigo que se correra e o sentimento de uma responsabilidade comum levaram as negocia~Oes. 0 acordo de Moscou, interditando as expe­riCncias nucleares sobre a Terra, na <igua ou no ceu (1963), inaugurou uma serie de compromissos que instauraram uma certa solidariedade das duas grandes potCncias contra a dis­semina~iio at6mica. Nixon, bern secundado pelo talento di­plom:itico de Henry Kissinger, p6s fim a Guerra Fria e foi a Moscou e a Pequim. Simultaneamente, a competi~iio ad­quiriu urn aspecto cientffico e tecnol6gico: ap6s a corrida pelo dominio da energia nuclear, a conquista do espa~o, na qual os Estados Unidos tinham se deixado ultrapassar pela URSS. Urn esfor~o colossal e sua superioridade em eletr6nica e em outros campos permitiram-lhes recuperar esse atraso: em 1958, foi enviado urn primeiro satelite, o Explorer; em 1962, foi colocado em 6rbita o primeiro ve(cu­lo espacial tripulado e, sobretudo, em 21 de julho de 1969, houve o desembarque na Lua - os primeiros homens a

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caminhar em nosso satelite eram americanos. Os misseis tomaram o Iugar dos flat boats e dos trens transcontinentais. A conquista do espa~o era o Ultimo capitulo da epopeia que se iniciara com a marcha para o Oeste.

Os anos 70 permaneceriio como urn periodo infeliz para a diplomacia americana. No Vietnii, o presidente Nixon foi for~ado a extrair as conseqUencias de uma guerra desas­trosa: em janeiro de 1973, as negocia~6es conduzidas por Henry Kissinger culminaram na evacua~iio das tropas ame­ricanas. Foi a primeira guerra perdida pelos Estados Uni­dos: a opiniiio pUblica foi duramcnte afetada e ten_d~u- a uma reti~~d_a geral que_deixava o campo_ livre par.~ ~s tmcta­tivas sovtettcas na Afnca e em outras areas. A smdrome vietnamita" paralisou Washington por v<irios anos. Os Esta­dos Unidos ressurgiriam em for~a a partir de 1980: a amar­gura das humilha~Oes sofridas, monnente no lrii, ~m sob:es­salto de amor-pr6prio ferido, urn retorno de conftan~a. ttve­ram urn papel na vit6ria de Reagan em 1980. 0 novo v:esi­dente anunciou sua inten~iio de dar aos Estados Umdos seu Iugar no mundo: instal on na Europa os mfsseis Pershing, para restabelecer o equibbrio da defesa, interveio em Grana­da, pronunciou-se a favor da iniciativa estrat~gi~ de _d_efesa que, militarizando o espa'<o, asseguraria a m~mlabd~d~de do territ6rio americana. Em face de uma Umiio Sovtetica com uma economia sem f6lego, enterrada numa ideologia obsoleta, empenhada numa guerra intennin:ivel no Afega­nistiio, que s6 mantinha pela coer~iio seu domfnio- sob~e a Europa oriental, os Estados Unidos apresentam-se, mats do que nunca, como a primeira potencia mundial.

A sociedade americana e seus problemas depois de 1945 -0 envolvimento dos Estados Unidos nos neg6cios mun­diais niio os desviou de seus pr6prios problemas; por vezes, aqueles ate contribuiram ~ara_ agravar est:s, em _vista de sua incidencia sobre a poHttca mterna. Asstm, na epoc~ _da Guerra Fria, a obsessiio do comunismo, o medo de esp10es e a preocupa~iio em proteger o monop61io. dos scgre~os atbmicos suscitaram urn fenOmeno de mentahdade colehva que recebeu seu nome de urn senador que baseou sua carrei-

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ra naexplora~;iio desses sentimentos: o macartismo. A ''ca~;a as bruxas" na administra~;iio federal, na imprensa. nas uni­versidades. em Hollywood, entre os cientistas, causou inll­meras vftimas entre os suspeitos de simpatia pelos "verme­lhos": o processo de Alger Hiss e o do casal Rosenberg foram os de maior repercussao. Em dado momenta. a into­ler<incia e os procedimentos inquisitoriais assumiram tal am­plitude, que foi possfvel temer pela sobrevivencia da demo­cracia: o respeito as liberdades. a garantia dos direitos indi­viduais seriam, entiio, incompatlveis com a seguran~;a nacio­nal e a deten~;ao de segredos nuc\eares? Depois, uma rea~;iio liberal, brotando do mais profunda do esp(rito americana, varreu esse ressurgimento de urn fen6meno obscurantista. que se observa periodicamente na hist6ria dos Estados Uni­dos e ja se manifestara ap6s a Primeira Guerra Mundia\, e restabeleceu uma ordem mais condizente com os princi­pios desse grande povo.

Republicanos e democratas alternaram-se na Casa Branca com personalidades bastante diferentes. Em 1948. ,Truman arrancara. para surpresa de todos, sua reelei~;iio. 0 candidato democrata, Adlai Stevenson, niio p6de em 1952 renovar essa fa~;anha contra o candidato republicano. Eisen­hower em pessoa. A volta dos republicanos estava na ordem das coisas, tendo vinte anos de poder extenuado os demo­cratas: a evoca~;ao da Grande Depressiio j<i niio significava grande coisa para os jovens eleitores. Com uma maioria de 6 milhO~s e meio de votos, Eisenhower obteve urn exito triunfal. Foi reeleito em 1956 com uma maioria ainda mais ampla.

Em 1960, o candidato democrata John Kennedy levou a melhor por uma escassa margem sabre o vice-presidente Richard Nixon: era o primeiro cat6\ico a entrar na Casa Branca. Tinha feito uma campanha em tomo do tema de uma "nova fronteira" a conquistar, e sua elei'<ao simbo­lizava o acesso ao poder de uma gera~;ao que nao tinha conhecido a America de antes de Roosevelt. Esse jovem presidente, que nao recebera somente os dons do nasci­mento e da fortuna, mostrou qualidades de homem de Esta­do: na crise de Cuba (outubro de 1962), sou be dosar a inti-

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mida~;ao e a modera'<ilO para obrigar Kruchev a retirar seus mfsseis e a iniciar a dbenle. Em 22 de novembro de 1963, as balas de urn assassino puseram tragicamente fim a sua presidencia em circunst<lncias que mio foram inteiramentc esclarecidas. A figura dessem jovem presidente ocupou urn Iugar de destaque na galeria dos grandes presidentes que encarnaram aos olhos do mundo a mais nobre imagem do pals.

Seu sucessor e vice-presidente, Lyndon Johnson, era urn homem muito diferente: urn self made man do Sui. Poli­tico Mbil. obteve do Congresso a aprova~;ao de projetos de seu predecessor: assistencia medica para pessoas idosas, ajuda federal aos estabelecimentos de ensino, sobretudo a lei sabre os direitos civis que proscrevia toda a discrimina'<iio racial e facilitava a participa'<ao dos negros nas elei~;Oes (1964). Triunfou com uma esmagadora maioria em 1964 sabre seu advers3rio republicano, o senador Goldwater, do Arizona. cujo programa prefigurava o da revolu~;ao conser­vadora que triunfaria em 1980 com Ronald Reagan.

Em 1968, tendo Johnson renunciado a reapresentar-se, e ap6s o assassinato de Robert Kennedy, Richard Nixon arrancou, por escassa margem, a vit6ria ao democrata Humphrey; urn terceiro candidato, George Wallace, o por­ta-voz do racismo sulista, desviou 10 milhOes de votos dos dais grandes partidos. Em 1972, Nixon foi reeleito com cer­ca de 18 mil hOes de votos de diferen'<a sabre seu concorrente democrata MacGovern, para urn segundo mandata que se anunciava tranqii.ilo. Alguns meses depois, entretanto, es­tourava uma das maiores tempestades da hist6ria politica americana como esc<indalo Watergate, cujos desdobramen­tos, ao convencerem a opiniao pUblica de que o presidente \he mentira, fon;aram Nixon a demitir-se em 8 de agosto de 1974, depois de ter lutado palma a palma contra a im­prensa, os julzes e o Congresso. Sucedeu-lhe Gerald Ford, que fora escolhido para substituir o vice-presidente Spiro Adnew, obrigado a renunciar para evitar urn outro escfut­da\o. Situa'<:io ins6\ita a desse presidente que ascendeu a magistratura suprema sem ter sido eleito para isso, e que

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os eleitores mio mantenio no cargo ao h~rmino de seu man­data incompleto. A crise e seu desenlace inspiraram comen­t:irios divergentes: que urn "patife" tenha podido durante mais de cinco anos dispor de tanto poder no Estado mais poderoso do mundo mio condenava o sistema? Mas que o regime tenha resistido a uma crise tao grave e, sobretudo, que Nixon tenha sido obrigado a ceder em face da indig­na~iio da opiniiio pUblica, mio era tam bern a mais bela prova da superioridade das institui'<6es democniticas? 0 epis6dio demonstrou que ninguem est:i acima da lei: a tese de Nixon de que o privitegio do Executive subtraia o presidente a lei comum foi rejeitada. A decis:io do Supremo Tribunal confirmou a supremacia do Judici:i.rio. A autoridade da fun­'<ao presidencial esteve enfraquecida por algum tempo.

Em 1976, os republicanos per de ram a presidencia: Ford foi batido, ainda que por pouca margem, pelo democrata Jimmy Carter, o primeiro sulista a entrar na Casa Branca desde a derrota dos Confederados, fazendo uma campanha em nome dos valores morais contra a classe polftica. Propu­nha-se, em termos de polftica externa, romper com a real politik de Nixon e Kissinger, e fazer imperar no mundo o respeito pelos direitos humanos. Niio tardou em decep· cionar: sua curva de popularidade desmoronou, e Carter conheceu o amargor excepcional de se ver recusado para concorrer a urn segundo mandato. Foi batido em 1980 pelo republicano Ronald Reagan que, ap6s uma carreira de ator cinematognifico de segunda ordem, fora urn born gover­nador da Calif6rnia. Seu programa conjugava o velho indivi­dualismo americano, o dogma da livre iniciativa e as teses monetaristas da escola de Chicago: exprimia uma rea~;:io contra a expans:io da administra~o federal e do Welfare State. Propunha urn desengajamento do Estado, urn des­mimtelamento da administra~o de Washington com a transfert!ncia de responsabilidade para os Esta_dos. uma re­du~;iio dnistica de despesas, com exce~;:io do or~;amento da Defesa, mediante cortes severos nas verbas destinadas a assistt!ncia social e a educa~iio, conjugada com uma volta ao equilibria or~;ament<lrio e uma diminui~o significativa dos impastos diretos. Se p6de cortar nas despesas, Reagan

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n:io conseguiu reabsorver o deficit or~ament:irio que atingiu em 1986 mais de 150 bilh6es de d61ares. No Exterior, Rea­gan dedicou-se a restabelecer o prestigio dos Estados Uni­dos. 0 mais idoso dos presidentes foi triunfalmente reeleito em 1984: com exce~;:io de urn, todos os Estados lhe deram a maioria.

Nas decadas de 1960 e 1970, a sociedade americana tinha conhecido grandes motivos de inquieta'<iio. Os mais prementes estavam ligados a seu car:iter multirracial. A quest:io do negro passou por sucessivas fases. Nos anos 60, enquanto as iniciativas da administra~;:io federal, as dispo­si'<6es legislativas e as decis6es do Supremo Tribunal con­corriam para apagar numerosas discrimina~;6es, nas elei­~s. nas escolas, uma parte dos negros, sem esperan~;as na efic<lcia das medidas legais, estava atenta a tese do black power: o assassinato de Martin Luther King deixava o cam­po livre aos extremistas. Matins raciais nos bairros negros das grandes aglomera~;6es urbanas (Harlem, 1964; Los An­geles, 1965; Newark, 1967) revelavam a gravidade de urn problema que envolvia uma decima parte da popula~:io. Depois, parece ter perdido sua acuidade. Chegou entiio a vez de outras minorias reivindicarem o reconhecimento de sua personalidade: fndios, porto-riquenhos, sobretudo a massa de chicanos, os elementos de origem hispt\nica, cuja propor~;:io crescia regulannente, poderiam a Iongo prazo contestar a supremacia do elemento de lingua inglesa. Outro motivo de preocupa~;:io: a escalada da violencia, mal ende­mico mas que assumiu propon;6es desconhecidas ate entiio: o fim tnigico dos inniios Kennedy e de Martin Luther King, o atentado contra Reagan, s:io apenas a parte mais visfvel. DelinqUencia juvenil, criminalidade, narc6ticos: outros tan­tos sintomas de crise que afeta as cidades. Enfim, nos anos 60, em rela'<iio com a guerra do Vietn:i, toda uma gera~;:io, em especial nas universidades, passou a duvidar dos valores americanos e a questionar os principios em que estava assen­tada a socidade. A contesta~o n:io era, entao, mais radical do que todos os movimentos de crftica social que os Estados Unidos tinham conhecido no passado e n:io amea~;ava abalar os pr6prios alicerces do conseflso coletivo? Hoje, a crise

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apaziguou-se, e Reagan deve seu espantoso Cxito a ter sa bE­do encontrar as palavras e os gestos certos para exprimir a confiano;a rcencontrada dos americanos em seu destino hist6rico e em sua capacidade de converter em vit6rias os desafios que lhes sao apresentados ora pela natureza, ora pela Hist6ria.

Essa confiano;a encontra urn de seus motivos numa ex­pansiio continua. Atraves das mudano;as de maioria e dos acidentes de con juntura, o crescimento prosseguiu, vertigi­noso. A populao;3.o continua crescendo quase sem contri­buio;3.o exterior, tendo o mimero de imigrantes admitidos anualmente no pais urn teto de 425 mil. A populao;3.o recen­seada em 1980, data do Ultimo censo decenal, elevou-se a 228 milhOes, aos quais se somaram, sem dUvida, alguns milh6es de emigrantes clandestinos, provenientes principal­mente do Mexico. Quanta a economia, conheceu desde 1945 uma prodigiosa expans3.o: o volume da produo;ao in­dustrial multiplicou-se par mais de oito. E igual a do con jun­to de todos os paises da OTAN mais o Jap3.o. 0 produto nacional bruto ultrapassa os 2 trilhOes de d6lares. Com apenas 6% da populao;ao do globo, os Estados Unidos concentram a metade da riqueza mundial. No tocante a maior parte das materias-primas, consomem a metade dos recursos do planeta. Encabeo;am a lista na fabricao;3.o da maior parte dos produtos, mesmo que a difereno;a que os separa da se­gunda potencia tenda, por vezes, a ser reduzida. Sua tecno­logia esta na dianteira em numerosos setores, eo programa estrategico no espao;o estimulani ainda mais a inovao;ao. Nem a crise do d6lar dos anos 70, que obrigara Nixon a suspender sua conversibilidade como ouro, nem o conside­r:ivel deficit do comercio externo impedem a moeda ameri­cana de fazer lei e de atingir nfveis recordes que se explicam pelas taxas de juros muito elevadas e pel a necessidade, para o Tesouro, de recorrer ao emprestimo a fim de financiar o deficit on;:ament.<irio: o d6lar, de quatro francos, em julho de 1980, atingira 10,50francos, em fevereiro de 1985. Menos afetada pela crise mundial do que as outras, a economia americana restabelece-se: a inflao;3.o regrediu e a taxa de desemprego, que subira para 10%, foi rebaixada para 7%.

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Sera isso efeito da aplicao;ao do programa Reagan ou sim­plesmente do dinamismo inesgot:ivel da sociedade america­na?

Tanto em seus Cxitos quanta em seus fracassos e incer­tezas, a experiCncia norte-americana interessa a humani­dade inteira. Esse povo, cuja originalidade consistia em nao ter hist6ria, todo e\e empenhado na aventura da valoriza~_;:3.o de seu solo e que voltava as costas ao resto do mundo, e hoje solid<irio, queira au n3.o, com todo o planeta. Par sua diplomacia e seu poderio militar, e a garantia de liber­dade para numerosos paises. Por seus capitais e sua econo­mia, toda recessao nos Estados Unidos tern repercuss6es imediatas sabre a saUde da economia mundial e toda a reto­mada da expansao acarreta urn reerguimento geral. A ex­pressao Os Dois Grandes nao deve iludir ninguem: as duas potencias nao tern o mesmo peso. A produo;ao dos Estados Unidos e mais de duas vezes superior ada URSS, e os diri­gentes sovieticos perderam a esperano;a de alcano;ar seu ri­val. Na verdade, s6 existe uma superportCncia, que sao os Estados Unidos. Se o mundo tivesse que esco\her uma capi­tal, essa seria Nova York: a preseno;a da ONU mlo consagra jB. essa supremacia? 0 papel intelectual e cultural dos Esta­dos Unidos tambem os coloca em primeiro Iugar; eles cole­cionam premios Nobel em todas as disciplinas. Inventaram, ou renovaram, formas originais de criao;ao: romance, _cine­ma, hist6rias em quadrinhos, arquitetura, coreografia, ou· tros tantos modos de express3.o, de maneiras de sentir, de raciocinar nascidos nos Estados Unidos e que propagam atraves do mundo inteiro uma civilizao;ao que ostenta sua marca. Mesmo em suas interroga~_;:Oes e nas crises que os afetam, constituem urn marco de referenda para todo o mundo. A civilizal_;:<io de amanh3. sera americana? Em todo caso, a hist6ria dos Estados Unidos e, a carla ano que passa, urn pouco mais parte integrante da prOpria hist6ria da huma­nidade e de seu patrim6nio comum.

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Bibliografia sumaria

0 lei tor encontrani urn excelente guia tanto para complemento~ de leitura como para a exposi~iio de problemas em: FOHLEN, Clau­de. L'Amlirique anglosaxonne de 1815 a nos jours. 2~ ed., Paris, PUF, 1969 (col. Nouvelle Clio).

ARTAUD, Denise e KASPI, Andre. Histoire des Etats-Unis. Paris, Colin, 1969 (col. U).

BOORSTIN, Daniel. Histoire des americains. Paris, Colin, 1981. [Urn grande afresco em 3 vols.: L L'aventure coloniale; 2. Nais­sance d'une nation; 3. L'expt!rience de Ia dt!mocratie.J

ARTAUD, Denise, BENICHI, RCgise VAISSE, Maurice. Lexique historique des Etats-Unis. Paris, Colin, 1978: concebido como urn diciomirio, com porta todas as indicat;Oes esclarecedoras sobre as instituir;6es e as pr:iticas. A respeito das instituir;6es: TUNC. Andree Suzanne. Le systi!me constitutionnel des Etats-Unis d'Amr!rique. Paris, Domat, 2 vols.: Histoire conwitutionnelle, 1953; Le systi!me constitutionnel actud, 1954.

TURNER, Frederick J. Lafronrii!re dans l'histoire des Etats-Unis [tradu<;iio e prefacio de Rene REMOND]. Paris, PUF, 1963: sobre urn aspecto fundamental do desenvolvimento dos Esta­dos Unidos; alem disso, grande cliissico da historiografia ameri­cana, mesmo que ultrapassado.

NERE, Jacques. Laguerre de Secession. Paris, PUF (col. ''Que sais-je?", 91).

Sobre a questiio negra: FOHLEN, Claude. Les n.oirs aux Etats­Unis. Paris, PUF (col. "Que sais-je?" 1191); FABRE, Michel. Les noirs amr!ricains. Paris, Colin, 1967.

Sobre urn capitulo fundamental da hist6ria da politica exterior: DUROSELLE, Jean-Baptiste.De Wilson a Roosevelt. Politi­que extr!rieure des Etats-Unis, 19/3-1945. Paris, Colin, 1960.

MELANDRI, Pierre. La politique extr!rieure des Etats-Unis de /945 a nos jours. Paris, PUF, 1982. Prolonga ate os dias de hoje o estudo de J.-B. DUROSELLE.

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Ainda sera leitura provei10sa o livro de SIEGFRIED, Andre. Tableau des Etats-Unis. Paris, Colin, reeditado em 1954.

LERNER, Max. La civilisation amiricaine. Paris, Le Seuil, 1961

FOHLEN, Claude. La sociitr! amhicaine (1865-1970). Paris, Arthaud, 1973.

KASPI, Andre, BERTRAND, Claude-Jean e HEFFER, Jean. La civt1isation amiricaine. Paris, PUF, 1979.

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