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28 E Resumo: Este texto defende a importância da incorporação de estratégias espaciais ao desenho e implementa- ção de políticas sociais. Dialogando com os problemas de implementação presentes na política social metro- politana, conclui que a incorporação de elementos territoriais às políticas sociais poderá tornar as iniciativas mais eficazes e mais fáceis de implementar. Palavras-chave: políticas sociais; espaço metropolitano; transferência de renda. Abstract: This text defends the importance of incorporating space strategies to the social politics’ project and implementation. Facing the problems of current social politics implementation in metropolitan areas, it concludes that the incorporation of territorial elements to social politics may make the social initiatives more effective and easier to implement. Key words: social politics; metropolitan space; income transfer. HAROLDO DA GAMA TORRES EDUARDO MARQUES SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(4): 28-38, 2004 ste texto pretende defender o argumento de que o desenho e as estratégias de implementação das políticas sociais metropolitanas têm que levar em lência (MARQUES; TORRES, 2004). Esses elementos ne- gativos se reforçam mutuamente, criando uma espiral ne- gativa que pode dificultar as soluções no âmbito das polí- ticas sociais existentes. Embora essa superposição das carências não seja com- pleta, como considerado pela literatura sociológica urba- na dos anos 70, determinadas áreas das regiões metropo- litanas brasileiras estão – de fato – muito expostas a uma intensa cumulação de riscos e situações negativas, visí- veis quando analisadas com mais detalhes algumas das chamadas hiperperiferias (TORRES; MARQUES, 2002). 1 Em outras palavras, um dos mais dramáticos desafios das políticas sociais nas áreas metropolitanas está em trans- formar estas “externalidades negativas” em positivas, isto é, fazendo com que as características do local de residên- cia deixem de constituir os fatores decisivos para a repro- dução da pobreza. Neste sentido, o recurso a estratégias territoriais para políticas sociais pode ser pensado em duas vertentes prin- cipais. 2 Numa primeira perspectiva, tal proposição diz POLÍTICAS SOCIAIS E TERRITÓRIO uma abordagem metropolitana conta os territórios concretos onde residem as populações às quais estas políticas se destinam. O principal argumen- to a favor da adoção de estratégias territoriais para as políticas sociais tem a ver com a existência de fortes “externalidades negativas” relacionadas à residência em bairros com alta concentração de pobres (DURLAUF, 2001). Nestes locais, o desempenho escolar tende a ser pior, por exemplo, simplesmente porque os jovens estu- dam numa escola na qual o nível socioeconômico é baixo (CÉSAR; SOARES, 2001). Além disso, a probabilidade de conseguir um emprego formal é menor, porque existe uma baixa proporção de pessoas empregadas no setor for- mal, reduzindo as possibilidades de alguém conseguir tra- balho através da sua rede de relações sociais. Finalmente, em muitos casos a população destes locais tende a estar mais exposta a outros riscos relacionados ao saneamento precário, à instabilidade na propriedade da terra e à vio-

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Politica Sociais Territorio Haroldo Torres

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  • SO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(4) 2004

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    Resumo: Este texto defende a importncia da incorporao de estratgias espaciais ao desenho e implementa-o de polticas sociais. Dialogando com os problemas de implementao presentes na poltica social metro-politana, conclui que a incorporao de elementos territoriais s polticas sociais poder tornar as iniciativasmais eficazes e mais fceis de implementar.Palavras-chave: polticas sociais; espao metropolitano; transferncia de renda.

    Abstract: This text defends the importance of incorporating space strategies to the social politics project andimplementation. Facing the problems of current social politics implementation in metropolitan areas, it concludesthat the incorporation of territorial elements to social politics may make the social initiatives more effectiveand easier to implement.Key words: social politics; metropolitan space; income transfer.

    HAROLDO DA GAMA TORRESEDUARDO MARQUES

    SO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(4): 28-38, 2004

    ste texto pretende defender o argumento de queo desenho e as estratgias de implementao daspolticas sociais metropolitanas tm que levar em

    lncia (MARQUES; TORRES, 2004). Esses elementos ne-gativos se reforam mutuamente, criando uma espiral ne-gativa que pode dificultar as solues no mbito das pol-ticas sociais existentes.

    Embora essa superposio das carncias no seja com-pleta, como considerado pela literatura sociolgica urba-na dos anos 70, determinadas reas das regies metropo-litanas brasileiras esto de fato muito expostas a umaintensa cumulao de riscos e situaes negativas, vis-veis quando analisadas com mais detalhes algumas daschamadas hiperperiferias (TORRES; MARQUES, 2002).1

    Em outras palavras, um dos mais dramticos desafios daspolticas sociais nas reas metropolitanas est em trans-formar estas externalidades negativas em positivas, isto, fazendo com que as caractersticas do local de residn-cia deixem de constituir os fatores decisivos para a repro-duo da pobreza.

    Neste sentido, o recurso a estratgias territoriais parapolticas sociais pode ser pensado em duas vertentes prin-cipais.2 Numa primeira perspectiva, tal proposio diz

    POLTICAS SOCIAIS E TERRITRIOuma abordagem metropolitana

    conta os territrios concretos onde residem as populaess quais estas polticas se destinam. O principal argumen-to a favor da adoo de estratgias territoriais para aspolticas sociais tem a ver com a existncia de fortesexternalidades negativas relacionadas residncia embairros com alta concentrao de pobres (DURLAUF,2001). Nestes locais, o desempenho escolar tende a serpior, por exemplo, simplesmente porque os jovens estu-dam numa escola na qual o nvel socioeconmico baixo(CSAR; SOARES, 2001). Alm disso, a probabilidadede conseguir um emprego formal menor, porque existeuma baixa proporo de pessoas empregadas no setor for-mal, reduzindo as possibilidades de algum conseguir tra-balho atravs da sua rede de relaes sociais. Finalmente,em muitos casos a populao destes locais tende a estarmais exposta a outros riscos relacionados ao saneamentoprecrio, instabilidade na propriedade da terra e vio-

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    POLTICAS SOCIAIS E TERRITRIO: UMA ABORDAGEM METROPOLITANA

    respeito incorporao de lgicas territoriais de interven-o s polticas setoriais tradicionais como as polticaseducacional, de sade e de transferncia de renda , quepassariam a se apresentar de modo diferenciado nos lo-cais com alta concentrao de pobres, como j atual-mente o caso do Programa Sade da Famlia PSF. Numoutro registro, possvel refletir sobre a adoo de polti-cas integradas que visam convergir para reas particular-mente problemticas aes simultneas de diferentes se-cretarias e rgos setoriais, buscando elevar rapidamenteas condies de vida existentes em uma dada localidade.Iniciativas deste tipo podem ser observadas, por exem-plo, em alguns projetos habitacionais e de re-urbanizaode favelas.

    Sem desconsiderar a grande importncia dessas polti-cas integradas para o combate a estas externalidades ne-gativas, o presente artigo pretende tratar a questo daincorporao de aspectos territoriais s polticas de trans-ferncia de renda atualmente existentes. Pretende-se ar-gumentar que, aplicadas de modo puro, as estratgiasde transferncia de renda baseadas em critrios individuais como o cadastro de pobres tm problemas importan-tes.3 Cabe porm destacar que uma parte significativa dosargumentos apresentados ao longo do trabalho poderia sertambm aplicada implementao de outras polticas so-ciais, mas dedica-se nesse artigo s polticas de transfe-rncia direta de renda.4

    O texto se inicia pela discusso do significado da pol-tica de transferncia direta de renda em reas metropoli-tanas para, em seguida, avaliar os prs e contras dos cri-trios de alocao individual ou territorial nas polticassociais de transferncia de renda. A seguir discute-se adistribuio espacial da pobreza absoluta no interior daRegio Metropolitana de So Paulo como exemplo dapertinncia da utilizao do territrio como uma das es-tratgias de interveno, contribuindo para a discusso.Ao final, apresenta-se uma breve concluso.

    POBREZA E POLTICAS DETRANSFERNCIA DE RENDA

    Nos ltimos anos, tem se constitudo um relativo con-senso acadmico e poltico no Brasil em torno da propo-sio de que necessrio transferir renda para famliasem situao de pobreza absoluta.5 De certo modo, tal con-senso passa ao largo do tenso debate sobre a convenin-cia das chamadas polticas focalizadas ou universais, por-que grande parte dos universalistas compreende que os

    grupos em situao de grande privao econmica atpara terem acesso a servios universais como o educacio-nal precisam ser posicionados num patamar mnimo deconsumo alimentar, por exemplo, que os permita gozar odireito a estes servios.6 Desse ponto de vista, as polti-cas de transferncia so entendidas como forma de garan-tir o acesso ou potencializar os efeitos positivos de polti-cas sociais associadas aos direitos do cidado, como apoltica educacional.

    A polmica verdadeiramente importante no Brasil dosdias de hoje est centrada no na convenincia de progra-mas de transferncia de renda, mas no seu modus operandi.So variadas as estratgias operacionais possveis que, deuma forma geral, tm por objetivo fazer chegar mais fa-cilmente a poltica aos grupos verdadeiramente pobres,ou potencializar o efeito de outras polticas (como a edu-cacional e a de sade) sobre tais grupos populacionais(FIGUEIREDO et al., 2003). Esse objetivo fundamen-tal, pois as polticas sociais brasileiras apresentam histo-ricamente srias dificuldades de alcanar os grupos so-ciais em piores condies socioeconmicas. Este traoregressivo, constitutivo de nosso modelo de proteo so-cial, estava j presente no perodo de implantao da cha-mada cidadania regulada (SANTOS, 1979), mas se in-tensificou enormemente durante os governos militares,como destacado por autores como Draibe (1989) eMaricato (1987).7

    Neste sentido, uma das primeiras questes a ser enfren-tada, quando se trata de discutir a poltica de transfern-cia de renda no Brasil, diz respeito sua distribuiomacrorregional e ao papel a ser atribudo s regies me-tropolitanas. De fato, parte da literatura tende a minimi-zar a importncia da pobreza metropolitana, sob o argu-mento de que os nveis observados para o restante do Passo muito mais elevados (ARBACHE, 2003). Apresenta-se na Tabela 1 um quadro que resume alguns dados sobrea distribuio territorial da pobreza absoluta no Brasil eem So Paulo, considerando-se as famlias com renda percapita familiar inferior a um quarto de salrio mnimo.8

    Observa-se que, em escala nacional, a pobreza no Bra-sil no pode ser considerada um fenmeno metropolitano.As nove grandes regies metropolitanas, que abrangemaproximadamente 30% da populao nacional, contm ape-nas 19% do total de pessoas que vivem em domiclios comrendimento familiar per capita inferior a um quarto de sa-lrio mnimo. A rigor, este resultado explicvel, em gran-de medida, em funo da elevada concentrao de pobresem reas urbanas e rurais do serto nordestino. Porm, quan-

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    do observa-se a distribuio de pobres no Sudeste, nota-seque as trs maiores regies metropolitanas (So Paulo, Riode Janeiro e Belo Horizonte) respondem por uma parcelamuito elevada do total de pobres (39%).9

    TABELA 1

    Distribuio das Pessoas Residentes em Famlias com Renda FamiliarInferior a de Salrio Mnimo per capita, por Tipo de Aglomerao Urbana

    Brasil, Nordeste, Sudeste e Estado de So Paulo 2001

    Em porcentagem

    Tipo de AglomeraoRegio Metropolitana Urbana no

    Rural Total(1) Metropolitana

    Brasil 19,10 46,60 34,30 100,00

    Nordeste 11,04 43,80 45,16 100,00

    Sudeste 38,78 43,13 18,09 100,00

    Estado de So Paulo 54,91 37,64 7,45 100,00

    Fonte: IBGE, PNAD 2001.(1) Inclui Belm, Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, So Paulo, Curitibae Porto Alegre.

    No caso do Estado de So Paulo, quase 55% dos po-bres residem na Regio Metropolitana de So Paulo, queabarca em torno de 47% da populao. Em outras pala-vras, tais resultados indicam que nas regies mais desen-volvidas do pas a pobreza , sim, um fenmeno metropo-litano. Se, alm da RMSP, fosse considerada, para o casodo Estado de So Paulo, a participao de outras reasmetropolitanas, como as regies de Santos e de Campi-nas, verificar-se-ia que estas trs grandes aglomeraesurbanas do Estado englobariam, de fato, uma parcela muitoelevada do total de famlias abaixo da linha da pobreza.

    Alm disso, a pobreza metropolitana chama a atenoquando tomada em termos absolutos, independentementede seu tamanho relativo. Segundo a PNAD 2001, existiana Regio Metropolitana de So Paulo, um total de 1,3milho de pessoas vivendo em domiclios com renda percapita inferior a um quarto de salrio mnimo (300 milfamlias aproximadamente) e 2,8 milhes com renda percapita inferior a meio salrio mnimo.10 Tal populaopobre similar ao tamanho de algumas regies metropo-litanas brasileiras, como Porto Alegre.

    Em outras palavras, estes dados indicam que a pobre-za no Brasil apresenta uma espcie de duplo padro.Por um lado, existe um importante componente de pobre-za de origem rural, particularmente no Nordeste. Por ou-tro, h tambm um significativo volume de pobreza me-tropolitana, nada negligencivel em termos absolutos e

    relativos, principalmente na viso dos governos estaduaise municipais das regies mais desenvolvidas do Pas. Almdisso, possvel argumentar que a pobreza urbana temcaractersticas especficas, uma vez que a populao nes-tes locais possui menor acesso s chamadas rendas no-monetrias (derivadas da produo para autoconsumo),bem como o custo de vida metropolitano tende a ser mui-to mais elevado do que no interior, particularmente no quediz respeito aos custos de habitao e transportes(MINGIONE, 1999). Em outras palavras, entende-se que,embora o enfrentamento da pobreza rural no Brasil devaser considerado crucial, o tema da pobreza metropolitanatambm precisa ser crescentemente incorporado agendapoltica brasileira, devido seja s dimenses do proble-ma, seja s suas particularidades.

    RECURSOS ALOCADOS INDIVIDUALMENTEOU TERRITORIALMENTE?

    Por que Adotar Estratgias Individuais?

    Nos dias de hoje, a principal estratgia de transfern-cia de renda a individual. Na verdade, a denominaoindividual no a descreve plenamente, pois a unidade dealocao no necessariamente o indivduo, mas a fam-lia. O que especifica essa estratgia o fato de os benef-cios serem alocados segundo atributos ou caractersticassocioeconmicas das famlias ou de seus membros, comoo rendimento familiar abaixo de um certo patamar defini-do pelo programa, ou a existncia de crianas em idadeescolar que freqentem a escola, por exemplo.

    As estratgias individuais de transferncia de renda tmcomo principal argumento de suporte a sua simplicidade.Atualmente, a partir do momento que uma dada famlia selecionada como beneficiria de um programa deste tipo,ela passa a receber recursos diretamente de um banco pormeio de um carto magntico, sem qualquer interfernciapor parte do agente repassador. Alm disto, se o sistemade informaes for adequado e se estratgias modernasde tratamento do banco de dados forem adotadas, a pro-babilidade de duplicao de beneficirios e outras frau-des deste tipo tendem a ser substancialmente reduzidas.Tais caractersticas tambm fazem com que os custos ad-ministrativos do programa sejam diminudos, tornando-os particularmente atraentes do ponto de vista gerencial.

    Porm, algumas das condies consideradas acima noso triviais. A rigor, o calcanhar de Aquiles de progra-mas de transferncia de renda deste tipo est centrado no

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    POLTICAS SOCIAIS E TERRITRIO: UMA ABORDAGEM METROPOLITANA

    processo de seleo de famlias beneficirias. Quem sele-ciona estas famlias? O fato de a distribuio dos benef-cios ser produto de uma escolha de beneficirios torna essetipo de atividade especialmente propensa a escolhas clien-telistas, associadas a trocas de favores, envolvendo usual-mente o voto. No passado recente, algumas famlias eramselecionadas por prefeituras e outros agentes locais, se-gundo critrios vagamente especificados, induzindo apossibilidade de diversos tipos de distoro, tais comoexcluso de famlias muito pobres e incluso de afiliadospolticos.11 A soluo do problema passa por dois cami-nhos que podem ser combinados: o primeiro diz respeito constituio de mecanismos de participao no proces-so de escolha que tornem o processo o mais transparentepossvel, gerando potencialmente accountability. Isso pres-supe no s a construo de determinados desenhos ins-titucionais, mas tambm uma certa gesto da implemen-tao das polticas. Esse problema est completamente forado escopo desse artigo e no ser detalhado. O segundocaminho diz respeito s preocupaes desse trabalho e estligado construo dos mecanismos mais impessoais pos-sveis para a seleo dos beneficirios dos programas. Odesenvolvimento de modalidades de implementao quepossibilitem tal estratgia est ligado aos sistemas de in-formao utilizados.

    Existem autores que defendem a estratgia do cadas-tramento viabilizada por meio de questionrios sofistica-dos, que podem gerar indicadores complexos de vulnera-bilidade socioeconmica, permitindo assim identificar, emtese, os beneficirios com necessidades mais prementes(BARROS; CARVALHO, 2002). Porm, mesmo uma es-tratgia tcnica deste tipo tende a implicar problemas ope-racionais importantes:- um questionrio para fins de cadastramento no podeser confundido com um levantamento censitrio ou tiposurvey. Rapidamente a populao aprende que tal instru-mento vai ser utilizado para fins operacionais, passando aatuar estrategicamente em relao ao instrumento de co-leta de informao, isto , tentando direcionar as respos-tas de modo a se enquadrar nos critrios de seleo inde-pendentemente de sua real situao socioeconmica.12 Emoutras palavras, poder-se-ia afirmar, na linguagem da eco-nomia, que possvel que a figura do cadastramento ve-nha a produzir vazamentos importantes, derivados de er-ros propositais de declarao;13

    - as principais estratgias para combater os erros de de-clarao cadastral como a exigncia de documentos so burocrticas (implicando aumento do custo do pro-

    grama) ou so de difcil execuo. Por exemplo, impos-svel obter comprovantes de renda fidedignos de traba-lhadores do setor informal, tornando difcil filtrar por meiode acesso documentao os casos de renda superior linha de pobreza adotada pela poltica;

    - de modo geral, os registros produzidos a partir das in-formaes oferecidas pelas famlias em precria situaosocioeconmica so de pior qualidade, no que diz respei-to a um preenchimento que assegure a integridade do bancode dados. Analfabetos geralmente produzem informaespiores para variveis como nome, idade, endereo e do-cumentao (RG, CIC, Carteira de Trabalho, Comprovantede Renda, Comprovante de Endereo, etc.). Alm disto,muitos endereos fornecidos so imprecisos, principalmen-te no caso dos moradores de favelas, fazendo com que acorrespondncia acabe sendo encaminhada para algumponto de contato, como bares;

    - quando o cadastramento realizado em postos espec-ficos, outros tipos de distoro so tambm possveis. Alocalizao destes postos (no centro da cidade, por exem-plo) pode implicar custos de cadastramento para os maispobres. Alm disto, a informao sobre a poltica e oslocais de cadastramento tem que chegar aos mais necessi-tados, o que nem sempre ocorre. Ambos elementos po-dem acarretar excluso de famlias muito necessitadas doprograma.14

    Em poucas palavras, as principais crticas estratgiade cadastramento tm a ver no com o seu desenho lgico que parece bastante racional , mas com as dificuldadesoperacionais envolvidas, sobretudo quando a poltica pre-tende ser implementada, de modo indistinto, em realida-des sociais muito diversas das existentes em todo territ-rio nacional. Por outro lado, se a poltica fosse aplicadaapenas em reas com alta concentrao de pobres, vriosriscos do levantamento cadastral seriam minimizados.Sero ainda mais bem detalhados estes argumentos nesteartigo.

    Por que Adotar Estratgias Territoriais?

    Como discutido na introduo, as externalidadesderivadas de reas com alta concentrao de pobres pro-duzem circuitos de reproduo da pobreza muito difceisde serem rompidos por polticas de recorte individual, umavez que tendem a serem seletivas, tendo como alvo umpequeno nmero de indivduos residentes em n territ-rios indistintos. Isto no significa que a produo de pol-

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    ticas de recorte territorial seja simples. O emprego purode recorte territorial para a estratgia de transferncia derenda pode ser sujeito a crticas diversas relativas tam-bm a possveis vazamentos, erros de direcionamento eincentivos adversos.

    Vale a pena discutir, em primeiro lugar, o chamadoproblema do vazamento. Nos programas de carter terri-torial, tal fenmeno se refere possibilidade de os no-pobres residentes na rea identificada como alvo do pro-grama terem acesso aos recursos a alocados. Istorealmente pode acontecer quando o programa se destina,indistintamente, a todos os habitantes de uma determina-da rea. De fato, mesmo quando uma regio concentragrande nmero de indivduos abaixo da linha da pobreza,sempre existe algum grau de diversidade de renda, indu-zindo ao efeito discutido acima.

    Embora esta crtica seja pertinente, ela no necessaria-mente nega a validade da utilizao do critrio territorialquando combinado a outras estratgias. O programa me-xicano Oportunidades, por exemplo, combina critriosterritoriais com individuais. Em reas urbanas, o progra-ma destina recursos apenas para os indivduos pobres re-sidentes em quadras (Manzanas) com alta concentraode pobres previamente identificadas, sendo que apenasnestes locais realizado um cadastramento dos possveisbeneficirios por equipes volantes.15

    Em outras palavras, os problemas de vazamento de re-cursos para no-pobres podem ser contornados de modoeficiente a partir da combinao de estratgias, sem inva-lidar a princpio a idia de uma estratgia territorial. Detodo modo, existe razo no argumento quando ele utili-zado criticando uma estratgia territorial pura.

    Um segundo argumento crtico aos programas de cu-nho territorial diz respeito ao direcionamento imperfeitodo programa, que exclui os pobres residentes fora da rea-alvo. De fato, os programas de carter territorial no in-cluem todos os pobres de um pas ou de uma cidade, masapenas aqueles residentes nas reas definidas como prio-ritrias. Embora esta excluso possa parecer injusta a prin-cpio, existe uma srie de razes substanciais que a justi-ficam.

    A principal razo tem a ver com o argumento relacio-nado s externalidades negativas apresentado anterior-mente: ser pobre numa rea com alta concentrao depobres substancialmente diferente de ser pobre numaregio com presena de famlias de renda mais elevada.As oportunidades econmicas em termos de acesso aomercado de trabalho, por exemplo, podem ser substancial-

    mente diferentes nas reas de renda mdia elevada. Nopor acaso, favelas como a Rocinha, no Rio de Janeiro, eParaispolis, em So Paulo localizadas junto a bairrosde renda elevada , so substancialmente diferentes emtermos de acesso ao mercado de trabalho por parte de seushabitantes (ALMEIDA; DANDREA, 2004). Alm dis-so, viver em reas com altas concentraes de pobres ten-de a afetar a performance escolar dos jovens e tambmimplica maior exposio a problemas sociais, tais como agravidez na adolescncia.16

    Cabe salientar, porm, que a escala territorial da pol-tica crucial. O direcionamento de recursos para munic-pios, por exemplo como era o caso do antigo ProgramaAlvorada , implica trabalhar com unidades de anlise deportes completamente diferentes, incluindo grandes e pe-quenos municpios, tornando muito problemtica a sele-o de reas-alvo da poltica e diluindo situaes sociaisnegativas, em grande medida heterogneas. Veja o muni-cpio de So Paulo que, embora tenha uma baixa propor-o de pobres em termos relativos e um IDH elevado (ocritrio de alocao do Programa Alvorada), o nmeroabsoluto de habitantes em situao de pobreza muitogrande devido a seu grande tamanho populacional.

    Em outras palavras, os numerosos pobres de So Pau-lo foram excludos do Programa Alvorada, o que no se-ria o caso se o programa considerasse unidades territo-riais de menor porte. A rigor, estratgias baseadas emunidades territoriais menores, como setores censitrios ououtras unidades de interveno, podem ser criadas de modoa se garantir a incluso de reas com altas concentraesde pobres em todas as regies do pas.17 Para tanto ne-cessrio o recurso a sistemas geogrficos de informao SIG que permitem a manipulao de dados censitrioscom grande nvel de detalhes.18

    Um terceiro argumento muito utilizado em relao sestratgias territoriais tem a ver com os chamados incenti-vos adversos, que podem ser produzidos pelos programassociais. No caso daqueles de carter territorial, um dosincentivos adversos mais freqentemente mencionado re-fere-se possibilidade de estmulo migrao para asreas-alvo do programa. De fato, isto pode acontecer, as-sim como comum que ocorram processos deste tipo emqualquer municpio onde se adotem programas sociaismuito diferenciados.

    No entanto, este no parece ser necessariamente umproblema grave para os programas de cunho territorial,uma vez que boa parte dos problemas relacionados a in-centivos adversos pode ser contornada por meio de estra-

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    POLTICAS SOCIAIS E TERRITRIO: UMA ABORDAGEM METROPOLITANA

    tgias embutidas no desenho do programa. De fato, o efeitomigratrio mencionado, por exemplo, tem sido tradicio-nalmente combatido atravs da adoo de critrios de tem-po mnimo de residncia no local do programa como re-quisito para o recebimento do benefcio. O Programa deRenda Mnima do Municpio de So Paulo, vigente naadministrao Marta Suplicy, adotou critrios deste tipo.

    Em suma, os argumentos sobre vazamento do progra-ma, seu direcionamento imperfeito e incentivos adversosno parecem, por si s, suficientes para o abandono daestratgia territorial. No entanto, entende-se que tais ar-gumentos apontam para questes reais que devem ser con-sideradas em qualquer desenho de poltica. Esses proble-mas podem ser contornados, ao menos em parte, pelaadoo de estratgias mistas de alocao de recursos quepermitam o combate a possveis incentivos adversos.

    O Recurso a Estratgias Mistas

    Por estratgias mistas entende-se a concentrao dasaes de cadastramento em reas especficas do territ-rio, aquelas identificadas como tendo altas concentraesde pobres e de famlias em situao de vulnerabilidade.Tal iniciativa pode assegurar que o cadastramento sejarealizado prioritariamente naquelas reas com piores con-dies socioeconmicas. Esta estratgia tem diversas con-seqncias importantes:- reduo da subdeclarao de renda, uma vez que a pro-babilidade de se encontrar famlias efetivamente pobres muito maior nas reas pr-selecionadas. Se houver vaza-mento, ele provavelmente se dar para famlias prximasda linha da pobreza devido s caractersticas da distribui-o de renda da regio;

    - aumento da probabilidade de o cadastro incluir ossuperpobres, uma vez que as aes se aproximam fisica-mente de seu local de residncia, reduzindo o custo decadastramento (para o beneficirio) e aumentando as chan-ces da informao chegar a estas famlias;

    - as famlias pobres residentes fora das reas seleciona-das pela poltica podem no ser igualmente atingidas peloprograma. Como mencionado, embora tal procedimentoparea injusto, ele justificvel em funo das maioresoportunidades econmicas que os pobres tm quando noresidem em reas fortemente segregadas;

    - se combinada a outras aes integradas s polticas so-ciais (educao, sade, saneamento e urbanizao), aspolticas de transferncia de renda podem operar no sen-

    tido de transformar substancialmente os locais de mora-dia, atuando sobre o nvel de renda da comunidade e con-trabalanar as externalidades negativas mencionadasanteriormente.19 Esse elemento extremamente importantepor combater de forma direta as sinergias negativas pre-sentes em certas regies perifricas. possvel argumen-tar que reas de regies metropolitanas apresentam talsuperposio de carncias e elementos socialmente nega-tivos, que apenas uma combinao de polticas de grandeamplitude concentrada espacial e temporalmente poderiafazer frente ao problema de forma eficaz. Soma-se a issoa evidncia de que, muitas vezes, essas reas da cidade seencontram em crescimento demogrfico acelerado (MAR-QUES; TORRES, 2004);

    - este critrio parece ser bastante racional em termosadministrativos, implicando reduo do tamanho dasequipes necessrias para cobrir todo o pas e canalizandoos recursos para os locais onde as necessidades so maiselevadas. Evidentemente, a efetivao de tal possibilidadedepende do desenho operacional do programa em questo.

    Em sntese, entende-se que o cadastramento de fam-lias para fins de transferncia de renda deve ser comple-mentado por estratgias territoriais, fazendo com que oprograma se concentre de modo estratgico nas reascom altas concentraes de pobres. Para exemplificar esteargumento, discute-se a seguir o caso da Regio Metro-politana de So Paulo.

    A SITUAO DA POBREZA ABSOLUTAEM SO PAULO

    Cabe aqui testar o argumento apresentado no item an-terior de que a transferncia de renda para pobres deve sebasear em critrios territoriais. Para discutir este argumen-to, foram realizados inicialmente alguns exerccios combase nas reas de ponderao da mancha urbana de SoPaulo.20 Utilizou-se, para tal, a classificao das reas deponderao segundo caractersticas sociais, desenvolvi-da em outro trabalho (MARQUES; TORRES; BICHIR,2004). Aquele estudo analisou a distribuio dos indica-dores sociais nas reas de ponderao do Censo Demo-grfico do IBGE, acabando por descobrir que o conjuntodas informaes poderia ser descrito quase que comple-tamente pela utilizao da renda domiciliar e pela taxa decrescimento demogrfico entre 1991 e 2000. O cruzamentodessas duas variveis permitiu delimitar dez tipos de reasdiferentes entre si segundo os indicadores sociais mdiosdas populaes que as habitam.

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    A grosso modo, esses grupos podem ser englobadosem trs conjuntos distintos. O primeiro formado por reasde periferia incluindo os grupos 1 a 3 que apresen-tam, em geral, elevados nveis de pobreza, baixa escolari-dade e condies de vida precrias. Este conjunto no estpresente no centro da metrpole, localizando-se na franjaexterna da cidade: o grupo 1 apresenta crescimento de-mogrfico muito acentuado e os piores indicadores sociais;o segundo grupo registra indicadores quase iguais, mascrescimento demogrfico muito mais reduzido, emboraainda elevado; e o terceiro possui indicadores precrios,mas melhores que os anteriores, e crescimento demogr-fico muito baixo. O segundo conjunto, que inclui os gru-pos de 4 a 7, formado por reas de classe mdia, isto, que apresentam um perfil socioeconmico intermedi-rio e o mais heterogneo. Os grupos 4, 5 e 6 tm conte-dos sociais de classe mdia baixa, embora com indicado-res cada vez melhores e diferem entre si pelo crescimentodemogrfico, que decrescente, sendo muito alto no gru-po 4 e praticamente nulo no grupo 6. O grupo 7 apresentacontedos sociais de classe mdia bem melhores do queos anteriores e crescimento demogrfico nulo. O terceiro

    conjunto engloba as reas de elite, que podem ser iden-tificadas como o local de moradia de famlias de rendaalta (grupos 8, 9 e 10). O grupo 8 apresenta caractersti-cas de classe mdia e se encontrava na dcada de 90 emintenso processo de esvaziamento demogrfico. O grupo9 inclui um grupo social muito rico e escolarizado e tam-bm se encontrava em esvaziamento. O dcimo e ltimogrupo, tambm delimitava um grupo social muito rico eescolarizado, mas de estrutura etria mais jovem que oanterior e tinha experimentado um intenso processo decrescimento demogrfico na dcada de 90. Em termosurbanos, ele representa a regio de expanso do grupo 9descrito anteriormente.

    De forma a testar o uso potencial de uma estratgiaterritorial de transferncia de renda, calculou-se, segun-do o Censo de 2000, a proporo de famlias com rendaper capita inferior a de salrio mnimo, a salriomnimo e segundo os critrios do programa de transfe-rncia de renda da prefeitura de So Paulo.

    Pode-se observar na Tabela 2 que os grupos 1, 2 e 3apresentam contingentes expressivos de famlias em si-tuao de pobreza absoluta. De fato, enquanto os trs ti-

    TABELA 2

    Distribuio das Famlias Abaixo da Linha da Pobreza, segundo Tipos de reas de PonderaoMancha Urbana de So Paulo 2000

    Em porcentagem

    Famlias com Famlias com Famlias que seTipos de reas renda per capita renda per capita enquadrariam node Ponderao (1) familiar inferior familiar inferior programa de renda Total de Famlias

    a de salrio mnimo a salrio mnimo mnima da Prefeiturade So Paulo (2)

    TOTAL GERAL 100,00 100,00 100,00 100,00

    Total dos grupos 1, 2 e 3 64,20 64,91 68,20 41,07

    1 31,02 31,06 33,41 17,46

    2 22,16 22,44 23,36 14,84

    3 11,02 11,42 11,43 8,78

    4 5,85 6,03 6,23 5,96

    5 8,18 8,52 8,24 10,43

    6 13,01 13,09 11,59 20,75

    7 5,27 4,83 4,25 9,71

    8 1,62 1,29 0,72 5,85

    9 1,40 0,91 0,38 5,14

    10 0,47 0,42 0,39 1,09

    Fonte: IBGE, Censo Demogrfico, 2000.(1) Para a descrio detalhada dos grupos ver Marques, Torres e Bichir (2004).(2) Inclui as famlias com renda familiar per capita inferior a meio salrio mnimo e com presena de filhos com idade inferior a 16 anos.

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    POLTICAS SOCIAIS E TERRITRIO: UMA ABORDAGEM METROPOLITANA

    pos de rea de ponderao abrigam em conjunto 41% dapopulao da mancha urbana, eles renem 64% das fam-lias com renda familiar per capita inferior a um quarto desalrio mnimo e 68% do total de famlias que se enqua-drariam no programa de renda mnima da prefeitura doMunicpio de So Paulo, caso fosse implantado em todosos municpios da mancha urbana. Se fosse includo o gru-po 4, que, embora tenha contedos sociais de classe m-dia baixa, registra proporo elevada de famlias em si-tuao de pobreza e apresenta crescimento demogrficosignificativo, teramos 70% da populao com renda in-ferior a de salrio e 74% das famlias elegveis para oprograma da Prefeitura de So Paulo, embora abrigasseapenas 47% da populao total.

    Portanto, o risco de um programa que combine as es-tratgias territorial e individual incorrer nos problemas dovazamento e do direcionamento imperfeito relativamentepequeno, desde que o programa seja bem desenhado e,especialmente, bem implementado. Note-se que utilizou-se, para o exerccio, uma classificao dos grupos sociaisproduzida com outros objetivos analticos e a delimita-o territorial dos grupos em situao de pobreza poderiaser ainda melhor se fosse elaborada uma anlise quantita-tiva com esse objetivo.

    Alm disso, existem aproximadamente 3% de famliaspobres nas reas de ponderao do tipo elite, emborahaja 12% do total de domiclios, e 33% de pobres nas reasdo tipo classe mdia, que incluem 47% do total. A ri-gor, nestas reas de ponderao de classe mdia se obser-va uma maior mistura entre famlias com diferentes n-veis de rendimento, especialmente nos grupos 4 e 5. Dequalquer forma, as reas de classe mdia tendem a ser maisheterogneas, o que tem impactos substanciais do pontode vista da situao dos mais pobres a residentes. Os prin-cipais argumentos que permitiriam a no priorizao dapoltica de transferncia de renda para os pobres residen-tes nestas reas de ponderao so os seguintes:21

    - nas reas de classe mdia e de elite a estrutura urbana particularmente em termos de sade, educao e sanea-mento encontra-se muito mais consolidada, com impac-tos substanciais para as condies socioeconmicas e desade da populao residente;

    - a populao cresce mais lentamente nestas reas, redu-zindo a presso sobre os equipamentos sociais existentes.Em vrias dessas regies, na verdade, a populao se en-contra em declnio;

    - as crianas e jovens destes locais tm maiores oportu-nidades de estudar em escolas com maior grau de mistura

    social, o que traz impactos positivos para o desempenhoescolar;

    - a rede social mais diversificada existente nestes locais bem como a maior oferta de emprego formal tende aimplicar uma maior probabilidade de os indivduos po-bres obterem emprego ou renda.

    Com estes elementos, parece defensvel, ao menos nocaso de So Paulo, a idia de direcionar a poltica de trans-ferncia de renda para os pobres residentes em locais commenor grau de mistura social e um nvel mais baixo deacesso rede de servios pblicos.

    Cabe porm destacar que uma crtica bastante legtimaaos resultados apresentados acima diz respeito ao tipo deunidade de anlise adotada. Como as residncias so se-gregadas em termos microespaciais, se fossem considera-dos como o Programa Oportunidades do Mxico da-dos demogrficos por quadras, provavelmente seriaatingida uma proporo de pobres mais elevada do queatravs do direcionamento do programa por meio de reasde ponderao, que so unidades territoriais de maiorporte. A rigor, como no se dispe, no caso do censo de-mogrfico brasileiro, de dados para quadras, a alternativaseria a de se trabalhar por setores censitrios. Apresen-tam os resultados de um exerccio deste tipo na Tabela 3.

    TABELA 3

    Distribuio dos Chefes de Domiclio com Renda Familiar Inferiora Dois Salrios Mnimos, segundo Tipos de Setores Censitrios

    Mancha Urbana de So Paulo 2000

    Em porcentagem

    Tipos de Setores Censitrios Domiclios Chefes com RendaInferior a 2 SM (1)

    Setores com mais de 30% dos chefescom renda de at 2 SM 49,09 70,48

    Setores com mais de 25% dos chefescom renda de at 2 SM 61,00 81,32Fonte: IBGE, Censo Demogrfico, 2000.(1) Incluem os sem rendimentos.

    Para fins de exerccio, foram construdos dois tipos desetores censitrios que poderiam ser considerados rele-vantes do ponto de vista de uma estratgia espacial dedirecionamento da poltica de transferncia de renda. Fo-ram identificados aqueles setores que tm mais de 30%dos chefes com renda familiar inferior a dois salrios m-nimos e aqueles com mais de 25% dos chefes nesta situa-o. Pode-se observar que, no primeiro caso, seriam en-globados 49% do total de domiclios e mais de 70% do

  • SO PAULO EM PERSPECTIVA, 18(4) 2004

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    total de chefes pobres, enquanto o segundo caso abrange-ria 61% da populao e 81% do total de pobres. Cabedestacar que nessa escala de setores censitrios dispe-seapenas de dados relativos ao chamado universo do censodemogrfico, sendo que no caso das variveis de rendi-mento, no se tm informaes sobre a renda familiar, masapenas dados para a renda do chefe de domiclio.

    Evidentemente, outras tipologias de setores censitriosou de reas de ponderao poderiam ser consideradas,levando em conta especificamente os interesses da polti-ca em questo. De fato, anlises de diferentes tipos po-dem ser empreendidas de modo a tentar caracterizar me-lhor as reas objeto do programa em termos de outrosindicadores sociais, como os relativos a educao, estru-tura etria e saneamento (TORRES et al., 2003). A rigor,diferentes critrios podem ser adotados, dependendo dosobjetivos do programa, da disponibilidade de dados emesmo do volume de recursos disponvel.

    Em sntese, do ponto de vista do argumento aqui de-senvolvido, cabe destacar que, independentemente doscritrios de seleo de reas, a combinao de critriosterritoriais com o cadastramento de beneficirios pareceser uma estratgia bastante adequada em locais com altograu de segregao residencial, como So Paulo e outrasregies metropolitanas brasileiras. De fato, quanto maio-res os nveis de segregao entendidos como a separa-o residencial entre pobres e ricos mais fcil a sele-o de reas objeto do programa. Na prtica, a segregaoresidencial aumentou em So Paulo na dcada de 90 (TOR-RES, 2004), fazendo com que o argumento faa ainda maissentido nos dias de hoje.

    CONCLUSES

    Argumentou-se, ao longo deste texto, que as polticassociais de transferncia de renda devem incorporar, na suaoperacionalizao, a dimenso territorial. Isto aumenta-ria a eficincia da poltica em termos de um direcionamentomais adequado de recursos e tambm contribuiria paracombater os efeitos sociais negativos associados s loca-lidades das altas concentraes de famlias pobres. Argu-mentou-se tambm que, quanto maior o grau de desagre-gao territorial das unidades espaciais de interveno,maior a probabilidade de direcionar os recursos de formaadequada para os grupos efetivamente necessitados.

    Cabe no entanto destacar tambm alguns riscos destaestratgia. Em primeiro lugar, existe a possibilidade deuma rea (um bairro por exemplo) ao ser identificada

    publicamente como alvo da poltica de transferncia derenda passar a ser mais discriminada, reforando a ima-gem negativa de um local de pobreza e privao social egerando estigma. Por exemplo, tal discriminao podeocorrer via dinmica imobiliria (com desvalorizao dosimveis destes locais) ou mesmo via mercado de traba-lho, com discriminao dos candidatos a emprego oriun-dos destes locais. Neste caso, a segregao social seriareforada.

    Em segundo lugar, existe um risco importante relacio-nado ao argumento dos incentivos adversos: a hiptesede que no longo prazo famlias muito pobres se concen-trem de modo muito intenso nas reas-alvo da poltica detransferncia de renda. Isto aumentaria substancialmenteo grau de homogeneidade social destas reas e, por con-seqncia, os efeitos negativos derivados desse elevadograu de concentrao de pobres. Esse problema pode sercontornado apenas se forem desenvolvidas polticas devulto e de grande abrangncia nas vrias regies habita-das por grupos pobres, de forma a reduzir os diferenciaisde condies de vida que geram os incentivos seletivos.O desenvolvimento de polticas pontuais e fragmentadastende, ao contrrio, a aumentar os riscos do problemaocorrer.

    difcil prever a priori o conjunto de efeitos associadosa uma poltica de transferncia de renda territorialmentedelimitada. Que impacto tal poltica teria, de fato, nombito do mercado imobilirio? Valorizao da terra porconta da maior renda dos habitantes ou desvalorizao daterra por conta da discriminao da regio? possveltambm que tais efeitos sejam fortemente condicionadospelos mecanismos operacionais da poltica, tais como oscritrios de enquadramento de beneficirios, as regras detransferncia de renda e as formas de divulgao dapoltica. Em outras palavras, os argumentos aqui apre-sentados no invalidam a necessidade de um bom desenhode programa, bem como de estratgias eficientes deimplantao (como um projeto-piloto, por exemplo) e demecanismos efetivos de monitoramento e avaliao.

    Finalmente, cabe tambm destacar que dificilmentepolticas de transferncia de renda sero capazes isola-damente de combater a segregao residencial, poden-do inclusive refor-la, como apontado acima. Atuar nes-te plano exige provavelmente uma combinao deestratgias na qual vrias polticas convirjam para os ter-ritrios altamente segregados, operando simultaneamen-te nas reas de infra-estrutura urbana, habitao, sanea-mento, educao, segurana pblica, etc. Programas

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    POLTICAS SOCIAIS E TERRITRIO: UMA ABORDAGEM METROPOLITANA

    integrados deste tipo tendem a ter custos elevados e sode difcil operacionalizao, pois implicam assegurar acoordenao de diversas secretarias e diferentes nveis degoverno, convergindo recursos simultaneamente para ummesmo territrio. Por outro lado, considerando a cumula-o de carncias presente em certas reas, apenas seu en-frentamento de forma integrada poder transformar assinergias negativas em positivas e garantir ganhos reais eduradouros em termos sociais. Na construo de tais es-tratgias, o territrio surge como um dos mais promis-sores integradores e articuladores de aes.

    NOTAS

    1. Grande parte destes argumentos pode ser encontrada na literaturade sociologia urbana denominada area studies (GLENNESTER et al.,1999).

    2. Quando nos referimos a polticas s dimenses territoriais daspolticas sociais no estamos mencionando necessariamente polti-cas que tenham por alvo as entidades federativas, como Estados emunicpios, mas tambm os recortes territoriais muito mais detalha-dos, como distritos, bairros e setores censitrios. A rigor, em reas me-tropolitanas, este recorte tem que ser necessariamente intra-urbano. Esteargumento faz sentido num pas com crescente grau de urbanizao eonde mais de 40% da populao reside em aglomeraes urbanas commais de 1 milho de habitantes, o que torna necessrio desagregar aao pblica para unidades territoriais de menor porte.

    3. Novas polticas sociais, tais como o programa Oportunidades doMxico, tm combinado de modo interessante iniciativas operacionaisde carter individual com dimenses territoriais, que merecem consi-derao do ponto de vista das polticas brasileiras, especialmente quan-do estas polticas dizem respeito a regies metropolitanas. Ver:.

    4. Ver, por exemplo, os trabalhos desenvolvidos pelo Centro de Estu-dos da Metrpole para as polticas de educao, habitao e assistn-cia social para as prefeituras municipais de Embu, Guarulhos, Mau eSo Paulo: .

    5. medida que se generaliza o acesso a servios pblicos bsicos, areduo da pobreza absoluta por meio de transferncia de renda foca-lizada vista de forma crescentemente consensual, como um instru-mento efetivo de poltica social (ROCHA, 2003, p. 179).

    6. Trata-se, por exemplo, de um debate fortemente presente na litera-tura norte-americana a respeito da questo da igualdade. Ver Sen (1992).

    7. Para a extensa literatura que avaliou criticamente as polticas doregime militar ao longo da dcada de 1980, o nosso sistema de prote-o combinava de forma especialmente perversa a m orientao daspolticas (tendendo a beneficiar os grupos de renda mais alta), comoexemplificado pelas polticas de habitao (MARICATO, 1987) coma privatizao das aes do Estado (tendendo a beneficiar os gruposeconmicos encarregados de implementar as polticas), como se tor-nou notrio nas reas de sade e saneamento (ver OLIVEIRA;TEIXEIRA, 1985 e NAJAR, 1991, respectivamente). Ambos os pro-blemas estariam ligados tanto aos tipos de polticas executadas, quan-to a elementos ligados sua implementao.

    8. Esta linha de pobreza tem sido comumente adotada como refern-cia no Brasil. Ver Rocha (2003).

    9. Se fossem consideradas como metropolitanas as aglomeraes ur-banas com mais de 500 mil habitantes, a pobreza metropolitana seriaclaramente majoritria no Sudeste.

    10. Em termos relativos, o total de domiclios com renda per capitafamiliar inferior a um quarto de salrio mnimo corresponde a aproxi-madamente 6% do total da regio metropolitana e os domiclios comrenda per capita inferior a meio salrio mnimo correspondem a 20%.11. O programa Bolsa-Famlia, recm lanado, pretende se basear numcadastro nico, mas ainda no so claros os critrios de seleo debeneficirios.

    12. Eles temiam que eu fosse da imprensa e que estivesse busca deestrias sensacionalistas para contar, impresso esta que se dilua proporo que ia falando da pesquisa, mas que, s vezes, dava apenaslugar ao outro papel que me imputavam: a de enviada do governo.Enquanto me viam assim, exageravam suas dificuldades para que pos-sivelmente eu as inclusse em alguma lista ou fizesse uma ficha que astornasse candidatas a receber a ajuda paternalista do Estado nos mol-des que a Igreja local lhes oferece (ZALUAR, 1982, p. 162).

    13. Na literatura sobre polticas de transferncia de renda, particular-mente a produzida por economistas, so identificados trs tipos de ris-cos potenciais neste tipo de programa: os chamados vazamentos doprograma (com o programa atingindo no-pobres), o direcionamentoimperfeito do programa (com o programa no atingindo todos os po-bres) e os chamados incentivos adversos (relativo possibilidade deocorrncia de estratgias da populao a fim de enquadrar novas fa-mlias no programa, como movimentos migratrios por exemplo). VerBarros e Foguel (2000) ou Fernandes e Pazzelo (2002).

    14. Vrios destes argumentos foram mais desenvolvidos em Torres(2002).

    15. O censo demogrfico mexicano serve como base para a classifica-o das reas-alvo do programa.

    16. Evidncias desse ltimo argumento so apresentadas em vriosartigos includos em Marques e Torres (2004).

    17. No Censo de 2000, o municpio de So Paulo subdividido em 13mil setores censitrios.

    18. Na prxima seo exemplificamos este argumento com dados daRegio Metropolitana de So Paulo.

    19. Iniciativas deste tipo tm sido tomadas, por exemplo, no munic-pio de Santo Andr, So Paulo.

    20. A mancha urbana aqui considerada abrange 21 municpios, os maissignificativos em termos demogrficos e formam uma malha urbanaconurbada. Esses 21 municpios correspondem a 91,4% da populaototal da RMSP, que atingiu 17,9 milhes em 2000. As reas de ponde-rao correspondem menor diviso territorial para a qual os dadosda amostra do Censo Demogrfico de 2000, do IBGE, se encontrampublicados.

    21. Estes argumentos so discutidos em maior profundidade em Mar-ques e Torres (2004).

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