92 - Petição de Apresentação de Manifestação - Petição de Apresentação de Manifestação 1
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Avenida Afonso Pena, n. 867, sala 2207 - Belo Horizonte/MG | CEP 30.130-905
Fone: (31) 3075-5724 | e-mail: [email protected]
EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES, RELATOR DO RE
635.659
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
REITERAÇÃO DE PEDIDO DE INGRESSO
COMO AMICUS CURIAE
Julgamento em 13.8.2015
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LÉSBICAS, GAYS, BISSEXUAIS,
TRAVESTIS E TRANSEXUAIS – ABGLT, já qualificada, vem reiterar o pedido
de ingresso como amicus curiae formulado em 9 de junho do corrente ano
na petição 2015/28865 – antes, portanto, da liberação do processo para
julgamento – porém até o momento não analisado.
1. Como exposto naquela oportunidade, a postulante
possui representatividade adequada para figurar no processo como amicus
curiae, tendo em vista sua contribuição institucional no debate sobre política de
drogas, podendo, assim, “pluralizar o debate constitucional, permitindo que o
Supremo Tribunal Federal venha a dispor de todos os elementos informativos
possíveis e necessários à resolução da controvérsia” a partir da perspectiva da
comunidade LGBT, que sofre um impacto desproporcional pela criminalização
do uso de drogas.
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2. A justificativa de participação da entidade, portanto,
vai além de mero interesse no deslinde da causa e se escora mesmo na
representatividade adequada que detém para debater matéria com evidentes
reflexos sobre a cidadania e os direitos humanos de gays, lésbicas, travestis
e transexuais, cuja promoção e defesa constituem sua missão institucional.
3. Assim, remetendo-se às razões detidamente
expostas na petição 2015/28865, reitera o pedido de ingresso no feito como
amicus curiae e se lhe oportunize que faça sustentação oral
4. Por outro lado, pede vênia para apresentar desde já as
razões para provimento do recurso extraordinário em epígrafe, que seguem
anexas, tendo em vista a proximidade do julgamento, já agendado para o dia 13
de agosto.
Espera deferimento.
Brasília/DF, 10 de agosto de 2015.
RODRIGO MELO MESQUITA
OAB/DF 41.509
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RAZÕES DE AMICUS CURIAE
Recorrente: F. B de S.
Recorrido: Ministério Público do Estado de São Paulo
Amicus Curiae: Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e
Transexuais – ABGLT
Excelentíssimo Senhor Ministro Gilmar Mendes, relator do RE
635.659;
Excelentíssimos Senhores Ministros;
Excelentíssimas Senhoras Ministras;
1. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LÉSBICAS, GAYS, BISSEXUAIS,
TRAVESTIS E TRANSEXUAIS – ABGLT, consoante articulado em seu pedido
de ingresso como amicus curiae, justifica sua participação do debate
constitucional do tema cuja “tipicidade penal do porte de droga para consumo
pessoal” (tema 506) tendo em vista o impacto concreto da política de
drogas criminalizadora especificamente sobre a população LGBT.
2. É missão da ABGLT promover ações que garantam a cidadania
e os direitos humanos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais.
Todavia a guerra às drogas se apresenta hoje como uma das maiores causas de
violação de direitos, em especial na América Latina.
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3. Atentas a isso, em janeiro de 2014 dezessete organizações do
continente convocaram aquela que viria a ser a primeira audiência temática
sobre política de drogas da história da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, realizada em 25 de março daquele ano1.
4. As entidades apontavam como principais consequências dessa
política os elevados níveis de violência resultantes da estratégia militarizada de
luta contra o narcotráfico, o impacto das campanhas de erradicação de cultivos
ilegais, em particular nos direitos humanos econômicos, sociais e culturais das
populações campesinas e em situação de deslocamento forçado, a
criminalização de usuários, práticas policiais arbitrárias com fundamento nas
leis de drogas, desproporcionalidade das sentenças condenatórias, o
agravamento da situação carcerária, e políticas de reabilitação contrárias aos
direitos humanos de usuários problemáticos.
5. Com relação a este último ponto o documento indica a estreita
ligação entre a estigmatização provocada pela atual política de drogas e a
violação de direitos de usuários que eventualmente precisem se socorrer de
cuidados médicos:
Entre otro de los efectos de la criminalización del consumo de
drogas se distingue la estigmatización que sufren las personas que
consumen drogas. Por su parte, la estigmatización y la
criminalización son una de las más evidentes barreras al
acceso a la atención en salud. En este sentido, el relator de la
ONU contra la tortura y otros tratos crueles y degradantes, Juan
Méndez señala que “al recibir atención médica esta se considera
una experiencia humillante, punitiva y cruel”.
1 Conferir notícia do site da Conectas Direitos Humanos intitulada Audiência histórica - pela primeira vez, CIDH discute falência da ‘guerra às drogas’ na América Latina. Disponível em: <http://goo.gl/kWyklL>. Acesso em 10 mai 2015.
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6. No mesmo sentido observou o Ministro Eugenio Raúl Zaffaroni
em seu voto no caso Arriola, Sebastián y otros, no qual a Suprema Corte Argentina
declarou a inconstitucionalidade da criminalização do porte de drogas para
consumo pessoal. Para ele a criminalização do usuário de drogas é, em verdade,
um obstáculo para sua própria recuperação, pois
el procesamiento de usuario [...] se convierte en un obstáculo para la
recuperación de los pocos que son dependientes, pues no hace más
que estigmatizarlos y reforzar su identificación mediante el uso
del tóxico, con claro perjuicio del avance de cualquier terapia
de desintoxicación y modificación de conducta que,
precisamente, se propone el objetivo inverso, esto es, la remoción de
esa identificación en procura de su autoestima sobre la base de otros
valores.2
7. Os efeitos da estigmatização do usuário não são mera suspeita. Em
estudo publicado em 2011 sobre as consequências da descriminalização
promovida por Portugal no ano de 2001 Artur Domosławski aponta que
naquele país
a criminalização fazia com que alguns consumidores de drogas
sentissem medo de pedir ajuda médica com receio de punição,
ou com medo de um registro criminal que lhes traria dificuldades em
termos laborais e de inserção na sociedade.3
2 ARGENTINA. Corte Suprema de Justicia de la Nación. Recurso de hecho A. 891.XLIV. Recorrentes: Fares, Acedo, Villareal, Medina e Cortejarena. Buenos Aires, 25 de agosto de 2009. Disponível em: <http://goo.gl/zw5rIs>. Acesso em: 9. abr. 2015. 3 DOMOSŁAWSKI, Artur. Política da droga em Portugal: os benefícios da descriminalização do consumo de drogas. Varsóvia: Open Society Foundations: 2011, p. 24. Disponível em: <http://goo.gl/TS2zR7>. Acesso em: 7 abr. 2015.
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8. No Brasil a realidade não é diferente, como mostra o Relatório da
4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos4 publicado em 2011 pelo
Conselho Federal de Psicologia como resultado de inspeções em unidades de
acolhimento de usuários de álcool e outras drogas promovidas após inúmeras
denúncias feitas ao Observatório de Saúde Mental e Direitos Humanos da
autarquia.
9. Foram visitadas 68 instituições de internação de dependentes
químicos em 24 estados e no Distrito Federal e constatadas as mais variadas
violações de direitos – “de forma acintosa ou sutil”, de acordo com as
conclusões do relatório – como interceptação e violação de correspondências,
violência física, castigos, torturas, exposição a situações de humilhação,
imposição de credo, exigência, intimidações, revista vexatória de familiares
e violação de privacidade.
10. O documento faz especial menção ao “constrangimento a que
são submetidos os homossexuais, travestis, lésbicas, entre outros,
considerados, todos, como portadores de uma sexualidade desviante”.
Em pelo menos 19 das comunidades terapêuticas inspecionadas foi
registrado desrespeito à orientação sexual ou à identidade de gênero de
internos, sendo possível ler das conclusões dos avaliadores notas como
“indícios de situações de constrangimento e vexatórias: homossexual saiu da
instituição por pressão do pastor responsável”, “a doutrina religiosa ensina que
a homossexualidade é errada”, “a instituição não permite nem a
manifestação e nem a prática da homossexualidade e realiza todo um
4 CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Relatório da 4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos: locais de internação para usuários de drogas. Brasília: Conselho Federal de Psicologia, 2011. Disponível em: <http://goo.gl/pXOTLf>. Acesso em: 8 jun. 2015.
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trabalho religioso para converter o interno”, “desrespeito à livre orientação
sexual e à identidade de gênero”, “não aceita o ingresso de homossexuais”,
“internos homossexuais são evitados, mas, quando aceitos, recebem um
trabalho para alterar sua orientação sexual”.
11. As práticas dessas instituições configuram inegáveis violações à
dignidade das pessoas LGBT afirmada por esta Corte inúmeras vezes, sendo
marcante em sua história o julgamento da ADPF 132 e da ADI 4277 em que
se reconheceram as uniões homoafetivas e nas quais a postulante interviu como
amicus curiae; violações estas decorrência inegável de uma política de
drogas que aprisiona e mortifica modos singulares de existência, que
foram denunciadas pela postulante ao Ministério Público Federal5.
12. É assim que a criminalização de usuários de drogas – para além de
configurar por si mesma uma negação da dignidade da pessoa – tem por
consequência violações de direito ainda mais evidentes quando recai sobre
usuários LGBT.
13. Fazendo-se um paralelo com a teoria do impacto
desproporcional6, há violação ao princípio constitucional da igualdade
material em consequência da incidência especialmente desproporcional e
nociva da norma sobre a população LGBT, que é apenada pelo cometimento
de infração penal e, além disso, pela sua orientação sexual ou identidade e
gênero, elementos constitutivos de sua própria dignidade.
5 Revista Lado A. ABGLT denuncia casas de internações para viciados em drogas que aplicam “cura gay” no Brasil e violam direitos humanos. Disponível em: <http://goo.gl/JJ9awN>. Acesso em: 9 jun. 2015. 6 Conferir BARBOSA, Joaquim. Ação afirmativa e princípio constitucional da igualdade. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
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14. No presente caso a inconstitucionalidade não resulta propriamente
do impacto desproporcional, mas da incompatibilidade da norma com
princípios constitucionais os mais diversos que se demonstra a seguir, todavia
quando observadas as consequências da criminalização do porte de drogas para
consumo pessoal sobre a população LGBT fica ainda mais evidente a
inadequação da norma penal para o alcance do fim almejado (proteção da
saúde), ao tempo que cristaliza a representatividade da ABGLT para contribuir
com o debate.
I. DA BREVE INTRODUÇÃO AO TEMA
15. Embora destacadas organizações da sociedade civil habilitadas
como amici curiae – notadamente Viva Rio, Comissão Brasileira sobre Drogas e
Democracia (CBDD), Associação Brasileira de Estudos Sociais sobre o Uso de
Psicoativos (ABSUP), Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim),
Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Conectas Direitos
Humanos, Instituto Sou da Paz, Instituto Terra, Trabalho e Cidadania e
Pastoral Carcerária – tenham exposto com clareza e propriedade o atual estado
da discussão sobre a política de enfrentamento às drogas ilícitas, apresenta-se
breve introdução ao tema para que se contextualize esta contribuição.
16. O controle repressivo tal qual conhecemos é fundamentado em
três convenções da Organização das Nações Unidas: a Convenção Única sobre
Entorpecentes, de 1961, a Convenção sobre Drogas Psicotrópicas, de 1971
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(ano em que o presidente estadunidense Richard Nixon declarou a dita guerra
às drogas), e a Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e
Substâncias Psicotrópicas, de 19887. Estes marcos do direito internacional
sustentam a política essencialmente repressiva e punitivista ainda hegemônica
em nível global, que tem como objetivos declarados a eliminação de oferta e
consumo das substâncias neles elencadas.
17. A Convenção de 1961 apontava como meta a erradicação do
consumo de ópio em quinze e de maconha e derivados de coca em vinte e cinco
anos. Em 1998, trinta e sete anos depois, portanto, na XX Sessão Especial da
Assembleia Geral da ONU (UNGASS) os países membros estabeleceram uma
nova agenda para a comunidade internacional, adotando em declaração política
a meta de eliminar ou reduzir significativamente a produção e oferta ilegal de
substâncias psicotrópicas até 20088. Na reunião de revisão ocorrida em 2009
pela Comissão de Narcóticos (CND) das Nações Unidas, os países decidiram
renovar o compromisso da UNGASS de 1998, firmando documento que fixou
como meta “minimizar e, eventualmente, eliminar a disponibilidade e o uso de
drogas ilícitas” até 20199.
7 Normas apontadas pela literatura especializada como constituintes da “linha mestra do controle internacional de drogas”. BOITEUX, Luciana; CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de; VARGAS, Beatriz; BATISTA, Vanessa Oliveira; PRADO, Geraldo Luiz Mascarenhas. Tráfico de drogas e constituição. Pensando o direito. Ministério da Justiça. Brasília, n. 1, 2009, p.18. 8 ONU. Politican declaration, guiding principles of grug demand reduction and measures to enhance international cooperation to counter the world drug problem. Disponível em: < http://goo.gl/Xe36BD >. 9 ONU. Commission on Narcotic Drugs: report on the fifty-second session (14 March 2008 and 11-20 March 2009). Disponível em: <http://goo.gl/sVtgXi>.
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18. Em âmbito interno, muito embora já existissem legislações
criminalizadoras, foi com a legislação editada após o golpe de 1964 que se
incorporou10 a política repressiva adotada em nível mundial e o Brasil passou a
combater o comércio ilegal e o próprio consumo de drogas com pena privativa
de liberdade11. Com o advento da Lei n. 11.343/2006 a abordagem se manteve
com modificações pontuais: o recrudescimento da repressão ao tráfico com o
aumento da pena mínima e a limitação de benefícios processuais, de um lado,
e, de outro, a abolição, em tese12, da pena de prisão para o consumo
pessoal.
19. A realidade, porém, mostra que a aposta na repressão falhou, quer
em âmbito internacional, quer internamente. Às vésperas da UNGASS 2016,
quando novamente a Assembleia Geral ONU discutirá o controle das drogas,
os dados e os cada vez mais numerosos discursos apontam para o retumbante
fracasso dos fins delarados da atual política.
10 De modo específico, a incorporação das normas internacionais ao direito interno se deu pelos seguintes atos normativos: DECRETO LEGISLATIVO Nº 5, DE 1964 - Aprova a Convenção Única sobre entorpecentes, assinada em Nova York, a 30 de março de 1961; DECRETO LEGISLATIVO Nº 88, DE 1972 - Aprova o texto do protocolo de Emendas à Convenção Única e Entorpecentes, de 1961, firmado pelo Brasil e por outros países, em Genebra, a 25 de março de 1972, como resultado da Conferência de plenipotenciários, convocada pelo Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas; DECRETO Nº 76.248, de 12 de setembro de 1975 - Promulga o Protocolo de Emendas à Convenção Única sobre Entorpecentes, 1961; DECRETO LEGISLATIVO Nº 90, DE 1972 - Aprova o texto da Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas, assinada em 21 de fevereiro de 1971 pelo Brasil; DECRETO Nº 79.388, de 14 DE março DE 1977 - Promulga a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas; DECRETO N° 154, DE 26 DE JUNHO DE 1991 - Promulga a Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas; DECRETO LEGISLATIVO Nº 162, DE 1991 - Aprova e promulga o texto da Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas, aprovada em Viena, em 20 de Dezembro de 1988. 11 Nilo Batista denomina o modelo adotado entre 1914 e 1964 de sanitário e o posterior de modelo bélico. Cf. BATISTA, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. In: Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade. Ano 3, números 5 e 6, 1º e 2º semestres. pp. 77-94. 12 Afirma-se que abolida em tese porque, como se verá a partir do parágrafo 114, na prática uma enormidade de usuários é presa acusada de tráfico de drogas.
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20. O Relatório Mundial sobre Drogas de 2014 do Escritório das
Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) mostra, por exemplo, que
entre 2002 e 2012 a produção de folha de coca nos principais países produtores
da América Latina (Bolívia, Colômbia e Peru) manteve linearidade, com uma
área cultivada de 133.700 hectares no último ano indicado na pesquisa13. O
documento aponta ainda que somente no ano 2012 em todo o mundo mais de
170 milhões de indivíduos fizeram uso de cannabis e mais de 17 milhões de
cocaína, totalizando mais de 243 milhões de usuários se consideradas as demais
drogas ilícitas14.
21. No Brasil o II Levantamento Domiciliar sobre Uso de Drogas
Psicotrópicas realizado em 2005 apontou que 8,8% das 7.939 pessoas
entrevistadas fizeram uso de maconha pelo menos uma vez na vida, percentual
que chega a 22,4% na Itália, 30,8% na Inglaterra e 40,2% nos Estados Unidos15.
22. Muito embora a pouca eficácia na diminuição de oferta e consumo,
o sistema prisional encarcera um número cada vez maior de pessoas.
13 ONU. Relatório Mundial sobre Drogas. Disponível em: <http://goo.gl/zowj9m>. 14 Embora o número total seja relevante, menos de 10% são considerados problemáticos, termo que, de acordo com o relatório, não tem definição padrão, que difere de país para país e pode incluir pessoas que praticam consumo de alto risco como, por exemplo, com uso de seringas, que consomem diariamente e/ou pessoas com diagnóstico de transtornos ou dependentes de acordo com critérios clínicos contidos na Classificação Internacional de Doenças (10ª revisão) da Organização Mundial de Saúde e do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (4ª ed.), da Associação Americana de Psiquiatria ou qualquer critério ou definição semelhantes que podem ser utilizados. 15 CEBRID; SENAD. II Levantamento Domiciliar sobre Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil – 2005. Disponível em: <http://goo.gl/iBjKwr>.
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23. Nos Estados Unidos a política repressiva fez a população
carcerária bater o número de 1,6 milhão de pessoas em 201016, a maior do
mundo, embora aquele país responda por apenas 5% da população mundial.
24. Em razão de grande parte desse contingente ser constituído por
pessoas acusadas de crimes relacionados a drogas – nas prisões federais chegam
a 50% do total de 216.89617 – o até recentemente chefe do Departamento de
Justiça americano Eric Holder apoiou proposta do Conselho de Sentenças de
redução com efeitos retroativos da pena-base para traficantes não violentos18,
decisão baseada também em grande medida pela evidente disparidade de
tratamento pelo sistema de justiça a acusados brancos e negros.19
25. No Brasil a situação não é muito diferente: o país tem a quarta
maior população carcerária do mundo com mais de 600 mil detentos20, cerca
de um quarto deles acusados de tráfico21. Quando consideradas somente as
mulheres, chega-se ao escandaloso percentual de 65% das detentas22 – cada
16 EUA. Bureau of Justice Statistics. Disponível em: <http://goo.gl/8tQJjk>. 17 EUA. Federal Bureau of Prisons. Disponível em: <http://goo.gl/bQ3ABF >. 18 EUA. The United States Departament of Jutice. Justice Department urges U.S. Sentencing Commission to make certain individuals incarcerated for drug offenses retroactively eligible for reduced sentences. Notícia de 4.6.2014. Disponível em: <http://goo.gl/mLTkNq>. 19 CNN. Eric Holder seeks to cut mandatory minimum drug sentence. Notícia de 12.8.2013. Disponível em: <http://goo.gl/kTgkPr>. 20 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Levantamento nacional de informações penitenciárias: INFOPEN – junho de 2014. Brasília, 2015. Disponível em: < http://goo.gl/jShvCS>. 21 BOITEUX, Luciana; PÁDUA, João Pedro. A desproporcionalidade da lei de drogas: os custos humanos e econômicos da atual política do Brasil. Rio de Janeiro: Coletivo de Estudos Drogas e Direito (CEDD), 2013. p. 25. Disponível em: <http://goo.gl/2cpdmN>. 22 CNJ. Tráfico de drogas está ligado a 65% das prisões de mulheres no Brasil. Disponível em: <http://goo.gl/3ZvUiQ>.
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uma com custo de R$ 12.383,03 por ano ao erário, seis vezes mais que os R$
2.122,00 investidos por aluno matriculado no ensino médio no ano de 200823.
26. Os números evidenciam o esgotamento do modelo proibicionista.
Na América Latina somam-se ao superencarceramento com evidente corte
racial e de classe e aos elevados índices de oferta e consumo a estigmatização
de usuários, o exponencial aumento do número de mulheres presas, o uso
abusivo das prisões preventivas24, o deslocamento populacional nas regiões de
plantio destinado ao mercado ilegal, o aumento da violência resultante do
enfrentamento e a infiltração do crime organizado nas instituições
democráticas, corrompendo agentes públicos, em especial aqueles que atuam
na linha de frente das ações do aparelho de segurança pública25 – uma sucessão
de violações a direitos humanos que põe em xeque mesmo as razões dessa
política.
27. Este cenário tem sido denunciado por movimentos sociais,
intelectuais, autoridades e entidades internacionais, ao mesmo tempo em que
se pauta a descriminalização dos usuários e a legalização das drogas,
notadamente a cannabis, como estratégia para se fazer frente aos custos sociais
da proibição.
23 BOITEUX, L.; PÁDUA, J. P. Op. cit. p. 31. 24 Al filo de la justicia: leyes de drogas y cárceles en América Latina. TNI: Amsterdam, 2011. Disponível em: <http://goo.gl/K5Pnin>. 25 Como é exemplo trágico a chacina de 43 estudantes mexicanos entregues pela polícia da cidade de Iguala a membros do cartel Guerreros Unidos, pelo que as evidencias indicam, a mando do prefeito da cidade José Luis Abarca Velázquez.
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28. Recentemente um grupo de 122 professores alemães de Direito,
entre eles Claus Roxin e o ex-juiz do Bundesverfassungsgericht Jürgen Kühling,
assinou petição pela legalização das drogas26, iniciativa do prof. Dr. Lorenz
Böllinger (Universidade de Bremen) que, questionado sobre os objetivos do
documento, respondeu:
É basicamente uma tentativa de fazer o Parlamento funcionar
novamente. Do ponto de vista constitucional, as leis devem ser
cientificamente justificadas, devem ser verificadas e atualizadas
constantemente. É esse o nosso objetivo, independentemente de as
drogas serem perigosas ou não. É mais uma questão de saber se o
direito penal é capaz de qualquer coisa.27
29. A Global Comission on Drug Policy, que reúne líderes mundiais como
os ex-Presidentes Fernando Henrique Cardoso (Brasil), Ernesto Zedillo
(México), César Gaviria (Colômbia) e Ruth Dreifuss (Suíça) e o ex-Secretário
Geral das Nações Unidas Kofi Annan, recomendou em relatório de 2011 que
governos experimentassem “modelos de regulamentação legal de drogas com
o objetivo de enfraquecer o poder do crime organizado e preservar a saúde e a
segurança de seus cidadãos”28. Já em 2014 o Expert Group on the Economics of
Drug Policy da London School of Economics, composto por cinco ganhadores do
Prêmio Nobel, defendeu no relatório Ending the War on Drugs iniciativas de
26 Resolution deutscher Strafrechtsprofessorinnen und –professoren an die Abgeordneten des Deutschen Bundestages. Disponível em: <http://goo.gl/OSp0iT>. 27 Entrevista à Vices News intitulada Legal Experts Are Rebelling Against German Drug Laws. Disponível em: <http://goo.gl/it3fNj>. Tradução livre. 28 GLOBAL COMISSION ON DRUG POLICY. Guerra às drogas. Rio de Janeiro, 2011. Disponível em: <goo.gl/Q1ze6e>. Acesso em 20 ago. 2014.
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legalização de cannabis sem fins lucrativos para refrear os problemas advindos
da proibição29.
30. De modo semelhante, em 2013 a Organização dos Estados
Americanos apontou em relatório apresentado pelo seu Secretário-Geral José
Miguel Insulza a descriminalização do uso de drogas e a regulamentação de
distribuição e consumo de cannabis como estratégias de garantia à saúde de
usuários e redução do poder do crime30.
31. Até mesmo instâncias da Organização das Nações Unidas
começam a esboçar uma nova perspectiva, mais atenta ao que a realidade
coloca. Em março de 2015 o Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento publicou o documento intitulado Perspectives on the development
dimensions of drug control policy31 como contribuição para a UNGASS 2016,
apontando que a atual política
têm tido pouquíssimo efeito na erradicação da produção ou no uso
problemático dessas substâncias, tendo, ao mesmo tempo,
acarretado danosas consequências colaterais, como a criação de um
mercado criminal; o aumento da corrupção, da violência e da
instabilidade; ameaça à saúde e à segurança públicas; violações a
direitos humanos em larga escala, aí incluídas punições abusivas e
desumanas; discriminação e marginalização de pessoas.
Voltando-se para a consideração dos impactos danosos da atual
política de proibição às selecionadas drogas tornadas ilícitas sobre
29 EXPERT GROUP ON THE ECONOMICS OF DRUG POLICY. Ending the war on drugs. Londres: LSE Ideas, 2014. Disponível em: <goo.gl/lYEzuZ>. Acesso em 20 ago. 2014. 30 OEA. Scenarios for the drug problem in the Americas: 2013-2025. Disponível em: <http://goo.gl/nSQ7fP>. 31 Disponível em: <http://goo.gl/rW9oj8>. Acesso em 24. abr. 2015.
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sua específica área de atuação, o documento do PNUD aponta que
crescentes evidências demonstram os efeitos negativos dessa política
sobre o desenvolvimento humano, especialmente em seus aspectos
relacionados à superação da pobreza e à promoção da sobrevivência
sustentável; o estado de direito; os direitos humanos; a igualdade de
gêneros; o ambiente; os povos indígenas e as práticas tradicionais e
religiosas.32
32. Também no mês de março de 2015, durante sua 28ª sessão, o
Conselho de Direitos Humanos da ONU editou resolução da qual consta, entre
outras determinações, que o Alto Comissário das Nações Unidas para Direitos
Humanos prepare um estudo sobre o impacto da política de repressão às
drogas também como contribuição para a Sessão Especial que ocorrerá em
2016.33
33. Nesse contexto medidas inovadoras têm sido implementadas
notadamente por países latino-americanos como a Bolívia, que legalizou o
acullico (a tradicional mastigação da folha de coca), o Chile, cuja Câmara dos
Deputados atualmente debate projeto de lei que regula o autocultivo de
cannabis, e o Uruguai, que em 2013 legalizou produção, distribuição e consumo
da planta para fins terapêuticos, industriais e recreativos.
34. Medidas semelhantes foram adotadas pelos estados norte-
americanos do Colorado, Washington, Oregon, Alasca e Washington D.C. com
32 LEAP Brasil. Agência da ONU aponta os danos provocados pela proibição. Disponível em: <http://goo.gl/GTfZhW>. Acesso em 24. abr. 2015. 33 ACNUDH. Contribution of the Human Rights Council to the United Nations General Assembly Special Seccional on the World Drug Problem of 2016. Disponível em: <http://goo.gl/4PBXJJ>. Acesso em: 24. abr. 2015.
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expressivo apoio popular, aprofundando a política de tolerância,
descriminalização de usuários ou de legalização da cannabis para fins medicinais
já existente em outros estados e em países como Canadá, Espanha, Portugal,
Holanda, República Tcheca, Argentina e Colômbia.
35. No Brasil o debate ganhou novo impulso quando no julgamento
da ADPF 187, Rel. Min. Celso de Mello, esta Corte deu ao art. 287 do Código
Penal interpretação conforme a Constituição para que não mais se impedisse a
realização da Marcha da Maconha, movimento que propõe ampla discussão
sobre o modelo proibicionista e a legalização da cannabis.
36. Entidades de objetivos institucionais tão diversos quanto Fiocruz,
Associação Juízes para a Democracia, Law Enforcement Against Prohibition –
LEAP Brasil, Conselho Federal de Psicologia34, Associação Brasileira de
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, Sindicato Nacional do
Docentes das Instituições de Ensino Superior – ANDES-SN, Rede Pense
Livre, além das já citadas Viva Rio, Associação Brasileira de Estudos Sociais
sobre o Uso de Psicoativos, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Instituto
de Defesa do Direito de Defesa, Conectas Direitos Humanos, Instituto Sou da
Paz, Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, Pastoral Carcerária, Comissão
Brasileira sobre Drogas e Democracia – esta que tem entre seus membros os
ex-ministros Ellen Gracie e Carlos Velloso – além de muitas outras vêm
34 O parecer do CFP sobre o Projeto de Lei nº 7663/2010, aliás, merece leitura pela profundidade com que aborda a questão. Disponível em: <http://goo.gl/28vbhU>.
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construindo um ambiente de discussão mais crítico e menos carregado de
preconceito e irracionalidade.
37. Em 2013, ao final do Congresso Internacional sobre Drogas
realizado em Brasília, mais de 250 pessoas, entre profissionais das mais diversas
áreas, pesquisadores e militantes de direitos humanos, assinaram a Carta de
Brasília em Defesa da Razão e da Vida, da qual constou:
A tentativa de voltar a criminalizar usuários e aumentar penas
relacionadas ao tráfico de drogas é um desastre na contramão do que
ocorre em diversos países da América e Europa, contribuindo para
aumentar ainda mais o super-encarceramento e a criminalização da
pobreza. A exemplo das Supremas Cortes da Argentina e da
Colômbia, é preciso que o Supremo Tribunal Federal declare
com urgência a inconstitucionalidade das regras
criminalizadoras da posse de drogas ilícitas para uso pessoal.
Em última instância, legalizar, regulamentar e taxar todas as drogas,
priorizando a redução de riscos e danos, anistiando infratores de
crimes não-violentos e investindo em emprego, educação, saúde,
moradia, cultura e esporte são as únicas medidas capazes de acabar
efetivamente com o tráfico, com a violência e com as mortes de
nossos jovens. É um imperativo ético e científico de nosso tempo,
em defesa da razão e da vida humana.35
38. Não obstante o chamamento feito na carta, o Tribunal já percebe
os reflexos nefastos da política de guerra às drogas.
35 CID 2013. Carta de Brasília em Defesa da Razão e da Vida, de 25 de maio de 2013. Disponível em: <http://goo.gl/GUDLT2>.
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39. Na sessão do dia 28 de outubro de 2014, durante julgamento do
HC 123221 em que a 2ª Turma absolveu à unanimidade um homem condenado
a 4 anos 2 meses por tráfico flagrado com a ínfima quantidade de 1,5 grama de
maconha, o Ministro Gilmar Mendes, relator do writ, sustentou que a nova
Lei de Drogas “está contribuindo densamente para o aumento da população
carcerária, [...] tudo indica, associado ao tráfico de drogas”, posicionamento
acompanhado pelo Ministro Celso de Mello.
40. Em razão do absurdo que o caso revelava, a 2ª Turma, composta
ainda pela Ministra Cármen Lúcia e presidido pelo Ministro Teori Zavaski,
decidiu pelo envio de cópia do acórdão ao CNJ para que o órgão avalie a
possibilidade de uniformização dos procedimentos de aplicação da Lei n.
11.343/2006, bem assim que faça um diagnóstico da população carcerária que
se encontra em situação semelhante.
41. Em outra ocasião, na sessão plenária de 19 de dezembro de 2013,
quando do julgamento dos processos HC 112776 e HC 109193 foi o Ministro
Roberto Barroso quem revelou preocupação com o crescimento da população
carcerária e a relação direta entre política de drogas e superencaceramento,
notadamente da juventude negra e pobre. Disse Sua Excelência:
Diante do volume de processos que recebemos, cheguei à
constatação que me preocupa de que boa parte das pessoas que
cumprem pena por tráfico de drogas são pessoas pobres que
foram enquadradas como traficantes por portar quantidades
não significantes de maconha. E minha constatação pior é que
jovens, negros e pobres entram nos presídios por possuírem
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quantidades não tão significativas de maconha e saem de presídios
escolados no crime. O debate público sobre descriminalização é
menos discutir opção filosófica e mais se fazer escolha pragmática.
42. Não obstante a extensão do debate, que exige mesmo um profinda
remodelação de políticas públicas, o Tribunal é agora instado a se manifestar
sobre ponto sensível da política de drogas, porém específico: a criminalização
de quem faz uso de drogas ilícitas.
43. Como se demonstrará, a inconstitucionalidade é patente, tanto que
o provimento do recurso já é defendido pelos ex-Ministros da Justiça
Nelson Jobim (1995 a 1997), José Carlos Dias (1999 a 2000), José Gregori
(2000 a 2001), Aloysio Nunes Ferreira Filho (2001 a 2002), Miguel Reale
Júnior (2002), Márcio Thomaz Bastos (2003 a 2007) e Tarso Genro (2007
a 2010) em documento intitulado Manifesto pela inconstitucionalidade da repressão
penal ao porte de drogas para uso próprio entregue em abril de 2013 ao Ministro
Relator, com o seguinte conteúdo:
Excelentíssimo Senhor Ministro,
Considerando que o Brasil é um Estado constitucional fundado na
dignidade humana e na pluralidade política, e que cada cidadão tem
liberdade para construir seu próprio modo de vida desde que respeite
o mesmo espaço dos demais, não é legitima a criminalização de
comportamentos praticados dentro da esfera de intimidade do
indivíduo, que não prejudiquem terceiros.
Por isso, os subscritores da presente – todos ocupantes da cadeira
de Ministro de Estado da Justiça – manifestam sua posição pela
inconstitucionalidade da repressão penal ao porte de drogas
para uso próprio.
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O fracasso da guerra às drogas baseada na criminalização do
consumidor revela a impropriedade das estratégias até hoje
utilizadas. Tratar o usuário como cidadão, oferecendo-lhe estrutura
de tratamento, por meio de políticas de redução de danos, é mais
adequado do que estigmatiza-lo como criminoso.
Experiências em Portugal, Espanha, Colômbia, Argentina, Itália,
Alemanha, dentre outros, demonstram que a descriminalização do
uso de entorpecentes foi um importante passo para racionalizar uma
política de combate ao narcotráfico que não transforme a principal
vítima do produto ilícito no objeto da persecução penal. O usuário
de drogas merece respeito e acesso a tratamento digno, e não
as barras dos tribunais.
Diante do exposto, os subscritores se somam às manifestações
encartadas nos autos do Recurso Extraordinário 635.659, para
requerer a esta Corte o reconhecimento da incompatibilidade
do crime de porte de drogas para consumo pessoal com o
modelo constitucional vigente, pautado na dignidade humana, na
pluralidade política e no respeito à intimidade e à vida privada dos
cidadãos.
44. Tendo em conta que a questão já está submetida a debate, o que a
ação pretende é que justamente em razão da sua grande relevância o controle
da constitucionalidade do comando legal seja feito em sede abstrata, resultando
em decisão com efeito vinculante e eficácia contra todos, com fundamento nas
razões que se passa a expor.
45. É nesse contexto que a ABGLT apresenta sua contribuição para o
debate.
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II. DA INCONSTITUCIONALIDADE DA INCRIMINAÇÃO DO USUÁRIO
(art. 28, caput e § 1º, da Lei n. 11.343/2006)
46. Inicialmente merece registro que esta Corte ainda não enfrentou
a tese de inconstitucionalidade das condutas descritas no art. 28, caput
e § 1º, da Lei n. 11.343/2006. A afirmação, embora pareça óbvia, é necessária.
Isto porque no parecer lançado pelo Procurador-Geral da República no RE
635.659 em 26 de setembro de 2014, com protocolo de número 44959/2014,
Sua Excelência pugna pelo desprovimento daquele recurso sustentando que a
Corte “já pacificou o entendimento de que a posse de droga para consumo
pessoal não deixou de ser crime após o advento da Lei nº 11.343/06”,
reproduzindo, para corroborar seu posicionamento, ementa do acórdão do AI
741072 de relatoria do Ministro Dias Toffoli.
47. Ocorre que nem no precedente citado nem no julgado a que o
Ministro Dias Toffoli fez referência em seu voto (RE 430.105/RJ, relator
Ministro Sepúlveda Pertence) este Tribunal realizou controle de
constitucionalidade, ainda que em modalidade incidental: no primeiro não
ocorreu o devido prequestionamento da matéria, daí porque desprovido o
agravo de instrumento que intentava destrancar recurso extraordinário, e no
segundo o recurso extraordinário foi extinto em razão da prescrição da
pretensão punitiva.
48. Além disso a discussão travada em ambos os precedentes
tinha fundamento infraconstitucional, a saber, a ocorrência ou não de
abolitio criminis (art. 107, III, CP) com o advento da Lei n. 11.343/2006, resolvida
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em questão de ordem no RE 430.105 em que se entendeu simplesmente que o
art. 28 da Lei de Drogas não aboliu o crime do art. 16 da Lei n. 6.368/1976,
operando somente uma despenalização, tendo em vista que não mais sancionada
a conduta com pena privativa de liberdade.
49. Por outro lado, também em esclarecimento preliminar – e porque
ventilado em obiter dictum no RE 430.105 pelos ministros Sepúlveda Pertence e
Marco Aurélio – o expurgo dos dispositivos atacados pela presente ação
não importará descumprimento de obrigação assumida pelo Estado
brasileiro perante a comunidade internacional. Com efeito, a própria
Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias
Psicotrópicas, de 1988, ratificada pelo Brasil, prevê em seu artigo 3º, número 2,
que a criminalização das condutas relativas ao consumo pessoal de
drogas proscritas pode ser escusada com fundamento nos princípios
constitucionais e os conceitos fundamentais do ordenamento jurídico dos
países signatários. Não por acaso a ressalva foi apontada pela Corte Suprema
Argentina quando do julgamento do recurso de hecho A. 891. XLIV (caso Arriola,
Sebastián y otros) em que foi declarada a inconstitucionalidade da criminalização
do usuário de drogas36.
50. Necessário que se diga também – como, aliás, oportunamente
assinalado pela Viva Rio em sua manifestação como amicus curiae – que se
36 “[...] ninguna de las mencionadas convenciones suscriptas por la Argentina la compromete a criminalizar la tenencia para consumo personal. En efecto, las convenciones no descartan tal opción, pero expresamente al referirse a los deberes de los Estado, se señala que tal cuestión queda ‘a reserva de sus principios constitucionales y de los conceptos fundamentales de su ordenamiento jurídico’ (artículo 3º, inc. 2º, de la Convención de las Naciones Unidas contra el Tráfico Ilícito de Estupefacientes y Sustancias Psicotrópicas de 1988; artículo 22 del Convenio sobre Sustancias Psicotrópicas de 1917; artículos 35 y 36 de la Convención única de 1961 sobre Estupefacientes).”
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porventura em algum momento passado esta Corte ou seus membros tenham
entendido pela adequação da criminalização de usuários de drogas ao
ordenamento constitucional a mudança da realidade fática descrita acima37
deve orientar o exercício interpretativo acerca da (não) validade da
norma impugnada. Com efeito, como leciona o Ministro Roberto Barroso,
“[e]stá superada, de longa data, a crença de que os dispositivos normativos
contêm, no seu relato abstrato, a solução preestabelecida e unívoca para os
problemas que se destinam a resolver”38. No caso da criminalização dos
usuários de drogas ilícitas, os problemas a que se destinava resolver
somente se agravaram, com aumento vertiginoso da oferta, manutenção da
demanda e grande escalada nas violações de direitos humanos.
51. Situado o debate, passa-se às razões para a declaração de
inconstitucionalidade dos dispositivos atacados. Contudo para uma análise
mais segura da constitucionalidade do complexo normativo impugnado é
necessário um estudo pormenorizado do tipo penal que ele encerra.
52. Apesar do grande número de verbos nucleares distribuídos entre
caput e o § 1º do art. 28, pode-se apontar como a conduta incriminada, voltada
especificamente ao usuário de drogas, a de quem “adquirir, guardar, tiver em
depósito, transportar ou trouxer consigo”, bem assim a de quem “semeia, cultiva ou colhe
plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de
37 Parágrafos 15 a 45. 38 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 137. Conferir também MENDES, Gilmar et al. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 1073-1075.
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causar dependência física ou psíquica”, tudo quando “para consumo pessoal”. Conduta
aqui denominada genericamente porte de drogas para consumo próprio.
53. Pelos incisos I, II e III do art. 28 da Lei n. 11.343/2006 podem ser
aplicadas ao usuário as penas de advertência sobre os efeitos das drogas,
prestação de serviços à comunidade ou a aberrante medida educativa de
comparecimento a programa ou curso educativo – na quase surreal política
de drogas brasileira educação sobre drogas é, portanto, uma sanção e não
um direito.
54. Como assinalado acima39, de acordo com esta Corte houve uma
despenalização da conduta, não a abolição do crime. Com efeito, além de prever
penas restritivas de direito o dispositivo impugnado submete o acusado ao
processo e às instituições do sistema criminal – verdadeira pena del banquillo.
Ocorre que o tipo não apresenta a necessária lesividade que torne
penalmente relevante a conduta, que é, portanto, atípica.
55. Muito embora não conste expressamente do texto constitucional,
o princípio da lesividade pode ser revelado pelo inciso XXXV do art. 5º da
Constituição, que ao mesmo tempo que consagra a inafastabilidade da
jurisdição prevê – numa interpretação a contrario sensu orientada pela noção do
direito penal como ultima ratio – que não poderá ser incriminada conduta
39 Parágrafos 46 a 48.
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que não lese ou não ameace concretamente direito de outra pessoa.
Como afirma Cezar Roberto Bitencourt
o disposto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, indica como
juridicamente relevante a causação de lesões efetivas ou
ameaças a direitos, só podendo ser entendidas como verdadeiras
ameaças as que sejam concretas, pois ameaças abstratas
simplesmente inexistem.40
56. Da mesma forma Luiz Flávio Gomes, para quem
[s]ó é relevante o resultado que afeta terceiras pessoas ou interesses
de terceiros. Se o agente ofende (tão-somente) bens jurídicos
pessoais, não há crime (não há fato típico). Exemplos: tentativa de
suicídio, autolesão, danos a bens patrimoniais próprios etc.41
57. O princípio da lesividade é um parâmetro garantista e
democrático para a incriminação de condutas, um limite constitucional de
proteção dos direitos humanos imposto ao poder punitivo do Estado que,
todavia, é contrariado pelo art. 28 da Lei n. 11.343/2006, pois este descreve
conduta que não invade os limites da alteridade.
58. Ao contrário do que assevera parte da doutrina, o bem jurídico
tutelado pelo dispositivo não é a saúde pública abstratamente considerada, mas
a integridade física do próprio usuário, como se extrai mesmo do texto
40 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 53. Grifou-se. 41 GOMES, Luiz Flávio. Resultado jurídico transcendental e tipicidade material. Instituto Avante. Disponível em: < http://goo.gl/BCEf0X>. Acesso em: 6 abr. 2015. Grifou-se.
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normativo, que revela o elemento subjetivo do tipo pela expressão “para
consumo pessoal”. Como bem sintetiza Alberto Zacarias Toron, “[o] usuário
que adquire, guarda ou traz consigo substância entorpecente, ou que determine
dependência física, tem um fim especial no agir, qual seja, o uso próprio que
compõe o elemento subjetivo do tipo”42.
59. Afasta-se desde logo, portanto, o argumento simplório de parte da
doutrina de que somente a criminalização do uso de drogas ilícitas seria
inconstitucional, porém não a incriminação da conduta de portar. É a posição,
por exemplo, de Fernando Capez43, para quem o porte de drogas, por si só,
representaria perigo de afetação à saúde pública, sendo, por isso, constitucional
a criminalização da conduta. Daniel Nicory, contudo, de forma lapidar refuta a
tese. Diz ele:
O argumento é falho, pois a Lei de Drogas é bastante restritiva na
descrição do porte para uso pessoal, tanto que sempre que a
conduta do agente oferece risco a terceiros ela é prevista em
outro tipo e punida com maior severidade, até mesmo no caso
do consumo compartilhado [...].44
60. Com efeito, uma observação atenta da conduta de usuários de
drogas descrita no tipo penal, em cotejo com a realidade, não pode levar à
conclusão de que é a saúde pública o bem jurídico tutelado e de que a posse de
42 TORON, Alberto Zacarias. Deve a cannabis sativa permanecer na lista IV da Convenção Única de Entorpecentes, de 1961, da ONU? In: REALE JÚNIOR, Miguel. (Orgs.) Drogas: aspectos penais e criminológicos (Primeiro encontro de mestres e doutores do Departamento de Direito Penal da Faculdade de Direito da USO). Rio de Janeiro, Forense, 2005. p. 142. Grifou-se. 43 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: legislação penal especial. v. 4. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 686. 44 NICORY, Daniel. Crítica ao controle penal das drogas ilícitas. Salvador: Jus Podivm, 2013. p. 50.
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drogas para consumo próprio constitua um crime de perigo abstrato, embora,
como adverte Salo de Carvalho, “este discurso legitimador, apesar de
despregado da realidade, [seja] altamente funcional e cotidianamente
(re)produzido na dogmática jurídica”45. Ao revés, como bem analisa Maria
Lúcia Karam,
é evidente que na conduta de uma pessoa, que, destinando-a a seu
próprio uso, adquire ou tem a posse de uma substância, que causa
ou pode causar mal à saúde, não há como identificar ofensa à saúde
pública, dada a ausência daquela expansibilidade do perigo [...].
Nesta linha de raciocínio, não há como negar incompatibilidade
entre a aquisição ou posse de drogas para uso pessoal – não
importa em que quantidade – e a ofensa à saúde pública, pois não
há como negar que a expansibilidade do perigo e a destinação
individual são antagônicas. A destinação pessoal não se
compatibiliza com o perigo para interesses jurídicos alheios. São
coisas conceitualmente antagônicas: ter algo para difundir entre
terceiros, sendo totalmente fora de lógica sustentar que a
proteção à saúde pública envolve a punição da posse de drogas
para uso pessoal.46
61. Foi exatamente esta a interpretação da Corte Suprema de Justicia
da Colômbia no caso Ancízar Jaramillo Quintero (Casación Fallo sistema
acusatorio Nº 31.531) julgado em oito de julho de 2009 em que aquele Tribunal
declarou inconstitucional a criminalização de usuários de drogas porque a
conduta não lesa ou ameaça concretamente direito de outra pessoa ou da
coletividade:
45 CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 253. 46 KARAM, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. Niterói: Luam, 1991, p. 126, apud CARVALHO, Salo de. Op. cit. pp. 253-254. Grifou-se.
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Desde la teoría del delito, la cual no es una suma de postulados
dogmático penales ahistóricos sino que, por el contrario, se
deben acompasar con los fines y valores del Estado constitucional,
social y democrático de Derecho, es dable comprender sin
dificultad que el daño o peligro de afectación al bien jurídico
tutelado de la salud pública, no se materializa en abstracto
ni en el vacío sino en la praxis en situaciones de
interrelaciones en las que se produzca un resultado de
menoscabo o conato de lesión de los derechos o intereses de otro o
de otros.
En esa mirada valorativa es como se entiende que en los
eventos de llevar consigo dosis personal o de
aprovisionamiento de sustancias estupefacientes, se trata de
comportamientos intraneus en un todo individuales que no
afectan la ajenidad singular o colectiva de una comunidad
concreta, y no se puede pregonar entonces antijuridicidad
material pues, por exclusión de efectos, la ausencia de lesividad
social resalta, amén que pueden converger figuras de exoneración
de responsabilidad delictiva como la atipicidad (PRIETO
RODRÍGUEZ), estado de necesidad (ANTONIO BERISTAIN),
causal de inculpabilidad, ya como trastorno mental que implica
inimputabilidad o como no exigibilidad de otra conducta por el
acoso de la dependencia (BACIGALUPO), y por ende, no se
torna jurídico imponer una pena sino, por el contrario, absolver,
como aquí se debe proceder.47
62. No mesmo sentido a Corte Suprema de Justicia de la Nación
no caso Arriola, Sebastián y otros (Recurso de hecho A. 891.XLIV), que declarou
inconstitucional o art. 14, parágrafo segundo, da Lei n. 23.737/1989 (Ley de
Drogas Argentina), “en quanto incrimina la tenencia de estupefacientes para uso personal
que se realice en condicionaes tales que no traigan aparejado un peligro concreto o un daño a
47 COLÔMBIA. Corte Suprema de Justicia. Casación Fallo sistema acusatório Nº 31.531. Recorrente: Ancísar Jaramillo Quintero. Relator: Yesid Ramírez Bastidas. Bogotá, oito de julho de 2009. Disponível em: <http://goo.gl/iiZZOV>. Acesso em: 7 abr. 2015. Grifou-se.
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derechos o bienes de terceros”48, porquanto incompatível com o artigo 19 da
Constitución Nacional da Argentina. O dispositivo constitucional em
questão estabelece:
Art. 19.- Las acciones privadas de los hombres que de ningún modo
ofendan al orden y a la moral pública, ni perjudiquen a un tercero,
están sólo reservadas a Dios, y exentas de la autoridad de los
magistrados. Ningún habitante de la Nación será obligado a hacer
lo que no manda la ley, ni privado de lo que ella no prohíbe.49
63. A Constituição colombiana e mais expressamente a
argentina consagram a lesividade que fundamentou a declaração de
inconstitucionalidade da criminalização dos usuários de drogas nos dois países
latino-americanos, princípio característico de ordenamentos de mesma
matriz – dita liberal – e no nosso albergado pelo art. 5º, inciso XXXV da
Constituição Federal.
64. Todavia a noção de inidoneidade da incriminação de atos que não
ofendam direito de terceiros decorre também de outros princípios
constitucionais. Aliás, não por acaso o mesmo artigo 19 da Constituição
argentina em sua primeira parte aponta a privacidade – prevista no inciso X,
do art. 5º da nossa Carta – como elemento conformador dessa noção.
48 ARGENTINA. Corte Suprema de Justicia de la Nación. Recurso de hecho A. 891.XLIV. Recorrentes: Fares, Acedo, Villareal, Medina e Cortejarena. Buenos Aires, 25 de agosto de 2009. Disponível em: <http://goo.gl/zw5rIs>. Acesso em: 9. abr. 2015. 49 ARGENTINA. Constitución Nacional. Disponível em: <http://www.senado.gov.ar/deInteres>. Acesso em: 9. abr. 2015. Grifou-se.
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65. A imbricação de privacidade e lesividade é bem evidente na posição
de Luiz Flávio Gomes, que leciona:
Se em direito penal só deve ser relevante o resultado que afeta
terceiras pessoas ou interesses de terceiros, não há como se admitir
(no plano constitucional) a incriminação penal da posse de drogas
para uso próprio, quando o fato não ultrapassa o âmbito privado
do agente. O assunto passa a ser uma questão de saúde pública (e
particular), como é hoje (de um modo geral) na Europa.50
66. A privacidade e a intimidade não se constituem apenas dos
segredos, desejos, informações íntimas, fatos pessoais, mas também de atos
eminentemente privados, isto é, que não lesem ou importem perigo a direito
de outras pessoas, e são direitos reconhecidas pela Constituição e pelos tratados
internacionais: artigo 11.2 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos;
artigo 5º da Declaração Americana de Direitos Humanos e Deveres do
Homem; artigo 12 da Declaração Universal de Direitos Humanos e artigo 17.1
do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.
67. Esse complexo normativo é garantia contra intervenções
ilegítimas, ingerências arbitrárias ou abusivas no espaço de autodeterminação
do sujeito, em cujo âmbito os atos praticados não tenham efeito outro que não
o exercício do direito de escolha individual, que, embora eventualmente
criticável pela moral, é impenetrável pelo direito. Por isso mesmo já disse
Roberto Lyra Filho, ao tentar descrever o que é o direito, que,
50 GOMES, Luiz Flávio. Legislação criminal especial. Coleção Ciências Criminais. Vol. 6. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 174. Grifou-se.
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atualmente, se demonstra que são ilegítimas as definições legais de
“crime sem vítima”, como, por exemplo, a autodestruição física ou
psíquica, pelo suicídio, pelo consumo de drogas, pela degradação moral
da prostituição. Estes procedimentos não deixam de ser, todos eles,
reprováveis moralmente; porém o Direito veio a reconhecer que nada têm
a ver com os deveres de reciprocidade e, assim, vão desparecendo aquelas
incriminações injustificáveis.51
68. Roberto Soares Garcia sustenta a inconstitucionalidade do art. 28
da Lei n. 11.343/2006 por violação da liberdade, da intimidade e da vida
privada, ponderando que incumbe ao Estado oferecer ao cidadão as
possibilidades para o livre exercício de escolha, porém jamais substituí-lo na
decisão sobre o que é melhor para si, em especial agindo de forma coercitiva
sobre o corpo e a liberdade do indivíduo, verbis:
O inc. X do art. 5.º da CR, assevera que “são invioláveis a intimidade,
a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito
a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua
violação”. Confere-se ao “cidadão o direito de impedir que intrusos venham
intrometer-se na sua esfera particular” (COSTA JÚNIOR, Paulo José da.
O direito de estar só – tutela penal da intimidade. 2. ed. São Paulo:
RT, 1995. p. 32), considerada “como conjunto de modo de ser e viver, o
direito de o indivíduo viver sua própria vida” (SILVA, José Afonso da.
Curso de direito constitucional positivo. 6. ed. São Paulo: RT,1990.
p. 185); legitima “a pretensão de estar separado de grupos, mantendo-se o
indivíduo livre da observação de outras pessoas” (MENDES, Gilmar
Ferreira et al. Curso de direito constitucional. 3. ed. São Paulo:
Saraiva, 2008. p. 379), reconhecendo-se o “direito à liberdade de que
cada ser humano é titular para escolher o seu modo de vida” (voto
da Min. Cármen Lúcia, ADI 132-RJ, j. 05.05.2011).
A garantia “traduz-se na previsão de que o indivíduo mereça do Estado e dos
particulares o tratamento de sujeito e não de objeto de direito,
respeitando-lhe a autonomia, pela sua simples condição de ser humano. Assim
51 LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 126.
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sendo, incumbe ao Estado garantir aos indivíduos a livre busca de suas
realizações de vida pessoal” (voto do Min. Luiz Fux, ADI 132-RJ cit.),
pois “ninguém pode ser funcionalizado, instrumentalizado, com o
objetivo de viabilizar o projeto de sociedade alheio [...]. A funcionalização é
uma característica típica das sociedades totalitárias, nas quais o
indivíduo serve à coletividade e ao Estado, e não o contrário” (voto do Min.
Marco Aurélio, ADI 132-RJ cit.).
Ao falar em respeito à vida privada, está-se a tratar, no fundo, de
liberdade. E “o índice de liberdade de uma sociedade se mede pela autonomia
concedida aos seus cidadãos para decidirem por si mesmos o seu próprio destino
[...]. Espaços de liberdade não são dados, mas diariamente conquistados.
Conquistados contra usurpações, sufocamentos, sobretudo quando o Estado
intervém em nome de um bem supostamente maior, como uma ‘informação mais
democrática’ ou a saúde dos indivíduos” (ROSENFIELD, Denis Lerrer.
Liberdade às avessas. O Estado de S. Paulo, 12.03.2012, p. A2.).
Ora, “é indispensável que a pessoa tenha ampla liberdade de realizar sua vida
privada, sem perturbação de terceiros” (SILVA, José Afonso da. Curso de
direito constitucional positivo cit., p. 185). Afinal, “la conducta
realizada en privado es lícita, salvo que constituya un peligro concreto o cause
daños a bienes jurídicos o derechos de terceiros” (palavras de Ricardo Luis
Lorenzetti, Juiz da Corte Suprema Argentina, proferidas no
precedente “Arriola, Sebástian” – causa n. 9.080, registro
A.891.XLIV, p. 31.) e “ninguém, a não ser o próprio homem, é senhor de sua
consciência, do seu pensar, do seu agir, estando aí o cerne da responsabilidade.
Cabe ao Estado propiciar as condições desse exercício, mas
jamais substituir o ser humano na definição das escolhas e da
correspondente ação. [...] Portanto, a liberdade constitucionalmente
assegurada implica a existência de uma permissão forte, que não resulta da mera
ausência de proibição, mas que confere, ostensivamente, para cada indivíduo, a
possibilidade de escolher seu próprio curso [...]. O reconhecimento de uma
permissão forte ao exercício de uma vontade livre e autônoma traz uma
consequência importante: do ponto de vista sistemático, dada a hierarquia
constitucional, uma verdadeira derrogação prévia de normas de hierarquia inferior
que tendam a ensejar seu impedimento [...]” (FERRAZ JÚNIOR, Tercio
Sampaio. Direito constitucional – Liberdade de fumar, privacidade,
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estado, direitos humanos e outros temas. Barueri: Manole, 2007. p.
195-196).52
69. Sobre a intangibilidade da intimidade do usuário de drogas à
intervenção punitiva do Estado também discorre Pierpaolo Cruz Bottini. Para
o professor da USP e ex-Secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da
Justiça a intimidade pode até ser relativizada para a proteção mesma do
indivíduo, porém jamais para a imposição de sanção criminal a quem se
automolesta. Diz ele:
O consumo de drogas encontra-se nesse círculo íntimo do indivíduo,
protegido contra a ingerência do Estado, ao menos no que se refere
à repressão criminal.
Há quem diga que a intimidade não é absoluta (embora outros
atestem que a relatividade diz respeito apenas à vida privada,
preservando a intimidade de qualquer intervenção). A necessidade
de resguardar terceiros de riscos ou lesões decorrentes de crimes
permite – em casos previstos expressamente na Constituição – o
afastamento temporário e limitado do direito. Trata-se de um
conflito de princípios que admite a limitação recíproca e a
ponderação (sobre o tema, BARROSO, Luís Roberto. Curso de
direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, p.335).
É bem verdade que em situações limite é possível relativizar uma
parcela do espaço privado do indivíduo. Mas não é esse o caso do
consumo de drogas, porque o ato se limita à esfera individual, ao já
indicado âmbito de autonomia do usuário. Pode-se considerar a
intimidade pelo aspecto positivo, como um comportamento cuja
prática não exclui que outros indivíduos também o pratiquem
(GRECO, Luis. Posse de droga, privacidade, autonomia: reflexões a
partir da decisão do Tribunal Constitucional argentino sobre a
inconstitucionalidade do tipo penal de posse de droga com a
52 GARCIA, Roberto Soares. A inconstitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas. In: Boletim IBCCRIM. Edição Especial Drogas. Ano 20, out. 2012, pp. 6-8. Disponível em: <http://goo.gl/pCpFln>. Aceso em: 7 abr. 2015. Negritou-se.
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finalidade de próprio consumo. Rbccrim, São Paulo, v.18, n.87,
nov/dez 2010, p.91) ou pelo aspecto negativo, como ato de exercício
de liberdade individual incapaz de afetar bens jurídicos alheios
(Corte Suprema de Justicia de la Nación. Recurso de Hecho A. 891.
XLIV, 25.08.09). Use-se a primeira ou a segunda definição e o
resultado, para os fins almejados na presente discussão, será o
mesmo: o consumo individual de drogas integra-se no círculo
de privacidade do indivíduo, intangível pelo ius puniendi [...].
Pode-se atacar o raciocínio exposto apontando que é legítimo ao
Estado também afastar a intimidade quando o bem jurídico do
próprio titular deste direito está exposto a risco de lesão. Seria o caso
da invasão de domicílio para salvar a vida de alguém que tenta o
suicídio, autorizado pelo artigo 5º, XI, da Constituição Federal.
No entanto, retornamos ao raciocínio anterior. A violação da
intimidade representa uma afetação da dignidade, possível de
ser usada diante de casos extremos de autolesões à vida ou à
integridade física em determinados níveis. Assim, é possível a
intervenção na intimidade diante do uso de drogas em situações de
risco de morte ou de lesão corporal grave. E, evidentemente, que tal
atuação do Estado pode se dar pela violação do domicílio (por ex.
para salvar alguém em overdose) ou por outras condutas similares, mas
jamais através da imposição de sanção criminal àquele que se
expôs ao risco pelo uso da droga.53
70. Além disso, independentemente do juízo que se faça sobre as
drogas – e hoje é cada vez mais evidente que os riscos do consumo são
atenuados caso se adotem políticas educativas e de redução de danos em
53 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Descriminalizar o uso de drogas: uma questão constitucional. Consultor Jurídico, 10 mar. 2015. Disponível em: <http://goo.gl/d3hSnr>. Acesso em: 7 abr. 2015.
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substituição à abordagem bélica5455 – é, também do ponto de vista
constitucional, intolerável a criminalização das condutas de usuários que
deliberadamente queiram alterar sua consciência sem que esta conduta
específica lese ou leve perigo concreto a direito de outra pessoa.
71. Desde a pré-história em todas as sociedades se identifica o
consumo de diferentes substâncias psicoativas com distintas finalidades – seja
para fins lúdicos, para o desencadeamento de estados de êxtase místico ou com
finalidade curativa no bojo de práticas tradicionais56. O uso religioso da cannabis,
por exemplo, tem seu registro mais antigo na Índia em 1400 a.C. no texto
Atharva Veda, que fazia menção ao bangue, pelo qual se dava a comunicação
com Shiva57.
72. É assim que também desde a perspectiva da liberdade de
consciência e de crença (art. 5º, VI, da Constituição) a pessoa que tem
consigo drogas para consumo próprio não pode ser criminalizada. Como
afirma Túlio Vianna
54 Portugal, que descriminalizou o porte para consumo pessoal em 2001, tem, desde então, experimentado significativa redução do uso problemático e entre adolescentes, de infecções por HIV, e de mortes por overdose, além de um aumento de 60% no número de usuários em tratamento de saúde. O país conta também com um dos menores índices de consumo de toda a Europa. Os dados estão compilados no documento intitulado Drug Decriminalization in Portugal: A Health-Centered Approach, publicado em fevereiro de 2015 pela Drug Police Aliance e disponível em: <http://goo.gl/b109kk>. 55 A Suíça, que desde os anos 80 investe em políticas de redução de danos, viu o número de mortes entre usuários de drogas injetáveis cair em mais de 50%. Conferir o documento The swiss four pillars policy: an evolution from local experimentation to federal law, da Beckley Foundation, 2009, disponível em: <http://goo.gl/7WEgfs>. 56 MACRAE, Edward. Aspectos socioculturais do uso de drogas e políticas de redução de danos. In: Anais do XIV Encontro Nacional da ABRAPSO. Rio de Janeiro: ABRAPSO, 2007. v. 1.Disponívelem: <http://goo.gl/o1XqnJ>. Acesso em: 2 set. 2014. 57 ROBINSON, Rowan. O grande livro da cannabis. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 49.
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[o] reconhecimento do direito a dispor do próprio corpo tem como
corolário à liberdade de consciência e também a liberdade de
alteração de consciência por meio de drogas psicotrópicas, desde que
evidentemente o uso de tais drogas não provoque danos a terceiros.
Não cabe a um Estado no qual a liberdade é direito fundamental
uma atuação paternalista por parte do governo no sentido de proibir
que pessoas maiores e capazes provoquem danos a seus corpos.
Deve o estado, sim, proteger a saúde de crianças e
adolescentes, mas no momento em que se reconhece sua plena
capacidade jurídica é preciso que se reconheça também seu
direito a usar drogas que alteram sua consciência, ainda que
estas lhe venham a causar um eventual dano à saúde.58
73. A questão também neste ponto não é nova no debate das Cortes
Constitucionais. No caso Gonzales v. O Centro Espírita Beneficente União do Vegetal
a Suprema Corte americana decidiu, usando do critério de strict scrutiny (controle
de razoabilidade), que o Estado deve comprovar compelling interest (interesse
convincente) e o uso dos meios menos restritivos para atingir os fins da política
de drogas quando esta conflita com o direito fundamental à liberdade religiosa.
Assim, a Corte garantiu à unanimidade que uma igreja baseada no estado do
Novo México filiada à União do Vegetal que tivera confiscados 30 galões de
hayahuasca pudesse fazer uso litúrgico da bebida, que contém o psicoativo
proscrito dimetiltriptamina (DMT)59.
74. Mesmo este Tribunal já esboçou discussão sobre o tema quando
do julgamento da ADPF 187. A Associação Brasileira de Estudos Sociais do
58 VIANNA, Túlio. O direito ao próprio corpo. Empório do direito, 5 abr. 2015. Disponível em: <http://goo.gl/gRUHwq>. Acesso em: 7 abr. 2015. Grifou-se. 59 EUA. Supreme Court. Caso Gonzales versus O Centro Espírita Beneficente União do Vegetal. Relator Justice John Roberts. Decisão de 21. fev. 2006. Disponível em: <http://goo.gl/E4u5DQ>. Acesso em: 10. abr. 2015.
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Uso de Psicoativos (ABESUP), ali habilitada como amicus curiae, requereu a
declaração de inconstitucionalidade da proibição do uso religioso de cannabis. A
corte não conheceu do pedido por limitações de ordem processual, porém não
sem a afirmação por parte do relator, Min. Celso de Mello, de que lamentava
não fazê-lo.60
75. Ora, se o uso compartilhado de substância psicoativa em um
contexto religioso tem (e deve mesmo ter!) reconhecido suporte constitucional,
que dizer o uso estritamente pessoal, para fim de elevação do espírito, daí
porque, também com fundamento no direito constitucional de liberdade
consciência e de crença, necessária a declaração de inconstitucionalidade do ato
normativo impugnado.
76. Ainda assim é importante repisar: nem se diga que o
dispositivo visa a proteger a saúde pública. Como apontado acima tem-se
a partir da leitura do tipo penal que o usuário tem um fim especial no agir: o
uso próprio, que compõe o elemento subjetivo do tipo. Por outro lado a
conduta concreta de quem traz consigo droga para consumo pessoal não tem
expansibilidade que leve sequer perigo a outra pessoa. Sobre essa delimitação
da conduta e sua incompatibilidade com a proteção da saúde pública concluiu
Fernanda Pereira de Lima Carvalho, juíza de direito do Juizado Especial
Criminal de São Vicente, São Paulo:
60 EBC. Ministro sugere que entidades acionem STF para liberação de ilícitos em cultos religiosos. Notícia de 11. jun. 2011. Disponível em: <http://goo.gl/uJYkwg>. Acesso em: 10. abr. 2015.
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Analisando-se o tipo penal do artigo 28 da Lei 11343/06, verifica-se
que o elemento subjetivo, representado pela expressão para
consumo próprio, delimita com clareza e exatidão a esfera de
lesividade, evidenciando a única interpretação possível, qual seja, a
autolesão. Assim, na conduta de quem adquire, guarda, tem em
depósito, transporta ou porta, para consumo pessoal, drogas
proibidas, não há como identificar ofensa à Saúde Pública, não sendo
possível qualquer interpretação extensiva do âmbito de sua
lesividade. Isto porque destinação pessoal e perigo para
quaisquer interesses de terceiros são conceitos absolutamente
paradoxais, inexistindo fundamento para a afirmação de que a
proteção à Saúde Pública requer a criminalização do porte para uso
próprio.61
77. No mesmo sentido o juiz de direito José Henrique Torres, do
Juizado Especial Criminal da Comarca de Campinas, em sentença de 15 de abril
de 2014 no processo 2.564/2013 que declarou incidentalmente a
inconstitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas. Diz ele:
Portanto, o argumento de que o artigo 28 da Lei n. 11.343/2006
é de perigo abstrato, bem como a alegação de que a saúde
pública é o bem tutelado, não é sustentável juridicamente, pois
contraria frontalmente a expressão típica desse dispositivo
criminalizador, lavrado pela própria ideologia proibicionista, o qual
estabelece os limites de sua incidência nos estreitos limites do
elemento subjetivo elegido, que determina expressamente o
âmbito da lesividade pessoal e proíbe o expansionismo
indevidamente desejado.62
61 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Juizado Especial Criminal de São Vicente. Processo 590.01.2008.004355-1/000000-000. DJSP de 29. ago. 2008, página 7067. Disponível em: <http://goo.gl/q0CDqr>. Acesso em: 9. abr. 2015. Grifou-se. 62 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Juizado Especial Criminal de Campinas. Processo 2.564/2013. Decisão de 15. abr. 2014. Disponível em: <http://goo.gl/VPK0T6>. Acesso em: 9. abr. 2015.
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78. E repisa-se porque há quem justifique a criminalização de
usuários de drogas ilícitas pela sua suposta potencialidade delitiva. É
este, aliás, o posicionamento encampado até aqui pela Procuradoria-
Geral da República, como se tem do parecer lançado às fls. 172-175 do RE
635.659 (e ratificado em parecer de 25 de setembro de 2014 nos mesmos autos).
Reproduz-se excerto, acrescentados negritos:
No caso, o bem jurídico tutelado é a saúde pública, que fica exposta
a perigo pelo porte da droga proibida, independentemente do uso
ou da quantidade apreendida. A conduta daquele que traz consigo
droga de uso próprio, por si só, contribui para a propagação do vício
no meio social. O uso de entorpecentes não afeta apenas o usuário
em particular, mas também a sociedade como um todo.
Sobre a questão, ensina o i. Jurista Vicente Greco Filho, in verbis:
“A razão jurídica da punição daquele que adquire, guarda ou traz
consigo (a droga) para uso próprio, é o perigo social que sua conduta
representa.
Mesmo viciado, quando traz consigo a droga, antes de consumi-la,
coloca a saúde pública em perigo, porque é fator decisivo da
difusão dos tóxicos. Já vimos ao abordar a psicodinâmica do vício
que o toxicômano normalmente acaba traficando, a forma de
obter dinheiro para aquisição da droga, além de psicologicamente
estar predisposto a levar outros ao vício, para que compartilhem
ou de seu paraíso artificial ou de seu inferno” (Tóxicos – prevenção
– repressão, São Paulo, Saraiva, 1982, p. 113).
79. Ora, a conduta de trazer consigo (ou portar, adquirir, guardar
etc.) para consumo próprio é absolutamente diversa da conduta de
difundir! Fundamentar a criminalização do usuário de drogas pela hipotética
difusão da substância proscrita é, a não mais poder, violação do princípio da
legalidade (art. 5º, inciso II, da Constituição). Pior: é, como aponta Cristiano
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Maronna63, a coisificação, a instrumentalização do ser humano pelo
Estado na incumbência que é sua e intransferível de executar políticas públicas,
seja de segurança, seja de saúde, em odiosa violação à dignidade da pessoa
humana, fundamento da República consoante o inciso III, do art. 1º, da
Constituição. Sobre a questão também se manifestou o juiz de direito José
Henrique Torres na mesma decisão apontada acima (com grifos nossos):
Assim, transformar aquele que tem a droga apenas e tão-somente
“para consumo pessoal” em agente causador de perigo à
incolumidade ou à saúde pública, como se fosse um potencial
traficante, implica frontal violação do princípio da lesividade,
corolário do princípio da legalidade, dogma garantista previsto no
inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal.
E não é possível aceitar a afirmação de que o porte da droga para
consumo pessoal representa um perigo potencial para a
sociedade ou para a saúde pública, em face da possibilidade de uma
conduta futura, com lesividade projetada para o futuro, no campo
meramente hipotético: em primeiro lugar, porque o tipo penal em
referência não faz nenhuma menção a essa lesividade futura,
nem sequer faz qualquer referência à possibilidade de um
dano ou risco de dano futuro para terceira pessoa; e, em
segundo lugar, porque, em um Estado de Direito Democrático,
erigido sob as bases da dignidade humana, não se pode admitir
a criminalização de uma conduta com fundamento na
possibilidade de um dano futuro, incerto e eventual.
Certamente, criminalizar uma conduta realizada no presente,
sem qualquer carga de lesividade no campo da alteridade, visando
coibir a possibilidade da ocorrência de prováveis danos
futuros, decorrentes de uma hipotética conduta futura, constitui,
obviamente, violação ao princípio constitucional da lesividade
e é inadmissível em um Estado de Direito Democrático.
63 MARONNA, Cristiano Avila. Drogas e consumo pessoal: a ilegitimidade da intervenção penal. In: Boletim IBCCRIM. Edição Especial Drogas. Ano 20, out. 2012, pp. 6-8. Disponível em: <http://goo.gl/pCpFln>. Acesso em: 7 abr. 2015.
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Em uma Democracia, que preza minimamente a dignidade humana,
não se pode admitir que uma conduta seja criminalizada apenas em
razão da “perigosidade” de seu autor, especialmente quando essa
“perigosidade” é afirmada com base em preceitos abstratos,
presunções legais ou projeções futurísticas.
80. No caso Arriola, Sebastián y otros a Suprema Corte argentina também
inadmitiu o argumento de criminalização pela possibilidade de prática futura de
conduta danosa, pela mera periculosidade potencial de (certas) pessoas,
consignando que
[...] la norma constitucional que protege la privacidad no
habilita la intervención punitiva del Estado basada
exclusivamente en la mera posibilidad de que el consumidor
de estupefacientes se transforme en autor o partícipe de una
gama innominada de delitos.
En el derecho penal no se admiten presunciones juris et de jure
que, por definición, sirven para dar por cierto lo que es falso, o sea,
para considerar que hay ofensa cuando no la hay. En cuanto al
peligro de peligro se trataría de claros supuestos de tipicidad sin
lesividad. Por consiguinte, el análisis de los tipos penales en el
ordenamiento vigente y por imperativo constitucional, debe partir
de la premisa de que sólo hay tipos de lesión y tipos de peligro, y que
en estos últimos siempre debe haber existido una situación de riesgo
de lesión en el mundo real que se deberá establecer en cada situación
concreta siendo inadmisible, en caso negativo, la tipicidad objetiva.
81. Essa valoração sobre a hipotética periculosidade também já foi
preocupação da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Fermín
Ramírez versus Guatemala, julgado em 20 de junho de 2005, que a inadmitiu
desde a perspectiva dos direitos humanos:
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La valoración de la peligrosidad del agente implica la apreciación del
juzgador acerca de las probabilidades de que el imputado cometa
hechos delictuosos en el futuro, es decir, agrega a la imputación por
los hechos realizados, la previsión de hechos futuros que
probablemente ocurrirán [...]. Sobra ponderar las implicaciones, que
son evidentes, de este retorno al pasado, absolutamente
inaceptable desde la perspectiva de los derechos humanos.64
82. Sobre essa presunção de que o usuário cometerá crime por conta
do consumo e a ilegitimidade desse suposto objetivo da norma impugnada,
novamente Pierpaolo Bottini:
Poder-se-ia fundamentar a punição do uso de drogas em um suposto
desvalor do comportamento do usuário em se tornar
voluntariamente incapaz de autocontrole (espécie de actio libera in
causa), em situação propensa ao cometimento de crimes futuros.
Porém, ainda que o Direito Penal admita a punição daquele
que voluntariamente se tornou inimputável (CP, artigo 28, II),
isso apenas ocorre quando praticado efetivamente um ato
criminoso posterior. Assim, se alguém se embriaga e pratica um
crime posterior — como lesões corporais — será punido por este,
independente de sua capacidade de autocontrole no momento do
ato. Mas não haverá sanção criminal pelo ato de se embriagar. Da
mesma forma, não se justifica a punição do uso de drogas pela
possível prática de crimes posteriores, o que não impede a
punição por estes últimos, se cometidos, independente da
imputabilidade do agente.65
83. Apesar de todo ilegítimo, o argumento da predisposição do
usuário de drogas à prática de crimes é útil a dar pistas sobre os fins não
64 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Serie C, n.126, caso Fermín Ramirez versus Guatemala, julgado em 20 de junho de 2005. Disponível em: <http://goo.gl/klJND6>. Acesso em: 16. abr. 2015. Grifou-se. 65 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Op. cit.
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declarados da política de proibiçao, que subjazem o discurso de eliminação
de oferta e consumo de certas substâncias psicoativas potencialmente viciantes:
a segregação de grupos específicos tão-somente por serem o que são. A
criminalização de usuários de drogas apresenta-se como verdadeiro direito
penal do autor, do inimigo não adequado ao padrão moral vigente. É o
que uma análise histórica do proibicionismo revela:
84. As mais diversas drogas são utilizadas pelo ser humano desde
tempos imemoriais, com três funções principais, segundo Richard Bucher:
escapismo, transcendência espiritual e prazer66. Contudo, como assevera
Juliana Rochet, com o surgimento das sociedades modernas ocidentais, época
em que nasceram “os valores éticos e políticos do individualismo e da liberdade,
[da] razão a serviço da liberdade e da busca da felicidade”, o uso de drogas
passou a se deslocar para a busca do prazer concomitantemente à “emergência
de uma sociedade disciplinar e de um biopoder em função do avanço
capitalista”67.
85. A ideia ocidental de modernidade, assim, está intimamente
vinculada à criação de uma sociedade racional que se apresenta imaginada como
uma ordem baseada no cálculo, fazendo da racionalização o princípio único de
organização da vida social; sociedade, porém, disciplinar, interveniente no
66 BUCHER, Richard. (Org). Prevenção ao uso indevido de drogas. 2. ed. Brasília: UnB, 1991, p. 18. 67 ROCHET, Juliana. Entre o mel e o fel - drogas, modernidade e redução de danos. Tese apresentada ao Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília para a obtenção do título de Doutora em Política Social. Brasília, 2009, p.4.
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corpo e na vida das pessoas, que passa a coibir práticas culturais que não as
hegemônicas e a ebriedade proporcionada pelo uso de certas drogas.
86. Na transição para o século XX, condizente com essas concepções,
começaram a emergir as legislações proibicionistas nos Estados Unidos da
América, que sob o pretexto de resguardar a integridade física e psíquica
das pessoas na verdade negava-lhes o direito de ter uma identidade própria
e diferenciada, fora do paradigma moderno de racionalidade e produtividade.
87. Grupos de pressão moralistas e proibicionistas dispostos a lutar
contra as “impurezas da América” como o Prohibition Party, a Sociedade
Comstock para a Supressão do Vício e a Anti-Sallon League tiveram papel central
na edição de legislações de forte viés moralista68. Como pontua Júlio Delmanto,
essas iniciativas da sociedade puritana estadunidense tinham também forte
conteúdo racista e xenófobo, além de serem convenientes às necessidades da
indústria da época:
São do começo do século XX as raízes da atual conjuntura
proibicionista. Interessada no aproveitamento máximo da força de
trabalho, a coerção industrial estabeleceu como principais alvos o
sexo e as drogas, inclusive o álcool. É daí que vêm as proibições
estadunidenses contra a venda e consumo de ópio (1909), cocaína e
heroína (1914) e finalmente das bebidas alcoólicas, com a famosa Lei
Seca de 1919. Além da questão econômica, em tal onda
proibicionista havia explícita conotação racista, iniciada com o
Decreto de Expulsão de Chineses em 1882, e a consequente
estigmatização do ópio como agente agressor da cultura e da moral
68 RODRIGUES, Thiago. Política e drogas nas Américas. São Paulo: EDUC: FAPESP, 2004, pp. 42-44.
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estadunidense. O álcool era associado à população negra, e a
fusão dos dois (álcool + negros) também seria um grande risco
a ser combatido.69
88. O proibicionismo estadunidense começou a ensaiar uma
hegemonia para além de suas fronteiras em 1909 com a Conferência de Xangai,
que recomendou limitações ao comércio de ópio e seu uso não médico,
posteriormente ratificada pela Primeira Convenção do Ópio em 1912, em Haia.
Àquelas se seguiram as Convenções de Genebra de 1925, 1931 e 1936. Embora
sem caráter cogente, as deliberações dessas convenções iniciaram a
consolidação em nível mundial de uma estratégia de controle sobre certas
substâncias que culminou com a atual política baseada nas inicialmente citadas
três convenções da Organização das Nações Unidas.
89. Dado o insucesso da política repressiva em refrear o uso e o
comércio das drogas ilícitas, é discurso corrente que a chamada “guerra às
drogas” fracassou. O criminólogo Alessandro Baratta, porém, questionava esse
fracasso. Afirmava que “um discurso, de fato, científico, deve tomar em
consideração não apenas as funções declaradas das instituições [...], como,
também, as funções latentes, mas reais, que na verdade se cumprem”70.
69 DELMANTO, Júlio. Camaradas caretas – drogas e esquerda no Brasil após 1961. Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para a obtenção do título de Mestre em História Social. São Paulo, 2013, pp. 19-20. Grifou-se. 70 BARATTA, Alessandro. Introdução a uma sociologia da droga. In: MESQUITA, Fábio. BASTOS, Francisco Inácio. Drogas e AIDS: estratégias de redução de danos. São Paulo: HUCITEC, 1994, p. 34.
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90. Em verdade, como indica a análise das origens do modelo
proibicionista, é função latente da guerra às drogas ocultar populações
marginalizadas, formas de relação com o tempo e com a consciência e
práticas culturais não hegemônicas, pois inadequadas ao paradigma moderno
de racionalidade e produtividade, impondo de forma violenta um modelo
de ser humano que nega a possibilidade de ser “outro”. Neste contexto,
o usuário de drogas é um não-sujeito, alguém que tem negado o direito de
ser o que deseja ser, de ter sua identidade preservada e respeitada e,
consequentemente, ter autonomia sobre seu corpo e consciência, de
delinear como bem entende seu projeto de vida, sem que isto cause prejuízo
a outras pessoas.
91. Na mesma perspectiva a Corte Constitucional argentina
fundamentou a inconstitucionalidade da criminalização de usuários de
drogas declarada no caso Arriola, Sebastián y otros: pela violação à dignidade
humana, fazendo referência a julgado anterior, o caso Gramajo (Fallos:
329:3680), verbis:
En un Estado, que se proclama de derecho y tiene como premisa el
principio republicano de gobierno, la Constitución no puede
admitir que el propio Estado se arrogue la potestad -
sobrehumana- de juzgar la existencia misma de la persona, su
proyecto de vida y la realización del mismo, sin que importe a
través de qué mecanismo pretenda hacerlo, sea por la vía del
reproche de la culpabilidad o de la neutralización de la peligrosidad,
o si se prefiere mediante la pena o a través de una medida de
seguridad [...].
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92. Essa negação de dignidade provoca graves consequências àqueles
usuários que, eventualmente, precisem buscar tratamento de saúde por abuso
de drogas e acabam por não fazê-lo por conta mesmo da criminalização7172 –
há, aqui, violação ao que Alessandro Baratta apontava como princípio da
racionalidade do direito penal, tendo em vista que os “benefícios” da
proibição são evidentemente menores que os custos sociais que ela impõe73.
93. De acordo com Enrique Dussel essa modernidade de enunciado
libertador porém excludente se justifica através de um mito sacrificial. Para o
autor, nessa perspectiva de modernidade,
por um lado, se autodefine a própria cultura como superior, mais
“desenvolvida” [...]; por outro lado, a outra cultura é determinada
como inferior, rude, bárbara, sempre sujeito de uma “imaturidade”
culpável. De maneira que a dominação (guerra, violência) que é
exercida sobre o Outro é, na realidade, emancipação, “utilidade”,
“bem” do bárbaro que se civiliza, que se desenvolve ou
“moderniza”. Nisto consiste o “mito da Modernidade”, em vitimar
o inocente (o Outro) declarando-o a causa culpável de sua própria
vitimação e atribuindo-se ao sujeito moderno plena inocência com
respeito ao ato sacrifical. Por último, o sofrimento do conquistado
(colonizado, subdesenvolvido) será o sacrifício ou o custo necessário
da modernização. Segue-se a mesma lógica na Conquista da América
71 Artur Domosławski aponta que em Portugal “a criminalização fazia com que alguns consumidores de drogas sentissem medo de pedir ajuda médica com receio de punição, ou com medo de um registro criminal que lhes traria dificuldades em termos laborais e de inserção na sociedade”. DOMOSŁAWSKI, Artur. Política da droga em Portugal: os benefícios da descriminalização do consumo de drogas. Varsóvia: Open Society Foundations: 2011, p. 24. Disponível em: <http://goo.gl/TS2zR7>. Acesso em: 7 abr. 2015. 72 Como observou o Ministro Zaffaroni em seu voto no caso Arriola, Sebastián y otros, "el procesamiento de usuario [...] se convierte en un obstáculo para la recuperación de los pocos que son dependientes, pues no hace más que estigmatizarlos y reforzar su identificación mediante el uso del tóxico, con claro perjuicio del avance de cualquier terapia de desintoxicación y modificación de conducta que, precisamente, se propone el objetivo inverso, esto es, la remoción de esa identificación en procura de su autoestima sobre la base de otros valores.” 73 BARATTA, Alessandro. Op. cit. p. 33.
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como na guerra do Golfo (onde as vítimas foram os povos indígenas
e do Iraque).74
94. E acrescentamos: segue-se a mesma lógica também na guerra
às drogas, que igualmente busca legitimação através do discurso salvacionista.
Neste caso o mito está expresso na negação dos direitos mais elementares
do usuário de drogas, tais como o direito à liberdade e à igualdade. Por um
crime sem vítima está ele mesmo vitimado e declarado culpado, com a
justificativa de que está sendo salvo de sua destruição.
95. O modelo jurídico-institucional proibicionista atualmente
predominante, construído sobre uma concepção excludente de modernidade,
nega a possibilidade de outras práticas socioculturais ao criminalizá-las,
contrariando o princípio de direitos humanos da igualdade (insculpido no
art. 5º, caput, da Constituição), constituído pelo direito à diferença.75
96. Alexandre Bizzoto e Andréia de Brito Rodrigues dizem que “a
criminalização do porte de substância entorpecente dá uma bofetada no
respeito ao ser diferente, invadindo a opção moral do indivíduo”. Para os
autores
74 DUSSEL, Enrique. 1942 – o encobrimento do outro – a origem do mito da modernidade. Tradução de Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 1993, pp. 75-76. 75 Boaventura de Sousa Santos sintetiza bem a relação dialética entre igualdade e diferença ao afirmar que “as pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza”. SOUSA SANTOS, Boaventura de. Uma concepção multicultural de direitos humanos. Lua Nova, São Paulo, n. 39, 1997, p. 122.
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[h]á uma nítida reprovação a quem não segue o padrão imposto. Há
uma espécie de eliminação social dos que não são iguais [...].
Cabe ao ser humano, desde que não interfira nos desígnios de
terceiros e os lesione, de maneira individual, escolher e traçar os
caminhos que mais lhe convém. Ao se reprovar o uso,
criminalizando o porte, a sociedade invade seara que não é
constitucionalmente sua. Assim fazendo, desrespeita as opções
individuais e estigmatiza o ser diferente pela simples razão de
este não se revestir da crença do que seria correto [...]. A
Constituição exige tolerância com quem seja assim, sem exigir
padrões de moralidade aos diversos grupos existentes, dentre eles os
que usam drogas.76
97. Pierpaolo Bottini prefere falar em pluralidade, afirmando violação
ao art. 1º, V, da Constituição. Pluralidade que, para o autor, significa “a
tolerância no mesmo corpo social de diferentes mundos de vida, estilos, ideologias
e preferências morais, respeitadas as fronteiras do mundo de vida dos outros.” E
continua:
Os princípios da dignidade e da pluralidade limitam o uso do direito penal
como instrumento de controle social ou de promoção de valores
funcionais. Em sendo esta a faceta mais grave e violenta da manifestação
estatal, sua incidência se restringe à punição de comportamentos que
violem esta liberdade de autodeterminação do indivíduo, que maculem este
espaço de criação do mundo de vida.
Nesse sentido, a definição do espaço de legitimidade do direito penal exige
do intérprete da Constituição o reconhecimento de que
comportamentos praticados dentro do espaço de autodeterminação do
indivíduo, sem repercussão para terceiros — ou seja, que não afetem
a dignidade de outros membros do corpo social — não têm relevância
penal.77
76 BIZZOTO, Alexandre; RODRIGUES, Andreia de Brito. Nova lei de drogas: comentários à lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 41. Grifou-se. 77 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Op. cit.
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98. Todos os argumentos até aqui apresentados convergem
inegavelmente para a incompatibilidade entre a Constituição e a criminalização
das condutas de quem, para consumo pessoal, “adquirir, guardar, tiver em depósito,
transportar ou trouxer consigo”, bem assim a de quem, também para consumo
pessoal, “semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade
de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica”, contidas no
caput e § 1º do art. 28 da Lei n. 11.343/2006, pelo que se requer seja declarada
inconstitucional a norma incriminadora.
III. DA INCONSTITUCIONALIDADE DOS CRITÉRIOS DE DISTINÇÃO
ENTRE A TIPIFICAÇÃO DO PORTE PARA CONSUMO PRÓPRIO E DO
TRÁFICO (art. 28, § 2º, da Lei n. 11.343/2006)
99. Como longamente discorrido, o elemento subjetivo do tipo penal
do art. 28 da Lei de Drogas delimita a conduta do usuário de drogas, indicando
como bem jurídico tutelado pela norma a saúde individual. Ocorre que a
conduta descrita no art. 33 da mesma lei, que tipifica o crime de tráfico, guarda
estreita semelhança com aquela atribuída a quem tem ou semeia drogas para
consumo próprio, verbis:
Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar,
adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito,
transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar,
entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente,
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sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou
regulamentar:
Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500
(quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I - importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe
à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo
ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em
desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima,
insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas;
II - semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em
desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que
se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas;
III - utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a
propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente
que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização
ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o
tráfico ilícito de drogas.
100. Em que diferem as condutas atribuídas a traficante e usuário
quando se adquire, tem em depósito, transporta, trazer consigo ou guardar
drogas, ou se semeia, cultiva ou faz a colheita de plantas proscritas? Justamente
no elemento subjetivo do tipo a cada uma agregado: o usuário realiza a
condutas com a finalidade de consumo próprio, o traficante com o propósito
de mercancia. Pelo menos este deveria ser o critério de distinção entre as
tipificações.
101. Ocorre que o legislador ordinário optou indicar no parágrafo
segundo do art. 28 critérios outros. O dispositivo, caso não declarado
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inconstitucional por arrastamento dada sua relação de acessoriedade e
instrumentalidade com o caput, é de todo inconstitucional em razão de violar
ele mesmo princípios constitucionais. Eis o dispositivo:
§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o
juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida,
ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às
circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos
antecedentes do agente.
102. Salo de Carvalho critica os critérios porque de viés objetivo, porém
que avançam sobre a esfera subjetiva do tipo penal, daí que, segundo ele,
inconstitucionais. Justifica o autor:
É que definições desta natureza acabam por destoar da própria
lógica do sistema dogmático da teoria constitucional do delito,
substancialmente porque intentam absolutizar critérios objetivos
de forma a induzir a esfera subjetiva do tipo. A partir de
conjunturas fáticas que caracterizariam os elementos objetivos
(circunstâncias de tempo, local e forma de agir) ou de características
pessoais do autor do fato (antecedentes e circunstâncias pessoais e
sociais), são projetados dados de imputação referentes à
integralidade da tipicidade, olvidando seu aspecto mais
importante, o elemento subjetivo do tipo (dolo).78
103. Com efeito, uma teoria do delito somente pode ser
constitucionalmente válida caso adequada ao princípio da culpabilidade,
pelo qual não há crime nem pena sem culpa (nullum crimen, nulla poena sine culpa),
que se constitui limitador ao poder estatal de delinear a infração e de impor
78 CARVALHO, Salo de. Op. cit. pp. 204-205. Grifou-se.
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a sanção – caso contrário se estaria admitindo que possível responsabilidade
penal objetiva.
104. Esta Corte, por unanimidade, no julgamento do HC 74.983 em 30
de junho de 1997, assentou que é, sim, de índole constitucional o princípio
da culpabilidade. Em seu voto o ministro relator Carlos Velloso apontou que
não é outra a conclusão que se tem de uma interpretação sistemática do que o
texto constitucional indica nos incisos XXXIX, XL, XLV e XLVI, do art. 5º,
verbis:
A ação do homem, que se diz delituosa, há de ser, além de típica e
antijurídica, também culpável, constituindo esta o elemento
subjetivo do delito. É dizer, “o resultado lesivo ao direito,
oriundo da ação do sujeito ativo, há de ser-lhe atribuído a título
de culpa, em sentido amplo, isto é, dolo ou culpa”, sem
possibilidade de o indivíduo ser responsabilizado
objetivamente, dado que “triunfante de há muito o princípio nullum
crimen sine culpa”. (Magalhães Noronha, “Direito Penal”, Saraiva, 27ª
ed., 1990, I/99).
A Constituição não tem um texto expresso a respeito do tema.
Ele deflui, na verdade, do espírito liberal da Constituição, que
pode ser aferido do princípio do nullum crimen sine lege (C.F., art. 5º,
XXXIX), do princípio da não retroatividade da lei, em direito penal,
salvo para beneficiar o réu (C.F., art. 5º, XL), dos princípios de que
a pena não passará da pessoa do condenado (C.F., art. 5º, XLV) e da
individualização da pena (C.F., art. 5º, XLVI). A responsabilidade
penal subjetiva é a marca do direito penal liberal.
105. Assim sendo, numa teoria do delito construída sobre balizas
constitucionais democráticas a conduta que compõe fato típico deve
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necessariamente estar agregada de elemento subjetivo – é imprescindível
que exista elemento subjetivo para que esteja configurada a infração penal.
106. Disto decorre também que elementos objetivos não podem
ser subjetificados como faz o § 2º do art. 28 da Lei de Drogas que substitui
por elementos objetivos o elemento subjetivo – a finalidade de consumo
pessoal na configuração do crime de porte para consumo pessoal ou o intuito
de mercancia caracterizador do crime de tráfico – como critério de
tipificação. É que, como conclui Salo de Carvalho, a diferenciação entre as
condutas somente pode ser feita a partir do elemento subjetivo do tipo. Diz o
autor:
Neste quadro, os dados apresentados como idôneos à
classificação da conduta pela autoridade judicial previstos no art.
28, § 2º da Lei de Entorpecentes, tais como quantidade, local e
antecedentes, podem apenas sugerir e indicar a incidência dos
tipos penais do art. 33 ou do art. 28. Nunca, porém, definir o
juízo de imputação como se tais critérios fossem únicos e
exclusivos, exatamente por se tratarem de elementos objetivos
do tipo. Como referido, a diferenciação entre condutas como
adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo
drogas, deve ser estabelecida a partir do dolo, especificamente
o elemento finalidade, qual seja, uso próprio ou compartilhado
ou mercancia.79
107. Contudo não somente por esta razão o dispositivo padece de
inconstitucionalidade. É que além da eleição de elementos objetivos como
critério de tipificação também indica que características próprias do agente
79 CARVALHO, Salo de. Op. cit. pp. 205-206. Grifou-se.
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(circunstâncias pessoais e sociais) ou fatos pretéritos desconectados da
conduta (antecedentes80) servirão ao juízo de imputação, o que não se
coaduna com os princípios da individualização (art. 5º, XLVI, da
Constituição), da não perpetuidade das penas (art. 5º, XLVII, alínea “b”, da
Constituição), da legalidade, da igualdade e da dignidade da pessoa
humana. Uma opção clara pelo nefasto direito penal do autor, que de
acordo com Nilo Batista e Eugenio Raúl Zaffaroni “supõe que o delito seja
sintoma de um estado do autor, sempre inferior ao das demais pessoas
consideradas normais.”81
108. Não é novidade que o sistema penal – entendido como o grupo de
instituições incumbidas da realização do direito penal – opera de modo seletivo
ao exercer a ação punitiva (criminalização secundária)82, porém quando
analisado o contingente de pessoas presas acusadas de tráfico de drogas a
seletividade das agências criminalizadoras é ainda mais evidente.
109. Pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos da Violência da
Universidade de São Paulo (NEV/USP) e publicada em 2011 com o título
Prisão Provisória e Lei de Drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na
cidade de São Paulo mostrou que o perfil dos acusados representa parcela bastante
específica da população: homens, jovens entre 18 e 29 anos, pardos e negros,
80 Não obstante grande parcela dos presos acusados de tráfico sejam primários, consoante apontado a seguir no parágrafo 109. 81 ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo. Direito penal brasileiro: primeiro volume. Teoria geral do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006. p. 131. 82 Cf. ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo. Op. cit. pp. 43-60,
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com escolaridade até o primeiro grau completo e sem antecedentes
criminais.83
110. A mesma pesquisa apontou que a condição socioeconômica
pode ser fator determinante de diferenciação entre traficante e usuário. Um
juiz entrevistado durante o estudo afirmou que uma pessoa de classe média
pode levar consigo maior quantidade de drogas que uma pessoa pobre.
No mesmo sentido um delegado, de modo bastante enfático:
A diferença é estabelecida de acordo com o poder aquisitivo do
apreendido. Se ele tem poder aquisitivo alto e é pego com 10
papelotes, ele pode ser usuário. Já se uma pessoa de poder
aquisitivo baixo é pego com a mesma quantidade é mais fácil
acreditar que ele seja traficante, pois ele não tem capacidade
financeira de comprar a droga.84
111. Também a pesquisa Impacto da assistência jurídica a presos provisórios:
um experimento da cidade do Rio de Janeiro, feita com presos provisórios mantidos
em delegacias do Rio de Janeiro os anos de 2010 e 2011, indicou a seletividade
na aplicação da Lei de Drogas:
Ora, quem acompanha o funcionamento do sistema de justiça
criminal no Brasil sabe que o exame das “circunstâncias sociais e
pessoais” é uma brecha para a rotulagem segundo atributos
econômicos e sociorraciais, que tem levado jovens pobres,
sobretudo negros, sem recursos para pagar advogados, ao
encarceramento por tráfico, enquanto outros jovens, com a
mesma quantidade de drogas mas com melhores “circunstâncias
83 JESUS, Maria Gorete Marques de. (Coord). Prisão Provisória e Lei de Drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo. [recurso eletrônico] / Maria Gorete Marques de Jesus, Amanda Hildebrando Oi; Thiago Thadeu da Rocha; Pedro Lagatta; Coordenador: Maria Gorete Marques de Jesus. São Paulo: NEV/USP, 2011. p. 122. Disponível em: <http://goo.gl/8nkweo>. Acesso em: 27. abr. 2015. p. 122. 84 Idem. p. 114. Grifou-se.
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sociais e pessoais”, são enquadrados como usuários e não
submetidos à prisão.85
112. Nilo Batista e Eugenio Raúl Zaffaroni, quando citam o professor
suíço Peter Lewisch (Verfassung und Strafrecht: Verfassungsrechtliche Schranken der
Strafgesetzgebung. Viena: Taschenbuch, 1993. p. 162.), afirmam que “o princípio
constitucional da isonomia (art. 5º CR) é violável não apenas quando a lei
distingue pessoas, mas também quando a autoridade pública promove uma
aplicação distintiva (arbitrária) dela”. Neste sentido, a tipificação de condutas
a partir de circunstâncias pessoais e sociais do agente é, sem dúvida,
violação ao princípio constitucional apontado.
113. Não se desconhece que refoge à competência do Tribunal e a ao
objeto da presente via a correção da atuação das agências de criminalização
secundária, contudo a ilegítima seletividade operada pelo próprio ato
normativo impugnado pode e deve ser objeto de controle de
constitucionalidade – e isto para dar mesmo efetividade à decisão da Corte
que vier a declarar a inconstitucionalidade do art. 28 da Lei n.
11.343/2006.
114. É que se em tese a Nova Lei de Drogas despenalizou a conduta de
usuários, na prática uma grande parcela deles é presa como traficante
85 LEMGRUBER, Julita; FERNANDES, Marcia. Impacto da assistência jurídica a presos provisórios: um experimento da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Associação pela Reforma Prisional / Open Society Foundations, 2012. pp. 10-11. Disponível em: <http://goo.gl/FQhNCw>. Acesso em: 27. abr. 2015. Grifou-se.
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justamente por conta dos inconstitucionais critérios de diferenciação – como
parece ter sido o caso da condenação atacada pelo inicialmente citado HC
123.221 em cujo julgamento a 2ª Turma deste Tribunal absolveu à
unanimidade um homem condenado a 4 anos 2 meses por tráfico que fora
flagrado com a ínfima quantidade de 1,5 grama de maconha.
115. De acordo com a citada pesquisa do NEV/USP realizada com 667
(seiscentos e sessenta e sete) autos de flagrante por tráfico de drogas ocorridos
na cidade de São Paulo entre novembro de 2010 e janeiro de 2011, “em cerca
de 7% dos casos a pessoa ficou presa durante todo o processo e, ao final,
houve desclassificação de porte para uso.”
116. Não obstante esta Corte tenha declarado em maio de 2012 a
inconstitucionalidade do art. 4486 da Lei de Drogas que vedava a concessão de
liberdade provisória nos casos de tráfico, a realidade mostra que esta ainda é
prática constante em casos que tais.
117. Pesquisa realizada com a análise de processos que tiveram sentença
com trânsito em julgado no segundo semestre de 2012, nas cidades de
Brasília, Salvador e Curitiba, mostra que cerca de 10% dos presos acusados
86 “O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, declarou, incidenter tantum, a inconstitucionalidade da expressão “e liberdade provisória”, constante do caput do artigo 44 da Lei nº 11.343/2006, vencidos os Senhores Ministros Luiz Fux, Joaquim Barbosa e Marco Aurélio.” (HC 104339, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 10/05/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-239 DIVULG 05-12-2012 PUBLIC 06-12-2012)
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de tráfico tiveram a conduta desclassificada para porte para consumo
próprio. Em grande parte das vezes os usuários responderam ao processo
com a liberdade constrita.
118. Para Rafael Garcia, autor da pesquisa, não é mesmo verdade que
com o advento da Lei n. 11.343/2006 o usuário de drogas não é mais
sancionado com pena privativa de liberdade. Segundo ele,
Dizer que o usuário não é mais preso é uma falácia. Como se
observa nos processos analisados, há um número razoável de
usuários que são submetidos à prisão processual, tendo suas
condutas desclassificadas apenas na sentença, momento em que
recebem também o alvará de soltura.87
119. A afirmação ganha relevo quando observados os números da
recentíssima pesquisa realizada pela Defensoria Pública do Estado da Bahia sob
coordenação do Defensor Público Daniel Nicory. Intitulado 1º Anuário
Soteropolitano da Prática Penal, o estudo feito com 468 (quatrocentas e sessenta e
oito) processos em tramitação nas Varas de Tóxicos da Justiça Comum
Estadual da Bahia mostrou um percentual médio de 17,73% de
desclassificações de tráfico para porte para consumo próprio. Considerada a
natureza da droga a desclassificação chega a 18,75% entre os flagrados
portando cocaína, 20% em casos envolvendo apreensão de maconha e
87 GARCIA, Rafael de Deus. O uso da tecnologia e a atualização do modelo inquisitorial: gestão da prova e violação de direitos fundamentais na investigação policial na política de drogas. Dissertação a ser apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília para a obtenção do título de Mestre em Direito, Estado e Constituição. Brasília: UnB, 2015. p. 140.
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23,21% cocaína na forma de crack88 – a o que mostra que não é falsa a
impressão externada pelo Ministro Roberto Barroso de que jovens
negros e pobres estão sendo injustamente presos e que a Lei de Drogas
tem contribuído decisivamente para o abarrotando o sistema carcerário.
120. Tem-se, portanto, que a declaração de inconstitucionalidade do §
2º, do art. 28 da Lei de Drogas, em razão de sua relação de acessoriedade ou
instrumentalidade com o caput, é condição de efetividade da decisão que vier
a dar provimento ao recurso. Com efeito, de nada adiantará o expurgo da
criminalização de usuários de drogas se o aparato institucional de
repressão continuar, com fundamento em dispositivo legal incompatível com
a Constituição ou por vácuo normativo resultante da declaração de
inconstitucionalidade, a encarcerá-los em massa.
121. Mas não é só. Muito embora, como aduzido, os critérios de
quantidade e natureza da droga apreendida não possam substituir o elemento
subjetivo caracterizador do tipo penal (se tráfico ou porte para consumo) em
subversão de uma teoria constitucional do delito, uma vez tomados como
elementos objetivos (que realmente são) nos estritos termos do dispositivo
impugnado ainda assim não estão adequados, ante sua vagueza, a um
regime penal democrático e de garantias.
88 NICORY, Daniel (Coord). 1º Anuário soteropolitano da prática penal. Salvador: DPE-BA / ESDEP, 2015. pp. 13/71. Disponível em: <http://goo.gl/AFE9SH>. Acesso em 27 abr. 2015.
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122. São, portanto, inconstitucionais os elementos objetivos de
quantidade e natureza da droga porque não estabelecem parâmetros
mínimos que criem presunção juris tantum de porte para consumo, em violação,
assim, ao princípio da legalidade. Como afirma Luciana Boiteux, com a Lei n.
11.343/2006
persiste na lei a ausência de uma diferenciação clara entre uso
e tráfico. Pelos critérios legais, esta deve se dar levando-se em conta
a quantidade, natureza (ou qualidade) da droga, além de outros
elementos, como lugar e outras circunstâncias objetivas, além das
subjetivas, como antecedentes, circunstâncias sociais e pessoais
(segundo o art. 28, § 2.º). Com tais critérios extremamente vagos,
e de difícil aplicação, a distinção no caso concreto acaba sendo feita
pela primeira autoridade que tem contato com o acusado,
prevalecendo a visão subjetiva desta, sendo excessivamente ampla
a discricionariedade concedida ao policial. O grande problema, e
que viola, inclusive, os princípios constitucionais da legalidade
e da proporcionalidade é a ausência, na norma, de uma
distinção legal apriorística, o que prejudica sobremaneira a
defesa do acusado. Assim, considera-se inconstitucional essa
opção legislativa ao deixar propositalmente em aberto tal
distinção, justamente pela ausência de garantias legais que
limitem a intervenção estatal com relação ao usuário.89
123. Por todos os argumentos expostos, caso não declarado
inconstitucional por arrastamento, também inconstitucional o § 2º, do art. 28
da Lei n. 11.343/2006, que estabelece ilegítimos critérios de distinção entre a
tipificação do porte para consumo próprio e do tráfico, pelas violações à
Constituição que ele mesmo promove.
89 BOITEUX, Luciana. Drogas e cárcere: repressão às drogas, aumento da população penitenciária brasileira e alternativas. In: Drogas uma nova perspectiva. Sérgio Salomão Shecaira (Org). Coleção Monografias, n. 66. São Paulo: IBCCRIM, 2014. p. 90.
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IV. DOS EFEITOS DA DECISÃO
124. Uma vez declarada a inconstitucionalidade do art. 28, da Lei de
Drogas, restará atípica a conduta de quem “adquirir, guardar, tiver em depósito,
transportar ou trouxer consigo”, bem assim a de quem “semeia, cultiva ou colhe plantas
destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar
dependência física ou psíquica”, tudo quando “para consumo pessoal” – ou,
genericamente, a conduta de porte de drogas para consumo próprio.
125. Por outro lado, pode-se criar lacuna jurídica ameaçadora, vácuo
normativo potencialmente mais pernicioso que a própria inconstitucionalidade
ora atacada – por exemplo, critérios ainda mais abstratos podem servir a
criminalizar usuários como se traficantes fossem. É necessária, portanto, a
utilização de técnicas manipulativas da decisão.
126. Consoante já articulado, os elementos objetivos contidos no § 2º
do art. 28 da Lei de Drogas são inconstitucionais numa leitura que os faça
substituir o elemento subjetivo para configuração do tipo penal (destinação
para consumo próprio ou mercancia) a ponto de mesmo se prescindir dele.
Como afirma Salo de Carvalho,
Lógico que, no caso concreto, tanto nas questões de trânsito como
nas relativas ao porte de drogas, as dificuldades probatórias em
relação aos elementos do dolo (representação, previsibilidade,
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anuência e vontade) são inúmeras. Todavia estas dificuldades
empírico-processuais não podem, de forma alguma, gerar tendências
objetificantes cujos efeitos são tornar prescindível (Streck) ou
elástico (Wunderlich) o elemento subjetivo.90
127. Todavia podem, sim, ser tomados como elementos objetivos
que são, desde que, no caso específico dos elementos quantidade e
natureza da droga, existam parâmetros mínimos na norma penal.
128. Em outros países são adotadas quantidades mínimas, relacionadas
à natureza da droga, estabelecidas em lei, por atos de órgãos sanitários ou
mesmo por construção jurisprudencial, com o objetivo de presumir-se o
consumo pessoal. Na Espanha, por exemplo, seu Tribunal Supremo
estabeleceu referenciais quantitativos para a diferenciação entre o delito de
tráfico e a conduta atípica de porte para consumo próprio91.
129. Pode-se ter solução ao presente caso, portanto, com decisão que
dê interpretação conforme à Constituição aos critérios de quantidade e
natureza da droga para considerá-los elementos objetivos do tipo penal de
tráfico, decisão esta manipulativa de efeito aditivo que estabeleça
90 CARVALHO, Salo de. Op. cit. p. 207. 91 Sobre os parâmetros quantitativos de diferenciação conferir SANTOS, María Encarnación Mayán. La importancia de la cantidad y composición en los delitos relativos a drogas tóxicas, estupefacientes y sustancias psicotrópicas. Revista Jurídica de la Faculdad de Derecho de la Universidad Católica de Santiago de Guayaquil. Edición 23, tomo 2. Guayaquil: 2007. Disponível em: <http://goo.gl/s4Auyf>. Acesso em 28 abr. 2015.
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referenciais quantitativos, considerada a natureza da droga, para a
diferenciação entre as condutas.
130. Adverte-se, avançando-se na posição de Salo de Carvalho92, que
não se postula, com a introdução de critérios quantitativos de diferenciação
entre porte para consumo pessoal e comércio, a objetificação dos elementos do
tipo penal. A caracterização do tráfico continuará a incorporar necessariamente
a finalidade de mercancia (dolo específico, elemento subjetivo do tipo), porém
a introdução na norma de dados quantitativos fornecerá a possibilidade de
considerar-se, a priori, atípica a conduta de porte para consumo próprio, criando
presunção sobre os limites das condutas, contudo sem que se prescinda
do elemento subjetivo do tipo de tráfico: até o limite estabelecido haverá
presunção de consumo, conduta atípica; a partir do parâmetro deverá ser
avaliado o dolo específico.
131. Pede-se ao Tribunal que por meio de sentença aditiva de garantia
imponha ao Estado uma abstenção, um dever de não fazer que crie condições
para que o direito conformado a partir da própria decisão se harmonize com a
Constituição da República: não puna conduta atípica e, para tanto, estabeleça
parâmetros quantitativos.
92 CARVALHO, Salo de. Op. cit. pp. 217-218. Grifou-se.
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V. DOS PEDIDOS
132. Por tudo o que exposto e nestes termos a ASSOCIAÇÃO
BRASILEIRA DE LÉSBICAS, GAYS, BISSEXUAIS, TRAVESTIS E TRANSEXUAIS
– ABGLT pede que seja dado provimento ao recurso extraordinário.
Espera deferimento.
Brasília/DF, 10 de agosto de 2015.
RODRIGO MELO MESQUITA
OAB/DF 41.509