97672061 Olavo de Carvalho O Jardim Das Aflicoes PDF

download 97672061 Olavo de Carvalho O Jardim Das Aflicoes PDF

If you can't read please download the document

Transcript of 97672061 Olavo de Carvalho O Jardim Das Aflicoes PDF

O JARDIM DAS AFLIES4 OLAVO DE CARVALHOOBRAS DE OLAVO DE CARVALHO 1. Universalidade e Abstrao e Outros Estudos. So Paulo, Speculum, 1983 2. O Crime d a Madre Agnes ou: A Confuso entre Espiritualidade e Psiquismo. So Paulo, Speculum, 1983 3. Astros e Smbolos So Paulo, Nova Stella, 1983 4. Smbolos e Mitos no Filme O Silncio dos Inocentes. Rio, IAL & Stella Caymmi, 1993 5. Os Gneros Literrios: Seus F undamentos Metafsicos. Rio, IAL & Stella Caymmi, 1993 6. O Carter como Forma Pura da Personalidade. Rio, Astroscientia Editora, 1993 7. A Nova Era e a Revoluo Cultu ral: Fritjof Capra & Antonio Gramsci. Rio, IAL & Stella Caymmi, 1994 (1a ed., fe vereiro; 2a ed., revista e aumentada, agosto). 8. Uma Filosofia Aristotlica da Cu ltura: Introduo Teoria dos Quatro Discursos. Rio, IAL & Stella Caymmi, 1994. 9. O Jardim das Aflies. De Epicuro Ressurreio de Csar Ensaio sobre o Materialismo e a Rel gio Civil. Rio, Diadorim, 1995. 10. O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais B rasileiras. Rio, Faculdade da Cidade Editora e Academia Brasileira de Filosofia, 1996 (1a ed., agosto; 2a ed., outubro; 3a ed., abril de 1997 ; 4a , maio de 199 7; 5a , janeiro de 1998; 6a , abril de 1998). 11. Aristteles em Nova Perspectiva. Introduo Teoria dos Quatro Discursos. Rio, Topbooks, 1996. 12. O Futuro do Pensam ento Brasileiro. Estudos sobre o Nosso Lugar no Mundo. Rio, Faculdade da Cidade Editora (1a ed., agosto de 1997; 2a ed., maro de 1998). 13. Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razo. Comentrios Dialtica Erstica de Arthur Schopenhauer. Rio, Topb oks, 1997. 14. A Longa Marcha da Vaca para o Brejo & Os Filhos da PUC. O Imbecil Coletivo II. Rio, Topbooks, 1998.OLAVO DE CARVALHO O Jardim das Aflies DE EPICURO RESSURREIO DE CSAR: ENSAIO SOBRE O M ATERIALISMO E A RELIGIO CIVIL PREFCIO DE BRUNO TOLENTINO Segunda Edio, Revista6 OLAVO DE CARVALHO Copyright 1998 by Olavo de Carvalho Capa e planejamento grfico: Ateli 19 Assessoria em Comunicao R. das Laranjeiras, 531 / 16 F. (021) 225.1806 Fax (021) 245.2920 Rio de Janeiro RJ CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Todos os direitos reservados pela TOPBOOKS EDITORA E DISTRIBUIDORA DE LIVROS LTD A. R. Visconde de Inhama, 58, gr. 413 CEP 20091-000 Rio de Janeiro RJ Tel.: (021) 233.87178 16. Epicuro e Marx ............................................................. ............................. 75 PREFCIO, POR BRUNO TOLENTINO.................... .................................................9 17. Comentrios 11 Tese sobre Feu erbach........................................ 77 18. A tradio materialista ....... ..................................................................... 82 O J ARDIM DAS AFLIES LIVRO I: PESSANHA............................................ ..................... 19 CAPTULO I: A NOVA HISTRIA DA TICA.................................................. ...21 1. Introduo. O que Epicuro veio fazer aqui, ou: Biografia deste livro21 2. A s conferncias do MASP ........................................................... ................ 28 3. Pessanha e o pensamento Ocidental........................ ................................ 31 LIVRO IV: OS BRAOS E A CRUZ..........................................89 CAPTULO VII: O MATERIALISMO ESPIRITUAL........................................... ..91 19. A divinizao do espao (I): Pobres bantos .................................. ...... 91 20. A divinizao do espao (II): O infinito de Nicolau de Cusa ........... 94 21. A divinizao do tempo (I): A fora dos meios.................................. 105 22. A divinizao do tempo (II): Beaux draps.................................... .......114 CAPTULO VIII: A REVOLUO GNSTICA.......................................... ..........120 23. Reviso do itinerrio percorrido ................................. ........................120 24. O vu do templo .................................. .....................................................121 25. Leviat e Beemoth ... ................................................................................ 127 LIVRO II: EPICURO............................................................... ... 51 CAPTULO II: COSMOLOGIA DE EPICURO................................................ .........37 4. Uma profisso-de-f epicurista. A matria segundo Epicuro ............. . 37 5. Um piedoso subterfgio.................................................... .......................... 39 6. A imaginao dos deuses. A eviternidade............ ................................... 41 7. Epicuro crtico de Demcrito.............. ...................................................... 42 CAPTULO III: TICA DE EPI CURO.......................................................................44 8. O remdio de todos os males...................................................... ................ 44 9. A abolio da conscincia...................................... ................................... 46 CAPTULO IV: LGICA DE EPICURO............... .....................................................52 10. A fumaa e o fogo..... ................................................................................ .. 52 11. O convite ao sono .................................................... .................................. 53 12. A Servido Voluntria..................... ......................................................... 56 13. Dos ces de Pavlo v ao lava-rpido cerebral ....................................... 58 CAPTULO V: A ND OLE DO EPICURISMO.........................................................65 14. Porcarias epicreas.............................................................. .................... 65 15. A fuga para o jardim................................ ................................................. 69 LIVRO V: CSAR REDIVIVUS................................................130 CAPTULO IX: A RELIGIO DO IMPRIO.................................................... .....131 26. De Hegel a Comte................................................... .................................131 27. Translatio imperii. Breve histria da idia imperial. ........................133 28. O Imprio contra-ataca ................ ..........................................................147 29. Aristocracia e sacerdcio no Imprio americano (I) .......................149 30. Aristocracia e s acerdcio no Imprio americano (II) ......................159 31. De Wilhelm Meister a Raskolnikov......................................................162 32. As n ovas Tbuas da Lei, ou: O Estado bedel .....................................168 CAPTULO X: NA BORDA DO MUNDO....................................................... ......176 33. Retorno ao MASP e ingresso no Jardim das Aflies..................... ...177 Post-scriptum. LPIDE: DE TE FABULA NARRATUR .............................. ..............194 BIBLIOGRAFIA ................................................. .........................................................196 NDICE ONOMSTICO ..... ................................................................................ ........206 LIVRO III: MARX................................................................. ... 133 CAPTULO VI: A SUBSTITUIO DO MUNDO.................................................7 58 OLAVO DE CARVALHO NOTA DO AUTOR SEGUNDA EDIO pesar dos elogios de Antonio Fernando Borges, Vamireh Chacon, Roberto Campos, Jo su Montello, Herberto Sales, Leopoldo Serran e muitos outros, este livro no merece u do pblico a ateno que se concedeu generosamente a seu irmo menor, O Imbecil Coleti vo. Vai para a segunda edio aps dois anos, quando o companheiro teve quatro em seis meses. No entanto dos dois o melhor e o nico que constitui propriamente um livro , coisa unida e coesa, com comeo, meio e fim, enquanto O Imbecil no passa de uma c oletnea de notas de rodap que no couberam no rodap. Solicitando humildemente a parce la de audincia a que julga ter direito, O Jardim comparece limpo e correto, melho rado em detalhes de l nguagem e sem as gralhas i mais visveis da primeira edio. Mas no aumentado: se h um livro em que o autor disse tudo o que nele queria dizer, es te. S repito o apelo a que o leitor no o leia de vis e saltado, mas pela ordem dos captulos e peo que entenda isto como receita mdica, que, cumprida mal ou imprecisam ente, trar mais dano que benefcio. A OLAVO DE CARVALHOO JARDIM DAS AFLIES 9 PREFCIO BRUNO TOLENTINO e quando em quando na vida do esprito desanuvia-se aquele cu plmbeo e baixo em que Baudelaire via a tampa da marmita na qual, segundo ele, ferve a humanidade. So raros esses momentos, mas de uma clareza prpria a desnudar como nun ca os plos extremos de uma velha e enfumaada questo: ver ou no ver. Quem quer que te nha lido de cabo a rabo este livro h de convir que vive um destes momentos privil egiados. Tanto mais se, como eu, tiver suado frio por semanas sob o peso das cen tenas de impenetrveis pginas que nosso mais reputado e menos aspeado filsofo atual, o anestesiador de geraes uspianas, Dr. Gianotti, dedicou recentemente s investigaes do surrado materialismo lingstico de Wittgenstein. No estou desmerecendo do esforo d e ningum, estou celebrando meu alvio de que a tampa da marmita se tenha afastado d e mim o bastante para deixar-me perceber, no tanto aonde leva o labirinto lingstico do vienense em sua verso paulistana (cest assez que Quintilien lait dit... ), mas onde comeam meus inadiveis problemas de brasileiro acuado h dcadas pela futilidade d o ininteligvel. Soube-o enfim graas claridade que, paradoxalmente, fui encontrar n a lio de trevas deste livro, O Jardim das Aflies. Com efeito, achei-me no plo oposto perplexidade em que vivia durante a leitura que digo?! durante a suadssima minerao que empreendi nas duras e obscuras galerias sublinguais daquele celebrado duo: o asctico autor do Tractatus (ou das Investigations?) e o ex-Papa Doc, atual Papa plido da enrubescedora tropa-de-choque investigada neste jardim de aflies. Afortuna damente neste ltimo, como a tampa que subitamente abandona a marmita, esDperava-me um convite a bem outro tipo de investigaes: as que se ocupam de verifica r o real a partir da inteligncia e dos fatos, nunca a partir dos fatos segundo a intelligentzia. Sedimentado atravs dos sculos pela perspiccia de uma nobre linhagem , esse mtodo de investigar o como e o porque do ser-nomundo, viga mestra de todo esforo de verificao filosfica, tem a vantagem de respeitar os dados do real, inclusi ve os pressupostos do saber acumulados pela tradio, em vez de buscar substitui-los , dados e fatos, pelo mundo-comoidia, inevitavelmente sempre a idia do mundo mais em voga a um certo momento. No momento esse lapso de um tempo mental que no acaba de acabarse ainda, e outra vez acabo de constat-lo at exausto, de estirpe marxista , de marca universitria e de cunho dogmtico-materialista, os trs inseparveis element os da doutssima Trindade que se prope a recriar o mundo. Contra tudo isso, e em pa rticular contra a espcie de Gabinete do Dr. Caligari em que se vai transformando entre ns a veneranda idia de Universidade, insurge-se com toda a lucidez o vigor d este livro. Obra eletrizante, rica e complexa, mas de fcil leitura justamente por causa e no a despeito da formidvel erudio em que se firma. A esse respeito, uma adv ertncia apenas, nica justificativa intruso de um prefcio em obra to lmpida, perfeitam nte capaz de tudo dizer por si mesma. Que o leitor leve em conta o carter, no tant o do autor, ou mesmo de suas idias, mas da tarefa que se props. Refratrio leitura t ransversal ou salteada a que s vezes incita, o argumento central deste aflitivo j ardim evolui maneira de um crescendo para desafiadoramente elucidar-se apenas na s duas partes finais: Os Braos da Cruz e Csar Redivivus so a sstole e a distole do c vo desta obra alarmante. Assim, dos dados de um problema aparentemente sem maior importncia no plano das idias (que importa, a quem de fato pense o mundo, o sufoc ante mundinho dos cortesos e doutores de mais uma trpica Bizncio?), o autor extrai uma estonteante exposio de significaes, numa viso inquietante do sentido universal da aventura da inteligncia moderna. Inclusive, ou sobretudo, de seu sentido cuidado samente oculto.10 OLAVO DE CARVALHO S que, diferena de compndios bem mais ao gosto do dia, este livro no resduo de tese e doutoramento nem se prope a enfeitar a carreira de mais um philosophe local cev ado na massuda monotonia dos gabinetes la page. Ao contrrio, tudo o que aqui vai tem a ver e urgentemente comigo, com voc, leitor, com os que somos e continuamos a ser submetidos a uma contnua barragem de slogans e esoterismos a transpirar int enes nem l to ocultas assim. Claro, o olhar que pe tudo isto a nu vem do olho agudo d e um filsofo nato, ou seja, de um sujeito que no pode no pensar, por menos que assi m fazendo consiga caber nos moldes, invariavelmente aliengenas, de um conhecido e bem mancomunado establishment. Passamos a ver claramente o que por estas bandas nos vem tapando a mente e sufocando o esprito, graas coragem intelectual de um er udito que no se esconde atrs do que sabe, antes nos convida a examinar com ele o q ue investiga, expe, explica. O que certa gente quer e persegue com uma obstinao de cachorro magro, o que andou e anda fazendo em nome da inteligncia como desdentado s lees de circo, ficar perfeitamente claro ao longo do passeio em que nos guia a a gudeza da leitura que Olavo de Carvalho faz da histria das idias no Ocidente. Graas a sua inexaurvel erudio e incontornvel honestidade intelectual, torna-se enfim possv el dar esse passeio para fora das brumas do obscurantismo idealista doubl de peda ntismo acadmico. E d-lo com toda a clareza atravs de um assustador pomar de aflies, o u seja, de imposturas orquestradas como filosofia e penduradas ao nada como amor as de mentirinha. O leitor, ao acompanhar um filsofo de verdade em sua minuciosa e exaustiva investigao de um embuste, s tem a perder suas iluses a respeito da serie dade dos donos da hora, por detrs de suas ctedras como abutres encapuzados em toga s e ttulos. Mas que o leitor no se apresse, no h como tomar esta obra apenas como a hbil ampliao de um panfleto. H que l-lo at seu eletrizante gran finale para perceber t odo o escopo deste livro singular. Seu mtodo de composio, primeira vista paralelo a os procedimentos sinfnicos de um Sibelius, por exemplo, calca-se no entanto em mo delos bem mais antigos e provveis. talvez o primeiro esforo de Olavo de Carvalho p ara pensar em pblico segundosua Teoria dos Quatro Discursos, proposio de seu ensaio pioneiro, Uma Filosofia Ar istotlica da Cultura (IAL & Stella Caymmi Editora, Rio, 1994). Segundo o Aristtele s de Olavo de Carvalho, da esquematizao objetiva que atribui a um conjunto de dado s sensveis uma figura dotada de sentido (Potica), emanariam interpretaes discordante s fortalecidas no confronto das vontades que as apoiam (Retrica). Sobre essa mass a crtica do acmulo dos esforos retricos seria ento possvel o exame dialtico que, confr ntando e hierarquizando, indicaria o sentido de uma soluo racional (Dialtica). S ento tornar-se-ia factvel estabelecer mtodos e critrios propriamente cientficos, capazes de levar a questo a uma resoluo maximamente exata (Lgica). A tarefa especfica do fils ofo seria, portanto, a de colher as questes ao nvel retrico e elabor-las em hipteses formais para as entregar busca de uma soluo lgico-cientfica. Nada de estranhar, assi m, que trabalho to mpar, e em ltima anlise to aterrador quanto o estrilo de um desper tador meia-noite, parta de impresses subjetivas para, atravs do combate retrico, mo ntar as oposies que s na concluso (naquelas duas ltimas partes, ou Livros, no sentido agostiniano) vai-se definitivamente elaborar, um tanto paradoxalmente maneira d e um tutti orchestrale, num conjunto de investigaes dialticas. Longe de constiturem um empecilho ao entendimento, a gnese como a elaborao da obra aqui ajudam muito o l eitor: a mim pareceu-me muitssimo estimulante progredir atravs da multiplicidade de temas e planos que faz a trama compsita deste livro, como nos adverte uma nota do autor. O qual, nisto ao menos, acha-se logo em excelente companhia: no Ocidente a filosofia ps-helnica teve muito cedo entre seus cumes obras como as Confisses de Santo Agostinho, para citar apenas um compsito que primeira vista pouco tem de ost ensivamente filosfico, como o entendem os atuais pupilos do Dr. Caligari. A pedanta ria engordaria bem mais tarde, a presente identificao entre filosofia e adiposidad e de jargo fenmeno to moderno quanto os enlatados de supermercado.O JARDIM DAS AFLIES 11Misto de memrias e ensaio filosfico, de reportagem e panfleto, de poltica e de meta fsica, a leitura deste livro (s antpodas do tijolao com que acaba de brindar-nos o a cima citado mentor de uma filosofia to nativa quanto uma agncia de importaes, ou de substituio de importaes) sua leitura, reafirmo, faz-se por isso mesmo apaixonante e como que compulsiva; seu peso erudito, sem nada perder em densidade, acaba por no pesar. Surpreendente v-lo sair da mesma pena que ainda recentemente nos dava uma rigidssima teoria dos gneros, (v. Olavo de Carvalho, Os Gneros Literrios. Seus Fund amentos Metafsicos, IAL & Stella Caymmi Editora, Rio, 1993). Mas talvez o autor, maneira de todo poeta frente prpria potica, no se tenha dado um cdigo seno para subme t-lo s necessrias infraes do ato criador... Uma conferncia sua semi-indita (A dialti mblica, existente apenas como apostila didtica no Seminrio Permanente de Filosofia e Humanidades do 1 Instituto de Artes Liberais do Rio de Janeiro) ajudou-me a elu cidar algo mais o mtodo deste pensador originalssimo at mesmo na forma a que molda seu discurso. que, ao quanto pude perceber, diferena do modelo hegeliano a dialtic a de Olavo de Carvalho no buscaria uma sntese temporal futura, mas antes recuaria a condies prvias, principiais, a bem dizer. No se trataria aqui do conhecido modelo tese-anttese-sntese, mas sim, em caminho inverso, de um movimento tripartite oposiocomplementao-subordinao. Ou seja: nosso homem parece partir de uma anttese observada no campo dos fatos para hierarquizar os termos opostos e resolv-los no princpio co mum de que emanam. O qual, por natureza, sempre anterior queles termos, ora lgica, ora cronologicamente, e no raro ambas as coisas. At ento eu no havia encontrado est e mtodo aplicado construo de uma sistemtica propriamente filosfica, mas nele pareceume reconhecer a rica tradio da hermenutica simblica. Mais uma surpresa num pensador inclassificvel, e por isso mesmo no meu ver indispensvel hoje, espcie entre ns, e po r conta dos provados e clssicos valores que o forjaram e o sustm. J no hesito mais: tenho o pensamento de 1 Olavo de Carvalho por paradoxalmente intemporal e atualssimo, spero e lcido, insubm isso e frtil para muito alm das meras conjunturas de nossa douta e crnica tropicali dade atvica. Sua forma mentis foi evidentemente forjada a fogo, no corpo a corpo do autodidata sem alternativas num pas ocupado pela legio dos ressentidos ou pelos batalhes de imbecis, como ao tempo da formao intelectual do autor era cronicamente o nosso, por dcadas entre o fuzil da Redentora e o realejo utopista de nossa inc urvel e festiva intelligentzia. Sim, Olavo de Carvalho (parece incrvel naqueles te mpos de tanta seca!), a exemplo de Machado de Assis, Capistrano de Abreu Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Lus da Cmara Cascudo, Joo Cabral de Melo Neto, Mrio Ferreir a dos Santos, Miguel Reale, Caio Prado Jr. e tantos outros espritos livres da raa, teve que aprender quase sozinho a imensido do que hoje sabe, e talvez por isso m esmo o tenha sabido inscrever no mrmore candente da mais limpa tradio letrada do Oc idente 2. Leitor multilinge, incansvel e metdico, partiu very advisely do seu e nos so Pai de Todos , Aristteles, saudou e desnudou os belos fantasmas do platonismo, passou reverente pela nata da sabedoria escolstica de Sto. Toms de Aquino a Leibni z, aportou a Schelling e a Husserl, estes dois gigantes modernos, para chegar de olho aberto a Kurt Gdel e a ric Weil, pelo que me pareceu perceber. Per strada ci rcunvolteou sabiamente seja o pot-pourri liliputiano dos hoje inmeros e celebrado s philosophes, seja o etreo campo minado do gunonismo, sem pisar-lhes a uns e outr os seus explosivos ovos de cobra, thank God! Resta que nada disto aceitvel, menos ainda familiar, ao nosso encruado marxismo universitrio, como se v. Como se tem v isto, tal receita prpria antes ao recebimento de aspas aposto ao seu justssimo ttul o de filsofo, muito mais merecido que aos diplomas, PhDs, ctedras, honrarias, subv en2 Reproduzida no volume A Dialtica Simblica. Ensaios, I, em curso de publicao pela Fac uldade da Cidade Editora.E no s no Brasil que a decadncia das universidades acaba por revalorizar o autodida tismo: A todos os meus melhores alunos de graduao eu digo para no cursarem ps-graduao. Faam qualquer outra coisa, garantam a sobrevivncia do jeito que for, mas no como pr ofessores universitrios. Sintam-se livres para estudar literatura por conta prpria , para ler e escrever sozinhos, porque a prxima gerao de bons leitores e crticos ter de vir de fora da universidade. ( Harold Bloom, Harold Bloom contra-ataca, Folha de S. Paulo, 6 de agosto de 1995. )12 OLAVO DE CARVALHOes e sabujices de nosso perigosssimo establishment pensante; ou antes, pendante, ne ologismo de rigueur ante tantas pednticas pendncias e dependncias das infindveis lis tas de importaes canonizadas. que, como toda verdadeira vocao filosfica, a de Olavo d e Carvalho incompatvel com o alinhamento compulsivo (e repulsivo) a que nos vm aco stumando por aqui os donos de ctedras et caterva. Os tremeliques de Mademoiselle Rigueur, to ao gosto da fbrica de esterilidades diplomadas com sede Rua Maria Antni a, So Paulo, SP, se por um lado desencorajaram de munirse de ttulos prestigiosos a quele que dentre ns hoje possui talvez o intelecto mais corajosamente individual entre seus pares, acabou por avis-lo sobre o que de fato valia o que perdeu. Sem dvida a circunstncia dessa solido defensiva e profiltica o ter, not least, ajudado a balizar justamente o terreno minado da autocastrao por timidez, subservincia ou sim plesmente descaro, to patentes em nosso incipientssimo e prudentssimo intellectual output. Nesse empolado contexto, sua fulgurante crtica do binmio Epicuro-Marx pura heresia, antema, suicdio. Mas a quem lhe importaria alongar a sobrevida na cidade do mortos, dos zumbis, dos hipnticos hipnotizados? O suicdio em termos acadmicos d e Olavo de Carvalho, patenteado uma vez mais neste livro imperdovel, soa-me como o clarim de uma adiada e temida ressurreio da independncia crtico-filosfica da nao. Co esta sua rigorosa e instigante investigao de aflies mais um livro do campineiro for a dos eixos segundo os importadores das frmulas da inveno da roda , Olavo de Carvalh o volta a nos dizer em alto e bom som: basta de sestas sombra da utopia e do mar asmo mental, so mais que horas de acordar para cuspir... e pensar! Quanto a mim, que onde deixei um pas encontrei trinta anos depois um acabrunhante acoplamento d e pedantaria e show business, a alegre festa no velrio acaba uma vez mais! com es te admirvel livro, nosso retrato assustador, O Jardim das Aflies. Que os mortos ent errem seus mortos: sai da frente, leitor... Rio, julho de 1995.O JARDIM DAS AFLIES DE EPICURO RESSURREIO DE CSAR: ENSAIO SOBRE O MATERIALISMO E A RELIGIO CIVIL TOPBOOKSAGRADECIMENTOS M UITA GENTE me ajudou a realizar o projeto deste livro: BRUNO TOLENTINO, a quem li os rascunhos da obra, me incentivou sem descanso a que a completasse, numa po ca em que tudo em minha vida me convidava a dispersar meus neurnios em trabalhos menores. LUCIANE AMATO, CLAUDETTE ALVES DUCATI e J BRITO ouviram a leitura de mui tos captulos, dando-me apoio moral e muitas sugestes valiosas. DANTE AUGUSTO GALEF FI e seus alunos da Universidade Catlica do Salvador devolveram-me a confiana nos jovens estudantes brasileiros de filosofia leitores sem os quais este livro no fa ria sentido. JOS ENRIQUE BARREIRO , KTIA M EDEIROS, LUIZ AFONSO FILHO, M ARIA ELIS A ORTENBLAD e PAULO VIEIRA DA COSTA LOPES me ajudaram, de vrios modos, a superar encrencas da vida prtica que sem sua generosa interferncia teriam me absorvido por completo e talvez inutilizado o meu pobre crebro por alguns anos. ROXANE ANDRADE DE S OUZA, M ERI ANGLICA HARAKAVA e S ANDRA TEIXEIRA resolveram mil e um pequeno s e grandes problemas que teriam adiado sine die a publicao deste livro. Esta obra pertence, por afeio e gratido, um pouco a cada uma dessas pessoas. OLAVO DE CARVAL HO...the War by Sea enormous & the War by Land astounding, erecting pillars in the deepest Hell to reach the heavenly arches. W ILLIAM BLAKE ... sangrenta futilidade, de um tipo to ftuo que era impossvel calcular-lhe a origem por qualquer processo racional, ou mesmo irracional, de pensamento. Pois a irra cionalidade malvola tem os seus processos lgicos prprios. 3 JOSEPH CONRAD Car si dsireux quon soit de trouver une cause naturelle ces tragiques abrrations, co mment justifier leur raffinement, ce je ne sais quoi dinutile, de superflu, qui rvl e un got lucide, une lucide d lctation? GEORGES BERNANOS 3 Trad. Ltitia Cruz de Moraes Vasconcellos ( O Agente Secreto, Rio, Imago, 1995 ).LIVRO I - PESSANHA -CAPTULO I. A NOVA HISTRIA DA TICA 1. Introduo. O que Epicuro veio fazer aqui, ou: Biografia deste livro It is strange to find that, here and in other parts of South America, men of undo ubted talent are often beguiled by phrases, and seem to prefer words to facts. 4 JAMES BRYCE U M ESCRITOR EDUCADO, como um bom convidado mesa, no deve ir logo de entrada falando de si mesmo. Transgrido aqui as boas maneiras por necessidade in trnseca do assunto, que no obstante consiste posso garantir em coisas cuja relevnci a transcende infinitamente a pessoa do autor. A necessidade a que me refiro provm do seguinte: este , dentro de certos limites, um livro de filosofia, e uma tese filosfica pouco significa se amputada das razes que a ela conduzem e das motivaes ge radoras da pergunta a que responde. Da a convenincia de garantias preliminares con tra um duplo equvoco possvel: de um lado, o leitor pode acolher ou repelir a tese em abstrato, no ar, sem saber a que coisas e seres se refere na vida deste mundo ; de outro, pode rejeitar de cara a formulao mesma da pergunta, sem tomar o cuidad o de seguir at o fim o fio dos argumentos onde se manifestar, s ento, o seu verdadei ro sentido. Contra o primeiro desses equvocos, devo advertir que as opinies expres sas no comeo so apenas um comeo; que aceit-las ou rejeit-las in limine impedir-se 4 de entender aonde levam; que o leitor, ao tomar posio pr ou contra logo nas primeir as pginas ou, pior ainda, ao fund-la numa impresso do momento , estar se enganando a si prprio, tomando este livro como expresso de opinies prontas, quando ele , como h d e ver quem o leia at o fim, substancialmente uma investigao; investigao que, do meio para diante, toma de fato um rumo bem 5 diverso daquele que parecia anunciar no comeo . Mas contra o segundo dos males mencionados s cabe o recurso de contar os f atos, de expor a situao real e vivida de onde a pergunta emerge. No caso deste liv ro, isso absolutamente obrigatrio: os acontecimentos que o sugeriram determinaram as condies em que foi escrito as quais, portanto, fazem parte do assunto. Digo en to que o miolo destas pginas redigi numa s noite de maio de 1990, sob o impacto da averso que haviam despertado em mim as palavras de Jos Amrico Motta Pessanha, ouvid as algumas horas antes numa conferncia sobre Epicuro no ciclo de tica que a Secret aria Municipal de Cultura promovia no Museu de Arte de So Paulo. Isto projetar tal vez a imagem de um fantico, a espumar de clera ante a opinio adversria. Mas no foi na da disto. O que Pessanha suscitara em mim no fora uma discordncia, fantica ou razove l, indignada ou mansa. Fora uma perturbao da alma, uma decepo, uma tristeza desesper anada, uma agita5 South America: Observations and Impressions, London, Macmillan, 1912, p. 417. No trecho citado, o autor refere-se especificamente ao Brasil. Habituado por uma longa autodisciplina a suspender o juzo at encontrar uma evidncia ou uma prova suficiente, surpreendo-me ao notar o quanto essa habilidade pode s er deficiente em intelectuais militantes afeitos a buscar numa idia antes seu pod er de mobilizao do que sua veracidade intrnseca. A carncia absoluta dessa habilitao po de chegar a ser mesmo uma conditio sine qua non para a aquisio de respeitabilidade em certos crculos universitrios, principalmente norte-americanos, mas tambm alguns brasileiros, onde vigora o pressuposto dogmtico de que uma idia ou doutrina qualq uer nada mais pode ser que a expresso do desejo de poder de uma classe, de uma raa , de uma cultura, de um pas, e de que, nesse sentido, a presso coletiva e a intimi dao autoritria so meios no apenas legtimos mas preferenciais do debate intelectual. Co mpreendo perfeitamente que as pessoas intoxicadas por essa atmosfera enxerguem o u finjam enxergar um mero truque de retrica na minha afirmao de no ter partido de co nvices prontas. De pouco adiantar alegar que fui perfeitamente sincero, pois, para essa gente, a sinceridade individual no tem valor, j que o indivduo no pensa e sempr e, querendo ou no, sabendo ou no, apenas o boneco de ventrloquo de um interesse coletivo que salta sobre as intenes do coitado e diz pela sua boca o que bem entende. Deixo a essas criaturas a tarefa extremamente cientfica de desencavar das sombra s o secreto autor coletivo destas pginas, e permaneo, malgrado tudo, na convico nada acadmica de havlas escrito eu mesmo. [Nota da 2a. edio].22 OLAVO DE CARVALHOo soturna carregada de maus pressgios. Meras opinies no produzem este efeito. O ttulo prometia delcias6, mas ali eu s encontrara pesares e aflies. O Jardim de Epicuro parec ia-se estranhamente com o Jardim das Oliveiras . Cheguei em casa pela meia-noite e, no conseguindo pegar no sono, varei a madrugada anotando objees e protestos que , contra minha vontade consciente de adormecer e esquecer, no cessavam de brotar como reaes de um organismo febril invaso de uma toxina. Era isto, precisamente: as frases de Pessanha eram um entorpecente, que entrava pelos ouvidos da platia, env enenava os crebros, movia o eixo dos globos oculares, fazendo ver tudo diferente do que era, num giro louco da tela do mundo. Um pblico de quinhentas pessoas subm etera-se intoxicao com sonsa alegria, numa deliqescncia mrbida, como crianas a seguir m um novo flautista de Hamelin, sugestionadas pela voz melflua, pelo jogo de imag ens que dava s lorotas mais bvias um intenso colorido de realidade. Puro feitio, no melhor estilo Lair Ribeiro. Eu sara dali em estado de estupor, sem crer no que a cabara de presenciar. Em casa, tentando adormecer, via em alucinaes as poltronas d o MASP lotadas de zumbis sem olhos. Saltava da cama com a cabea fervilhando. Tudo o que a platia no quisera ver parecia ter se condensado no meu subconsciente, exi gindo vir tona. Querendo ou no, eu me tornara o sintoma denunciador de uma neuros e coletiva. O que mais me impressionava, na trama de erros tecida por Pessanha, era a sua densidade. No havia ali uma nica brecha por onde pudesse se introduzir u ma discusso inteligente. Cada palavra parecia calculada para desviar a ateno do ouv inte, impedi-lo de olhar o assunto de frente, fix-lo num estado de apatetada pass ividade ante o fluxo de sugestes, hipnotiz-lo e arrast-lo delicadamente pela argola do nariz at uma concluso que ele j no estaria mais em condies de julgar e qual se cu varia com um sorriso de felicidade idiota e um mugido voluptuoso. O grumo compac to de absurdidades exalava uma radiao debilitante sobre as inteligncias, produzia a acomodao progressiva a um estado de penumbra, de lucidez 6 As Delcias do Jardim: a tica de Epicuro. Mais tarde foi publicada no volume coletivo tica, So Paulo, Companhia das Letras, 1991.diminuda, at que, perdida toda vontade de enxergar, a alma da vtima se amoldasse s t revas como num leito fofo, aspirando o adocicado perfume do esquecimento. No sei se me fao compreender. H uma grande diferena entre o doutrinador que mete simplesme nte na cabea das pessoas uma idia errada e o feiticeiro que as adoece, debilitando suas inteligncias para que nunca mais atinem com a idia certa. O primeiro move-se no reino das palavras, que podem ser enfrentadas com palavras. O segundo exerce uma ao quase fsica, produzindo feridas num estrato profundo que os meros argumento s no atingem. Feridas insensveis, que s comearo a doer quando for tarde para cur-las quando a lembrana de sua origem estiver demasiado apagada para que se possa iden tificar o rosto do agressor. Discordar, mesmo com veemncia fantica, seria a to descabi do quanto tentar deter um assaltante fora de citaes do Cdigo Penal. A ao do feiticeir passa ao largo da conscincia, como uma neurose, um vcio, uma droga; ela salta por sobre a mente, remexe os rgos dos sentidos, move tendes e msculos, instaura novos r eflexos involuntrios; ela se esquiva ao olhar humano e vai exercer seu domnio dire tamente sobre o macaco residual que habita em ns; ela no pode ser desfeita pela pe rsuaso racional. Sa dali enjoado como um autntico careta sai de uma festinha de emb alo. No que nunca tivesse visto coisa igual. Vira muitas, mas somente produzidas por feiticeiros confessos, por profissionais da dominao psquica, no recesso de seit as obscuras que no se adornavam do prestgio da autoridade acadmica nem se abrigavam sob a proteo do Estado. Vira-as tambm em demonstraes de hipnose, de Programao Neuroli gstica, de tcnicas psicolgicas que, reduzindo o crebro humano a uma passividade veget al, ao menos no proclamavam, com isto, estar lhe transmitindo cultura, autoconscin cia, juzo crtico. O que me espantava era que esse gnero de manipulao, prprio somente p ara o tratamento de doentes mentais inacessveis comunicao consciente, ou ento para u sos perniciosos e ilcitos, tivesse deixado o recinto das clnicas psiquitricas e dasseitas ocultistas, para ser empregado por acadmicos como um sucedneo da transmisso de idias. Eu estava consciente, doloridamente consciente do declnio intelectual b rasileiro, da debacle do ensino universitrio, mas nunca imaginara que a coisa pud esse baixar a esse ponto. Su-O JARDIM DAS AFLIES 23punha que a reduo do pensamento tagarelice ideolgica fosse o limite inferior da dec adncia, consolava-me com aquelas palavras que as avs sempre dizem quando a gente d espenca da bicicleta: Do cho no passa. De sbito, o cho se abrira: pelas mos de Pessanh , o pblico era convidado a mergulhar num abismo de inconscincia, na treva sem fim de um definitivo adeus inteligncia. Eu nunca tinha visto Jos Amrico Motta Pessanha. Mas conhecia sua fama e havia notado nela um trao p eculiar: seus ouvintes saam f ascinados, tecendo ao conferencista os maiores elogios, mas se mostravam incapaz es de dar qualquer noo clara do que ele dissera. Guardavam uma impresso difusa, int raduzvel em palavras, envolta num halo de prestgio mstico. A alguns objetei que o m esmo acontecia aos ouvintes de Hitler, mas em resposta recebi aquele sorriso de condescendncia desdenhosa com que o detentor de um segredo beatfico marca a distnci a que o separa do profano. Apaziguei minhas inquietaes explicando essa reao como esn obismo do pblico, sem suspeitar que ela pudesse fornecer algum indcio quanto ao ca rter do orador. Imaginei apenas que fosse um sujeito abstruso, a quem a platia ind enizava com tanto mais fartura de aplausos fteis quanto maior a quota de compreen so que lhe sonegava. Nada, mas absolutamente nada, me fazia antever o que encontr ei no MASP. No consegui conciliar o sono. Aps cinco tentativas falhadas, assumi qu e era um sintoma vivo e me encaminhei ao div mais prximo a mquina de escrever para verbalizar os contedos neurticos que a magia de Pessanha injetara em meu crebro. Co mo sempre acontece em tais situaes, verbaliz-los foi o bastante para exorciz-los, de sfazer o macabro encantamento, recuperar o senso do real momentaneamente entorpe cido pelas artes de um feiticeiro. Esse exorcismo constitui duas quintas partes do presente livro, onde, ao fio dos argumentos de Pessanha, examino a filosofia ou seja l o que for de Epicuro, de modo a curar-me dela para sempre. Na noite seguinte, li o manuscrito para uma roda de amigos e o guardei, tenciona ndo dar-lhe mais tarde uma forma final e remet-lo a Pessanha, com o convite para uma rplica, se lhe interessasse, antes da publicao em livro. Imprevistos e correria s de uma vida anormalmente repleta deles impediram-me o retorno a este trabalho, que ficou jazendo, interminado e tosco, no fundo de uma gaveta, e me acompanhou em uma mudana de cidade e cinco mudanas de casa. Ocupaes variadas desviaram-me para outros assuntos. Larguei Epicuro, esqueci Pessanha. No fundo, era o que eu quer ia. Foi s em fins de 1992 que, cogitando as razes da sbita e inusitada popularidade adquirida pela palavra tica, me dei conta do papel que tivera aquele ciclo de conf erncias n preparao discreta de acontecimentos que depois iriam a avolumar-se e desa bar sobre o pas como uma tempestade. Ele fora um sinal de largada, quase inaudvel, da campanha pela tica na Poltica. Tive ento um impulso de retomar este trabalho. Mas , na maaroca de papis que trouxera de So Paulo comprimida em cinqenta e tantas caixa s, no pude encontrar o manuscrito. Nos meses seguintes, o curso dos eventos poltic os tomou um rumo imprevisto e, para mim, esclarecedor. A campanha da tica, que comea ra como um amplo movimento de conscientizao moral, empenhado em desarraigar da nos sa mentalidade poltica alguns vcios seculares, foi estreitando cada vez mais seus objetivos, at concentr-los num alvo nico e imediato: a retirada do Sr. Fernando Col lor de Mello da Presidncia da Repblica. Alcanada esta meta, a campanha festejou o e vento como se ele tivesse dado plena satisfao aos seus anseios, como se as mais pr ofundas exigncias morais da nao tivessem sido cabalmente saciadas mediante a simple s dispensa daquele infausto mandatrio. Meditando os eventos luz do preceito de He gel, segundo o qual a essncia de uma coisa aquilo em que ela enfim se torna, ache i ento que a destruio poltica do Sr. Collor de Mello, e a conseqente ascenso das esque rdas posio dominante, tinham sido realmente os nicos objetivos da campanha, que no c omeara propondo metas to gerais, amplas e profundas, seno para melhor atingir o alv o particular, estreito e raso que lhe interessava. verdade que tout commence en24 OLAVO DE CARVALHO mystique et finit en politique, mas o espantoso, no episdio, era a desproporo entre a quantidade de mystique que se mobilizara e a mesquinhez do seu resultado polti co. Uma campanha de escala nacional que se apoia numa retaguarda filosfica, apela a todas as foras intelectuais da civilizao, convoca as luzes dos sbios do passado e se d todos os ares de uma revoluo cultural, s para eliminar um adversrio poltico ou m eia dzia deles, realmente um daqueles casos em que o excesso de chumbo s faz ressa ltar pateticamente a mngua de passarinhos. Governantes muito mais poderosos que o Sr. Collor, e mesmo Estados e regimes inteiros, tinham sido derrubados com muit o menos investimento intelectual. Mais tarde, quando a campanha voltou carga, de sta vez contra deputados e empreiteiras, a tica que se reivindicava assumiu de vez sua verdadeira natureza de mero impulso de vingana 7 poltica voltado contra alvos descaradamente seletivos . Tudo isso muito normal em poltica, onde cada faco procur a sempre se arrogar o monoplio do bem. O estranho era que a inaudita mobilizao da c lasse intelectual no desse campanha nem mesmo um arremedo de rigor, de seriedade, de autoconscincia moral; que a farsa de uma tica reduzida a grosseiras expresses d e ressentimento parecesse contentar a todos os crebros incumbidos, em princpio, de ser exigentes consigo mesmos. Aparentemente, os ncoras de TV tinham se tornado g uias e orientadores da intelectualidade mais pomposa e autoritria, que se deixava guiar ao som de slogans, com festiva credulidade, como se a destruio de seus desa fetos polticos valesse a abdicao de toda inteligncia crtica. Amigos com quem comentei o caso explicavam-no pelo revanchismo: como macacos a espancarem a ona morta, os esquerdistas buscavam uma compensao por duas dcadas de humilhaes, perseguindo os rem anescentes de uma ditadura que no tinham conseguido vencer e que s se desfizera, e nfim, por vontade prpria. Mas a explicao, embora parcialmente verdadeira, no me sati sfazia. A revanche era tardia demais, os inimigos j estavam quase todos mortos ou esquecidos, e os militantes da moral no relutavam em recru7 tar para suas tropas notrios servidores dos governos militares, como o senador Ja rbas Passarinho. No era possvel que, decorrido tanto tempo, o desejo de vingana ain da tivesse fora bastante para obnubilar todas as inteligncias, para atirar ao limb o as exigncias mais comezinhas do amor verdade, em troca de resultados polticos de valor duvidoso. Estvamos, enfim, diante de um fenmeno estranho, cuja singularidad e, no entanto, parecia escapar inteiramente queles mesmos que o protagonizavam8. E conjeturei ento talvez fosse possvel encontrar, na esqui8 A onda de ira nacional contra Collor e depois contra os deputados envolvidos em desvios de verbas so casos ainda mais estranhos, quando comparados persistente in diferena ante o escndalo das polonetas (emprstimos irregulares ao governo comunista d a Polnia), que trouxe ao Brasil muito mais prejuzo do que o ex-presidente e todos os anes do Congresso somados.Documentei o bastante a esquisitice ambiente em O Imbecil Coletivo para poder me dispensar de enumerar novamente aqui os sinais da patologia mental que ento acom eteu a inteligncia brasileira. S para dar um exemplo, um aspecto estranho, que par eceu escapar totalmente aos melhores observadores, foi este que na segunda fase da campanha a guerra contra Joo Alves & Cia. anotei num artigo que escrevi para a revista Imprensa: Pelo furor investigativo com que os jornais e a TV abrem as la trinas, destapam os ralos, vasculham os esgotos da Repblica, parece que o Brasil, dentre todos os pases, tem a imprensa mais ousada, mais independente, mais empen hada em descobrir e revelar a verdade. Porm o mais admirvel, nela, a unanimidade d a sua adeso a esse objetivo. No h neste pas um s jornal, estao de rdio ou canal de TV e se exima da obrigao de informar, que procure mesmo discretamente abafar denncias, proteger reputaes, acobertar suspeitos. Todos, mas todos os rgos de comunicao, sem ex cees visveis, esto alinhados no ataque frontal corrupo, que verberam em unssono, com afinao de um coro multitudinrio regido por uma s vontade, por um s esprito, por um s c itrio de valores. No exrcito da moralidade pblica, no h defeces. Foi a uniformidade donoticirio que permitiu fixar na retina do pblico a imagem de um Brasil dividido em justos e pecadores, mocinhos e bandidos, sem quaisquer ambigidades ou meios-tons . Imagem na qual a linha demarcatria da tica se sobreps mesmo s divises de partidos, d interesses, de ideologias, terminando por neutraliz-las e por no deixar mostra se no duas faces, a de Caim e a de Abel, esta vociferando sua indignao nas praas, aquela esgueirandose pelos corredores, tramando golpes, apagando pistas, num sombrio me neio de cobra. Esse unanimismo no teria poder sobre as conscincias se no inclusse, e ntre os temas dominantes do seu discurso, a celebrao de si mesmo: a condenao dos polt icos corruptos , ao mesmo tempo, e no raro explicitamente, a glorificao da imprensa livre que os investiga e desmascara. Ningum hesita em ver nesse fenmeno o comeo de uma nova era: levado pela mo da imprensa, o Brasil atinge o portal da maturidade democrtica. Mas, a quem fez seu aprendizado no jornalismo ouvindo dizer que impre nsa diversidade, que democracia pluralismo de opinies, essa unanimidade no pode de ixar de parecer um tanto suspeita. Anormal historicamente, ela . Nunca, em qualqu er lugar ou poca, se viu um caso como este, de uma nao em peso abdicar de suas dive rgncias internas para formar frente nica sob uma bandeira to vaga e abstrata quanto a tica. Nem pases em guerra, movidos pela necessidade de unir-se em defesa de bens mais palpveis contra perigos mais imediatos e letais, lograram homogeneizar a tal ponto o discurso dos seus jornalistas. O que est acontecendo no Brasil um fenmeno mpar na histria da imprensa mundial. Um fenmeno tanto mais estranho quanto recente a introduo da palavra tica no vocabulrio popular brasileiro e rapidamente improvisada , com xito fulminante, sua promoo ao status de ideal unificador de todo umO JARDIM DAS AFLIES 25sitice geral do ambiente ptrio, um princpio de explicao para aquilo que eu vira no M ASP. Diante dessa expectativa, no pude mais adiar a retomada deste trabalho. Revi rando de novo meus papis, agora com o empenho investigativo de um araponga do PT, l ocalizei o manuscrito e fiz-lhe os acrscimos que quela altura me pareciam necessrio s. Nada alterei nele em substncia. Apenas mudei um pouco a ordem, acrescentei os livros finais e este comeo. Toda a parte inicial do 2 ao 17 o texto de 1990, cort ado de excrescncias, aumentado de esclarecimentos indispensveis e melhorado espero nos detalhes da expresso. Algumas correes foram bem minuciosas, mas deixaram inalt erado o sentido do conjunto. Acrescentei tambm muitas, muitas notas de rodap. Muit as e longas. Notas de rodap so uma das mais amveis invenes humanas. Alm da sua funo m l de testemunharem o justo reconhecimento de um escritor para com seus fornecedo res de material; alm da economia que nos facultam ao abreviar um argumento median te saltos que a indicao de um mero ttulo preenche; alm da aparncia verdadeira ou fals a de probidade cientfica de que revestem o contedo de um livro; alm do benefcio peda ggico de abrirem para o leitor um leque de estudos complementares; alm mesmo do in egvel deleite psicolgico que um autor pode tirar da ostentao erudita, alm de todas es sas coisas apreciveis e reconfortantes, elas nos do algo ainda melhor. Elas repres entam, dentro do corpo de um livro, as sementes de outros tantos livros possveis, as linhas de investigao que tiveram de ser abandonadas para que o livro pudesse c hegar a um ponto final. Abandonadas mas no desprezadas. Sua presena nas notas mani festa a confisso de que este no o nico nem o melhor dos livros possveis sobre o seu assunto. O mesmo autor deste, daqui de onde fala ao distinto pblico, pode agora mesmo vislumbrar em pensamento outros tantos melhores. Mas esc rever, por ora, s pde escrever este. Hoje surpreendo-me de ter podido escrever tan to numa s noite. Mas, pensando bem, no poderia ter sido de outra forma. A fala de Pessanha era to cheia de subentendidos, de intenes veladas, de mensagens camufladas para uso dos happy few, que, mais que contest-la, era preciso desvend-la, mostrar toda a cosmoviso que ela trazia de contrabando por baixo do sentido explcito das palavras. Como esta cosmoviso, por sua vez, convocava reforos de eras pretritas par a dar apoio a uma poltica do presente, no se poderia elucid-la sem ampliar formidav elmente o crculo das investigaes, com muitas idas e vindas entre a superfcie da polti ca atual e as camadas mais profundas de uma antigidade quase esquecida. To vasta e ra a rea das implicaes, que arriscaria perder de vista a forma do seu conjunto quem se aventurasse a percorr-la aos poucos, alguns metros por dia. Para fazer face i nfluncia difusa e embriagante que as palavras de Pessanha espalhavam no ar como u m spray, era preciso um sobre-esforo de compactao, que espremesse numa rea limitada e visvel a multido variada de fantasmas evanescentes. No creio que isto se pudesse fazer seno tudo de uma vez, num lance sbito de espadachim ou de pintor zen, para c onservar, na multiplicidade dos temas e dos planos de abordagem, a unidade de um a intuio simultnea 9. A notcia da morte de Jos Amrico Motta Pessanha, ocorrida no incio de 1993, mas da qu al s tomei conhecimento muito depois, no alterou em nada minha disposio de publicar este livro, j pronto, na parte que a ele mais de perto se refe9povo. Jamais uma palavra-de-ordem emanada de um estreito crculo de intelectuais a tivistas logrou alastrar-se com tal velocidade pela extenso de um continente, sem que ningum se lembrasse de objetar que a rapidez com que se propagam as palavras est s vezes na razo inversa da profundidade de penetrao das idias. ( Unanimidade sus ta, em Imprensa, maio de 1994; reproduzido em O Imbecil Coletivo ). Se o conhecim ento, como diz Aristteles, comea com o espanto, a falta da capacidade de espantarse um grave sintoma de apatia mental na nossa intelligentzia. tambm esta multiplicidade de temas e planos que explica a trama compsita deste liv ro, misto de memrias e ensaio filosfico, reportagem e panfleto, poltica e metafsica,esoterismo e fait divers, religio comparada e sei l qu mais coisa em suma incatalo gvel, que no se esperaria ver assinada pelo mesmo autor de uma rigidssima teoria do s gneros ( v. Olavo de Carvalho, Os Gneros Literrios. Seus Fundamentos Metafsicos, R io, IAL & Stella Caymmi Editora, 1993 ). Mas, se fixei com tal apuro as distines e ntre os gneros, foi justamente para poder, em caso de necessidade, melhor mistur-l os. E, na verdade, no h o que no caiba na minha definio de ensaio.26 OLAVO DE CARVALHOre, desde 1990. Sustentam essa minha deciso trs razes. A primeira que, apesar da ve emncia com que contesto aqui as idias de Pessanha, nada digo contra sua pessoa, ne m poderia faz-lo se quisesse, por ignorar tudo a respeito. A segunda que a morte de um filsofo no torna verdadeiras as idias falsas que tenha defendido, nem exime d o dever de contest-las, para defesa e esclarecimento dos vivos, quem no tenha podi do faz-lo em vida dele. A terceira que aquilo que possa ter havido de maligno na influncia de Pessanha sobre o pblico no veio dele enquanto indivduo, mas enquanto me mbro atuante de um grupo; grupo este que continua vivo e passa bem 10. Quanto ao tom, o deste livro s vezes de uma franqueza que destoa, reconheo, em debates letr ados, pelo menos na media luz da hipocrisia que se tornou o padro oficial da ling uagem educada nacional. Mas no se trata aqui de discutir idias, de confrontar na s erenidade de uma comum devoo cincia vrias imagens da realidade, para encontrar a mel hor. As idias, para certas pessoas, no so imagens da realidade: so poes mgicas, de que se servem para enfeitiar o pblico e coloc-lo a servio de fins com que, lcido e inform ado, ele no se prestaria a colaborar de maneira alguma. E um feitio no se discute n o plano terico: um feitio desfaz-se, mediante a exibio dos chumaos de cabelos e dos r etalhos de roupas da vtima, que o feiticeiro, em furtiva incurso, escondeu entre r estos de cadveres. No se trata, portanto, de refutar argumentos errneos, emitidos c om a inocncia de uma equivocada busca da verdade. Trata-se, como em psicanlise, de desenterrar velhas mentiras esquecidas, de desocultar intenes que chegam a ter al go de sinis10Pouco depois dos acontecimentos narrados nesta Introduo, ele atacou novamente, com u m ciclo denominado Artepensamento. Em 26 de setembro de 1994, com o ttulo mudado para Arte de Viver, a palestra de Pessanha sobre Epicuro, gravada em vdeo, foi tran smitida pela TV Educativa do Rio, numa programao que reproduzia resumidamente o ci clo de tica do M ASP , sob a direo do mesmssimo Adauto Novaes que organizou o evento de 1990. Eis como a morte do pensador d mais fora de difuso s idias que ele defendeu em vida. Conservado e industrializado pela tcnica, o veneno epicreo pode agora se r distribudo em massa, enobrecido e como que santificado pela morte de seu revend edor local. Em junho de 1995, o mesmo grupo realizou o congresso Libertinos/Libe rtrios, que incluiu comemoraes pagas com dinheiro pblico do bicentenrio do marqus d ade, e muitas palavras de louvor a Laclos, Crbillon e similares. S falta, como dir ia Paulo Francis, editar em papel-bblia as obras completas de Julius Streicher.tro, de revelar o mal para que perea exposto luz, amputado da escurido que o alime ntava e protegia. No fao este trabalho com prazer. Fao-o por uma obrigao interior, da qual fugi o quanto pude, como o testemunha o atraso deste livro em relao aos fato s que o motivam. Fao-o com resignada boa vontade, mas no consigo esconder a repugnn cia que sinto ao lidar com esse gnero de materiais. Algumas expresses mais fortes, que emprego no texto, espero que me sejam perdoadas como naturais desabafos de um homem que tem de falar sobre o que preferiria esquecer. Alguns leitores talve z digam que dei uma importncia desmesurada a um acontecimento superficial e passa geiro: a refutao de uma simples conferncia no requer todo um livro. A objeo no seria d todo despropositada, se este livro tomasse a conferncia de Pessanha por seu obje to, e no por simples ocasio e sinal para mostrar, num giro por dois milnios de histr ia das idias, o crculo inteiro das condies remotas que a possibilitaram, e das quais ela extrai toda a significao que possa ter para alm das miudezas polticas que const ituem sua motivao imediata. Essas condies que so o tema do livro. Um evento de porte bem modesto pode tornar-se assim elucidativo do movimento maior da Histria, quand o nele se cruzam de maneira identificvel as foras que se agitam superfcie do dia e aquelas que vm, num esgueirar soturno, desde o fundo dos sculos. Um escritor cujo nome no me ocorre sugeriu, para simbolizar o cmulo da insignificncia, a altercao de d ois velhinhos num asilo. Esqueceu-se de dizer que o ncleo do enredo dA Montanha Mgi ca de Thomas Mann, livro que condensa todo o drama das idias do sculo XX, no passa da altercao entre dois velhinhos Naphta e Settembrini no asilo de tuberculosos emDavos. E Perez de Ayala fez dos bate-bocas entre dois velhinhos de miolo mole Be larmino y Apolonio o resumo da universal altercao; no fim os velhinhos fazem as pa zes... ao reencontrar-se num asilo. Como se v pelo exemplo dessas belicosidades g eritricas, aquilo que pouco significa por si mesmo pode significar muito pelas ca usas que revela. No fim deste livro o leitor ver como o personagem dos primeiros pargrafos ter se tornado pequeno o eco dbil e longnquo que repete s tontas, na perife ria da Histria, a cantiga milenar do engano.O JARDIM DAS AFLIES 27 De outro lado, o hbito brasileiro de olhar as manifestaes culturais como um adorno suprfluo impede de enxergar as tremendas conseqncias prticas que as idias filosficas, mesmo difundindo-se apenas num estreito crculo de intelectuais, podem desencadear sobre a vida de milhes de pessoas que nunca ouviram falar delas e que, se ouviss em, no as compreenderiam. Ora, nada se parece mais a um adorno exterior, a um incu o passatempo botnico de nefelibatas, do que uma conferncia sobre o Jardim de Epicu ro no estilo floreado de Motta Pessanha. No entender do superficialismo brasilei ro, s mesmo a um doido varrido como eu ocorreria ver ali algo de mortalmente srio e perigoso. Mas, por olhos doidos ou sos, o que vi estava l, escondidinho e letal sob as flores. Posso provar isto, mas no vou faz-lo na Introduo porque o fao no resta nte do livro. Para liquidar de vez com a objeo, permito-me citar o nico autor do qu al posso me gabar de ter lido tudo quanto escreveu, e pelo qual nutro uma certa estima mista de melancolia e decepo: eu mesmo. Uma lei constitutiva da mente humana disse esse autor em A Nova Era e a Revoluo Cultural concede ao erro o privilgio de poder ser mais breve do que a sua retificao. Ademais, como o leitor ver sobretudo n as ltimas pginas, este livro no se limita a desfazer um ou vrios erros, mas aponta, positivamente, a direo onde devem ser buscadas as verdades que eles renegam e rene gando encobrem. H aqui os esboos de uma interpretao global da histria cultural do Oci dente moderno, que seria talvez melhor apresentada se em forma sistemtica e fora de qualquer contexto polmico. Essas idias so a origem primeira e a meta do trabalho , que somente pelo valor ou desvalor delas admite ser julgado, e no pela importnci a muita ou pouca dos fatos, locais e momentneos, que deram ocasio e pretexto ao se u aparecimento. sobre o temperamento do autor, sujeito pacfico e tolerante at o limite da paspalhi ce. que a crtica, segundo dizia John Stuart Mill, a mais baixa faculdade da intel igncia, e na ordem de publicao dos meus escritos preferi comear de baixo, da ruidosa atualidade, reservando as partes mais altas e serenas para melhor ocasio, e deix ando-as mostrar-se apenas, por agora, sob a forma de apostilas de meus cursos pr ivados, enquanto as idias amadurecem e se revestem de uma forma verbal melhor12. Meus alunos podem atestar que a polmica est longe de constituir o centro dos meus interesses. Tambm declaro peremptoriamente que no tenho a menor iluso de influencia r no que quer que seja o curso das coisas, que vai para onde bem entende e jamai s me consulta (no que alis faz muito bem). Meu propsito no mudar o rumo da Histria, mas atestar que nem todos estavam dormindo enquanto a Histria mudava de rumo. No e screvi este livro pensando em seus efeitos polticos possveis, mas simplesmente em esclarecer um pequeno crculo de amigos e leitores que desejam ser esclarecidos e me julgam capaz de ajud-los nisso. Nem mesmo pretendo mudar a opinio de quem goste da sua. Hoje em dia as pessoas criam opinies como animais de estimao, sucedneos do afeto humano. Quanto s minhas, trato-as a po e gua, ginstica sueca e chibatadas, lev ando muitas delas morte por definhamento, a outras estrangulando no bero ou esmag andoas a golpes de fatos que as desmentem: fico com as que sobrevivem. No posso r ecomendar esse regime s almas sensveis, mas desconheo outro que possa nos colocar n a pista da verdade, supondo-se que a desejemos. E se aqui submeto idias alheias a esse tratamento impiedoso, porque algumas delas j foram minhas e, como disse Goe the, contra nada somos mais severos do que contra os erros que abandonamos. Ainda um pedido. Que o tom deste livro, e sobretudo o fato de ser esta j a minha terceira obra de combate11, no levem ningum a concluses precipitadas 11 12 As anteriores foram A Nova Era e a Revoluo Cultural. Fritjof Capra e Antnio Gramsci e O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras.Minha nica iniciativa, at agora, de divulgar essa parte mais interior do meu traba lho com a publicao do livro Uma Filosofia Aristotlica da Cultura. Introduo Teoria do Quatro Discursos ( Rio, IAL/Stella Caymmi, 1994 ) deu mais encrenca do que toda s os meus escritos de polmica. O episdio est documentado em Aristteles em Nova Persp ectiva ( Rio, Topbooks, 1996 ).28 OLAVO DE CARVALHO 2. As conferncias do MASP Na gritaria geral contra a falta de tica, ergueu-se finalmente a voz da filosofia para clarear as idias do povo e indicar nao o caminho do bem. da tradio os filsofo bandonarem o silncio da meditao para ir discursar s gentes, nas horas de escndalo e r una. Scrates ia pelas praas cobrando os direitos da conscincia, aviltada pelos abuso s da retrica. Leibniz, chocado com a guerra entre cristos, clamava pela unio das ig rejas. Fichte, do alto de um caixote de beterrabas, convocava os alemes defesa da honra nacional pisoteada pelo invasor. No de hoje que a filosofia assume o encar go de guiar o mundo, quando ele, desorientado e perplexo, j no consegue se guiar p or si mesmo. To necessrios so os filsofos nessas horas, que, no havendo nenhum mo, as naes nomeiam filsofos honorrios, ou, em terminologia mais moderna, binicos. Foi assim que surgiu o termo philosophes, que, grifado ou entre aspas, designa os idelogos da Revoluo Francesa. A diferena simples: um filsofo busca a explicao do real segundo a sua prpria exigncia de veracidade e segundo o nvel alcanado por seus antecessores; um philosophe busca explicaes na estrita medida do mnimo que o mundo exige daquele s a quem segue. Discursando do alto de um caixote de beterrabas, ambos podem faz er igual efeito, pois a diferena est num plano acima do que o pblico enxerga. Para este, Voltaire filsofo tanto quanto Leibniz ou Aristteles. No caso brasileiro, a i ncumbncia de figurar no papel de conscincia filosfica nacional foi atribuda ao grupo de professores universitrios que orbita em torno de Marilena Chau, titular da Sec retaria Municipal de Cultura, organizadora do ciclo de tica do MASP e, last not l east, autora de um premiado Convite Filosofia, onde so servidas aos convidados al gumas lies preciosas, como por exemplo a de que na lgica de Aristteles o acidente um tipo de propriedade mais ou menos o equivalente a dizer que na geometria de Eucli des o quadrado um tipo de crculo. Vejamos o que a conscincia filosfica nacional, assim representada, pde fazer para r econduzir aos bons caminhos da tica uma nao perdida. O intuito declarado dos organizadores do curso era triplo: dar um esboo cronolgico das principais doutrinas ticas, lanar luz sobre a questo da falta de tica no pas e p opularizar o debate a respeito, abrindo-o para um pblico de quinhentos e tantos l eigos. A seleo dos temas e o contedo das conferncias terminaram por desmentir os doi s primeiros objetivos e anular o terceiro. Em todo debate cientfico ou filosfico, a compreenso de uma nova tese depende do conhecimento do estado da questo. Status qustionis termo da retrica antiga o retrospecto das discusses at o presente, com a riteriosa discriminao dos tpicos abrangidos e por abranger, das teses consensualmen te admitidas e das que continuam em litgio. Quem fale aos leigos sobre um assunto da sua especialidade est implicitamente obrigado, pela tica da vida intelectual q uando tem, a oferecer-lhes, como fundamento primeiro da argumentao, um sumrio do es tado da questo no consenso dos estudiosos. Opinies prprias, novas ou divergentes qu e o orador acaso tenha a apresentar s podero ser compreendidas e discutidas com pr oveito se forem vistas no quadro desse consenso, mesmo que dele divirjam e sobre tudo quando divergem, porque toda divergncia diverge de alguma coisa e s no confro nto com ela adquire sentido; Benedetto Croce dizia que s se compreende um filsofo quando se sabe contra quem ele se levantou polemicamente. Se porm o especialista, o professor, o homem investido de autoridade acadmica apresenta sua opinio solta, i solada, sem os nexos que a ligam positivamente ou negativamente ao consenso e tr adio, o pblico leigo fatalmente a tomar como se fosse ela mesma a expresso desse cons enso, e dar s palavras de um s indivduo ou do grupo que ele representa o valor e o p eso de uma verdade universalmente admitida pelos homens cultos. tambm um preceito elementar do mtodo cientfico no apresentar uma teoria nova sem provar primeiro que as anteriores no bastam para explicar os fenmenos de que trata. um meio de evitar a proliferao de teorias inteis. Desse preceito,O JARDIM DAS AFLIES 29 que vlido tambm em filosofia, decorre uma norma prtica: as novas teorias que devem apresentar suas razes contra as velhas, e no estas contra aquelas. Como num duelo, cabe ao desafiado a primazia na escolha das armas. Dessa norma, por sua vez, fl ui a obrigao de tica pedaggica a que me referi: toda teoria nova, quando apresentada a um pblico leigo, deve ser mostrada como tal, recortada e contrastada sobre o p ano de fundo do consenso que ela confirma ou desmente. Nunca deve ser exibida so zinha, ocupando todo o espao e fazendo as vezes do consenso. Quem assim a empregu e estar se aproveitando da ignorncia alheia para fazer-se de autoridade. No deveria ser preciso fazer tais recomendaes a pessoas to cheias de conscincia tica que, no con seguindo mais cont-la em si, sentiram o urgente impulso de derram-la sobre toda a nao, ou pelo menos sobre quinhentas cabeas. Mas a verso que o ciclo apresentou da hi stria das idias ticas bem diferente daquela a que o pblico teria acesso caso se diri gisse a qualquer das histrias da filosofia que circulam em formato de livro. uma verso peculiar alternativa, digamos que tem todo o direito de ser defendida contr a o consenso, mas no tem o direito de posar em lugar dele perante um pblico que o desconhece. Por exemplo, o captulo referente filosofia grega resumiu-se a duas co nferncias: a de Jos Amrico Motta Pessanha sobre Epicuro, que em detalhe comento mai s adiante, e a da convidada francesa, Nicole Loraux (alis excelente), sobre os se ntimentos ticos na tragdia grega. Epicuro, no consenso quase universal, no propriam ente um filsofo menor, mas alguma coisa menor do que um filsofo. Veremos adiante. E a tragdia grega, como obra de arte, carregada ademais de obscuros simbolismos a rcaicos, admite muitas outras interpretaes ticas que no somente aquelas destacadas p or Nicole Loraux (que seria, creio eu, a ltima a neg-lo). No fim das contas, o pen samento tico grego ficou ali reduzido ao filete escasso e marginal do epicurismo e a um vago e misterioso sentimento coletivo escoado entre os versos de Sfocles, squ ilo e Eurpides. Nem uma palavra sobre Plato, Aristteles ou o estoicismo: sobre os t rs sistemas completos que constituram o essencial da herana moral grega s civilizaes e uropia e islmica.Ningum nega aos organizadores do ciclo o direito de reinterpretarem a Histria o qu anto queiram. Nem mesmo o de desfigur-la em nome de uma teoria qualquer, alterand o a hierarquia dos fatos e as propores dos valores, removendo para um canto os nex os principais articuladores do conjunto e puxando para o centro um detalhe qualq uer de sua preferncia, por insignificante e banal que seja. Apenas se pede, a que m assim proceda, a fineza de declarar de antemo seu propsito de apresentar uma ver so nova e heterodoxa da Histria, e no a Histria, em sentido corrente. Uma histria da a grega que eleve Epicuro ao primeiro plano em lugar de Plato e Aristteles no tem c omo evitar, no mnimo, o rtulo de extravagante. Mas cometer extravagncias com o ar i nocente de quem procede segundo a praxe mais rotineira aquilo que, na tica popula r, recebe o nome de cara-de-pau. E nada mais confortvel para um cara-de-pau do qu e poder contar com a sonsa aprovao de uma platia novata, incapaz de atinar com a ex travagncia do seu procedimento. A, ao abrigo de todo olhar de censura, ele se espa lha: deita e rola. Rolando, rolando, o cabotinismo elevado a princpio historiogrfi co foi cair num descalabro ainda pior ao tratar da filosofia medieval: espremeua toda, com seus quase mil anos de Histria, numa s conferncia, e mesmo a s a abordou, com seletividade feroz, por um nico e privilegiado aspecto, tomado assim, pela m assa crdula dos ouvintes, como a quintessncia do assunto. Que aspecto foi esse, to especial? A moral agostiniana da autoconscincia? A tica tomista da escolha razovel? A pedagogia moral de Hugo de S. Vtor? O indeterminismo moral de Duns Scot? Nada disso. Nenhum desses tpicos nem dos muitos outros em que se subdivide a tica medie val nos livros de Histria da Filosofia foi considerado significativo o bastante p ara representar, no MASP, a essncia da Idade Mdia. O tema ali encarregado de figur ar como amostra suprema do pensamento medieval foi... o tribunal da Santa Inquis io! Historicamente, um quid pro quo. Instaurada oficialmente em 1229, essa instituio como frisou Alexandre Herculano nasceu dbil e desenvolveu-se gradual e lentamente1 3. Seu perodo de atuao mais intensa, que a revestiu da ima13V. Alexandre Herculano, Histria da Origem e Estabelecimento da Inquisio em Portugal , Lisboa, Bertrand, s/d, t. I, p. 25.30 OLAVO DE CARVALHOgem sangrenta que tem para ns hoje, s comea a partir de 1400: em pleno Renascimento . As fogueiras da Inquisio continuaram depois a arder pela Idade Moderna a dentro, alcanando um mximo de furor nos sculos XVI e XVII. Isto to medieval quanto a fsica d e Newton. Mesmo o sculo do estabelecimento oficial da Inquisio, o XIII, que no coinc ide, repito, com o da sua atuao efetiva, j apenas o finzinho da Idade Mdia: o princp o da sua dissoluo, com a ecloso das primeiras manifestaes de autonomia nacional, das quais a prpria disseminao das heresias, causa imediata da abertura do Santo Ofcio, u m dos principais sintomas. Em terceiro lugar, o perodo de atividade inquisitorial mais significativa j posterior, de dois sculos, ao fim do ciclo de produo e publicao das principais obras filosficas medievais, que vai do Proslogion de Sto. Anselmo (1070) at as Reportata Parisiensia de Duns Scot (1300), passando pelos livros de Pedro Lombardo, Pedro Abelardo, Alexandre de Hales, Guilherme de Conches, Hugo e Ricardo de S. Vtor, Sto. Alberto Magno, Sto. Toms de Aquino e S. Boaventura. Para completar, nenhum desses filsofos exerceu qualquer cargo no Santo Ofcio nem teve com esta entidade contatos seno episdicos, que no marcaram significativamente o con tedo de suas obras14. 14 Associar, assim, Idade Mdia com Inquisio, e sobretudo filosofia medieval com Inquis io, um descalabro cronolgico equivalente ao de apontar Fernando Henrique Cardoso co mo ministro da Fazenda de D. Joo VI. Os philosophes do MASP conhecem to bem ou mel hor do que eu todas essas datas, e no podem t-las trocado por engano. Eles sabem p erfeitamente bem que a Idade Mdia um bode expiatrio das culpas de perodos histricos posteriores, que a sua fama inquisitorial obedece definio stendhaliana da fama: co njunto dos poca era crime. No sei se a acusao era procedente, provavelmente no era, mas aos que julguem um absurdo preconceito de eras pretritas imputar feitiaria, de modo geral, qualquer carter criminoso, recomendo a leitura do ensaio de Claude Lvi-Strauss, O Feiticeiro e sua Magia ( em Antropologia Estrutural, trad. Chaim Samuel Katz e Eg inardo Pires, Rio, Tempo Brasileiro, 1975 ), sobre a realidade das mortes por en feitiamento. Para completar, a pesquisa histrica mais recente revelou que Bruno es teve muito provavelmente envolvido em atividades de espionagem contra a Igreja C atlica (v. John Bossy, Giordano Bruno e o Mistrio da Embaixada, trad. Eduardo Fran cisco Alves, Rio, Ediouro, 1993). l A Inquisio instituiu a perseguio aos judeus. As matanas de judeus, promovidas por devedores espertos ou por monges fanticos, eram um hbito consagrado na Pennsula Ibrica. No conseguindo reprimir a ral enfurecida, o R ei de Portugal pediu que o Santo Ofcio se incumbisse dos processos por usura, de modo a tirar qualquer pretexto que legitimasse as atrocidades dos justiceiros pop ulares. Instituindo os processos regulares, a Inquisio controlou e enfim extinguiu as matanas. verdade que a Inquisio se mostrou preconceituosa contra os judeus, mas se em vez de julg-la por um padro moral abstrato e utpico a comparamos com as alter nativas reais existentes na poca, entendemos que ela foi um mal menor: a nica alte rnativa era o massacre ( v. Alexandre Herculano, op. cit. ). l A Inquisio institui u a tortura generalizada. A tortura era considerada um procedimento legtimo e pra ticada em toda parte desde a Grcia antiga. Durante quase toda a Idade Mdia, caiu e m desuso, sendo reintroduzida na justia civil graas redescoberta tipicamente renas centista dos textos das antigas leis romanas. O que a Inquisio fez foi seguir o us o ento vigente na justia civil, mas limitando-o severamente, no permitindo que o ac usado fosse torturado mais de uma vez e proibindo ferimentos sangrentos ( v. Tes tas, op. cit. ). Deve-se portanto Inquisio o primeiro passo efetivo que se deu con tra o uso da tortura, o que deveria ser considerado um marco na histria dos direi tos humanos. A tortura ilimitada foi depois reintroduzida pelos comunistas, na Rs sia, sendo seu exemplo imitado em seguida pelos nazistas e fascistas. l O proces so de Galileu foi um caso de perseguio inquisitorial. Bem ao contrrio, o processo f oi uma pizza, uma farsa concebida pelo Papa padrinho de Galileu para que seu pro tegido se livrasse de um grupo de inquisidores fanticos mediante uma simples declarao oral sem efeitos prticos, aps a qual ele pde continuar divulgando suas idias sem que ningum voltasse a incomod-lo ( v. Pietro Redondi, Galileu Hertico, trad. Jlia Ma inardi, So Paulo, Companhia das Letras, 1991 ). Os philosophes de modo geral no ig noram essas coisas, mas falar delas no bom para a sua sade e suscitaria desconfort o na platia. O nmero de balelas que circulam a respeito da Inquisio assombroso. Elas constituem uma captulo importante do fabulrio popular do senso comum, diria Gramsci que sustent a a crena na superioridade do mundo moderno e de seus intelectuais. Eis algumas: l A Inquisio atrasou o desenvolvimento cientfico, proibindo a circulao dos livros que traziam novas descobertas. Basta examinar o Index Librorum Prohibitorum para ve rificar que nele no consta nenhuma das obras de Coprnico, Kepler, Newton, Descarte s, Galileu, Bacon, Harvey e tutti quanti. A Inquisio examinava apenas livros de in teresse teolgico direto, que nada poderiam acrescentar ao desenvolvimento da cinci a moderna. ( Em caso de dvida, leia-se A Inquisio, por G. Testas e J. Testas v. Bib liografia no fim deste volume. ) l Giordano Bruno foi um mrtir da cincia, condenad o pela Inquisio por defender teorias cientficas. Giordano Bruno no fez nenhuma desco berta, nenhuma observao, nenhum experimento cientfico. Nem sequer estudou as cincias modernas, fsica, astronomia, biologia ou matemtica. As disciplinas que lecionava eram tipicamente medievais: lgica, gramtica e retrica o trivium. Ele desprezava a n ova mentalidade matemtica, e todos os cientistas matematizantes, de Galileu a Des cartes, mostraram a maior indiferena pela sua obra, cujo maior mrito justamente o de ter antecipado muito do que hoje podemos dizer contra a cincia moderna ( v. Pa ul-Henri Michel, La Cosmologie de Giordano Bruno, Paris, Hermann, 1975. ). Ele no foi condenado por defender teorias cientficas, mas por prtica de feitiaria, que naO JARDIM DAS AFLIES 31 equvocos que a posteridade tece em torno de um nome. Mas tambm sabem que essa fama est profundamente arraigada na crendice popular, onde a plantou uma sucesso de ob ras de fico de grande sucesso, de O Poo e o Pndulo de Edgar Allan Pe at O Nome da Rosa de Umberto Eco15. E, j que o pblico acredita na lenda, para qu desmenti-la? Por qu e no tirar proveito dela? O proveito que se tirou, no caso, foi o de evitar qualq uer exame da filosofia medieval, desviando as atenes para um assunto mais truculen to, logo, mais vistoso, com a vantagem adicional de que essa filosofia, sem ter sido contestada diretamente ou mesmo discutida, ficou assim rodeada de uma aurola sangrenta. Por automtica extenso, a aurola terminou por rodear tambm o Catolicismo de modo geral, a que aquela filosofia se associa intimamente. Em matria de retrica a arte de alcanar o mximo de persuaso com o mnimo de argumentos , foi um tour de for ce admirvel: enlamear a reputao do adversrio, sem ter precisado sequer mencionar o s eu nome. Mas fica a pergunta: Para qu? Com que finalidade um grupo de intelectuai s declaradamente empenhados na salvao moral do pas se envolve num empreendimento to comprometedor como esse de contar ao povo uma Histria da tica que falta com a tica para poder falsificar a Histria? 3. Pessanha e o pensamento Ocidental Uma pista podia ser encontrada, talvez, em Jos Amrico Motta Pessanha, um dos mais destacados membros do grupo. Na escolha das obras que compem a srie Os Pensadores da Editora Abril, de que Pessanha fora organizador e editor, j 15se manifestara, com alguns anos de antecedncia, a mesma seletividade deformante q ue agora inspirava o programa da tica. O mais significativo da filosofia escolstic a Sto. Toms, Duns Scot, Ockam fora ali todo espremido num s volume, mais ou menos do mesmo tamanho daqueles concedidos individualmente ao economista John Maynard Keynes, ao antroplogo Bronislaw Malinovski e at mesmo a Voltaire, grande retrico e jornalista que, como filsofo, no pode ser levado a srio. As distores no paravam a: Pes anha achara indispensvel dar todo um volu16 me a Kalecki, um economista que no cit ado em nenhuma Histria da Filosofia , ao mesmo tempo que omitia Dilthey, Croce, O rtega, Lavelle, Whitehead, Lukcs, Jaspers, Cassirer, Hartmann e Scheler. Procuran do, na ocasio da edio, explicarme as razes de escolhas to bizarras, conjeturei que Pe ssanha talvez no tivesse desejado ilustrar a Histria da Filosofia, mas sim a Histri a das Idias. Nesta disciplina, as teorias no se tornam dignas de ateno pelo seu valo r intrnseco, mas pela sua repercusso pblica, por seus efeitos poltico-sociais, valha m elas o que valham. A se explicaria o ttulo da srie (pensador um termo mais vago e a brangente do que filsofo) e tambm a incluso de autores menores, como Condillac, Helvti us e Dgerando, tpicos philosophes 17. Mas logo tive de abandonar essa hiptese, vist o que a coleo inclua obras que s exerceram influncia em crculos bem delimitados, como por exemplo as de Wittgenstein e Adorno, e omitia outras que produziram verdadei ras revolues, como as de Jung e Ren Gunon, que arrombaram as portas do Ocidente para a invaso das idias orientais, ou as de Spencer e Thomas Huxley, que injetaram o e volucionismo nas veias espirituais do mundo. Sem falar, claro, de Lnin ou Gurdjie ff. Enfim, o leitor dOs Pensadores, se formasse por esta s coleo sua imagem da histri a do pensamento, acabaria por conceb-la bem diversa daquela que pode16 Na verdade a lenda surgiu um pouco antes: A Idade Mdia foi denegrida, no incio da R enascena, por vcios que realmente pertenciam aos seus detratores; a Histria oferece muitos exemplos de censura transferida... Essa impresso sobre a Idade Mdia parcialm ente um produto dos Romances Gticos do sculo dezoito, com seus quadros sombrios de cm aras de tortura, teias de aranha, mistrio e desvario ( Lewis Mumford, A Cultura da s Cidades, trad. Neil R. da Silva, Belo Horizonte, Itatiaia, 1961, p. 23 ). A pr ova de que a velha aparelhagem cnica do romance gtico ainda funciona o sucesso de O Nome da Rosa.Por que essa honra concedida a um nico economista, de figurar entre os filsofos, s e ele jamais publicou um nico trabalho de alcance filosfico e se entre seus colega s de ofcio houve muitos que foram filsofos de pleno direito, como Friedrich Hayek e Ludwig von Mises? A resposta s pode ser uma: do ponto de vista uspiano um econo mista marxista mais filsofo que qualquer filsofo liberal. 17 A direita tambm tem se us philosophes, alguns de primeira ordem pela qualidade literria e pela influncia poltica de seus escritos De Maistre, Donoso Corts, Maurras, por exemplo , mas fora m omitidos.32 OLAVO DE CARVALHO ria obter em qualquer livro ou curso da matria (exceto, claro, o curso da USP, on de impera o grupo de Pessanha). Para complicar mais ainda o imbroglio, a srie Os Pensadores, num pas onde se publicam poucos livros de filosofia18 e onde as edies e strangeiras s so acessveis a uns happy few, acabou por adquirir uma autoridade comp arvel da Bibliothque de la Pliade ou dos Oxford Classics, representando, aos olhos do pblico, a imagem do pensamento universal. Enfim, o programa da tica no fizera se no prosseguir, em outra escala, a obra de deformao que Pessanha j havia iniciado por conta prpria. Mas ainda sobrava a pergunta: qual o sentido do empreendimento? Fo i s quando ouvi a conferncia de Pessanha que pude compreender, retrospectivamente, o princpio a que obedecera a seleo dos livros: Pessanha no havia procurado mostrar o passado, mas moldar o futuro. No escolhera os livros nem pelo seu valor, nem pe la sua importncia h istrica, mas pela repercusso que ele mesmo pretendia lhes dar. Ele no quisera refletir a Histria das Idias na imagem dos textos, mas produzi-la no campo dos fatos. A escolha no refletia um critrio terico, mas a deciso de uma prxis. No se tratava de Histria, mas sim de estratgia e mercadologia. O mesmo esprito pare cia ter orientado a seleo dos temas para o curso de tica, e por ele pude captar tam bm, retroativamente, a inspirao talvez inconsciente de todos os ttulos da srie de eve ntos promovidos pela Secretaria de Cultura: o olhar que aquela gente lanava sobre o mundo no refletia a imagem de um objeto, mas projetava sobre ele o sentido de uma paixo. O crculo de Pessanha no 18 Na verdade publicam-se muitos, mas no os de primeira necessidade. Em Contraponto, Aldous Huxley diz de uma personagem que, se lhe dessem o suprfluo, ela dispensar ia o essencial. Parece ser isso que os editores brasileiros pensam do leitor. At hoje no temos Aristteles completo em portugus, e o Plato de Carlos Alberto Nunes, ed itado pela Universidade do Par, jamais chegou ao Sul-Maravilha, que se cr muito le trado porque encontra nas livrarias as ltimas modas filosficas nacionais ( leia-se : estrangeiras ). Tambm nos faltam as obras principais de Hegel ( s temos a Fenome nologia e textos menores ), de Leibniz, de Kant, Schelling, Fichte, Husserl, Dil they, Hartmann e no sei mais quantos. Mas temos Simone de Beauvoir quase completa , muito Foucault, muito Antonio Gramsci, sem contar Fielkenkraut, Fukuyama e tod os os outros filsofos de alta rotatividade. por isto que, malgrado suas distores, a srie Os Pensadores se tornou, na falta de concorrentes, um item indispensvel da b ibliografia filosfica nacional. era uma comunidade cientfica empenhada em descobrir o real, mas um grupo militant e decidido a fabric-lo19. Nessa operao, Pessanha desempenhava uma funo estratgica, no como editor dOs Pensadores, mas tambm por ser, na teoria e na prtica, um grande con hecedor da Retrica, discpulo que era de Chaim Perelman, o grande renovador dos est udos retricos no sculo XX, cujos trabalhos ele foi, salvo engano, o primeiro a div ulgar no Brasil. Mas Perelman distinguia, seguindo a tradio, entre o retor e o retr ico: entre o orador persuasivo e o estudioso da cincia retrica. Perelman era essen cialmente um retrico, um investigador e codificador dos princpios da argumentao retri ca. Pessanha, por seu lado, qualificou-se sobretudo como retor, como um mestre d a persuaso, como um orador e homem de marketing. E no lhe faltaram ocasies para man ifestar o seu talento (que antes de empregar na persuaso poltica ele testara numa srie de fascculos de culinria, na mesma editora). Juntos, a srie Os Pensadores e os trs eventos O Olhar, Os Sentidos da Paixo e tica sem contar a militncia pedaggica nas ctedras da USP formam o mais vasto empreendimento de persuaso retrica j realizado n este pas por um grupo de intelectuais ativistas imbudos de objetivos polticos bem d eterminados, e dispostos a sedimentar, no plano da luta cultural, as bases para a conquista desses objetivos. Isto ainda no nos d uma resposta quanto aos motivos l timos da seleo dos temas no curso de tica, mas j nos coloca numa pista importante: s e ali a verdade sofreu graves distores, no foi por casualidade, mas para dar seguim ento coerente a uma ao iniciada muito antes. Que inteno est a subentendida e quais osvalores que nela se incorporam, o que teremos de descobrir numa anlise microscpica da conferncia de Pessanha. Mas antes mesmo de entrarmos em mais detalhes, o que foi constatado at agora j nos adverte que a estranha conjuntura referida no 1 dest e livro era ainda mais estranha do que parecera primeira vista. 19Da a receptividade, um tanto envergonhada, que se deu nesses crculos filosficos s idi as de Richard Rorty, filsofo pragmatista segundo o qual a linguagem no pode dar um a imagem do real mas somente uma expresso dos nossos desejos, e segundo o qual, no podendo encontrar universais na realidade, a filosofia deve fabric-los mediante a pr opaganda e a ao poltica. V. a propsito os captulos Armadilha relativista e Rorty e os imais no meu livro O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras ( Rio, Faculdade da Cidade Editora, 1995 ).O JARDIM DAS AFLIES 33 Pois, se j havia uma inusitada desproporo no volume de recursos culturais mobilizad os para a consecuo de um alvo to pequeno quanto a simples destituio de um mandatrio co rrupto, mais esquisito ainda era que uma elite universitria, elevada liderana inte lectual de uma reforma tica de escala nacional, se mostrasse to ignorante das regr as mais elementares da tica intelectual, to vida de falsificar a Histria, prostituir a cincia e conduzir o povo por um caminho enganoso, tudo em nome de objetivos mo rais que seriam alcanados bem mais rpida e facilmente pela velha e boa linha reta. E quanto mais eu remexia o assunto, mais inexplicvel a coisa toda me parecia. No havia remdio, portanto, seno uma sondagem em profundidade, que remontasse s razes in telectuais primeiras em que se inspirara aquela nova e singular concepo da tica. Er a preciso nada menos que interrogar Epicuro.LIVRO II - EPICURO -CAPTULO II. COSMOLOGIA DE EPICURO 4. Uma profisso-de-f epicurista. A matria segundo Epicuro As Delcias do Jardim, segunda conferncia do ciclo de tica, pronunciada por Jos Amrico otta Pessanha, no foi uma simples exposio da filosofia de Epicuro: foi uma rasgada profisso-de-f epicurista e uma declarao de guerra a todos os crticos de Epicuro. O ep icurismo foi ali pintado como uma das maiores filosofias de todos os tempos, por tadora da soluo para todos os males humanos (sic) e da inspirao que o Brasil precisa para sair do atoleiro moral. Levado por aquele entusiasmo belicoso que sempre a nima os porta-vozes de uma doutrina salvadora, Pessanha no recuou diante das maio res temeridades na apologia do seu guru. Se de um lado no poupou o sarcasmo ao ri dicularizar as acrobacias dialticas com que Sto. Agostinho, notrio adversrio do epi curismo, procurava conciliar a bondade de Deus com a existncia do mal no mundo, d e outro no hesitou em defender uma opinio que, para manter-se de p, requer uma lgica no menos circense: a opinio de que a fuga dos intelectuais para o jardim de Epicu ro no alienao nem covardia, mas uma forma superior de luta poltica. Epicuro ensinava que o filsofo deve abandonar todo empenho de reformar a sociedade, retirando-se para a vida contemplativa na solido do campo. Propor isto como um remdio eficaz pa ra a corrupo reinante o mesmo que recomendar a fuga para longe dos credores como u m mtodo eficaz de saldar as dvidas20. 20 Mas opinies esquisitas no so mesmo de estranhar em quem se declare seguidor de Epic uro; pois os traos do mestre devem se reencontrar no discpulo e Epicuro produziu a lgumas dzias de opinies que, no campo da absurdidade, se tornaram modelos insuperve is, fazendo de seu autor um clssico do besteirol. A questo no portanto saber se Pes sanha se saiu melhor ou pior do que Agostinho no seu devoto empenho, mas sim per guntar por que, num ciclo nominalmente votado ao esclarecimento de questes atuais e urgentes, algum se deu o trabalho de ir retirar o p milenar que encobria uma mmi a filosfica, s para depois ter de varr-lo para baixo do tapete. Para sondar as razes desse mistrio, cuja soluo trar consigo a de todos os outros anteriormente mencionad os, ser preciso remontar ao prprio Epicuro e, j que algum antes de ns desenterrou a mm ia, mostrar o avanado estado de decomposio em que se encontra. Um aspecto particularmente biruta da filosofia de Epicuro o seu alegado material ismo, to diferente daquela grossa metafsica de caixeiro de loja que costumamos con hecer por esse nome, e dela aparentado to-somente na distncia que ambos guardam de toda verdadeira filosofia. Segundo Epicuro, o corpo material, a alma tambm mater ial, e at os deuses so materiais havendo apenas, entre estes trs nveis de seres, a d iferena de maior para menor densidade da dita matria21. Como tudo material, s o que aterial chega ao nosso conhecimento. Logo pelas leis da silogstica epicrea , tudo o que chega ao nosso conhecimento tem, por esta mesma razo, existncia material. Tm-n a inclusive os objetos de nossos sonhos e vises imaginativas. Se sonhamos com deu ses, isto j prova, segundo Epicuro, que eles existem materialmente, pois aquilo q ue no tem materialidade no poderia afetar nossos sentidos22. S que, como no podemos encontr-los em parte alguma deste baixo mundo, eles devem estar em algum outro mu ndo. Porm, como todo e qualquer mundo existente sem21 22 Veremos, no fim, que essa opinio no totalmente destituda de sentido, mas que o seu sentido o de um engodo proposital. Lucrcio, De natura rerum, V, 146 ss. Digenes Larcio, X, 32.38 OLAVO DE CARVALHO pre material como o nosso, s lhes resta alojar seus corpinhos de matria sutil num intermundo, ou intervalo entre os mundos. No de bom tom, pela tica epicrea, pergunt ar como que seres materiais, mesmo de matria sutil, podem viver sem um ambiente m aterial em torno, e vestidos somente de intervalo. Embora materiais como ns, os d euses so compostos de matria sutil, rarefeita, e por isto so mais durveis. S que Epic uro, ao mesmo tempo, afirma a eternidade da matria, o que cria o seguinte problem a: se a matria eterna, por que teria de ser menos densa justamente nos seres mais durveis e no nos m efmeros? ais como dizer que uma superfcie pintada tanto mais azu l quanto mais diluda esteja a tinta azul. Mas um conceito de matria to elstico como o de Epicuro s podia mesmo dar nisso.argumento, com que julgava fulminar a religio grega e toda religio possvel: Ou Deus quer ajudar e no pode, ou pode e no quer, ou nem quer nem pode. Pessanha no s achou e ngenhoso este argumento, mas declarou que ele se aplica perfeitamente ao Deus cr isto. Mas nem toda a dialtica de Agostinho, somada retrica de Perelman, poderia tir ar os deuses epicreos desta aporia congnita, em que se agitam h milnios os debates n o intermundo: se eles no interferem, mas no porque no podem, no porque no querem e t mbm no porque nem querem nem podem, por que raios ento?Se a matria de Epicuro esquisita, os deuses no ficam atrs. Para comear, a nica ocupa eles consiste em conversar. S