99644893 John Wesley e Seu Seculo Vol 01

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WESLEY E SEUSÉCULO Um estudo de Forças Espirituais Pelo Rev. W. H. Fitchett , B. A. L. L. D. Diretor do Colégio das Senhoras Metodistas, Hawtthorn, Melborne Presidente da Igreja Metodista da Austrália. Autor de “Como a Inglaterra salvou a Europa” ----------- Vertido em português por Eduardo E. Joiner ----------- Volume I 1916 Tipografia de Carlos Echenique Porto Alegre Essa edição eletrônica e com linguagem atualizada é uma publicação do site da Igreja Metodista de Vila Isabel, Rio de Janeiro, Brasil. www.metodistavilaisabel.org.br OBS : As palavras e expressões entre parênteses e grafadas em vermelho são um acréscimo dessa edição visando facilitar a leitura de um livro publicado em 1916 e que usa palavras e expressões muito pouco conhecidas nesse início de Século XX.

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WESLEYE

SEUSÉCULOUm estudo de Forças Espirituais

PeloRev. W. H. Fitchett,

B. A. L. L. D.Diretor do Colégio das Senhoras Metodistas, Hawtthorn, Melborne

Presidente da Igreja Metodista da Austrália.Autor de “Como a Inglaterra salvou a Europa”

-----------

Vertido em português porEduardo E. Joiner

-----------

Volume I1916

Tipografia de Carlos EcheniquePorto Alegre

Essa edição eletrônicae com linguagem atualizada

é uma publicação do siteda Igreja Metodista de Vila Isabel, Rio

de Janeiro, Brasil.www.metodistavilaisabel.org.br

OBS: As palavras e expressões entre parênteses egrafadas em vermelho são um acréscimo dessa ediçãovisando facilitar a leitura de um livro publicado em 1916 eque usa palavras e expressões muito pouco conhecidasnesse início de Século XX.

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Prefácio

O Lugar de Wesley na História

Se João Wesley, o exigente, narigudo e queixudo homenzinho,que, aos 9 de março de 1791, foi levado à sepultura por seis pobres,deixando nada senão uma boa biblioteca, uma bem gasta sobrepeliz(veste branca usada pelos clérigos sobre a batina), uma reputaçãomuito vilipendiada, e a Igreja Metodista voltasse ao mundo agora,enquanto muitos estão a derramar-lhe à cabeça tanta tinta deadmiração, talvez seria mais surpreendido do que qualquer outrohomem sobre o planeta. Pois se Wesley alcançou a fama foi semcortejá-la. Seeley diz que a Inglaterra conquistou e povoou a metade domundo num acesso de sonambulismo. E se Wesley edificou uma dasmaiores entre as Igrejas hodiernas, e deu um novo ponto de partidapara a história religiosa nos tempos modernos, fê-lo sem premeditação.

Durante mais de uma geração depois de sua morte oshistoriadores ou ignoravam ou não se importavam com João Wesley.Era tido por um fanático, visível à humanidade por um momento, sobreuma onda de fanatismo, para desaparecer na escuridão sem deixarquem o chorasse nem o lembrasse.

A literatura recusou tomá-lo a sério, negando-lhe direito a lugarqualquer entre os afamados de todo o tempo. Mas afinal Wesley chegouao reino de sua fama. Os maiores elogios, que são lhe tributados hoje,não vêm do íntimo da Igreja que ele fundou, mas dos de fora. LeslieStephen o descreve como o principal capitão-mor entre os homens deseu século. Macaulay ridiculariza os escritores de livros intitulados“História da Inglaterra” que não descobrem, entre os eventosdeterminantes dessa história, o nascimento do Metodismo. Ele afirmaque Wesley “possuía uma capacidade regente em nada inferior àquelade Richelieu" . Matheos Arnold tributa-lhe louvor, ainda mais nobre,quando o chama de “um gênio de piedade”. Southey, que escreveu avida de Wesley, sem entender, mesmo superficialmente, o seu segredo,assevera que, “foi a inteligência mais influente do século passado; ohomem que terá conseguido os maiores resultados, séculos e talvezmilênios no futuro, caso a presente raça de homens subsistir por tantotempo”. Buckle o intitula, “o primeiro entre os estadistas eclesiásticos”.

Leckey diz, que a humilde reunião, na rua Aldersgate, onde JoãoWesley se converteu, “constitui uma época na história inglesa”acrescentando, que a revolução religiosa começada na Inglaterra pelapregação dos Wesley, “é de maior importância histórica do que todas asconquistas gloriosas, por terra e mar ganhas, sob o governo de Pitt". Eleafirma que Wesley foi uma das principais forças que salvaram aInglaterra de uma revolução, tal como a que visitou a França. O Sr.Agostinho Birrell diz que, “nenhum outro fez uma obra tão vital para aInglaterra; nem se pode tirá-lo da vida nacional”.

Em suma, a Inglaterra se acha tão intimamente relacionada comWesley quanto com Shakespeare. E como as forças que nascem dareligião são mais poderosas do que qualquer coisa conhecida naliteratura, é conclusão lógica que, na determinação da história da raçaque fala a língua inglesa, Wesley é de maior importância do queShakespeare.

Que houve, pois, no próprio Wesley, ou no seu trabalho, parajustificar tão grandiosos elogios por parte de autoridades tão diversas?Em certo sentido, o menor monumento a Wesley, é a Igreja que, eleedificou; entretanto, a escala e majestade dessa Igreja não sãofacilmente explicadas, nem tão pouco a rica e crescente energia pujanteem sua vida. Quando Wesley morreu em 1791, as suas “Sociedades”na Grã-bretanha contavam 76.000 membros e 300 pregadores. Hoje, oMetodismo na Grã-bretanha, no Canadá, nos Estados Unidos e naAustrália, tem 49.000 ministros em seus púlpitos, e cerca de 30.000.000de pessoas em seus auditórios. Tem construído 88.000 igrejas; e todosos domingos ensina a mais de 8.000.000 de crianças em suas EscolasDominicais.

Os ramos do Metodismo são, em certo sentido, mais pujantes doque o tronco original. No Canadá, em uma população inferior a6.000.000, quase 1.000000 são Metodistas. Na Austrália uma pessoaem cada nove pertence à Igreja de Wesley. Em alguns pontos, pelomenos, é a mais pujante forma do Protestantismo no mundo. A IgrejaMetodista nos Estados Unidos levantou 4.000.000 de libras esterlinasem comemoração do seu centenário - nunca houve na história doCristianismo outra soma tão grande levantada em um só esforço porqualquer Igreja.

O tempo é um crítico áspero; dissolvendo, qual um forte ácido,todos os embustes. Mas a Igreja que Wesley fundou faz mais do que

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sobreviver a esta prova. Um século depois da morte de Wesley ela estábem perto de cem vezes de que era quando ele a deixou.

Entretanto, repetimos que o verdadeiro monumento de Wesleynão é a· Igreja que tem o seu nome. É a Inglaterra do século XX! Maisainda, é o temperamento do mundo inteiro de hoje; os novos ideais napolítica, o novo espírito na religião, o novo padrão na filantropia. Quemquer entender o trabalho de Wesley deve comparar o espírito moral doséculo XVIII com o do século XX; pois, um dos mais poderosos fatorespessoais na produção desta maravilhosa mudança se acha no próprioWesley.

De algum modo, o século XVIII é o mais vilipendiado período nahistória inglesa. É a “Cinderela” dos séculos. Ninguém tem por ele umapalavra de louvor. Thomas Carlyle descreve-o em uma frase pungente:“Alma extinta; barriga bem viva”. Entretanto não se pode condensar umséculo no estreito limite de um epigrama, e ainda menos num que foiescrito com fel. O século XVIII sofre porque colocamo-lo numa falsaperspectiva. Comparamo-lo com os séculos seguintes, e não com osseus precedentes. Os seus traços são deveras sombrios quandoencarados entre a revolução inglesa do século XVII que destruiu osStuarts, e a revolução francesa do século XIV que expulsou osBourbons. Mas não sejamos injustos, nem sequer, com um século! Oséculo XVIII é para a Inglaterra, um fio de nomes ilustres e de feitosestupendos. Achou a Inglaterra, a Escócia e a Irlanda, reinos separadose deixou-os unidos. Se bem que nos tirou os Estados Unidos. Mas emcompensação, deu-nos o Canadá, as Índias e a Austrália. Se ele deu aInglaterra doze anos do malfadado governo de Lord North, também,contribuiu com os vinte anos do esplendoroso governo de GuilhermePitt. Se esse século testemunhou o fuzilamento de um almirante inglês,no tombadilho de seu navio, pelo crime de covardia, e uma frota inglesarevoltada em Nore, também, presenciou as vitórias marítimas deRodney, na batalha dos Santos; de Lord Howe, ao 1° de Junho; e deNelson, no Nilo. Foi ganha a batalha de Blenheim no ano seguinte(1704) ao do nascimento de João Wesley (17/6/1703), e a do Nilo noano que ele morreu (2/3/1791) . O século que correu entre taisacontecimentos não podia ser inglório. Foi indubitavelmente um séculode crescimento social e político. A Inglaterra de George lII e de Pitt foimuito superior à da Rainha Anna e de Walpole.

O verdadeiro escândalo de Inglaterra no século XVIII , a lepra quelhe envenenou o sangue, a mancha negra sobre o escudo luminoso desua história, estava na decadência geral da religião que reinava nos

seus primeiros cinqüenta anos. A fé da Inglaterra estava moribunda. Osseus horizontes espirituais escureciam com as trevas de uma meia-noite polar, e estavam frios como as geleiras árticas.

Só por um esforço da imaginação histórica se pode recordar acondição de Inglaterra em 1703. Quando Wesley nasceu ainda existiamhomens que viram, na presidência do tribunal, o juiz Jeffreys; e comotestemunha, o Tito Oates; e sete bispos no cepo. Montesquieu, queestudou na Inglaterra desse século XVIII, através de seus olhospenetrantes (críticos) de francês, diz laconicamente: "Religião, tal coisanão existe na Inglaterra". Sabemos que isto não foi a pura verdade, poisa existência do presbitério de Epworth o desmente; e sem dúvida houvemuitos outros lares ingleses semelhantes àquele em que SuzanaWesley era mãe. Mas as palavras do astuto francês continham umaterrível aparência da verdade. Nunca antes, nem depois, esteve oCristianismo tão vizinho à morte.

Quem não se lembra das sentenças que o Bispo Butler, umespírito tão melancólico, sutil e poderoso, prefixou à sua "Analogia”. Eleescreveu: "De certo modo já se toma por estabelecido que oCristianismo não somente é assunto indigno de investigação, mas queagora, afinal tem-se provado fictício... Os homens o tratam no séculopresente como se isto fosse admitido, e como se nada restasse se fazersenão expô-lo como alvo principal de riso e mofa". Entre Montesquieu eButler, o grande francês e o ainda maior inglês, que grande procissãode testemunhas poderiam ser citadas em prova da decadência da fé nocomeço do século XVIII! E morta a fé, que resta mais?

Aqueles que desejam ver a moralidade desse período, a acharãorefletida na arte de Hogarth, na política de Walpole, nos escritos da Sra.Aphra Benn e de Smolett, e nos divertimentos do Clube dos Loucos. Elaacha-se registrada na podridão da literatura da época, na crueldade dasleis, e no desespero de sua religião. O Cristianismo não chegou aperecer, mas chegou bem perto a sua agonia mortal nesse século . Ohistoriador Green assevera que havia uma revolta aberta contra areligião e as Igrejas nos dois extremos da sociedade inglesa. “A classepobre foi ignorante e brutal, num grau que agora seria difícil imaginar-se. A classe abastada, que chegou a uma descrença quase total nareligião, acrescentava um viver tão imoral que, felizmente, é hoje quaseinconcebível.”

Então veio um grande avivamento! O movimento maismaravilhoso na história do século XVIII, cujo maior benefício para o

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povo que fala a língua inglesa não foi nada no domínio da política, nemda literatura, nem da ciência; não foi o desenvolvi mento da classemédia, que deslocou o centro do poder político; nem foi o grandedespertamento industrial, que multiplicou dez vezes a riqueza da nação;mas está no renascimento de sua religião! E disto Wesley foi, há umtempo, o símbolo e a causa.

Este avivamento traduziu para a vida inglesa, e em termos muitomais felizes, a reforma que Lutero efetuou na Alemanha. A reforma deWycliffe não teve raiz; a reforma no tempo de Henrique VIII foi pior: foipolítica e destituída da moral. O verdadeiro despertamento da vidareligiosa do povo que fala a língua inglesa aconteceu com Wesley.Afirmar-se que foi Wesley que reformou a consciência de Inglaterra éverdade, mas não é tudo, pois ele a recriou! Estava morta - duplamentemorta; e por seus lábios Deus soprou nela outra vez o fôlego vital.

Sente-se hoje o pulso de João Wesley em cada fase dareligiosidade inglesa. O fogo dele arde nas múltiplas formas da nossafilantropia. Citamos o historiador Green mais uma vez: "Os Metodistasconstituíram o menor resultado do avivamento metodista. A suainfluência sobre a Igreja acabou com a letargia do clero. Mas o seuresultado mais benéfico está no esforço constante, que desde então atéhoje, nunca cessou, para diminuir o crime, a ignorância, o sofrimentofísico, a degradação social das classes profligas (abatidas, destruídas) epobres... O grande avivamento reformou as nossas cadeias, aboliu otráfico de escravos, tornou mais clemente o nosso código penal, e deu oprimeiro impulso à instrução (educação) popular”.

Mas qual foi o segredo de João Wesley? Qual o estranho encantoque empregou para efetuar tamanho milagre? Criar-se uma nova Igrejaé um grande feito, mas reformar uma Igreja já velha e amortecida é,talvez, tarefa ainda mais difícil.

Como foi que Wesley conseguiu as duas coisas? A respostaacha-se na história narrada nestas páginas. Mas compreendamosdesde já que seria fútil buscarmos a explicação num mero dote de umgênio pessoal. Os elogios que se tecem a Wesley são, muitas vezes,desmedidos. Não foi ele, como quer o Buckle, “o primeiro entreestadistas eclesiásticos” – um Leão X de batina. Não possuía comojulgou Southey, "a mais robusta inteligência do seu século”. Tem algode verdade a crítica de Coleridge quando diz, que Wesley tinha umainteligência lógica, mas não filosófica. Nada teve do gênio sonhador deBunyan; não se comparava, na extensão e na largura de seus

pensamentos, com o autor da "Analogia". Se descermos a nomes etempos mais recentes, não teve a profunda e sutil inteligência deNewman. O segredo de sua obra não se acha no bem designado emagnífico mecanismo eclesiástico com que dotou a sua Igreja. Asinstituições características do Metodismo não originaram o grandeavivamento; são apenas os resultados. Wesley não inventou qualquerdoutrina nova; nem tão pouco aumentou a soma de conhecimentoscristãos por qualquer verdade nova. Ele mesmo disse: “Eu somenteensino a simples e velha religião da Igreja Anglicana”. Ou como disseem outro lugar, “Verdades que constituíam simplesmente os ensinosgerais e fundamentais do cristianismo”. E isto foi a pura verdade.Wesley não redescobriu o cristianismo; não o perturbou com uma novaheresia, nem dotou-o de uma nova doutrina; nem tão pouco colocou asdoutrinas velhas em nova perspectiva.

O fracasso da religião do século XVIII estava nisto: tinha deixadode ser uma vida, nem tocava na vida. Fora exausta (esvaziada) de seuselementos dinâmicos - a visão de Cristo Redentor, a mensagem de umperdão presente e pessoal. Estava congelada numa teologia; achava-secristalizada num sistema filosófico; tinha se tornado em simples adjuntapolítica. Ninguém a prezava, nem a estimava, nem procurava desfrutá-la como sendo um livramento espiritual; livramento este, ao alcance dospróprios dedos; livramento realizável na consciência individual. Areligião, traduzida nos termos da experiência vital do homem,subsistindo como uma energia divina na alma, era coisa esquecida.Uma lâmpada elétrica separada da corrente elétrica é somente umasérie de voltas de delicados fios sombrios e mortos. E o próprioCristianismo, na Inglaterra, ao começo do século XVIII, foi essa série devoltas de fios amortecidos. Mas Wesley fez derramar a corrente místicada vitalidade divina sobre a calcinada alma da nação, convertendo aescuridão em chamas.

O segredo de Wesley, portanto, não se achava no seu gênio deestadista, nem na sua habilidade em organizar, nem na sua capacidadeintelectual. O seu “segredo” desde o princípio até o fim, pertence aodomínio espiritual. A energia que vibrava no seu olhar, que emanava desua presença, que fazia de sua vida uma chama, e de sua voz umencanto, fica, em última análise, na categoria de forças espirituais. Mastudo isto demonstra quão elevado era o plano em que Wesleytrabalhava, e quão grandes eram as forças que representava.

George Dawson, em seus “Discursos Biográficos”, diz: “Nuncapenso em Wesley sem associá-lo com os quatro homens que tiveram o

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mesmo nome de batismo, e dos quais a Inglaterra se orgulha, a saber:João Wycliffe, o reformador antes da Reforma Protestante de 1516;João Milton, a maior alma que a Inglaterra jamais conheceu; JoãoBunyan, o autor de “O Peregrino”, o melhor livro – excetuada a Bíblia –que o mundo jamais apreciou; e João Locke, que dedicou umaesclarecida inteligência, uma educação esmerada e uma consciênciapura em colocar, sobre as bases da filosofia, aquilo que antes seconsiderara um simples sentimento. Então veio João Wesley, e creioque, considerado em tudo, é digno de andar na companhia dessesquatro”. Mas Dawson não atinou que, não obstante Wesley não possuiro gênio de Milton, nem a imaginação luminosa de Bunyan, nem ainteligência sutil de Locke, contudo, exerceu uma influência muito maisprofunda sobre a história inglesa do que os outros três juntos.

Há homens que vivem na história por terem incorporado em simesmos as idéias regentes do seu tempo, fazendo-as vitoriosas. Háoutros, de poderes mais elevados, que não são refletores apenas, mascriadores dos impulsos que regem o mundo em que habitam. Elesamoldam o século sem serem por este amoldados. Napoleão Bonapartepertencia ao primeiro tipo: não criou a revolução, mas tornou-se oherdeiro e a expressão dela. Cezar, Imperador Romano, foi da outraordem superior: não somente achou um novo canal para as correntesda história romana, mas mudou a direção dessas correntes; pela forçade seu gênio ele dotou a história e a ordem política de Roma com umanova fisionomia.

João Wesley também, julgado pela escala e permanência de suaobra, pertence ao tipo superior. Não foi simplesmente o intérprete doseu século, o figurão acidental de uma revolução espiritual que teria seposto em movimento independente dele, o centro humano, em cujoredor ter-se-iam cristalizados os impulsos que lentamente fermentavamem milhares de outros. Não foi a reflexão do seu século, mas o ajustoua um novo molde; fê-lo vibrante com a energia de uma nova vida.Estava, na realidade, em oposição ao temperamento essencial do seuséculo; entretanto, fê-lo conformar (tomar a forma, experimentar) a seupróprio (um temperamento e uma espiritualidade marcados pelavitalidade e santidade da Graça de Deus) . Ele foi o expoente deinfluências que mudaram a história religiosa de Inglaterra.

Em suma, Wesley foi grande; grande no simples escopo e escalade inteligência; maior do que a sua geração imaginava, ou do que a suaprópria Igreja ainda reconhece. Ninguém é capaz de estudar a vida e aobra de Wesley sem receber uma mais profunda compreensão da

escala do homem em comparação com as outras figuras notáveis dahistória. Mas a obra que efetuou foi muito maior do que o próprioWesley; e maior, porque teve o seu segredo no domínio (poder, força)espiritual (na graça e poder de Deus).

É justamente isso que torna a sua história em uma inspiraçãopara todos os tempos. Os supremos dotes de inteligência não sãotransferíveis. O gênio criador de Shakespeare, a imaginação penetrantede Dante, a habilidade de Darwin em combinar mil fatos aparentementedesligados numa generalizarão triunfante, a capacidade de Wellingtonem adivinhar “que havia do outro lado do morro" - eram dotes originaisda natureza. Eram dons, não aquisições. Mas as grandes forças egraças do domínio espiritual não dependem da liberalidade nem danegação da natureza. O seu segredo não está escondido nasconvulsões da massa encefálica; antes depende de condições e está,portanto, ao alcance de quem quiser.

Repetimos: o segredo de Wesley está justamente aqui. Grandecomo foi a sua obra, contudo, a sua explicação é fácil e simples. E oreconhecimento deste fato, logo no começo, é o que torna a história davida de Wesley digna de ser escrita e lida.

Sim! Através o que se costuma chamar a magreza do século XVIIIestende-se uma áurea corrente de nomes poderosos. O Marlborough -que venceu a Blenheim no ano que Wesley nasceu – encabeça a lista;o homem que sob a máscara de um semblante sereno escondia osmais terríveis dotes militares conhecidos a história inglesa. O Nelson e oWellington acham-se perto do fim desse século. Entre as figuras aindavisíveis à história são os dois Pitts - pai altivo e filho ainda mais; o Wolf,com o nariz apontando para as nuvens, nos deram a América; o Clive,cuja testa franzida ganhou-nos a Índia; e o Canning, que chamou àexistência o novo mundo para restaurar o equilíbrio do velho. O papeldo século em literatura foi esplêndido; corre desde Swift e Addison,Johnson e Goldsmith, Pope e Gibbon, até Byron e Burns, até Coleridgoe Wordsworth. Isaac Newton é o seu representante na ciência; Burke ePitt no estado; Wilberforce na filantropia. Entretanto, naquela multidãode grandes, o expoente da força que influiu mais profundamente nahistória inglesa foi o narigudo e ruivo semblante de João Wesley, deolhar penetrante, queixo dominante e cachos cumpridos.

Alguns querem que Newman, nascido dez anos depois da mortede Wesley (, tenha exercido uma tão profunda influência sobre a vidareligiosa do seu país como ele (Wesley). É perdoável para um

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protestante convicto, a opinião de que a influência de Newman foi má, enão boa. Mas, à parte disso, deve-se lembrar que, dos seus noventaanos, Newman lançou os primeiros quarenta e cinco na balança a favorda Igreja Anglicana e os últimos quarenta e cinco a favor da IgrejaRomana. Nem a Anglicana nem a Romana podem chamá-lo seu, natotalidade; pois passou a primeira metade de sua vida em protestarcontra a Romana, e a segunda metade em protestar contra a Anglicana.George Washington é o único nome nos anais do século dezoito querivaliza com o de Wesley em sua influência sobre a nossa raça, e Wes-ley representa a energia mais perdurável.

Tudo isto se pode dar (tributar) a Wesley, não porque o seu gêniosobrepujasse os homens do seu século, mas, porque lidava com forçasmais elevadas do que eles. Aquele que desperta as grandes energiasde religião, toca na força motriz da vida humana; uma força maisprofunda do que a política, mais elevada do que a literatura, e maislarga do que a ciência. Wesley trabalhou num domínio abanado pelasbrisas da eternidade.

PARTE I

O Feitio do Homem

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CAPÍTULO I

Forças ancestrais

João Wesley veio de notáveis antecedentes: os seusantepassados por três gerações eram nobres de nascimento, doutos àforça de estudos, clérigos por escolha, e mártires, em certo sentido, àdureza da sorte. Pertenciam a um século duro: época de despejos eproscrições em que a intolerância cristalizava-se em leis do parlamentoe ostentava-se por religião. Daniel Defoe, por três vezes, foi expostopublicamente no tronco, no mesmo ano em que João Wesley nasceupelo simples fato de ter escrito a incomparável peça de ironia, intitulada:“Um meio Breve e Fácil de acabar com os Dissidentes”.

Uma grande tempestade de crueldade legalizada desabou sobreos Wesleys daquela época. Bartolomeu Wesley, bisavô de João, tevede despejar (desocupar) a boa casa paroquial de Dorsetshire emantecipação da expulsão geral provocada pela “Lei de Uniformidade”em 1662 (que colocou os cargos da Igreja Oficial e do Estado nas mãosdos anglicanos e proibiu as reuniões dos puritanos. Por causa do Ato deUniformidade, em 1662, que exigia total aceitação do Livro de Oraçõesanglicano, nada menos que dois mil ministros presbiterianos,independentes e batistas foram obrigados a deixar suas igrejas e ospuritanos se tornaram uma parte da tradição não-conformista daInglaterra). O filho de Bartolomeu de nome João, ainda mais letrado doque o pai, mas de fibra menos rígida, foi encarcerado em 1661, umpouco antes da expulsão do pai, por não usar o “Livro de OraçãoComum”. Foi arremessado (expulso) da paróquia de Blandford em1662, e depois vivia oprimido e perturbado sob as leis cruéis desseperíodo. Era natural de Weymouth, mas não lhe foi permitido residir ali;e uma boa mulher, por dar-lhe pousada, foi multada em vinte libras pela“ofensa”. “Muitas vezes perturbado, diversas vezes, preso, quatro vezesencarcerado”, é o tom melancólico de seu paciente diário. Sob a infame"Lei das Cinco Milhas” ele foi tocado de lugar em lugar, até a sua morte,quando ainda comparativamente jovem, vitimado pelo espírito crueldessa época.

Samuel Wesley, neto de Bartolomeu e pai de João Wesley,possuía todas as virtudes essenciais de seus antecedentes – a mesmapaixão pelo estudo, a mesma coragem, a mesma independência de

espírito, mas era de um temperamento mais rígido do que o seu paiJoão. Esse espírito independente tomou um curso um tantosurpreendente; pois o filho e neto de ministros vitimados do despejo,decidiu que a Igreja (a Anglicana, a igreja oficial do estado inglês), quelhes despejou, tinha razão, e uniu-se ao seu ministério, contrariandoassim duas gerações de parentes ludibriados! Esteve nesse temponuma escola dissidente, rapaz que apenas alcançara sua maioridade;mas o caráter da dissidência que o rodeava bem podia escandalizar aum jovem sério e generoso. Encontrou ali simplesmente uma espéciede amargurada política, absolutamente despida de idéias e forçasreligiosas. Assim, Samuel Wesley renunciou a ela, e seguiu a pé paraOxford, com exatos quarenta e cinco shillings no bolso, onde sematriculou no colégio de Exeter como “estudante pobre”.

Foi nesse tempo, mais ou menos, que uma menina de treze anos,Suzana,filha de um famoso ministro dissidente de Londres, estavapondo na balança de seus juízos a seu pai e a teologia dele, decidindotanto contra o pai como contra as suas opiniões!

O moço destemido que caminhara para Oxford no rigor doinverno, com tão pouco dinheiro no bolso, mas com tão nobre propósitono coração, e a menina notável que estudara a teo logia quando aindase vestia de criança, não se conheciam ainda; mas foram destinados ase casarem. Existiam entre eles certas afinidades bem notáveis, equando se encontrassem e casassem, seria razoável esperar que seusfilhos possuíssem qualidades descomunais.

Todos os auxílios que Samuel Wesley recebia da famíliaenquanto cursava a universidade importava em apenas cinco shillings;entretanto saiu no fim com o seu pergaminho e com dez libras e quinzeshillings no bolso! Talvez nunca houvesse um estudante que dessemenos ou que recebesse mais de Oxford do que Samuel Wesley. Nasuniversidades escocesas gerações de estudantes rígidos têm cultivadomuita literatura com muito pouco mingau de aveia, mas bem se podedesafiar as universidades ao norte do Tweed que apresentem umexemplo de uma formatura nutrida de tão pouco dinheiro, ou de dietatão minguada como no caso de Samuel Wesley.

Ele serviu de cura (vigário) em Londres por um ano, depois foicapelão de um navio na marinha real durante outro ano e depoisganhou a posição de capelão de um regimento, em virtude de umpoema que escrevera sobre a batalha de Blenheim (uma famosabatalha da Guerra da Sucessão Espanhola, em 13 de agosto de 1704,

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que ocorreu próxima à vila de Blenheim na Bavária, atual Alemanha,onde as tropas anglo-austríacas, lideradas pelo líder militar britânico,John Churchi ll, primeiro duque de Marlborough e o general austríacoEugene de Savoy, venceram os franceses e os bávaros), posição quemais tarde perdeu, segundo diz alguém, por ter publicado um discursocontra os Dissidentes. Foi-lhe dado a paróquia de Epworth, que foidepois, aumentada com a de Wrocte.

Samuel, o pai de João Wesley, mesmo depois de passado tantotempo, desperta uma admiração meio humorística, meio exasperadora.Era homenzinho irascível, com olhar irriquieto, de sentimentos nobres,ativo de pensamento, de grande constância e coragem, mas algo dedesajeitado e irresponsável na sua natureza. Quis - contra a natureza -fazer-se poeta; e sobre os seus versos, Alexander Pope (considerado omaior poeta inglês do século XVIII), embora seu amigo, acha tempo no“Dunciad” (escrito satírico cujo nome vem de "dunce", pateta, bobo, tolo)para destilar uma gota de fel. O seu filho João Wesley, que conhecia devista a má poesia do pai, tendo a lealdade filial lutando com o seu juízoliterário, diz de sua obra “Vida de Cristo” em verso: “Os clichês sãobons; as anotações regulares; os versos assim, assim”. Elogio de umatemperatura mais gelada, dificilmente se pode imaginar. A obra primade Samuel Wesley foi um comentário sobre o Livro de Jó,empreendimento este que ter ia proporcionado mais uma oportunidade,para o exercício de paciência àquele mui aflito personagem bíblico (Jó)caso fosse obrigado a lê-lo. “Pobre de Jó”, disse o bispo Warburton, “foisempre a sua sorte ser perseguido por seus amigos”.

Suzana, a ativa mulher de Samuel Wesley, que amava o seudesajeitado e irascível marido com uma dedicação que maridos emgeral bem podem invejar, admite que, entre os incultos paroquianos deEpworth, os talentos de seu esposo estavam enterrados; acrescentandocom a habilidade de esposa leal, que ele está “obrigado a um modo deviver para o qual não se acha tão bem qualificado quanto eu desejaria.”Mas isto foi simplesmente a suave crítica da esposa. O maridodesajeitado se ocupava em martelar versos laboriosos no seu gabinete,ou montava a cavalo, demandando as convocações onde debatia comos párocos vizinhos, deixando à inteligente esposa o cuidado daparóquia, o cultivo das terras e o governo de seu tão numeroso grupode filhinhos.

Suzana Wesley seria mulher notável em qualquer século ou país.Era filha do Dr. Anesley, um ministro que havia sofrido ejeção (que foraexpulso da casa paroquial onde morava e da igreja onde era vigário por

ser dissidente denro da igreja anglicana) homem douto e de boa família,cuja filha possuía natural inclinação para o estudo. Suzana sabia grego,latim e francês antes de ter vinte anos de idade, e achava-se saturadade teologia. Em suas reflexões, aceitou primeiro o socinianismo(doutrina baseada na teologia de Fausto Socino, falecido na Polônia,em 1604, que era antitrinitária, rejeitava o batismo e a ceia do Senhorcomo meios de graça e o pecado original e afirmava que Jesus deNazaré era apenas um homem), para depois tornar a rejeitá-lo. Ela teveum gosto geral pelas questões difíceis, que nos dias suaves de hoje sãopouco apreciadas.

Suzana lia os padres primitivos (os Pais da Igreja) e lutava com assutilezas da metafísica enquanto uma menina de hoje estaria jogandotênis, ou estudando sonatas. Com treze anos, apenas, ela revistou todaa matéria em discussão entre os dissidentes e a Igreja, opinando contraa posição mantida por seu pai e pai tão nobre. Uma menina de tãopouca idade, que estudava a teologia e se julgava capaz de decidir emtal assunto, e que de fato decidiu de um modo tal, e na face de taisautoridades, seria hoje tomada por um portento alarmante. EntretantoSuzana Annesley foi uma linda e espirituosa menina - cuja irmã foipintada por Lely como uma das mais belas do seu tempo – inteligente,mas modesta, com jeito para negócios práticos. É certo que nem foidescuidada nem melancólica, sendo provavelmente a mais notávelmulher de Inglaterra nos dias em que viveu.

Aos dezenove anos casou-se com Samuel Wesley, e durante osvinte e um anos seguintes deu à luz dezenove filhos. Ela própriaocupava o vigésimo quinto lugar entre os filhos de seu pai. O séculoXVIII foi um século de pequenos vencimentos (salários) e grandesfamílias!

Suzana foi esposa ideal, incomparavelmente superior a seumarido em gênio e jeito, entretanto ingenuamente cega a este fato. Elabem podia ter discutido a filosofa com a Hypathia (filha do filósofo Téone nascida em 370 depois de Cristo, era matemática, filósofa e foi aúltima cientista a trabalhar na biblioteca de Alexandria, antes que fossedestruída), discorrido em latim e grego com a Lady Jane Grey(considerada uma das mulheres mais cultas da sua época, 1537-1554,que subiu ao trono inglês por desejo do Rei Eduardo VI e que foiretirada do trono 9 dias depois por Maria I, filha legítima do rei, econdenada e executada por traição). No entanto com o seu maridodesajeitado e impetuoso mostrou-se tão paciente, se bem que, nem

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sempre tão submissa como Griselda (personagem da poesia de LordAlfred Tennyson).

Tanto Samuel quanto Suzana possuíam vontade própria, e amboscostumavam pensar por si mesmos. Ela escrevia depois ao filho João,“É uma infelicidade, quase peculiar à nossa família, que eu e teu pairaramente pensamos do mesmo modo”. Mas é certo que quandodiscordavam, quase sempre Suzana tinha razão. Entretanto elamanteve para com o seu marido a mais admirável obediência. O pugnaz(briguento) homenzinho mui propriamente despendia muitos de seusversos trabalhosos com a esposa. Eram versos de pé quebrado; e aprosa da vida conjugal é geralmente mais dura do que a sua poesia.

Um dia fatal o pároco de Epworth descobriu que a mulher tinhaopinião própria sobre a política, não o acompanhava no responso dasorações pelo rei. “Suzana”, disse ele majestosamente, “se havemos deter dois reis, tenhamos duas camas”; e o homenzinho absolutista,irresponsável e imperioso montou o cavalo e foi embora, deixando àmulher o cuidado da família e da paróquia. Segundo Southoy – mas istoé duvidoso - ela não teve mais notícias dele até falecer o rei GuilhermeIII, um ano depois, quando teve a condescendência de voltar outra vezpara o seio de sua família.

O corajoso casal começou a vida conjugal com uma freguesia(pessoas que freqüentavam a paróquia) que rendia trinta libras por ano;os filhos vinham depressa - como já dissemos, dezenove filhos em vintee um anos. De modo que a pobreza – sempre assombrada com oespectro (fantasma, assombro) de dívidas, e às vezes tremente (quetreme, que balança) à beira da dura necessidade - foi um elementosempre presente na vida da família.

Muitos anos depois, numa carta dirigida a seu bispo, SamuelWesley deu-lhe o interessante informe que recebera somente 50 libraspor ano durante seis ou sete anos consecutivos, e “ao menos um filhopor ano”. O parocozinho de Epworth foi muito dado aos problemas dearitmética familiar para a edificação de seu diocesano. Numa carta aoArcebispo, comunicando-lhe o nascimento de filhos gêmeos, diz:

“A noite passada a minha mulher me apresentou com unspoucos filhos. Até agora só há dois, menino e menina, e julgo quesão todos presentemente. Já tivéramos quatro em dois anos e umdia, três dos quais vivem... Quarta·feira de manhã eu e a minhaesposa reunimos os nossos haveres, que importavam em seisshillings, para comprar carvão”.

Pode·se perdoar o espírito de ansiedade num pai que, comsomente seis shillings no bolso, tem de providenciar pela chegada degêmeos. Mas o chefe da família Wesley deixava este dever familiar,como quase tudo mais, à sua mulher. Era ela quem carregava o fardodos cuidados caseiros, enquanto seu marido assistia às convocaçõesou ia para a prisão por dívidas no espírito de vero filósofo. Ele escreveuao arcebispo de York, logo que as portas do Castelo de Lincolnfecharam-no dentro: “Agora posso descansar, pois já cheguei ao abrigoonde, há muito, eu esperava parar” Incidentalmente, acrescentou:“Quando aqui cheguei, os meus haveres só importavam em pouco maisde dez shillings, e a minha mulher em casa não tinha tanto.”Evidentemente este notável marido não reconhecia que a mulherdeixada com um grupo de filhinhos, e menos de dez shillings tinha maisrazão de incomodar-se do que ele. Ela ao menos, não podia assentar-se para escrever filosoficamente: “Agora posso descansar”. Eleacrescentou: “Ela logo me mandou os seus anéis, porque nada maispossuía com que pudesse me socorrer; mas eu lhos devolvi”.

Somente uma vez se ouviu queixumes desta mulher corajosa.Enquanto seu marido ainda jazia preso em virtude de dívidas, oArcebispo de York perguntou-lhe: “Dizei-me madame Wesley, de fatojamais sentiste falta de pão?”.

“Meu senhor”, respondeu ela, “para dizer a verdade, nuncame faltou o pão; mas tenho tido tanto trabalho para arranjá-loantes de comer, e para pagá-lo depois, que muitas vezes ele éme muito amargo; e julgo que se ter pão em tais condiçõesaproxima bem ao grau de miséria em que não se tem nenhum”.

Mais tarde ela escreveu acerca do “inconcebível desespero” quefreqüentemente sofriam nesses tempos tristes; e uma das filhas, Emília,fala em tom mais agudo da ‘intolerável necessidade” que a famíliapadecia, e da “dura precisão de coisas indispensáveis“ que não rarasvezes lhes acometia.

É indubitável que Samuel Wesley dirigia mui mal os seusnegócios financeiros. Praticamente entendeu toda a triste filosofia dedívidas. Ele escreve: “Sempre me pedem dinheiro antes de eu tê-loganho, e tenho de comprar tudo nas piores condições”. Mas faltava-lheo bom senso no manejo do dinheiro. Mui delgada era a parede queseparava a sua casa da mais urgente necessidade; entretanto esteincomparável marido e pai podia gastar não menos de 150 libras em

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assistir por três vezes a Convocação! Mas não obstante isto era muisensível a qualquer censura de seu jeito e cuidado como chefe defamília; e, ao cunhado que lhe repreendeu asperamente sobre oassunto, citando as Escrituras em abono da tese pouco confortável que,“quem deixa de prover pela própria casa é pior do que o infiel”. Eleofereceu a seguinte exposição de seus negócios. O algarismo tem umaconfusão característica e deliciosa, e bem podem levar um bomcontador ao desespero; contudo mostram que, se o impacientehomenzinho nunca soube viver dentro dos limites de seus vencimentos,ao menos conseguiu existir com muito pouco. Nota-se que tudo estáescrito na terceira pessoa:

Libra Shilling PenceImprimis, quando primeiro foi a Oxford, tinha em

dinheiro2,50

Viveu ali até formar-se bacharel, sem qualquerpreferência ou auxilio, senão uma coroa

0,50

Pela benção de Deus sobre o seu próprio empenhotrouxe a Londres

101,50

Chegado a Londres, recebeu ordem; de diácono e umcurato, recebendo por um ano

28,00

Neste ano pela pensão, ordenação e hábito ficouendividado, 30 L que depois pagou.

30,00

Então foi ao mar, onde teve por um ano 70 libras querecebeu dois anos depois.

70,00

Então tomou um curato com 30 libras por ano, durantedois anos, e por esforço próprio, em escrever etc.ganhou mais 60 libras por ano.

120,00

Jamais houve uma peça de aritmética mais complicada?Entretanto através dos algarismos confusos transparece o espíritocorajoso!

Em carta a seu arcebispo, Samuel Wesley faz umadesnecessária, mas franca confissão de sua falta de tino em negócioscomerciais:

“Não duvido que uma das razões porque me acho tãoembaraçado seja a minha falta de entendimento em negóciosdeste mundo, e a minha aversão a demandas, circunstânciademasiadamente bem conhecida a meu povo. Tive somentecinqüenta libras por ano durante seis ou sete anos consecutivos,começando a vida sem nada, e ao menos um filho por ano, e amulher doente pela metade do tempo”.

Deve-se acrescentar a todos os mais males de Samuel Wesley asrixas que tinha com os vizinhos, nascidas pela maior parte de questõespolíticas, que entre a plebe inculta tomaram um caráter bastante áspero.Judiaram do seu gado, destruíram-lhe a roça, impugnaram-lhe ocaráter, e tentaram incendiar a sua moradia. Cobravam-se as décimascom muita irregularidade, e às vezes, à força. Mas o homenzinho rígidopossuía, ao menos, a virtude da coragem. Ele disse: “Até aqui somenteconseguiram ferir-me, e creio que não podem matar-me”. A relação dosacerdote com os paroquianos era bem curiosa e seriamenteperturbada.

Suzana Wesley era mãe notável, e a maneira pela qual governavaos seus filhos bem pode provocar o desespero de todas as mães e ainveja de todos os pais até o fim dos tempos. Esta corajosa, sábia ebem criada mulher, com cérebro de teólogo atrás de olhos meigos, ecom gosto pelo estudo no seu sangue, possuía elevados ideais porseus filhos: haviam de ser bem criados, doutos e cristãos. A suamaternidade obedecia a um plano inexorável; e nunca houve quemdesempenhasse os múltiplos deveres de mãe com método tãoinsistente ou com propósito tão inteligente. Toda a vida familiarcorria como por um horário: até o sono das crianças foi -lhesministrado por medida. Todo o filho, ao chegar a certa idade, tinhade aprender o alfabeto dentro de determinado tempo. Esta mãecompreendia que a vontade é a raiz do caráter e, que este é por eladeterminado. A família Wesley foi ricamente dotada em matéria devontade, assim o primeiro passo n a educação de cada filho visava aredução desta força ao governo. Era regra fixa e imperativa quecriança alguma recebesse qualquer coisa pela qual chorasse, e oefeito moral sobre o espírito da criança, ao descobrir que o únicomodo infalível, de não conseguir o objeto desejado, seria em chorarpor ele, devia ter sido admirável.

As crianças foram ensinadas a falar cortesmente; a chorarsuavemente, quando realmente houvesse necessidade do choro – eàs vezes esta excelentíssima mãe dava a seus filhos abunda nterazão de chorarem.

A Sra. Wesley levou os seus princípios metódicos e o seuhorário para o domínio da religião. Começou logo: “Bem cedo ascrianças souberam distinguir o Domingo dos outros dias, e logoforam ensinadas a ficar quietas durante o culto doméstico, e a pedira bênção logo em seguida, isto elas costumavam fazer por acenos,

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antes de poderem se ajoelhar ou falar”. As células de cada cérebroinfantil foram bem carregadas com passagens das Escrituras, hinos,orações, etc. A oração foi tecida na própria fábrica da vida diária; aslições diárias de cada filho foram colocadas numa moldura de hinos.Mais adiante havia horas especiais designadas a cada membro dafamília, quando a mãe falava particularmente com o filho para o qual ahora fora marcada. É provável que aquelas rigorosas introspecções,aquela seriedade de análise pessoal, habituais na vida de Wesley nosanos depois, tivessem a sua origem nessas entrevistas que nas quintas-feiras a Senhora Wesley tivera com o “Joãozinho”.

O sr. Birrell acusa a Sra. Suzana Wesley de dureza, dizendo: “Elafoi uma mãe rígida, áspera, e quase insensível”. Sr. Lecky diz que o larde Epworth “não era feliz”. Dificilmente haveria crítica mais injusta. Écerto que a vida não fora indulgente para com a Sra. Wesley; o próprioséculo não era indulgente. Um traço da mãe espartana estava no seusangue, e não foi sem causa; pois um espaço mui estreito separava afamília de Wesley, em Epworth, da verdadeira miséria. Cada manhã, aoacordar, devia ter sido a preocupação de Suzana Wesley, como proverpão para saciar a fome de sua numerosa família. Condição esta quenão era mui favorável ao folguedo e riso; mas ninguém pode estudar osdocumentos desse lar sem ver que a sua atmosfera era de amor. Amorque, é verdade, era de um temperamento heróico, sem elemento algumde ociosa ternura, e sem qualquer traço enervante de indulgência; masainda amor de uma qualidade imorredoura. O próprio João Wesley foium homem mui pouco sentimental; entretanto no seu afeto pela mãe sevê rasgos de ternura e fervor que são admiráveis. Ele lhe escrevemanifestando o desejo de morrer primeiro, para não ter o desgosto desobreviver-lhe!

É possível combater certos métodos da Sra. Wesley; e existe umlado trágico na história da família: de seus dezenove filhos, quase ametade morreu na infância; e de suas sete filhas espirituosas, cincoforam infelizes nos casamentos. Mas grandes riscos pairam sobre todasas famílias humanas.

A única acusação que se pode estabelecer contra Suzana Wes!eyé que ela não teve elemento algum de humor. Os nomes que derampara as filhas provam concludentemente a completa ausência dequalquer senso do ridículo, tanto no pároco de Epworth, como na suamulher. Uma filha foi cruelmente carimbada, Mehetabel; outra Jedidah!As cogitações teológicas de Suzana Wesley, quando ainda criança,mostram a falta de humor. Uma menina de treze anos que pudesse

julgar-se suficiente (autônoma) para resolver “toda a matéria emdiscussão entre os Dissidentes e a Igreja oficial” devia ter sido estranhaao riso e possuída da seriedade de uma coruja. Mas o humordesempenha funções mui salutares: é o sal da inteligência,conservando-a saborosa; habilita o seu possuidor em distinguir ostamanhos relativos de coisas, dando um jeito especial e um toquedelicado aos poderes intelectuais. À Senhora Wesley visivelmentefaltava qualquer dote especial desta preciosa graça.

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CAPÍTULO II

A Família Wesley

A família Wesley, como já vimos, era composta de naturezasfortes; regidas fortemente e para fins nobres. Um grupo de meninos emeninas inteligentes, veementes e argüidores, que viviam segundo umcódigo limpo e reto, se bem com trato mui simples; disciplinados a seportarem com gentileza e vera cortesia; tendo por ideal o saber, poratmosfera o dever, e por lei o temor de Deus. A religião era, como deveser em toda a família, a força motriz; uma força com a pressãoconstante e prevalecente de uma atmosfera. É mui certo como aspáginas subseqüentes hão de mostrar, que não era a mais inteligenteforma de religião. Entretanto, preencheu o seu papel eterno emenobrecer as vidas que tocava.

Pode-se afirmar, com confiança, que nesse período particular doséculo XVIII, o presbitério de Epworth abrigava mais inteligência do queexistia sob qualquer outro teto na Inglaterra. O velho Wesley deverasparecia - se bem que somente na sua ingenuidade e falta de prática,com o Doutor Primrose do livro “O Vigário de Wakefield” (escrito porOliver Goldsmith por volta de 1761. É um romance sentimental queexibe a crença de uma inata bondade nos seres humanos) e pode-seacrescentar que, o viver com ele devia ter sido muito menos agradáveldo que com o insosso, se bem que bondoso herói de Goldsmith. Maspossuía uma inteligência ativa, uma vontade enérgica, e bastantecoragem para suprir um batalhão. Era sem dúvida, de umtemperamento peremptório, e a sua vontade imperiosa por natureza, foireforçada por uma luta perpétua com circunstâncias adversas, atétornar-se quase incapaz de flexibilidade alguma. Na família foi umdéspota, mas tal disposição era a moda desse período. Suzana Wesley,quando escrevia às pessoas amigas, costumava falar no seu arbitráriomarido, como “meu amo”, embora, como é freqüentemente o caso navida de cônjuges, o imperioso marido tivesse muito menos autoridadedo que ele mesmo imaginara.

O escritor Sir Thomas Artur Quiller-Couch no seu livro “HettyWesley” descreve o pai da família Wesley de um modo que não passade uma simples caricatura. Samuel Wesley, como ele o pinta, com olhos

fogosos, separados por nariz cumprido e obstinado, é uma espécie deQuilp em sobrepeliz (veste branca usada pelos clérigos sobre a batina)do século XVIII. É o tirano e mau gênio na vida de seus filhos e o alvodo bem fundado ódio deles. Até a sábia e gentil Suzana Wesley épintada como sabendo amoldar as vidas de seus notáveis filhos, mascomo manifestando singular incapacidade em dirigir as filhas. Uma cenaem Hetty Wesley representa a Mariquinhas, a mais tímida e acanhadadas filhas, como encarando a seu terrível pai, e a xingá-lo porparágrafos inteiros. Ela informa o pai, em sentenças que cheiram do Dr.Johnson: “O vosso gênio faz da vida uma tortura. Derrotado em outraparte, tendes vos embriagado de poder em casa, até crerdes que asnossas almas são vossas”; e termina, apontando-o e gritando: “Ei-lo,que homenzinho ridículo!”.

A cena é falsa tanto na realidade como na forma. Não há nessapassagem eco algum do trato familiar desse século, e ainda menos dafala no presbitério de Epworth. Samuel Wesley não era demasiadosábio como pai, mas bem poucos tem havido, que maiores sacrifíciostenham feito a bem dos filhos, ou que mais intimamente se tenhamidentificado com a sua felicidade. E onde se acharia outra esposa oumãe nesse século que seria comparável com a Suzana Wesley? É umadas mulheres afamadas entre as de todos os tempos. Dos três filhos,um havia de amoldar em novo tipo a vida religiosa da raça a qualpertencia; outro havia de ser o maior autor de hinos na literatura inglesa;enquanto o mais velho do grupo, Samuel Filho, possuiria uma força devontade e um vigor intelectual iguais aos de seus irmãos famosos, eainda lhes sobrepujaria em vivacidade de espírito. Infelizmente, no casodele, nunca o calor chegou a derreter a geada que congelava a teologiada Igreja alta (Anglicana) na qual ele se achava preso.

Era de se esperar que as meninas do presbitério (as filhas deSamuel e Suzana Wesley) tivessem uma vida menos cheia e variada doque seus irmãos. Os filhos foram logo para as atividades e agitações deuma grande escola pública; para a culta atmosfera da Universidade, e,ainda mais tarde para o grande palco do mundo. E mui naturalmente aimaginação, tanto do pai como da mãe, acompanharia os filhos nessesnovos campos com o mais vivo interesse. As figuras, pois, tomariamnova escala sobre a tela; porque para as filhas só restaria a monotoniada vida caseira: da vida num presbitério rural, situado, como foi o deEpworth, em terras úmidas, e isto nos meados do século XVIII. Amonotonia devia ter sido grande, e a própria natureza não lhe erapropícia. A vida corria mui vagarosamente e encerrava tarefas tediosas.As meninas tinham um pai preocupado e uma mãe sobrecarregada,

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casa mal mobiliada e recursos mui inadequados. Poucos eram ospretendentes ao casamento; era sonhar ociosamente o pensar emvestidos novos, e árduos trabalhos eram inevitáveis. As filhas nãopossuíam - e nem era de esperar que possuíssem - a sábia filosofia damãe. Emília, a mais velha e, a menos contente das filhas, fala freqüentee asperamente da escandalosa falta dos meios de subsistência.

As terras alagadiças e monótonas, salpicadas com fileiras desalgueiros e sabugueiros, e sulcadas de canais para escoarem aságuas superabundantes - canais que no inverno pareciam meras fitasde gelo - isto tudo contribuía para a formação de uma paisagemtristonha, que no inverno, foi castigada por ventos suestes. Aqui e acolá,na distância, erguia-se a torre de uma ou outra igreja que, qual ponta delança feria o horizonte. Ou um agrupamento de tetos baixos formavauma vila, ou uma solitária vivenda de campo dava um aspecto aindamais acentuado para a solidão da cena. Os incultos moradores dessasterras alagadiças não apreciavam aos que, tais quais os Wesley, nãofossem da sua classe. Cinqüenta anos antes, essa raça obstinada haviasustentado uma mal disfarçada guerra civil contra o engenheiroholandês, Cornélio Vermuyden, que o rei Guilherme III trouxe deHolanda para drenar essas terras alagadas. Rompiam-lhe os diques,judiavam de seus operários, queimavam-lhe as cearas. E mantinhamalgo do mesmo espírito com os Wesleys: eles apunhalavam as vacasdo pároco, aleijavam-lhe as ovelhas, rompiam os diques de noite paraalagarem-lhe os campos. Judiavam dele por causa de suas dívidas, etentavam, e não sem êxito, queimar-lhe o presbitério (a casa pastoral),para depois acusá-lo, a ele mesmo, de tê-lo incendiado!

Os amigos instavam que ele saísse de Epworth, mas ninguém,em cujas veias corresse o sangue de um Wesley, se sujeitaria a sertocado (expulso, fugido) para qualquer lugar. Samuel Wesley escreveua seu bispo: "Seria um ato de covardia se eu deixasse o meu posto naface do fogo cerrado com que o inimigo me alveja” . Estava escrevendoda prisão onde fora encerrado por dívidas. Pode-se admitir comfranqueza que tais condições não eram muito consoantes com afelicidade doméstica. Acarretavam muitas solicitudes e grandeslimitações para os horizontes sociais da família em Epworth.

Pode-se acrescentar que a história da família no presbitério deEpworth foi assombrada por não poucas tragédias, e todas estas seagrupavam em redor das inteligentes e jeitosas filhas da família. Hámales piores do que a necessidade, dissabores mais cruéis do que apobreza, coisas mais difíceis de agüentar do que a dor ou a morte.

Pouca mãe tem experimentado dores mais profundas do que as quecaiam sobre Suzana Wesley. O único grito de dor, audível em toda asua correspondência, acha-se num trecho de uma carta dirigida a seuirmão Annesley:

“Raramente me acho com saúde; o sr. meu esposocontinua no declínio; a minha querida Emília que me confortariagrandemente na minha presente necessidade, está obrigada a ir aseu serviço em Lincoln, onde é professora num internato; a minhasegunda filha Sukey, uma bela mulher e digna de melhor sorte,quando, de vossas últimas cartas pouco caridosas, entendeu queestavam frustradas todas as suas esperanças em vós, ela deu-seimpensadamente a um homem (se é lícito chamar homem àqueleque é pouco inferior aos anjos apóstatas em iniqüidade), o qualnão somente constitui a desgraça dela, mas é o constante pesarda família também. Oh, sr! Oh, irmão! Feliz, três vezes feliz soisvós, e feliz a minha irmã, que enterrastes vossos filhos ainda nainfância: seguros da tentação, seguros da culpa, seguros dapobreza e da vergonha, ou da perda de amigos! Estão segurosalém do alcance da dor ou da miséria; tendo partido daqui, nadapode incomodá-los jamais. Crede-me sr. quando vos digo, que émelhor chorar dez filhos mortos do que um vivo; e tenho enterradoa muitos”.

A referência vaga e amarga que encontramos aqui, é a respeito de suafilha Hetty (apelido de Mehetabel), a mais espirituosa, vivaz, ativa einfeliz desse grupo de lindas moças sob o teto do presbitério deEpworth. Hetty possuía raros dotes intelectuais, e é narrado que aosoito anos lia o novo testamento em Grego. Uma menina fascinante ebrilhante, com algo de brincalhona, possuindo uma vontadeindependente e imperiosa; no entanto, nesse tempo, não havia moçasob qualquer teto inglês que tivesse um espírito mais terno, umainteligência mais viva, nem sorte mais infeliz. Foi ela a única f ilha queenvergonhou a família (o problema da vergonha é que namorou umadvogado, mas Samuel, o pai, não aprovou o namoro, pois consideravao candidato a namorado um advogado sem princípios. Numa viagem aLondres, ela acabou se entregando a ele e, na volta, teve uma grandebriga com o pai, que teve o apoio de todas as outras irmãs. Foi obrigadaa casar-se, para reparar a sua honra, com quem se dispôs a aceitá-lanaquelas condições).

Quando o seu desvio ficou conhecido, seu pai teve um aceso deterrível e inexorável raiva. Por muito tempo não consentiu em ver a sua

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filha; se não fosse a paciência da mãe, talvez tivesse sido expulsa doabrigo do teto familiar. A própria Hetty, anos depois quando o seu paitinha ficado parcialmente reconciliado, escreveu:

“Eu teria sacrificado pelo menos um dos meus olhos pelaliberdade de ter-me lançado aos vossos pés antes de me casar;mas desde que já passou, e dificuldades matrimoniais sãogeralmente irremediáveis, espero que haveis de ter acondescendência de fazer-vos do meu parecer, ao ponto dereconhecer que, desde que, em certas coisas, tenho maisfelicidade do que mereço, e melhor dizer bem pouco de coisasque não são remediáveis“.

A única contenda que João Wesley teve com o pai resultou de umsermão que eIe pregou sobre ”A caridade que se deve usar para comos ímpios,” que o pai interpretou como sendo uma censura a ele emdefesa de Hetty.

Num acesso de tristeza - uma condição de espírito entre acontrição e o desespero - Hetty jurou que se casaria com qualquerpessoa que os pais quisessem, e o comprimento desta penitênciaimposta a si mesma foi exigido com rigor. Um funileiro chamado Wrightofereceu-se para casar com Hetty quando a ira do pai ainda ardia, eSamuel fez o casamento. Talvez nunca houve um casamento maisinfeliz. Wright, em caráter, educação, hábitos e temperamento, foiexatamente o oposto de sua mulher. Foi o casamento de uma moçajeitosa, educada e espirituosa, com um tolo beberrão e dissoluto. Foiesposa negligenciada, filha exilada, mãe infeliz, pois os seus filhosmorreram quase ao nascerem.

A sua vida de casada, semeada de toda a espécie de desgostos,acabrunhou o espírito da infeliz Hetty, e ela procurou com sentidasolicitude a graça de perdão do seu pai ofendido.

“Honrado sr.”, escreveu ela, “ainda que me abandoastes, esei que um propósito uma vez por vós tomado não é facilmenteabandonado, eu tenho de dizer-vos que alguma comunicação dovosso perdão não somente é me necessária, mas tornaria maisfeliz o casamento, no qual visto que vós o determinastes, deveisainda sentir um não pequeno interesse. A minha criança, comcujo fraco apoio, eu contara para fazer a vida mais suportável,tanto para mim como para o meu marido, já morreu. E se Deusainda me der e tirar outra, nunca me posso escapar dopensamento que a intercessão do pai poderia ter prevalecido em

aplacar aquela ira de Deus que então tomarei como sendomanifesta.”

“Perdoai-me, sr., se eu vos tomar por participante nafelicidade (ou na infelicidade) que o mundo geralmente consideracomo sendo pela graça de Deus, a sorte de dois! Mas comoplantastes a minha felicidade matrimonial, assim não podeiscorrer da minha petição quando vos peço que a regueis com umpouco de boa vontade. Meus irmãos hão de relatar-vos o que têmvisto da minha maneira de viver e das minhas lutas diárias pararedimir o passado. Mas tenho chegado ao ponto onde eu sintoque o teu perdão é para mim uma necessidade. Rogo-vos, poisque não mo negueis.“

Samuel Wesley, entretanto, ouviu sem se convencer. Não achouqualquer nota de sinceridade nas cartas de sua infeliz filha. Ele aaconselhou que, quando escrevesse outra vez, se ela desejasseconvencê-lo, “se mostrasse menos espirituosa e desse mais evidênciade contrição”. Ele pergunta: “Que dano vos causou o casamento? Seiunicamente que vos deu o vosso bom nome”. É certo que uma mãe nãoteria respondido deste modo a uma tal carta como a que a pobre Hettyescrevera. Mas Samuel Wesley, mais do que os homens em geral,possuía a incapacidade de entender as sensibilidades femininas.

Mas se a pobreza, o abandono e a solidão lhe esmagaram oorgulho da uma vez espirituosa Hetty, ao mesmo tempo lhe purificaramo caráter: Ela escreveu a seu irmão João em 1743:

“Ainda que eu esteja privada de todos os auxílios e serviçoshumanos, não estou desamparada; embora eu não tenha nenhumamigo espiritual, nem tivesse jamais, a não ser, talvez, uma ouduas vezes por ano, quando tenho visto furtivamente um dosmeus irmãos ou outra pessoa religiosa; entretanto (embora não omereça) posso ainda buscar a Deus, e não me satisfaço comcausa alguma senão Aquele em cuja presença afirmo estaverdade. Não ouso desejar a saúde, somente a paciência,resignação, e um espírito são. Tenho sido fraca por tanto tempoque não sei até quando durará a minha provação, mas tenho umafirme convicção e uma bendita esperança (embora não a plenacerteza) que no país para onde eu vou, não cantarei sozinha”Aleluia“ e “Santo, santo, santo!” como tenho feito aqui. “

A última referência que Wesley faz de sua irmã Hetty é

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indizivelmente, se bem que inconscientemente, tocante:

“Aos 5 de março de 1750. Fiz oração ao lado da minha irmãWright, uma alma graciosa, tenra e tremente; uma cana quebradaque o Senhor não esmagará. Tive com ela comunhão deliciosa nacapela enquanto eu lhe explicava as palavras maravilhosas:Nunca mais se porá o teu sol, nem a tua luz minguará, e os diasdo teu luto se virão a acabar-se”.

Sobre este fundo recordemos a figura da menina espirituosa eculta, a luz e o orgulho do presbitério, antes de ser manchada pelavergonha e quebrada pela crueldade humana; e assim se torna visívelum dos mais tocantes capítulos na família Wesley.

Outra filha, Martha, teve sorte quase tão cruel como a de Hetty, sebem que no caso dela, não havia qualquer culpa pessoal para lheaumentar a amargura. Martha casou-se com um companheiro escolarde João Wesley chamado Wesley Hall, clérigo de boa família, mashomem cujo caráter possuía imprevistas funduras de vileza. AdãoClarke faz um resumo de sua história: “Ele foi cura na Igreja Anglicana,depois se tornou moraviano, quietista, deista (senão ateu) e poligamista.Ele defendeu a poligamia pelo ensino e exemplificou na prática”.

Hall inicialmente enamorou-se de Kezia Wesley e anunciou quefora lhe revelado que tinha de casar com ela. O seu afeto e as suasrevelações, entretanto, eram de caráter mui transferíveis. E logo lançouum olhar sobre Martha, e relatou que, recebera outra revelação e tinhade casar com ela. A pobre Kezia morreu de desgosto; e sobre Marthacaiu a sorte ainda mais triste de casar com Hall. Hall teve umacapacidade para o engano, e para atos de crueldade que era sugestivade possessão diabólica.

Martha, quando menina, foi a mais alegre de todos no grupo deEpworth. “Ficareis menos risonhos algum dia”, disse a sábia mãe,contemplando os filhos risonhos com olhos proféticos. Martha lheperguntou: “Eu também ficarei menos risonha mamãe?” A mãe lherespondeu, sorrindo: “Não”. Ela julgava que nada seria capaz deacabrunhar o espírito alegre daquela menina! Entretanto a mais alegredas meninas passou pelo escuro mar de sofrimentos.

Martha desenvolveu uma paciência heróica, e mais notável doque a da personagem Griselda na poesia de Lord Alfred Tennyson;encobriu as faltas do seu vil marido, servindo-lhe de enfermeira para as

amásias (amantes, concubinas) dele. Recebeu em braços piedosos (debraços abertos) os filhos ilegítimos desse esposo ingrato, e manifestoupara com ele uma fidelidade heróica. E anos depois quando seu maridoinútil morreu, umas das últimas palavras que ele proferiu foram: “Tenhojudiado de um anjo, um anjo que nunca me repreendeu”.

Entretanto, a mansidão heróica dessa mulher não significavaqualquer falta de coragem ou de força. Conservou a inteligênciadisciplinada, as feições serenas, no meio de todas as vicissitudes, epelo simples encanto de suas qualidades mentais (intelectuais), tornou-se uma das mais íntimas e apreciadas companheiras do Dr. SamuelJohnson (que é, de todos os escritores ingleses dos séculos XVII a XIX,um dos mais citados autores mencionados naquela época, só perdendopara William Shakespeare) . Ela dizia: “O mal não foi me estranho, masnão foi permitido ao mal me fazer dano”. Se bem que a sua vida fosseuma tragédia, comtudo, a sua morte foi assinalada por uma grande paz.Um pouco antes de render o seu espírito, a sua sobrinha lhe perguntouse sentia dor? Ela respondeu: "Não, mas tenho uma nova sensação.Tenho a plena certeza que por tanto tempo tenho pedido. Jubilai-vos” eassim morreu. Seria difícil achar nos anais (nos registros, na história) demulheres outro exemplo de espírito tão grandemente experimentado, eainda tão serenamente heróico como o de Martha Wesley.

Uma outra das moças Wesley também fez naufrágio de suafelicidade por casamento desastrado. Suzana, a filha, teve ainfelicidade de escolher um marido de caráter tão atroz, que ela foiobrigada a deixá-lo. O casamento para os da família Wesley, era umaexperiência, curiosamente perigosa. No entanto, todas essas tragédiasestavam ainda, nesse tempo, no vago, distante e desconhecido futuro.

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CAPÍTULO III

Contos do Lar

Certos acontecimentos, na meninice de Wesley, deviam terafetado profundamente a sua religião. Um foi o histórico incêndio, quedestruiu o presbitério (a casa pastoral onde morava) em 1709, quandoWesley ainda não contava seis anos feitos. O edifício era velho e seco,construído de ripas e argamassa, com madeiras antigas. Cerca da meianoite, de 24 de agosto de 1709, foi descoberto o fogo, cujas chamas jácorriam pelo madeiramento do velho presbitério, como se fosse palha.Todos da família Wesley conseguiram sair da construção em chamas,mas João, no alarme e pressa da família, foi esquecido.

O pequeno, acordando, achou o seu quarto tão cheio de luz, quepensava ser o raiar do dia. Ergueu a cabeça e olhou através as cortinas,viu um vermelho rabisco de fogo correr pelo forro! Ele pulou da cama, ecorreu em direção da porta que, já se achava envolta numa terrívelcortina do de rubras chamas. Trepou numa caixa, que estava abaixo dajanela, e olhou para fora. Era noite escura, mas a luz, que emanava dacasa incendiada, caia sobre as faces da agitada multidão. O forte ventonordeste que soprava, através a porta aberta, havia feito da escadariaum túnel de fogo, e o pai viu que seria morte certa, para quem tentassesubi-la. Samuel Wesley caiu de joelhos no corredor, e clamou a Deusem favor de seu filho, que parecia encerrado numa prisão de fogo.

A própria Suzana Wesley, que se achava doente, atravessou ofogo para a rua, com as mãos e faces queimadas; e quando virou, eolhou em direção da casa, viu o rosto do filhinho na janela do pavimentosuperior. João ainda se achava na casa em chamas!

Não havia escada, a sua fuga parecia impossível. O menino ouviaatrás de si as ruidosas chamas, e via as faces pálidas da multidão, queo contemplava, sobre o fundo da noite escura que a envolvia.

Alguém, de mais iniciativa do que os outros correu até chegarembaixo da janela e, pediu que um outro lhe subisse aos ombros, assimalcançando o menino, tirando-o pela janela no mesmo instante que oteto da casa caia com grande ruído. O pai, quando lhe trouxeram o filho,

disse:“Vizinhos, ajoelhemos e demos graças a Deus! Ele me deu

todos os oito filhos. Que a casa vá, sou bastante rico!”.

Nenhuma criança de seis anos jamais se esqueceria de umincidente tal. Parece que impressionou profundamente a imaginação domenino. No decorrer dos anos, o incidente tornou-se luminoso, comsignificados novos e portentosos. Tornou-se uma parábola de suaprópria história espiritual. Ele fora livrado de chamas, mais terríveis doque as que consumiram o presbitério de Epworth. Portanto, não foi ele,uma tocha tirada do fogo para um fim especial? Sim, o acontecimentose tornou em pintura mística da condição do mundo inteiro, e do papelque João Wesley havia de desempenhar nele.

A sua teologia traduziu-se nos termos daquele acontecimentonoturno. A casa incendiada simbolizava o mundo perdido. Toda a almahumana, no pensamento de Wesley, era semelhante àquele meninorodeado pelo fogo, pelas chamas do pecado e por aquela ira divina eeterna que o pecado incendeia, apertando-o de todos os lados. Ele, queà meia noite daquele dia 24 de agosto de 1709 fora arrancado da casaem chamas, devia arrancar os homens das chamas de um incêndio,ainda mais terrível. A memória daquele perigo deu cor à imaginação deWesley, até o dia de sua morte.

A história do incêndio é narrada pelo pai Samuel, pela mãeSuzana e pelo próprio João, quando cita suas recordações juvenis. Dastrês narrações, a mais cheia e vivaz é a do pai Samuel Wesley, embora,curiosamente, tenha sido geralmente passado por alto. Lendo-a, sente-se algo da confusão, do calor e do terror do incêndio, quase doisséculos depois do ocorrido. Ele diz:

“Um pouco depois das onze horas da noite ouvi o grito defogo!”, na rua mais próxima do lugar onde eu me deitara. Se euestivesse no meu próprio quarto, como de costume, todosteríamos perecido. Pulei da cama e vesti-me de colete e de trajesnoturnos e olhei pela janela. Vi a reflexão (a claridade) daschamas, mas não sabia onde estavam. Calcei uma meia, e comas calças nas mãos, corri para o quarto da minha mulher. Tenteiforçar a porta, que estava trancada do lado de dentro, mas nãopodia. As duas filhas mais velhas estavam com ela; estas selevantaram e correram as escadarias para despertar o resto dafamília. Então vi que era a minha própria casa que estava todatomada de chamas e nada senão uma porta entre o fogo e aescada “.

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“Voltei à mulher que já havia se levantado e aberto a porta.Mandei·lhe que saísse já. Tínhamos um pouco de prata e ourocerca de 20 libras esterlinas. Ela teria permanecido para procurá-las, mas eu a empurrei para fora. Eu subi a escada, achei osfilhos, desci e abri a porta da rua. O capim do teto estava caindono fogo, o vento nordeste tocava as chamas sobre mim; duasvezes tentei subir a escada, mas fui obrigado a ceder. Corri àporta, que dava para o jardim, e abri-a; sendo o fogo ai maismanso. Mandei que as crianças me seguissem, mas achavam-sesomente duas comigo e a criada trazia no colo um outro, o Carlos,que ainda não anda. Corri com eles ao meu gabinete no jardim,fora do alcance das chamas: coloquei o menor no colo da outra, evendo que a minha esposa não havia me seguido, volteiapressadamente para buscá-la, mas não a achei.”

“Voltei em seguida para os filhos que deixei no jardim paraajudá-los a transpor o muro. Estando do lado de fora, ouvi um dosmeus pobres cordeirinhos de cerca de seis anos, ainda deixadono segundo andar, clamar tristemente: “Acode-me!”. Corri outravez para subir a escadaria, mas esta agora se achava tomadapelas chamas. Tentei transpô-las pela segunda vez.Defendendo a cabeça com as calças que levava nas mãos,mas a corrente de fogo me tocou para baixo. Julguei havercumprido o meu dever. Com o clamor do meu filho ainda aosouvidos, saí da casa para o jardim, onde se achava a parte dafamília que eu havia salvo. Fiz que todos se ajoelhassem, parapedirem que Deus recebesse a alma do pequeno João.”

“Corri, de uma a outra parte, indagando a respeito daesposa e dos filhos. Encontrei-me com o principal homem dolugar, oficial de justiça, o qual não ia em direção da minhacasa, para ajudar-me, mas em direção oposta. Eu lhe pegueina mão, e lhe disse: “Seja feita a vontade de Deus! ”. Elerespondeu: “Nunca hás de deixar de tuas artes? Incendiou atua casa uma vez antes; não conseguiste bastante então, e jáo fizeste outra vez?” Foi muito pouco conforto. Eu lhe disse:“Deus te perdoe”. Mas um pouco depois fui mais confortado,ouvindo que a minha mulher fora salva, então caí de joelhos edei graças a Deus.”

“Fui ter com ela. Ainda vivia, se bem que apenas falava.Ela julgava que eu havia perecido, e os outros também assim

pensavam, não me tendo visto, nem qualquer dos nossos oitofilhos, por um quarto de hora. E durante este tempo foramtodos os quartos da casa , e tudo mais, reduzidos à cinza; poiso fogo era muito mais forte do que o de um forno e o violentovento o açoitou contra a casa. E la me contou depois comoencapara. Quando fui abrir a porta dos fundos, ela tentaraatravessar o fogo, até a porta da frente, mas duas vezes foraderrubada no chão. Ela julgava que ai morreria, mas tendopedido que Cristo lhe ajudasse , achou-se com novas forças,levantou-se sozinha, atravessou dois ou três metros dechamas, estando o fogo no chão até os joelhos. Ela vestiasomente um delgado vestido, tendo sobre o braço um paletó, ecalçava sapatos. Com o paletó ela envolvia o peito, e chegouao quintal em segurança, sem receber aux ílio de uma almasequer. Ela não ergueu os olhos nem falou até a minhachegada. Somente quando lhe trouxeram o último filho, elamandou que o deitassem na cama. Este foi o menino que euouvira clamar em meio das chamas , mas Deus o salvou quasepor milagre. Ele só foi esquecido pelos criados, naperturbação. Ele correu para a janela que abria para o quintal,subiu numa cadeira e pediu socorro. Umas poucas pesso ashaviam se ajuntado, e entre elas um homem que me quer bem,este ajudou um outro a subir à janela.O menino, vendo ohomem entrar pela janela, assustou-se, e quis fugir para o quartoda mãe; mas, não podendo abrir a porta, voltou outra vez à janela.O homem havia caído da janela, e a cama e tudo mais no quartodo menino achavam-se em chamas. Ergueram o homem pelasegunda vez, e pequeno e assustado João pulou em seus braçose foi salvo. Eu não podia acreditar antes de beijá-lo duas ou trêsvezes.”

No dia seguinte, passeando pelo jardim e contemplando as ruínasda casa, Samuel achou meia página de sua Bíblia poliglota, onde estaspalavras eram ainda legíveis: “Vai; vende tudo que tens; e toma a tuacruz, e segue-me.”

É de se admirar que uma tal experiência ficasse indelevelmenteregistrada na imaginação de João Wesley? Wesley, na sua meninicedevia ter observado, com olhos graves e admiráveis, um outro incidentena casa de Epworth. Estando o pai ausente numa convocação, asenhora Wesley começou a celebrar reuniões religiosas na cozinha dopresbitério. Ela começou essas reuniões para os seus própriosempregados domésticos e filhos. Então os vizinhos solicitaram

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permissão de virem, até que trinta ou quarenta se ajuntavam aosdomingos à noite. O fogoso e exclusivista eclesiástico, seu marido,ouviu as novas. Um “conventículo” estava em pleno vigor sob o próprioteto do seu presbitério, com uma mulher orando publicamente, e talvezexortando; e essa mulher a sua esposa! Aqui havia coisa para acendero fogo de ira austera na consciência sacerdotal! As cartas da SenhoraWesley, em resposta a seu marido imperioso, eram modelos de bomsenso e bondade, e a sua lógica foi demasiada forte para o homenzinhoirascível. “Parecia esquisito”, disse o marido, “que ela celebrasse oculto”. A sua esposa responde:

“Admito, e é assim com quase tudo mais de sério, ou, quede qualquer modo possa promover a glória de Deus e a salvaçãode almas, se for feito fora do púlpito.”

“Também por ser mulher, na opinião do marido, tornavapouco desejável que ela dirigisse o culto. ” A Senhora Wesleyresponde:”Visto que sou mulher, assim também sou mãe defamília numerosa; e embora a responsabilidade superior, pelasalmas que ela contém paire sobre vós como cabeça da famíliae como seu ministro, na vossa ausência, entretanto, não possome esquivar de considerar, cada alma que deixais sob osmeus cuidados, como sendo um talento entregue a mim pelogrande Senhor de todas as famílias do céu e da terra. Se eufor infiel a Ele ou a vós, como posso respon der quando Ele meexigir contas da minha administração? ”

O Senhor Wesley pergunta: “Por que ela não pedia que qualqueroutro lesse um sermão?” Ela responde: “Infelizmente não consideraisque povo é este. Julgo que ninguém entre eles seria capaz de ler umsermão, sem soletrá-lo, em grande parte. E como isto serviria deedificação para os outros?”

Quanto à alegação de que era um “conventículo”, um concorrenteda Igreja, a senhora Wesley assegura a seu marido, “que estaspequenas reuniões têm trazido mais gente à Igreja, do que qualqueroutra coisa em tão curto espaço de tempo. Antes não tivemos mais devinte ou vinte e cinco, no culto à noite, mas agora temos entre duzentose trezentos”.

A modéstia da senhora Wesley é encantadora: “Nunca ousode presumir positivamente em esperar que Deus se sirva de mimcomo instrumento para o bem. O mais que eu ouso pensar é: Podeser! Quem sabe? A Deus tudo é possível. Entregar -me-ei a Ele.

Como diz Herbert: ‘Visto que Deus freqüentemente faz, por coisashumildes serviços honrados, eu me lanço a teus pés; a ípermanecerei, e quando o meu Mestre procurar alguma coisa vil emque possa manifestar a sua pe rícia, então, será a minha vez’.”

Com muita dignidade a senhora Wesley fecha a sua carta: “Enfim,se houverdes por bem dissolver esta assembléia, não me peçais que euo faça, pois isto não satisfará a minha consciência. Mas dá-me a vossaordem terminante, em termos tão expressos e inequívocos que meabsolverão da culpa e do castigo, por ter eu desprezado estaoportunidade de fazer o bem, quando eu e vós comparecermos ante oaugusto e tremendo tribunal do Nosso Senhor Jesus Cristo”.

Esta sentença foi demais para o pequeno pároco, e as reuniõescontinuaram até o seu retorno de Londres.

Mas é fácil de imaginar-se que este incidente impressionariaprofundamente a João Wesley, que então contava apenas nove anos. Operfil de sua mãe, diante desse grupo de plebeus, o rosto meigo, gravee nobre, em tão notável contraste com todos os outros na reunião. Oexemplo de um zelo sério e intenso, os problemas - os mesmos que elepróprio teria de resolver mais tarde, em campo mais vasto. Que seria demais importância, a forma decorosa ou o fato espiritual? Seria um malfazer o bem, sendo o método pouco regular? As almas humanasexistem em benefício de formas eclesiásticas, ou existem essas formasem benefício dessas almas? As reuniões dirigidas por Suzana e acontrovérsia que isso suscitou, repetimos, devia ter impressionadoprofundamente a Wesley. E o corajoso zelo e a louvável persistência dasua mãe deviam tê-lo ajudado a determinar todo o sistema de suaprópria vida, nos anos vindouros.

Neste meio tempo, veio à família em Epworth, uma das maisinexplicáveis experiências que jamais visitou o circulo familiar de umpároco - as artes daquele “poltergeista” (ruidoso espírito ou diabo) queas meninas da família apelidaram de “Velho Jeffrey”, nome de umcélebre juiz iníquo. Quem não conhece a história do “Velho Jeffrey” temperdido uma das narrações mais bem atestadas e mais curiosas deassombração que há na literatura.

Durante quase seis meses - desde dezembro de 1761 até abril de1717 – o presbitério ficou tomado de ruídos misteriosos e estranhos.Batia-se nas portas e nas paredes, havia socos embaixo do assoalho,ruído como de queda de louças, o repenicar de correntes de ferro, o

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retinir de moedas ao caírem, o barulho de passos misteriosos. Asmanifestações resistiam a todas as explicações mais prosaicas, e porfim, foram atribuídas por consentimento comum, a qualquer espíritoinquieto. Tornaram-se tão familiares que ninguém se incomodava mais,e as meninas espirituosas do presbitério rotulavam a fada invisível, sebem que muito audível, de “Velho Jeffrey”.

A narração é feita em cartas, com detalhes minuciosos,sucessivamente por todos os membros da família; e todos esses contosforam colecionados pelo próprio João Wesley - que se achava naEscola de Charterhouse quando o “Velho Jeffrey” estava em atividade -e fê-los publicar na Arminian Magazine. Há um elemento humorístico,nos variados tons, em que é relatado o conto maravilhoso. Samuel onarra no estilo direto de um homem, cuja crença na assombraçãomanifestamente gera, não o medo, mas, somente a raiva, e um desejode encontrar o perturbador, mais de perto, e até surrá-lo. A Suzanaconta a história, segundo seu modo prático, e com a simplicidade de umDefoe (jornalista e escritor autor do romance Robinson Crusoé). Asespirituosas moças relatam a história com traços de humor eimaginação juvenis. Um clérigo vizinho, que fora chamado para ajudarem silenciar o espírito, acrescenta a sua voz sonora ao coro. Aevidência, se fosse dada em tribunal, no julgamento de um assassino,seria suficiente para conseguir a sentença máxima.

Certos atos do espírito eram de caráter surpreendente. A SenhoraWesley, de mãos dadas com o marido, à meia noite, descendo aoquarto donde procediam os ruídos, relata que “parecia-me como sealguém tivesse derramado um grande vaso de moedas na minhacintura, para correrem retinindo, pela camisola de dormir, até os pés”.Mais de uma vez o pároco indignado (Samuel) sentia-se empurrado poruma força invisível. Notava-se nas primeiras manifestações que ascrianças adormecidas, e que estavam inconscientes do ruído, tremiamde agitação e temor, mesmo no sono. O sr. Wesley, com solicitudepaternal, perguntou ao espírito porque estava a perturbar os inocentesfilhos, desafiando-o a um encontro consigo no seu gabinete de estudos,se tivesse algo para dizer-lhe. Ele saiu majestosamente em direção dogabinete, para encontrar-se com o espírito, e achou a porta seguradacontra ele.

As meninas logo descobriam que, o ‘Velho Jeffrey“ se indignavaquando lhe faziam referências pessoais, atribuindo as suas artes aratos, etc.; pois ele dava então murros no assoalho e na parede comgrande veemência”. O “Velho Jeffrey“ fora espírito com bem definidas

opiniões de política, e dava pancadas no assoalho e na parede quandoo sr. Wesley fazia preces pelo rei. Mas o sentimento leal do pároco nãopodia ser sufocado por um simples espírito jacobino, e ele repetia aoração pelo rei George I, em tom ainda mais ousado. Samuel Wesleyaqui apresentou esta sisuda observação: ”Se eu mesmo fosse rei, antesdesejaria ter o diabo por inimigo do que amigo”. O sr. Wesley perseguiuo ruído em quase todos os quartos da casa, o seguiu até o jardim;tentou travar uma conversa com o espírito, valendo-se dos serviços deum grande cachorro para contê-lo, mas, quando o espírito começou adiscorrer, o cachorro ignobilmente (covardemente, vergonhosamente)refugiou-se debaixo da cama, tomado de grande terror. Uma vez ele fezum preparo elaborado para fuzilá-lo, mas foi detido por um colega quevigiava consigo, lembrando-lhe que o chumbo não havia de ferir oespírito. Era espírito pontual, e geralmente começava com as suasartes um pouco antes das dez horas da noite. As meninas por fimvieram a tomar isto como intimação que já “era hora de dormirem “.

João Wesley narra que, um leve bater na cabeceira da camageralmente começava, entre as nove e às dez horas da noite; entãocostumavam dizer umas às outras: ”Já vem o Velho Jeffrey; sãohoras de dormir “. Pode se afirmar que o ”Velho Jeffrey“, foi o maisgentil e cavalheiresco poltergeista (fantasma) conhecido daliteratura. Quando ele se achava “de serviço” levantava a trameladas portas para as moças passarem. A sra. Wesley, segundo seumodo literal, pediu que o visitante invisível não lhe perturbasse, entreas cinco e seis horas, sendo esta, sua hora tranqüila; e quesuspendesse todo o ruído em quanto ela estivesse na sua devoção;e o “Velho Jeffrey” o mais cavalheiro d os espíritos, acedeu a seusdesejos, suspendendo com as ruidosas manifestações duranteesses períodos.

As manifestações em certo aposento torna ram-seespecialmente ruidosas uma noite . O sr. Wesley para lá se dirigiu e,em vão, esconjurou a o espírito para que falasse. Então disse: “Estesespíritos amam as trevas. Apaga a vela e talvez fale ”. A sua filha,Anna, apagou a vela, e o pároco repetiu a sua adjuração(esconjuração) nas trevas; mas houve apenas pancadas emresposta. Com isto ele disse: “Anna, dois cristãos são demais fortespara o diabo; desce a escada. Pode ser que quando eu estiversozinho ele terá a coragem de falar”. Tendo a filha saído, ele disse:“Se tu és o espírito do meu filho Samuel, peço -te que dês trêspancadas e mais nenhuma”. Imediatamente tudo ficou em silêncio enão houve mais pancadas nessa noite.

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As proezas deste esquisito “poltergeista” no presbitério deEpworth têm paralelos em muitas histórias semelhantes: quais são aspossíveis explicações delas? A senhora Wesley, segundo seu estilodireto e prático, julgou o “Velho Jeffrey” pelo padrão da utilidade econdenou-o: “Se estas aparições”, disse ela, “nos advertissem doperigo, nos fizessem mais sábios ou melhores, haveria algo pararecomendá-las; mas aparições que para nada servem senão paraespantar a gente, quase a ponto de se perder a razão, parecem de todocensuráveis”. Espírito muito tolo foi o “Velho Jeffrey”, na opinião daSenhora Wesley!

Samuel Taylor Coleridge (poeta e ensaísta inglês) descobre nafamília “uma irascível e censurável predeterminação” pela crença naaparição, teoria essa que é totalmente contrária aos fatos. Ele diz que“as manifestações eram puramente subjetivas, da natureza de umadoença nervosa contagiosa” - explicação que, não obstante o respeitoque temos pelo grande nome de quem a oferece, não obsta que ataxemos de pueril. “O Velho Jeffrey” era demais para a filosofa do S.T.Coleridge.

Há muitas explicações do “Velho Jeffre”. O Doutor Salmon acusaa Hetty Wesley de ter iludido a família, produzindo todos os ruídos, maso sr. André Lang, autoridade sobre aparições e suas manifestações,escreve um longo artigo em defesa de Hetty, na Cotemporary, decidindoque ela não podia ter invadido o quarto do criado, calçada de botas, eassustando tanto o grande cachorro que ele uivasse de medo. JosephPriestley (renomado teólogo e estudioso inglês do século XVIII) oferecea teoria de falcatruas por parte dos criados e vizinhos. Isaac Taylor(escritor, filósofo e historiador que viveu entre 1787 – 1865) resolve o”Velho Jeffrey “em espírito palhaceiro e macaqueador. O Sr. Wesleyhavia pregado por alguns Domingos contra os feiticeiros da vizinhança,que os ignorantes plebeus consultavam como sendo magos; e o Sr.André Lang pensa que as artes do “Velho Jeffrey “constituíram adesforra que os feiticeiros lhe tomavam.

Samuel Wesley Filho, o filho mais velho dos Wesley, oferece ojuízo mais sensato sobre a história, arranjando-o, inconscientemente,em forma epigramática, dizendo: “ A troça (multidão), julgo eu,acharia muitas interpretações, mas a sabedoria, nenhuma”. O leitormoderno, advinhamos, tomará a parte da “sabedoria”.

O “Velho Jeffrey” pertence àquela classe de fenômenos

esquisitos, que burlam qualquer explicação, mas a históriaindubitavelmente influiu grandemente na imaginação de JoãoWesley. Servindo-nos da frase do sr. André Lang, podemos dizerque, “ela construiu no seu espírito uma estrada real para osobrenatural”. Deu-lhe a predisposição, não para crer em todas ashistórias de aparições, mas, para esperá-las: para escutá-las comviva atenção; para registrá -las e tratá-las com o devido respeito. Eleregistra um cento de histórias de aparições em seu “Diário”, esempre mantém para com elas a mesma atitude mental de vi vointeresse, e um espírito aberto a respeito de qualquer explicação.

Pode-se acrescenta r que, segundo uma tradição, o “VelhoJeffrey“ tornou a visitar outra vez a sua querência familiar quase umséculo depois e um inquilino, de menos coragem do que aque lapossuída pela família Wesley, foi acossado do presbitério deEpworth pelos ruídos estranhos, persistentes e de tudo inexplicáveis.

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CAPÍTULO IV

Preparo Pessoal

Na sombria e bem disciplinada vida da família, no presbitério deEpworth, João Wesley crescia como menino grave, sossegado epaciente, com cabeça meditativa e modos pensativos, e hábitoinvencível de exigir uma razão de tudo que fosse mandado fazer. Opároco Samuel disse a Suzana, sua mulher: “Acho, querida, que onosso Joãozinho não comeria o seu jantar se não achasse uma razãopor fazê-lo”.

O menino teve um traço do silêncio e da perseverança de umestóico, mesmo com essa tenra idade. Em 1712, ele, com mais quatroirmãos, teve a varíola, a peste comum e terrível dessa época. A suamãe escreve:

“Joãozinho suportou a moléstia com a coragem de homem,deveras, como cristão; se bem que parecia se zangar com aspústulas, quando estavam doloridas, a julgarmos pela maneiracarrancuda em que as contemplava, pois nada dizia”.

A seriedade do seu temperamento e, o que se pode chamar, dedocilidade religiosa eram tão notáveis que, quando ainda não contavaoito anos completos, o seu pai - sempre disposto a fazer tudo àspressas – o admitiu à Ceia do Senhor. A sua mãe, com a belapresciência que o amor materno dá, viu no seu segundo filho homem osindícios de um grande, mas desconhecido, futuro, e escreveu no seudiário, sob a data de 17 de Maio 1717, à tarde:

“Que oferecerei ao Senhor por todas as suas misericórdias?Eu desejaria te oferecer a mim mesma e tudo que tu me deste; ededicaria – oh! dá-me a graça de fazê-lo ao teu serviço o restoda minha vida.”

“E com a alma deste filho (João) para o qual tu tens tãomisericordiosamente providenciado, pretendo ser maiscuidadosa do que tenho sido até aqui a fim de poder incutir nasua inteligência os princípios da virtude e da verdadeirareligião. Senhor, dá-me a graça de fazê-lo com sinceridade eprudência.”

Em 1714 seu pai conseguiu-lhe, do Duque de Buckingham, umlugar na Charterhouse, e assim quando ainda não completara onzeanos, do abrigo do lar - e lar monumental - e de uma atmosferacarregada de oração qual a fragrância de incenso ardente, JoãoWesley passou-se para as porfias e o tumulto de uma grande escolapública. A mudança de atmosfera e do meio foi grande.

A Chaterhouse de então, era escola com grandes tradições, ecom sofrível padrão de estudos; mas era indisciplinada, para nãodizer desordeira, em grau que é hoje difícil de imaginar. O sistemaodioso do “fag” (da exploração dos alunos maiores e mais velhossobre os mais novos) prevalecia numa forma áspera. Realmente aescola era um pedacinho da sociedade humana, exaurida em certosaspectos de todos os elementos civilizadores, e governada pelamoral de selvagens. Os rapa zes maiores e mais fortes,sistematicamente roubavam a carne das refeições dos menores; edurante a maior parte dos seis anos que Wesley freqüentava aquelaescola, ele diariamente sofria este ignóbil roubo, e praticamentealimentava -se somente de pão.

Um menino disciplinado nas necessidades do presbitério deEpworth, entretanto, facilmente sobreviveria às refeições desfalcadasde Charterhouse. O pai aconselhou -o que corresse três vezes aoredor do jardim da Charterhouse toda a manhã; e o filho obedecia àadvertência com a fidelidade literal que lhe era característica. Todasas manhãs, se via um pequeno vulto, magro e juvenil, a correrligeiramente três vezes ao redor do jardim da Charterhouse. Ocabelo de Wesley na meninice era castanho; mas ficou mais escurocom o correr dos anos; e cabelo tão lindo, encimando um rosto delgado,com olhos sérios, mas vivos, deviam ter constituído feições notáveis.Frugalidade de comida, e exercícios constantes no ar fresco da manhãcontribuíram em dotar-lhe de um admirável vigor físico que o habilitava,aos oitenta anos, a andar dez quilômetros para o lugar de pregação, e adeclarar que o único sintoma de velhice que sentia era, “não poderandar nem correr tão ligeiramente como antes.

É certo que era estudante ideal – ligeiro, incansável, metódico,frugal com o seu tempo e de espírito sóbrio. O filho de Suzana Wesley,saído havia pouco do contacto da sua vida diligente, e com o sopro deseu espírito ainda sobre ele, dificilmente seria outra coisa. E seis anosdo viver atarefado, se bem que, contendo algo de duro e cruel, nafamosa escola, forneceu a Wesley as bases amplas para todos os seusestudos posteriores. A vida numa grande escola pública é algo mais do

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que a instrução literária. Não há nada de moleza e de enervante na suaatmosfera; antes, desenvolve a coragem; a perseverança e a iniciativa;dá resistência a todas as fibras do caráter; é um longo e forte tônico.Wesley trouxe para a Charterhouse um corpo resistente; mas de lá saiutambém com certa resistência de caráter; um admirável haver para umjovem de 17 anos que começa o curso numa grande Universidade, eUniversidade qual era a de Oxford nos princípios do século XVIII .

O irmão maior, Samuel, era nesse tempo lente (professor) naescola de Westminster, onde o mais novo dos três, Carlos, eraestudante; e João Wesley estudava o hebraico com o seu irmão maior;pois os Wesley possuíram em grau admirável o hábito de ajudarem-semutuamente. Samuel escreve ao pai; “Joãozinho está comigo; é rapazcorajoso, aprendendo o hebraico com a presteza possível”.

Nesta época a boa fortuna fez uma visita aprazível à família deEpworth. Carlos Wesley estava em Westminster, estudante vivaz, commais do que a inclinação normal de um estudante pelas brigas, quandoum cavalheiro irlandês, Garrett Wesley, rico e sem filhos, escreveu aopresbitério de Epworth, perguntando se havia na família um filho com onome de Carlos. Se houvesse ele desejava adotá-lo por herdeiro.

Existia entre as duas famílias algum parentesco, cujo grauignoramos. Parece que Garrett Wesley, por algum tempo, ajudou acustear os estudos do seu pretendido herdeiro, e finalmente queria levá-lo para a Irlanda e fazer-lhe às vezes de pai. O sr. Samuel Wesleydeixou ao rapaz a decisão do negócio, o qual recusou a proposta.Garrett Wesley escolheu por herdeiro outro parente (Richard Colley), oqual, assumindo o nome de Wesley, foi elevado à nobreza como Barãode Mornington, e tornou-se avô do duque de Wellington. Até o ano de1800 o mais famoso entre os soldados ingleses figurava sob o nome de“Arthur Wesley”; depois desse ano o nome foi mudado em Wellesley.

Parece, portanto, que o homem de Deus e reformador que mudoutodo o curso da história religiosa da Inglaterra mediante forçasespirituais, e o grande soldado que contribuiu para a sua história secularcom vitórias tão esplêndidas, saíram do mesmo tronco ancestral. Eentre Wesley e Wellington existem indubitavelmente curiosos pontos desemelhança. Os dois eram pequenos de corpo, mas de fibra resistente,com uma capacidade quase milagrosa para árduos trabalhos, e comcoragem que, se possuída da frieza do gelo, ainda teve a dureza doaço. As “ordens” de Wellington e o “diário” de Wesley possuem muitascaracterísticas em comum – um certo ar pessoal, e desprezo de

ornamentações, uma predileção pelas palavras curtas e pensamentosclaros. Se forem estudados os retratos, notar -se-ão também certostraços de semelhança. Cada qual tem nariz comprido e obstinado,queixo resoluto, os olhos firmes e penetrantes de um líder dehomens. Mas as feições do grande pregador são suavizadas eacalmadas pelo evangelho de amor que pregou por tanto tempo. Ocaráter do famoso soldado foi fundido e temperado no fornovermelho de Badaj ós e São Sebastião, de Busaco e Waterloo. E ossinais das chamas perduram no seu semblante, mesmo na velhice.

Em 1720 João Wesley começou a vida em Oxford, entrando noChrist Church, como estudante comum com benef ício daCharterhouse na importância de quarenta libras esterlinas por ano.Oxford em 1720, pode-se dizer de antemão, era lugar poucorecomendável para um rapaz inteligente que tomava a vida a serio , eque - não obstante ser inconsciente disso - havia de ser o agente deDeus no maior movimento na hist ória religiosa da Inglaterra. AOxford de então foi bastante remo ta da Oxford que Matheos Arnolddescreveu nas memoráveis palavras: “Imbuída de sentimento,estendendo os seus jardins ao luar, e, segredando de suas torres osúltimos encantos da idade m édia”. Não havia romance algum aoredor da Oxford, sobre a qual o jove m João Wesley lançou olharesperplexos, nem existia ali qualquer atmosfera de sentimental ismo.No século que tem o “entusiasmo”, como sendo o mais mortíferoentre todos os pecados, as universidades forçosamente maissofreriam . Justamente como no corpo, em que é deficiente acirculação do sangue, as extremidades são as partes mais afetadas.E Oxford nos começos do século XVIII, foi, talvez, o lugar menospoético em todo o país sombrio que era a Inglaterra.

Não havia “entusiasmos” nem pelos jogos atléticos. Oxford eraa moradia da insinceridade e preguiça, e dos vícios gerados por taisqualidades. Um tipo de sua insinceridade foi especialmente mau: estavaorganizada, possuía patrimônio, era respeitada, revestida de autoridadee até iludia-se a si mesma a ponto de julgar-se virtuosa. Existia toda afórmula de uma grande instituição para o ensino cristão; mas os fatosdesmentiam a fórmula. O Gibbon cruelmente embalsamou, qual moscamorta no âmbar imperecível de sua retórica, a seu próprio tutor que,sempre “se lembrava de receber o seu salário, mas esquecia-se decumprir o seu dever”. E este homem era o tipo da própria Universidade.Os lentes (professores) recebiam os honorários por aulas que nuncaderam; os estudantes compravam dispensas de preleções que nãoforam nunca proferidas, e juravam obediência a leis que nunca leram.

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Oxford, quando Wesley pisava-lhe as ruas, foi, para os estudantesem geral, a instrução na má arte de subscreverem artigos que elesridicularizavam; e de fingirem assistência em aulas que não. existiam.Quem quiser sondar as profundezas em que ela se havia mergulhado,leia o terrível sermão que o próprio Wesley pregou, do púlpito de SantaMaria, no dia de São Bartolomeu em 1744. Aquele discurso foi, de fato,uma acusação flamejante da Universidade, pregado com infinitacoragem do púlpito da própria Universidade, para um auditóriocomposto de professores, lentes, diretores e estudantes. Não é deadmirar que esse sermão fosse o último que Wesley foi permitidoproferir do histórico púlpito de Santa Maria!

No entanto, não se deve incluir a Universidade inteira numa sógeneralização. Havia alguns estudantes bons e um elementosobrevivente da vida salutar na própria Oxford de 1720-1744; masninguém seria capaz de compreender a evolução do Metodismo, emsua forma primitiva em Oxford, sem saber algo primeiro da atmosferamoral e intelectual da grande Universidade.

Wesley teve uma carreira estudiosa e útil, senão brilhante emOxford. Não ficou enervado com a atmosfera da Universidade; e, talvez,por alguma lei sutil de reação, fizesse mais intensa a sua aplicação.Bacharelou-se em 1724 e foi eleito lente de Lincoln em 1725. Um anodepois foi nomeado professor de grego e presidente das classes.Recebeu o grau de Mestre em 1727.

Com vinte e dois anos, portanto, Wesley era lente do maisadiantado, se bem que quase o menor colégio de Oxford. O seu irmãoSamuel tinha uma boa posição na escola de Westminster, ondegranjeava poderosos amigos. Carlos, o irmão menor, de dezoito anosapenas, tinha um benefício em Christ Church. Os “filhos do presbitériode Epworth” manifestamente prometiam fazer melhor no mundo do queo fogoso e “imprático” pai.

Oxford imprimiu sobre João Wesley o seu selo indelével. Erahomem universitário, com os méritos e as faltas desse tipo, até o dia desua morte. Possuía faculdades mentais que trabalhavam com aexatidão de uma máquina. Era um perito na lógica, e costumavaresolver tudo - até a própria experiência religiosa - em termos lógicos.Tinha modos de cautelosa confiança, brilhava na polêmica e nelaachava certo prazer. O seu estilo Iiterário já manifestava ascaracterísticas que lhe deram fama no decorrer dos anos. Era claro,

ríspido, direto, e notável pelo rígido desprezo de adorno e de toda apirotécnica verbal. Wesley prezava palavras curtas, engastadas emcurtas sentenças. A sua brevidade, de fato – o seu hábito de tomar ocaminho mais direto em definição, e de vestir os seus pensamentoscom o menor número possível de sílabas – dava muitas vezes o efeitodo humor. Falava em epigramas sem tencionar fazê-lo, e atéinconscientemente.

O jovem lente de Lincoln planejava grandes coisas para o seufuturo. A frase um tanto pomposa “Já me despedi da folga” pertence aeste período de sua vida. Mais tarde foi traduzida em fato sóbrio ehumilde, mas mesmo nesse tempo ele considerava a sua formatura nãocomo sendo o fim, mas o começo de sua vida de estudante. Fez adistribuição de suas horas segundo um plano característico, tantas aosclássicos, tantas ao hebraico e arábico, tantas à lógica e moral. Ossábados foram dados à retórica e poesia; porque Wesley já faziaexcursões proveitosas para as encantadoras regiões da versificação. Asua sisuda mãe lhe escreveu: “Faze da poesia a tua diversão; mas nãoo teu trabalho”.

Uma carta do seu colega de Universidade, Roberto Kirkham, nosdeixa ver através da cena algo da vida do Wesley secular, o elegante eativo argumentador, o jovem lente de Lincoln; e descreve com o gostode estudante um jantar de cabeça de bezerro e toucinho enfumaçado,com o melhor repolho da cidade. O grupo de banqueteadores ”abriu umbarril de cidra admirável”. E como tempero para a “cabeça de bezerro etoucinho enfumaçado com o melhor repolho da cidade”, Wesley éinformado, que eles falavam do vosso caráter de mérito descomunal, dovosso vulto pequeno e elegante, e da vossa conversa agradável eproveitosa. Continuando ele diz: ”Tendes ocupado freqüentemente ospensamentos da M. B., fato que tenho curiosamente observado, quandoa sós com ela, nos íntimos sorrisos e suspiros, e nas expressõesabruptas a vosso respeito”. M.B. “era Miss Betty Kirkham, irmã doescritor cuja carta mostra que o vulto pequeno e elegante do jovemlente de Lincoln já era a admiração de olhos femininos”.

Neste período Wesley tomava um interesse aprazível na suaaparência pessoal. Discutia seriamente com seu irmão Samuel se deviater o cabelo comprido ou curto. “Quanto às minhas feições”, dizia ele,“tê-lo cortado, sem dúvida melhoraria a minha fisionomia, por deixar-memais corado; e talvez me ajudaria a ter uma aparência mais gentil”. MasJoão Wesley, à semelhança da mulher de João Gilpin, possuía espíritofrugal, e decidiu que as melhoras em sua aparência não compensariam

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o gasto de duas ou três libras por ano com o barbeiro.

É fato que as dívidas perseguiram a João Wesley até otempo da sua eleição como lente. O seu pai escreveu “ao meuCaro Lente eleito de Lincoln”, lhe enviando doze libras, edizendo: “Já fiz mais do que pude para vós. Não tenho cincolibras para custear a família até depois da cei fa. Qual será aminha sorte, só Deus sabe”. Samuel tinha diante de seus olhosuma visão bem clara de outra visita ao castelo de Lincoln nacondição de preso por causa das dívidas. Entretanto, escreve:“Sed passi graviora. Esteja eu onde estiver, o meu Joãozinho élente de Lincoln”.

Mas uma onda de sentimentos mais profundos começava inundaros canais da vida de João Wesley, de tal modo que Miss Betty Kirkhame seus suspiros, e o barbeiro e sua tesoura foram logo submergidos epara sempre perdidos da vista humana.

PARTE II

O Desenvolvimento do santo

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CAPÍTULO V

A Piedade Juvenil

A religião constitui o fato supremo na vida de João Wesley, aúnica coisa que a torna de interesse histórico e imortal. No grandedomínio da religião ele encontrou as forças que lhe habilitavam a gravaro seu nome tão profundamente na história humana. Ao serviço dareligião ele fez o trabalho que tornou famoso o seu nome para sempre.À parte do grande avivamento no qual era o principal ator, sem dúvida,teria desempenhado papel saliente no século em que viveu. Um cérebrotão claro e ativo, um corpo tão resistente, uma figura tão graciosa, umatão surpreendente capacidade para o trabalho, teria lhe dado êxito emqualquer domínio ou sob quaisquer condições.

Se tivesse continuado como elegante eclesiástico da Igreja Alta,com uma religião puramente mecânica, poderia ter-se vestido dasmangas de cambraia de um bispo, e o seu nome, talvez, hoje se achariagravado em letras evanescentes (que se esvaem, que desaparecem)numa tumba de qualquer catedral inglesa. Mas em tal caso, o seu únicotitulo à recordação humana, seria uma dúzia de áridos volumes sobre ateologia polemista.

Wesley mudou as próprias correntes da história inglesa; deu umnovo desenvolvimento ao Protestantismo inglês, e assim fez-se visívelpara todo o sempre e soube fazer isto por ter-se assenhoreado dosegredo central e essencial da religião, fazendo da sua vida o canalpelo qual as grandes forças pertencentes àa religião achassem via decomunicação com a vida de seus conterrâneos. E é a história religiosade João Wesley que ainda afeta o mundo.

Até aqui temos nos ocupado somente dos elementos puramentehumanos e seculares na sua educação, para que a sua históriaespiritual se ja dada como narração separada, e assim seja contempladanuma perspectiva contínua.

Em certo sentido a história espiritual de João Wesley écuriosamente moderna, e o próprio Wesley, como religioso, é homemmoderníssimo. Na sua biografia acham-se refletidas e reproduzidastodas as escolas religiosas da vida moderna. A ciência relata que nos

graus do desenvolvimento pré-natal, a criança ensaia de novo, elo porelo, toda a corrente, fisiológica da existência. Assim os graus deexperiência religiosa, pelos quais João Wesley passou, cobrem toda aextensão dos sentimentos e emoções religiosos, que comovem a vidados homens no dia de hoje.

Temos o que se pode chamar a religião da meninice - a únicareligião que alguns conhecem coisa puramente imitativa, impressasobre a vida à força da disciplina exterior, o resultado da educaçãodoméstica, mas, sem qualquer raiz vital e espiritual. Temos a religião doritualista – High Churchman – reduzida ao mecanismo de regrasexteriores e mantida por disciplina externa; a do legalista, com todos, oselementos salvadores da religião, gelados, deixando com vidaunicamente a moral; a do asceta, que tenta salvar a sua alma pelocastigo do corpo – humoristicamente taxada por alguém como “asalvação por inanição”; a do místico, que perde de vista a terra firme eos deveres comuns e deixa-se flutuar à toa em alguma região vaga decerração espiritual.

Todos estes tipos existiam em Wesley. Ele experimentava todasas interpretações da religião; as experimentava sinceramente; provava-as com uma inteireza heróica; e gastou treze anos no processo - e nofim achou-se um falido espiritual.

Afinal aprendeu o segredo profundo e eterno da religião como alibertação presente e pessoal; uma emancipação verificada naconsciência íntima e trazendo à alma redimida a relação de filiação comDeus; a religião com o seu segredo do poder sobre o pecado; o seugrande dom de uma moralidade incendiada pelo amor. E com essadescoberta suprema, a sua vida transfigurou-se. As experiênciasreligiosas de Wesley são, assim, a história de uma alma; mas muitomais do que isso; são a reprodução da história das grandes escolasreligiosas dentro dos limites de uma só vida sincera. Todas assucessivas fases da experiência religiosa de Wesley existem hoje;existem contemporaneamente como separados tipos da religião.

No desenvolvimento espiritual de Wesley também se podem vertodas essas transformações de experiência com uma clareza cristalina,podem ser traçados com uma certeza inequívoca. A sua alma em todasas suas fases estava engastada em cristal; e o seu hábito de rígidoexame próprio, a franqueza tanto de suas cartas como de seu Diárioimortal, a bela simplicidade de seu estilo, habilitam-nos seguir, semesforço, todas as fases de sua evolução religiosa. Ele tinha durante toda

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a vida a franqueza de Rousseau sem possuir o seu astuto egoísmo; emovia num plano tão elevado que parece pertencer a uma ordemespiritual deferente da do Savoyard. Temos também os juízos dopróprio Wesley, revisados por ele mesmo, a largos intervalos de tempoe de progresso espiritual. Assim coloca a sua juventude na luzfulgurante, e a julga pelo fervor de sua conversão. Afinal de novo julga aambos pela sabia e sóbria reflexão da sua velhice. Assim temos oWesley, digamos de 1728, julgado pelo Wesley de 1738; e esses, porsuas vezes, re-julgados pelo Wesley de 1788.Se for possível estudaruma alma humana em detalhe, e sob o microscópio, então se podepredicá-lo da alma de João Wesley.

Certos elementos, daquilo que se pode chamar “a religião dameninice”, estão na superfície e são facilmente descritos e avaliados. Acriança adquire prontamente uma crosta (casca, escama, camadaespessa) de hábitos exteriores, impressos por regra; um sistemacompleto de crenças indiscriminadas – crenças desprovidas de provas –sem qualquer relação com a razão e aceitas em virtude da autoridade.Esta piedade dócil e imitadora é tão exterior à alma quanto é a peIe aocorpo; mas, como a peIe, tem muitas qualidades serviçais.

Wesley possuía todos esses elementos da religião juvenil em graubem elevado. O caráter da mãe, a disciplina materna insistente eordeira que rodeava as vidas de seus filhos qual atmosfera, e com algoda pressão perpétua e irresistível da atmosfera, era bem calculada paraproduzir o invólucro de hábito que constitui em grande parte a religiãoda criança. A teologia que em criança aprendeu era naturalmente dotipo de ritualista. Por exemplo, foi ensinado que seus pecados foramlavados pelo batismo, e anos depois eIe seriamente escreve “que sóquando eu chegara à idade de dez anos, eu havia, pelo pecadopessoal, me desfeito daquela lavagem do Espírito Santo que eIe medera no batismo”. Também foi ensinado que ele não se salvaria se nãocumprisse todos os mandamentos de Deus; uma interpretação doEvangelho de Cristo que lhe custou, mais tarde, anos de sofrimento. Oresultado de tal disciplina e doutrina, sobre uma natureza predisposta àséria meditação, era produzir uma piedade juvenil de uma seriedadenormal e quase aflitiva. Mas isto tão completamente satisfez osideais sacerdotais do seu pai que, como já vimos, quando o meninocontava apenas oito anos, fê-lo ajoelhar à mesa da ceia do Senhor.

Era século de crianças maravilhosas! É narrado seriamenteque o pai de Suzana Wesley, o Dr. Annesley, “quando tinha cercade cinco ou seis anos, começou o hábito, que depois continuava, de

ler vinte capítulos na Bíblia todos os dias” . O fenômeno de umacriança, que ainda não conta seis anos, seriamente formando, nascélulas do seu cérebro infantil, o plano de ler vinte capítulos daBíblia todos os dias – e a execução desse hábito durante uma longavida – seria no dia de hoje considerado como um prodígio. De HettyWesley, irmã de João, narra-se que aos “oito anos ela lia o NovoTestamento em Grego”. Existem crianças tão fenomenais no dia dehoje?

Talvez a piedade forçada e infantil de Wesley fê-lo, nodecorrer dos anos, demais crédulo acerca de santos infantis; aomenos, isto nos ajuda em explicar a sua experiência melancólica deKingswood, quando tentou, em larga escala, transfigurar meninosde sete, oito e dez anos em santos maduros.

Mas alguns dos elementos mais preciosos e graciosos dapiedade juvenil são conspicuamente ausentes da infância de JoãoWesley. Felizmente a Igreja moderna tem descoberto na religiãoinfantil algumas das mais belas e apreciáveis graças; uma confiançainabalável que sobrepuja a metafísica dos grandes teólogos; umfácil e feliz amor a Deus, que seria irreverente, se não fosse a suasimplicidade; um regozijo na religião, tão espontâneo e prazenteirocomo o trinar dos passarinhos; uma simplicidade em oração que faza mãe, ao ouvi-la, sorrir-se e ao mesmo tempo chorar. Wordsworthdiz: “O céu nos rodeia na nossa infância”; e ao redor de umacriancinha respirando a atmosfera de um lar cristão, está o céu de umsimples e cordial amor a Deus, e de uma fé nele, isenta de qualquersombra de dúvida. Cristo está bem perto do coração da criança. Aindahoje, como nos tempos idos, ele coloca o pequenino no meio da sua,Igreja e nos avisa a todos que nessa direção está o céu!

João Wesley não possuía esses elementos graciosos, alegres econfiantes da religião infantil. Teriam sido para ele um anacronismo.Não pertencia a seu século nem ao tipo de teologia ensinada sob o tetodo presbitério de Epworth. Não formava elemento algum na disciplinaexatamente medida – disciplina que contava as horas e os deverescomo o farmacêutico conta as gotas de uma tintura – que foi a melhorcoisa que a própria sra. Suzana Wesley, nesse tempo, conhecia. Nuncacriança alguma sobrepuja a religião da própria mãe; e se em certosentido foi o mérito, era também o defeito, na piedade de SuzanaWesley, a ser construída sob o sistema de horário de uma viação férrea,e com algo de seu esforço mecânico; era esta a escola em que elamesma se nutrira. Escrevendo em 1709 a seu filho maior, Samuel, que

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estava então em Westminster, ela diz:

“Vou dizer-te a regra que eu costumava observar quando aindame achava na casa do meu pai e tinha tão pouca, senão menos,liberdade do que tu tens agora. Eu deixava tanto tempo para o recreioquanto gastara em devoção particular. Não que eu sempre gastassetanto, mas eu me permitia ir até aí, mas não além. Assim em tudo mais;designes certo tempo para o sono, para o comer, para a vida social,etc.”

Uma menina que orava pelo relógio, e que media essas orações,permitindo-se, então, exatamente tanto tempo para o recreio quantogastara em oração e não mais, certamente compreendeu a seriedadeda religião; mas que sabia ela da sua graciosa liberdade? E foi este ocaracterístico geral da piedade de Suzana Wesley. Era de fibra heróicae não podemos senão apreciar, quase com rasgos de admiração, osmétodos de sua religião; e sua seriedade e energia de rotina. Porexemplo, esta mãe de dezenove filhos - que tinha de lhes servir deprofessora e quase de provedora de pão, bem como de mãe ,entretanto, todos os dias, resolutamente passava uma hora demanhã e outra de tarde em oração e meditação. E geralmentefurtava ainda mais uma hora ao meio dia para a med itaçãoparticular, e tinha o hábito de escrever, em tais tempos, os seuspensamentos sobre os grandes assuntos. Muitos dos quais ainda seconservam, marcados, “Manhã”, “Meio -dia”, e “Noite”; e elespossuem uma certa elevação de tom, uma separação dos eleme ntosseculares que os torna não menos que admiráveis. Parecem serabanados pelas brisas de outros mundos. Eis um exemplo :

“Noite. - Se o estimar e o ter para Ti a maior reverência; seconstante e sinceramente reconhecer-Te, como o único esupremo bem desejável, é amar-Te, então eu Te amo. Secomparativamente desprezar e contar de pouco valor tudo que omundo contém, e considera de grande, lindo ou bom; se sincera econstantemente desejar-Te, o Teu favor, a Tua aceitação, a Timesmo, mais do que qualquer ou todas as coisas que criaste, éamar-Te, então eu Te amo...”

“Se o me regozijar na Tua glória e majestade essenciais;se me sentir o coração dilatado e confortado com cadapercepção da Tua grandeza, ao lembrar-me que Tu és Deus;que tudo está sujeito a Teu poder; que não há ninguémsuperior nem igual a Ti, é amar-Te, então eu Te amo.”

É esta uma notável peça de meditação religiosa, e digna daMadama Guyon. Realmente existem muitos pontos de semelhançaentre a mística francesa e esta inglesa prática e nobre. Mas se aMadama Guyon tivesse sido mãe de dezenove filhos e tivesse desustentá -los com os minguados recursos do presbitério de Epworth,é duvidoso que as suas “reflexões” tivessem a atitude serena dassentenças que citamos.

Carlos Wesley, em 1742, escreveu o epitáfio de sua mãe.“True daughter of affliction she,Inured to pain and misery ;Mourned a long night of griefs and fears.A legal night of seventy Years .

Ou,“Ela, vera filha de aflição,acostumada à dor e à pobreza;chorava uma longa noite de tristezas e temores,uma noite legal de setenta anos”.

Mas não se pode descrever como “noite legal” essa experiênciaem que estrelavam pensamentos como os que citamos. Entretanto, oextrato que damos, mostra os defeitos na teologia de sua escritora.Reflete exatamente os métodos espirituais do seu filho durante os anosfatigosos que precediam a sua conversão. Ela possui as graçasessenciais do caráter cristão, mas sem qualquer nota de exultanteconfiança ou de qualquer certeza de sua aceitação perante Deus. Osmétodos da lógica na sua vida espiritual tomam o lugar do “testemunho”do Espírito Santo. Ela tem de certificar, tanto a Deus, como a si mesmaque ela o ama, pelo auxílio dos silogismos (dedução a partir depremissas). Na linguagem da teologia técnica, ela confundia ajustificação com a santificação; e isto não foi um simples erro dametafísica. Ela cria, e ensinava a seus filhos a crerem, que aconsciência da nossa aceitação por parte de Deus vinha, não nocomeço da vida cristã, mas no fim. Não era tanto o motivo para aobediência, mas constituía o galardão por uma obediência que existiaindependentemente dela.

Se a senhora Suzana Wesley tivesse aplicado a sua teologia àparábola do Filho Pródigo teria escrito inteiramente de novo aquelapérola das parábolas. Teria descrito o pai como protelando o beijo, oanel, o melhor vestido - todos os penhores da filiação restaurada - até

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que o pobre desgraçado, já de volta; entrasse na cozinha da casapaterna, servisse de criado, e comprasse, com o dinheiro assim ganho,uma boa fatiota para si mesmo! Já em idade avançada ela disse que,sempre considerara a consciência da graça perdoadora de Deus, comosendo uma experiência rara de grandes santos, impossível aos cristãosem geral. Era impossível à senhora Suzana Wesley ensinar o que elamesma não sabia, e isto explica os elementos faltos na piedade infantilde seu grande filho João.

A religião infantil de Wesley não sobreviveu aos duros golpes davida na Charterhouse e em Oxford. Desvaneceu-se inevitavelmentecom os tenros anos que lhe davam existência. O próprio Wesley diz:“Sendo removidas as restrições externas, tornei-me muito maisdescuidado do que antes no cumprimento dos deveres exteriores, e mefiz continuamente réu de pecados exteriores, que eu bem conhecia portais, embora não fossem escandalosos aos olhos do mundo”. Wesleyescreve estas palavras em 1738, logo depois da sua conversão; eentão, julgando a sua vida anterior pelo padrão das emoções e dosrecém-nascidos ideais daquela grande experiência, naturalmente apintava bastante escura. Ele diz: “Eu ainda lia as Escrituras e fazia asminhas orações de manhã e de noite”. Então com traço característicodaquilo que se pode chamar de ex post facto – análise de si próprio –ele acrescenta: “Aquilo pelo qual eu então esperava ser salvo era: 1) onão ser tão ruim como outra gente, 2) ainda conservar um respeito pelareligião, e 3) ler a Bíblia, assistir na Igreja e fazer as minhas orações”. Éevidente que este sistema de religião achava-se singularmenteinadequado. E embora não se diga que Wesley, em qualquer época,fosse culpado de conduta viciada, entretanto, deslizou-se em maneirasfrívolas. A sua consciência perdeu tanto na sua vigilância como na suaautoridade. E quando Wesley alcançara os seus vinte e dois anos deidade – e realmente, por anos antes disso – a religião puramenteimitativa da sua infância, mesmo para a sua própria consciência , haviase tornado em fracasso.

CAPÍTULO VI

Em busca de uma Teologia

Nos começos de 1725, Wesley, tendo completado com êxito oseu curso universitário, tinha de escolher uma carreira. A sua posiçãode lente abria-lhe a porta para uma das três profissões doutas, o direito,a medicina ou a Igreja. Wesley possuía, em grau supremo, algunsdotes, pelo menos, que constituem o grande advogado; e também tinhauma forte inclinação natural, como os sucessivos anos demonstraram,em direção da medicina. De fato, lidava com medicamentos durantetoda a sua vida. Contudo a Igreja foi para ele inevitável. As forçashereditárias, a pressão de sua educação, e certas qualidades detemperamento natural o levaram nesta direção. Havia também colaçõescolegiais e colações ao dispor da Charterhouse que tornavam agradávela perspectiva. O seu pai havia lhe feito pressão neste sentido; e logo nocomeço do ano Wesley escreveu a Epworth dizendo-se disposto tomarordens sacras.

A escolha foi para ele de importância suprema, poisdefinitivamente lançou a sua vida nas correntes da religião. CarlosWesley, traçando as forças que lhe determinaram o espírito na mesmadireção, diz: ”A diligência me levou a pensar seriamente”. A seriedade,com que se aplicava aos estudos, despertou, como se fosse porvibrações aparentadas, porém mais profundas todas as faculdades maisnobres da sua alma. E como no caso de seu irmão João, a sua decisãode tomar ordens sacras fê -lo contemplar a religião com novas vistas.Mais tarde Wesley ensinou à sua Igreja que a conversão era oprimeiro requisito essencial ao cargo ministerial; mas no caso delemesmo essa ordem foi invertida. Ele decidiu tomar ordens sacras, eentão resolveu “a pensar seriamente” para descobrir qual o preparoespiritual que possuísse para a vocação que encolhera.

É curioso ler a exposição que o seu pai faz dos motivos quedevem atuar o candidato para o grande cargo do ministério cristão. Eleescreve:

“É da minha opinião que, se não houvesse mal algum nopropósito de galgar esta posição, mesmo como os filhos de Eli, afim de comerem um pedaço de pão, ainda assim, o desejo e opropósito de seguir uma vida mais estrita, e a crença que se deve

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fazer isto, seria razão ainda melhor. E isto, no entanto, deve-secomeçar antes ou são dez para um que enganar-nos-emosdepois”.

Isto nos parece uma descrição curiosamente inadequada doequipamento espiritual necessário para um tão grandeempreendimento.

Suzana Wesley toca numa nota mais elevada:“Querido Joãozinho, a mudança no vosso espírito tem

me ocasionado muitas cogitações. Eu, que sempre me inclinoao otimismo, espero que isto seja o resultado da operação doEspírito Santo de Deus, que, por tirar-vos o gosto pelosprazeres sensuais, quer-vos preparar e predis por-vos oespírito para uma consagração mais séria e constante àscoisas de uma natureza mais sublime e espiritual. Se forassim, faríeis bem em nutrir tais sentimentos; e agora, pois,com toda a sinceridade resolvais a fazer da religião o principalempreendimento da vossa vida. Agora, que falo nisto, merecordo da carta que escrevestes ao vosso pai em relação aovosso propósito de tomar ordens. Fiquei mui contente e gosteidesse propósito. Aprovo a disposição do vosso espírito e achoque quanto mais cedo for diácono, tanto melhor, porque podeser que vos seja um incentivo para uma maior aplicação aoestudo da teologia prática, que eu humildemente considerocomo a melhor matéria de estudo para os candidatos aordens”.

A Senhora Wesley, segundo seu costume, propõe que o seu filhoimediatamente proceda a uma interrogação de si mesmo, “para quesaibais se tendes uma esperança racional de salvação”; isto é, se estaisnum estado de arrependimento e fé ou não. Se estiverdes”, diz ela, ”avossa satisfação em sabê-lo será uma abundante recompensa devossos esforços. Se não estais, tereis uma ocasião mais razoável paralágrimas do que se pode encontrar numa tragédia”.

É sem dúvida um bom conselho; mas aqui, outra vez,encontramos a mesma inversão da verdadeira ordem espiritual. Oofício espiritual vem primeiro, e depois o prepar o! O seu filho nãodeve tomar ordens porque já tem o necessário preparo emteologia prática; mas precisa ordenar-se afim de que estude essateologia.

Entretanto, Wesley, tendo decidido quanto a sua carreira,dedicou-se com o denodo característico em preparar-se para ela. A suaprópria narração diz:

“Quando tive cerca de vinte e dois anos o meu pai insistiucomigo que eu entrasse em ordens sacras. Comecei a mudartoda a forma da minha conversação e a tentar sinceramente aentrar numa vida nova”.

Sendo estudioso, dado a livros acostumado a se aproximar a tudodo lado Iiterário, dedicou-se a literatura devocional. E três escritoreslargamente separados, quanto ao tempo, uns dos outros, e muidiferentes em gênio e atmosfera – Thomaz A. Kempis, Jeremias Taylore Guilherme Law – impressionaram-no profundamente. Grande, sutil, ede largo alcance é o poder de um bom livro! Em certo sentido, comoensinou Milton, é uma força imortal. A mão que o escreveu e o cérebrono qual foi concebido voltam ao pó; mas o livro ainda vive e canta,instrui ou adverte as sucessivas gerações de leitores novos.

O livro A imitação de Cristo, de Thomaz A. Kempis tem sidoimpresso em mais línguas, tem achado mais leitores e talvez temexercido uma influência sobre maior número de almas, do quequalquer outro livro fora da Bíblia. Quem o escreveu não se sabe aocerto, mas o monge que na sua cela distante, soube destilar nassentenças da Imitação , segundo as palavras do Deão Milman, “tudode elevado e animador que havia em todos os velhos místicos”, foi oprimeiro que, atrav és do espaço de três séculos, despertou umsentimento profundamente religioso no coração de Wesley. Aopasso que lia esse livro imortal, ele nos diz:

“Eu comecei a ver que a verdadeira religião tem a suaraiz no coração, e que a lei de Deus aplica-se a todos osnossos pensamentos bem como a todas as no ssas palavras eações... Eu destaquei uma ou duas horas por dia para umretiro religioso. Eu tomava a comunhão uma vez todas assemanas; vigiava contra todo o pecado, quer por palavra querpor ação. De modo que, agora, fazendo tanto e levando umavida tão boa, eu não duvidava que era bom cristão”.

Jeremias Taylor impressionou a Wesley quase tãoprofundamente como Thomaz A. Kempis. Entretanto não podiahaver contraste maior entre duas inteligências: Wesley, com a sualógica, clara como o gelo e quase tão fr ia, e com o seu desprezo daretórica; e Jeremias Taylor, ”o pregador da boca áurea”, com a suamais que trópica profusão de eloqüência. Jeremias Taylor tem sido

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chamado “O Shakespeare da teologia”. De Quincey nos conta quecomeçou uma biografia do grande teólogo, mas nunca foi além daprimeira sentença – “Jeremias Taylor, o mais eloqüente e o maissutil dos filósofos cristãos, era filho de barbeiro e genro do rei” . Maso próprio De Quincey, um dos mestres supremos do estilo daliteratura inglesa, nunca se c ansa em cantar o louvor da prosa deJeremias Taylor. Ele o classifica junto com o autor do “Enterro da Urna”e com o Jean Paul Richter, como sendo o mais rico, o maisdeslumbrante e o mais cativante retórico. E talvez o homem que,durante o tumulto e as lutas da Guerra Civil, escreveu “As Regras deuma Vida Santa”, tivesse a voz mais melodiosa na literatura cristã. Eainda se ouve sua voz sobressaindo às lutas partidárias e ao ruído dasbatalhas entre as quais o Jeremias Taylor se movia.

A sua erudição, o seu fervor espiritual, o seu gênio meigo, poralgum tempo, cativavam o espírito de Wesley. Entretanto, JeremiasTaylor devia ter exercido em certo sentido, uma influência perniciosasobre Wesley. Coleridge afirma que o autor do “Santo Viver e da MorteSanta” era, “de coração meio sociniano” (que aceita a doutrina baseadana teologia de Fausto Socino, falecido na Polônia, em 1604, que eraantitrinitária, rejeitava o batismo e a ceia do Senhor como meios degraça e o pecado original e afirmava que Jesus de Nazaré era apenasum homem); e certo é que a cruz de Cristo não aparece, senão muiindistintamente, através da áurea neblina da retórica Tayloriana. Eraprotegido do Arcebispo Laud, e o seu alto eclesiasticismo, que, asemelhança do eclesiasticismo (afeição excessiva e/ou culto a formas,métodos e práticas eclesiásticas, a instituição igreja) mais moderno damesma atitude, é dificilmente distinguido do papismo. Coleridge ,queixa-se de que Taylor, “nunca falava com o menor sintoma de afetoou respeito por Lutero, ao passo que chamam de santos todos ospseudo-monges e frades até as mais recentes canonizações dosmodernos”. Jeremias Taylor nada contribuiu para a clarificação dateologia de Wesley; antes serviu para dar-lhe um acrescido sabor desacerdotalismo (clericalismo, teocracia).

Mas Wesley não confiava em seus mestres, nem em si mesmo.Ele os interrogava, com a mesma diligência incansável, em quesindicava de sua própria condição espiritual. Portanto, o seu bom sensolevou-o a rejeitar o elemento ascético do livro A Imitação de Cristo, ondeKempis combate a alegria inocente, e exagera o valor espiritual datristeza. Wesley diz à sua mãe: “Não posso entender que Deus, aoenviar-nos para este mundo, irrevogavelmente decretasse que aquiestejamos sempre tristes”. O seu pai, entretanto, concordava com

Kempis, e dizia que: “a mortificação era ainda, para o cristão um deverindispensável”. Contudo, os traços heróicos da Imitação eram elevadosdemais para o bom parocozinho (Samuel), e com um rasgo de sensatezdescomunal, ele recomenda a João que consulte a mãe, dizendo: “elaterá tempo para peneirar o assunto até o farelo.”

A Senhora Wesley discute com notável sensatez toda a moral doprazer:

“Se quereis julgar da legitimidade ou da ilegitimidade dequalquer prazer, segui esta regra: Tudo que vos enfraquece arazão, debilita-vos a sensibilidade da consciência, obscurece-vos a percepção de Deus, ou vos diminui o gosto pelas coisasespirituais - mesmo que seja inocente em si mesmo - é paravós um pecado”.

Os mais sábios casuístas talvez achariam dificuldade em formularmelhor interpretação do dever humano!

Wesley, com notável presteza observou o que havia de salutar emseus novos mestres. Do livro A Imitação de Cristo ele aprendeu algo daaltitude e do escopo da vida espiritual. Depois de tê-lo lido, ele diz: “Vique, mesmo dando toda a minha vida a Deus, supondo que isto mefosse possível, nada me aproveitaria, sem eu dar-lhe o meu coração,sim, todo o meu coração”. Jeremias Taylor ensinou-lhe a grandeverdade, na qual ele medita com ênfase tão terna e comovente, danecessidade de um propósito absolutamente puro e simples. Wesleydiz:

“Instantaneamente resolvi dedicar toda a minha vida aDeus - todos os meus pensamentos, palavras e ações - sendoconvencido de que não existe meio termo, mas que todas asparticularidades da minha vida - não algumas somente – têm deser um sacrifício a Deus. Ou a mim mesmo, isto é ao diabo”.

Mas ele discorda, com a sensatez inevitável, do exagero deJeremias Taylor quanto a virtude da humildade. Seria, deveras, umaforma da piedade o julgarmo-nos piores do que a outros quaisquer? “Étudo”, diz Wesley, “questão determinável pelos fatos. Por exemplo,alguém, estando na presença de um livre-pensador, não pode deixar seconhecer como sendo o melhor dos dois”.

Nesse tempo, entretanto, Wesley se achava mais empenhado emtornar clara a sua teologia do que em determinar a sua própria condiçãoespiritual. Discute uma multidão de questões difíceis de teologia, com o

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seu pai e a sua mãe e é difícil crer se, que nesse tempo houvessequalquer outra correspondência na Inglaterra que rivalizasse, emsensatez e seriedade, com as cartas que se trocavam entre JoãoWesley, em Oxford, e a família no presbitério de Epworth. A sua mãeera, talvez, a mais adestrada em teologia do grupo, posto que a suateologia nem sempre fosse do tipo evangélico.

João Wesley discute com a mãe a intrigada questão dapredestinação. Ela lhe diz: “Essa doutrina, como mantida peloscalvinistas rígidos, é horripilante, e deve ser odiada; porque diretamenteacusa ao Deus Altíssimo como sendo o autor do pecado”. Ela asseveraque “Deus tem uma eleição, mas é baseada na sua presciência, e demodo algum derroga na livre graça de Deus, nem prejudica a liberdadedo homem”. Anos depois, Wesley publicou as cartas da sua mãe naArminian Magazine, e sem dúvida, elas lhe ajudavam em formar a suateologia, e a da Igreja que eIe fundou.

Mãe e filho ainda debatiam assuntos tais como a verdadeiranatureza da fé, do arrependimento, da Trindade; as cláusulascondenatórias no credo de Atanásio; o castigo futuro, a doutrina deplena certeza, etc., etc. Sobre o assunto da plena certeza Wesley,nesse tempo, teve idéias mais acertadas do que a mãe. Ela diz: “Acerteza absoluta que Deus nos tem perdoado, nunca podemos ter atéque formos ao céu”. Wesley respondeu: “Estou persuadido quepossamos agora saber, se estamos na graça de salvação, visto serexpressamente prometido nas Santas Escrituras em recompensa dosnossos esforços sinceros”. Mas aqui ele vacila e perde - como perdeudurante os treze anos seguintes - a grande verdade da atestação peloEspírito Santo, na alma crente, ao perdão dos pecados. Diz ele:“Certamente somos capazes de julgar da nossa própria sinceridade;” ea estimação que a alma humana é capaz de fazer da sua própriasinceridade é, aparentemente, o único alicerce sobre o qual se podeconstruir a alegre certeza do perdão de pecados!

Wesley foi ordenado diácono aos 19 de Setembro de 1725.Pregou o seu primeiro sermão em South Leigh, vila pequena navizinhança de Whitney. Mais tarde, passou o verão de 1726 emEpworth, pregando com o pai e seguindo os seus estudos.

Esta visita devia ter sido mui apreciada pelos pais. João Wesleyteve sobre si as glórias de sua então recente eleição a posição de lente;para ele a vida começara fulgurantemente; era de caráter imaculado, eestava no limiar do mais sagrado cargo dado aos homens exercerem. O

seu pai lhe escrevera, havia poucos meses, ao perceber nas cartas dofilho uma nova nota de seriedade: “Se és o que escreves, eu e tuseremos felizes”. E agora o pai podia julgar que o filho era o queescrevera.

À lareira do presbitério, toda a noite, Wesley sentava-se com ospais, palestrando com eles sobre grandes temas. Ele anota no seuDiário a lista dos tópicos que essas palestras versavam: Comoaumentar nossa fé, a esperança, o amor a Deus; a prudência, asimplicidade, a sinceridade, etc. Para uma mãe, com o espírito nobre esério de Suzana Wesley, aquelas palestras à lareira com o seu douto ebrilhante filho, que lhe viera da atmosfera da Universidade, e quemanifestamente se achava ao limiar de uma grande carreira, deviam terconstituído um prazer indizível.

Mas Wesley, nesse tempo, era, no sentido claro e escriturístico dotermo, cristão? Que ele responda por si mesmo. Em 1744 ele fez umaexposição das grandes verdades evangélicas que lhe mudaram a vida,e por cuja pregação, estava afetando as vidas de multidões. Então elepassou revista no tempo que acabamos de descrever:

“Passaram muitos anos, diz ele, depois de ter-meordenado ao diaconato antes de convencer-me das grandesverdades que acima citamos; e durante todo esse tempo eu eracompletamente ignorante tanto da natureza como da condição daJustificação. Às vezes eu a confundia com a santificação,particularmente quando eu estive na Geórgia. Outras vezes eutinha alguma noção confusa acerca do perdão de pecados; maseu então tomava por verdade que a ocasião deste perdão deviaser ou na hora da morte ou no dia de juízo. Eu era igualmenteignorante da natureza da fé salvadora, julgando que significavaunicamente um firme assentimento a todas as proposiçõescontidas no Antigo e no Novo Testamento”.

Certamente foi um grau de ignorância teológica bastante notávelnuma inteligência tão clara e que havia sido tão bem educada. Mas ateologia do presbitério de Epworth, não obstante seu encanto eseriedade, era mui defeituosa. E se bem que os homens são julgados,não por sua teologia, mas por suas vidas, entretanto, qualquer errograve na interpretação da verdade divina tem de afetar profundamente avida.

Quanto a Wesley, uma incessante inteireza assinalava a cada

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passo a sua têmpera religiosa. Não queria incerteza alguma, nemilusões suaves e fáceis. A religião como dom de Deus e comoexperiência humana era algo definido. Ele o possuía ou não o possuía;não era admissível qualquer meio termo. E com um sábio - se bem queinconsciente - instinto ele sujeitou a sua teologia à prova final. Lançou-ano alambique da experiência. Provou-a pelo toque vital: o seu poder emdeterminar e formar a vida. Gastou os dezenove anos seguintes nesteprocesso; experimentando o seu credo com uma coragem infinita e comuma sinceridade transparente, e freqüentemente com sofrimentos etrabalhos, pelo áspero ácido da vida, até finalmente alcançar aquelaconcepção de Cristo e de seu Evangelho que elevou o seu espírito àsregiões resplandecentes do gozo e poder.

É indubitável que, nessa época, Guilherme Law exercia umainfluência mais profunda sobre Wesley do que o próprio Thomaz A.Kempis ou Jeremias Taylor. A Chamada Séria é um dos grandes livrosda literatura cristã. Dr. Johnson disse a Boswell que ele havia, compouco escrúpulo, falado contra a religião até ler essa obra de Law. Eledisse:

“Peguei no livro, esperando achá-lo insípido, como são emgeral tais livros; mas Law era demais para mim; aquele livro mefez pensar sinceramente”. Wesley, na tarde da vida, e depois deter renunciado o próprio Law como guia religioso, ainda declarouque “não havia na língua inglesa qualquer obra que sobrepujasseA Chamada Séria quer na beleza de expressão quer na justiça eprofundidade de seus pensamentos”.

Law existe vagamente na idéia popular como um místico; e éverdade que, como diz o Southey, “o homem que abalara tantasinteligências finalmente sacrificou a dele às divagações e rapsódias deJacob Behmen”. Mas se o Guilherme Law findou-se no misticismo, osseus primeiros anos não estavam envoltos nessa malfadada cerração(nevoeiro espeço, escuridão, trevas).

Não havia qualquer indício do misticismo nas aparências de Law,um homem corpulento, de rosto cheio, com as faces coradas, de passopesado e de corpo sólido. Não há nada, tão pouco, da nebulosidademística em suas primeiras obras. Seria difícil igualar a lógica de Law, narigidez de fibra, na presteza e penetração com que descobre as faláciasno argumento do adversário. Os seus livros, para o gosto moderno,perdem muito do seu encanto pelo hábito do autor em personificar todosos seus vícios e virtudes, rotulando-os com nomes latinizados –“Paternus”, “Modestus,” etc. Entretanto poucos escritores usam tão

facilmente de inglês tão ressonante e expressivo como Guilherme Law.As suas sentenças picantes freqüentemente contêm um tempero desátira digna de Swift.

Law, durante algum tempo, era o diretor espiritual da família dopai de Gibbon, o famoso historiador, e a este serviu de tutor. Existe umelemento humorístico nessa associação - a combinação do místico, quecontemplava tudo no mundo material como sendo uma parábola douniverso espiritual, e o cético árido, que tratou o mundo espiritual comoirrelevante, ou como se não existisse. Entretanto, a manifestasinceridade e consagração de Law ganharam a admiração do próprioGibbon. Diz ele: “Law, achando, nem que seja, uma só faísca depiedade em qualquer espírito, logo a soprará em chamas”.

O efeito produzido pelo grande e poderoso escritor sobre Wesley é poreste descrito assim:

“Tendo encontrado nesse tempo A Perfeição Cristã e A ChamadaSéria, do sr. Law, não obstante ter-me escandalizado com muitos trechosde ambas; entretanto, por elas, eu me convenci mais do que nunca dogrande comprimento, largura e profundidade da lei de Deus. A luz me veioà alma tão poderosamente que tudo parecia em nova perspectiva. Clamei aDeus que me ajudasse; resolvi como nunca antes, a não protelar o tempode obedecer-lhe. E, por meus constantes empenhos para guardar a leiinterior e exteriormente até onde me dessem as forças, eu me persuadiaque seria aceito por Ele, e que eu estava então mesmo na graça dasalvação”.

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CAPÍTULO VII

Uma nota mais Ressonante

É possível agora estimar aproximadamente a influência que oslivros A Imitação de Cristo, de Thomaz A. Kempis, e A Chamada Séria,do sr. Guilherme Law, exerceram sobre Wesley. Deram-lhe uma visãotransfiguradora do majestoso escopo e altitude da religião; quãograndes eram os direitos de Deus e quão vastos os deveres do homem.Mas se lhe despertaram as grandes aspirações não lhe ensinaram aarte de realizá-las. Não enfatizaram a graça de Deus, mas os deveresdo homem. Se, pois, lhe despertaram a consciência, deixaram-lheimpotente. O grande segredo triunfante do Cristianismo: o perdão divinopela graça mediante a fé, e a obediência pelas forças que afluem àalma em virtude desse perdão, não lhe foram revelados. Em umapalavra, eles erraram a ordem eterna e imutável que Deus temestabelecido para a vida espiritual. Nessa ordem, o perdão vemprimeiro, pois é a Porta Formosa do templo de uma vida santa. Ou, paravariar a metáfora, é o canal pelo qual correm, para a alma perdoada,todas as grandes forças do amor e gratidão que não somente tornampossível a obediência, mas a fazem inevitável e exultante.

É verdade que em todos estes grandes livros se encontram frasesesparsas que são tão evangélicas como qualquer coisa que se encontranos hinos mais triunfantes de Carlos Wesley, ou nos mais emocionantesapelos de George Whitefield. Por exemplo, Law disse a Wesley:

“Quereis uma religião filosófica, mas tal coisa não existe. Areligião é a coisa mais simples deste mundo. É simplesmente nósamarmos a Deus, porque ele nos amou primeiro. Onde se podeachar palavras que vão mais diretamente ao coração doCristianismo! São João podia tê-las escrito; e São Paulo tê-las-iasubscrito”.

Mas toda a ênfase efetiva dos escritos de Law está sobre pontodiverso. E a força dos três grandes livros que tão poderosamenteinfluíram sobre Wesley neste ponto de seu desenvolvimento espiritual,está em salientar, repetimos, não tanto a graça divina como a obrigaçãohumana. Eles vestiam a grande moral do Cristianismo com umaautoridade mais imperiosa à consciência de Wesley, mas deixavam deensinar-lhe a mensagem especial desse Cristianismo, a relação da alma

pessoal com o Salvador pessoal. Assim o deixou falido daquela energiaespiritual diretamente proveniente do Espírito Santo, o qual é o únicoque traz a alta moral do Novo Testamento ao domínio da possibilidadehumana.

João Wesley voltou a Oxford em setembro de 1726 e recebeu ograu de Mestre em Artes em 1727. Em agosto do mesmo ano tornou-secura (pastor ajudante) de seu pai em Epworth e Wroote, até 22 deNovembro de 1729, quando foi chamado novamente a Oxford. Wesleyassim teve mais de dois anos de trabalho paroquial como cura de seupai. Possuía, o que seria quase universalmente considerado, dotesproeminentes para o êxito em tal trabalho. Era douto, cavalheiro, comuma educação esmerada, um corpo incansável, uma facilidadeincomparável em discurso cristalino, um zelo intenso, e uma concepçãodo dever religioso quase austera em sua aplicação. Isto quer dizer quepossuía todas as qualificações humanas necessárias ao êxitoministerial, em grau tão elevado como em qualquer época de sua vida.Entretanto falhou, falhou por completo, e era consciente do seu fracasso- falhou justamente como mais tarde falhou na Geórgia! Não aprenderaainda a primeira letra do alfabeto de êxito. Não atraia multidão alguma;não alarmava a consciência de quem quer que fosse, não influía na vidade ninguém. A sua própria apreciação do seu trabalho nesse tempo é:

“Preguei muito, mas vi pouco fruto do meu trabalho. Nempodia ser de outra forma, pois eu nem deitava as bases doarrependimento nem da fé no Evangelho, julgando que aqueles aquem eu pregava fossem todos crentes, e que muitos deles nãonecessitassem do arrependimento”.

O completo fracasso de Wesley nesta época de sua vida é tãonotável quanto é o seu êxito mais tarde. Durante este período a notaséria, para não dizer ascética, tornava-se mais dominante em suaexperiência. Quando veio residir no Colégio Lincoln, ele escreveu:“Entretanto agora, num novo mundo, resolvi que não teria conhecidoalgum por acaso, mas unicamente por escolha, e que eu havia deescolher somente aos que eu tivesse razões para crer que meajudariam na minha viagem para o céu”. Outra vez escreveu: ”Eupreferiria, ao menos por algum tempo, uma reclusão tal que meafastasse de todo o mundo para a posição na qual agora estou”. Oimpulso que faz o monge estava se fazendo sentir no sangue frio deWesley!

A direção de uma escola em Yorkshire, que foi lhe oferecidanesse tempo, tinha a vantagem de um bom salário, mas havia também

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aquilo que, para o espírito de Wesley nessa época, tinha ainda oencanto maior de ser quase inacessível. Ele possuía geralmente umaimaginação notavelmente sã; mas agora estava doentia, e o queWesley chamava ”a descrição medonha” dada às terras ao redor daescola, e a dificuldade de se chegar ali, o fascinavam. Afinal a escola foidada a outro, e a sua mãe, com o bom senso que lhe era característicoescreveu congratulando-se com ele por tê-la perdido. Ela diz: “Aquelamaneira de vida não teria dado com o teu gênio, e espero que Deustenha um trabalho melhor para ti”.

Em novembro de 1729 Wesley foi de novo chamado a Oxford.Estavam fazendo um esforço para restaurar a disciplina naUniversidade. Como uma medida, decidiu-se que os lentes mais novos,que foram escolhidos moderadores, pessoalmente desempenhassemas funções de seus cargos. Na Oxford de então os debates públicosfiguravam entre as mais importastes funções da Universidade. NoColégio Lincoln esses debates se realizavam diariamente, e era deverdo moderador presidi-los. Wesley foi chamado outra vez para este fim, ededicou-se, com a costumada energia, ao seu trabalho. Achava nistouma disciplina intelectual de não pouco valor para si mesmo;aumentava-lhe a facilidade em falar, a sua prontidão em debate, aligeireza em descobrir as falácias num argumento qualquer. Ajudavam adar-lhe as qualidades formidáveis de polemista que lhe serviram tãobem em anos futuros e mais tempestuosos.

Wesley permaneceu em Oxford desde 22 de Novembro de 1729até a sua partida para Geórgia aos 6 de Outubro de 1735. Aqueles seisanos eram, para Wesley, anos de lutas sem atingir o alvo; de grandesaspirações e de grandes derrotas espirituais. Ele estava vivendo, comodisse alguém, no capítulo sete da Epistola aos Romanos, não tendoainda alcançado o capítulo oito! E nesses seis anos trabalhosos - anosem que Wesley praticava as austeridades de um asceta, e ardia no zelode um fanático – e tudo sob as bases da teologia de um ritualista semiluminação – nasceu o Metodismo! Porque nunca se deve esquecer queo Metodismo partilha e reflete todas as fases espirituais do seufundador. Começou na época de sua teologia ritualista de seus esforçospara achar a salvação mediante as obras, para agir segundo a moralcristã sem possuir a energia de forças cristãs, para produzir os frutos davida cristã enquanto a raiz ainda não existia.

Quando Wesley voltou a Oxford naquele 1729 ele julgava que areligião fosse uma dedicação incansável a atos de piedade, um zelointenso no cumprimento dos deveres exterioras, uma forma de piedade

para ser nutrida pelo uso incessante de todos os meios de graçaexteriores. E ele achou em existência já uma pequena sociedade queexatamente refletia esta concepção da religião, e supria o mecanismopara o seu exercício.

Carlos Wesley, que então estudava em Christ Church, haviaresistido aos primeiros esforços do seu irmão em querer lhe impor oselo de sua própria piedade triste e mecânica. Ele perguntou: “Queresque eu me faça santo de repente?”. Mas enquanto João Wesleytrabalhava na freguesia estéril de Wroote, Carlos se dedicava com novaseriedade a seus estudos, e ele diz que “a diligência me levou a penarseriamente”. Um dos resultados desta inclinação nova e mais séria eraa sua assistência ao Sacramento da Ceia do Senhor todas as semanas.E na moral de então, toda a temperatura religiosa se graduava pelafreqüência com que se participava da Ceia do Senhor. Participar delauma vez por semana constituía a piedade - ou a esquisitice - segundo oponto de vista do crítico.

A personalidade de Carlos Wesley sempre possuía um encantosingular. O seu irmão mais varonil dominava os homens; Carlos Wesleylhes atraia qual o imã ao aço. Um grupinho de companheiros de estudoso cercavam; e se cristalizavam numa espécie de clube, tentavam viverem obediência à regra, e se reuniam com freqüência para se ajudaremmutuamente. Este grupinho de almas ordeiras logo chamou a si aatenção do público. Cumpriram todos os deveres com seriedade: a leide Deus, o governo da Igreja, os estatutos da Universidade – todosdeviam ser guardados, e guardados com exata precisão. Tais coisaseram deveras novidades! O espírito vivaz da Universidade logo achourótulo para esse grupo de raridades. Eram chamados “O Clube dosPiedosos”, “Traças da Bíblia”, “Sacramentarianos”. Mas a maneiraordeira de suas vidas por fim determinou o seu título. Eram“Metodistas”! Assim nasce o grande termo histórico, embora o jovemespirituoso que o inventou - ou que o redescobriu - não sonhasse queestivesse a formular o nome de uma grande Igreja preste a nascer.

O grupo original de Metodistas era uma constelação de bonsnomes: Roberto Kirkham, Guilherme Morgan, Jayme Harvey, o autordas então famosas, mas agora, felizmente, esquecidas “Meditaçõesentre as Tumbas”; George Whitefield, o maior pregador que o púlpitoinglês jamais conheceu; CarIos Kinchin, da vida santa. Do pequenogrupo, três eram tutores nos colégios, os outros eram mestres em artes,ou então estudantes.

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João Wesley, voltando a Oxford naquele 1729, achou existenteesta sociedade, que já havia adquirido o respeito de alguns e o ridículo(zombaria) de muitos. Logo João Wesley se associou ao clube e setornou o seu espírito diretor. A sua posição na Universidade, a suavontade enérgica, a sua facilidade de palavra, o seu gênio natural eminfluir nos outros constituíam-no o espírito diretor do pequeno Clube. Oseu pai Samuel lhe escreveu: ”Ouço dizer que o meu filho, João, é paido Clube Santo; se for verdade, então estou certo que sou o avô”.

João Wesley imprimiu à vida do pequeno clube uma seriedadeainda mais profunda. Deu·lhe a disciplina uma nova austeridade, e umaordem mais acentuada, uma nova ousadia a seu zelo. A pequenacompanhia reunia-se todas as noites para passar em revista os feitosdurante o dia, e para planejar o trabalho do dia seguinte. Visitavam aosdoentes, auxiliavam aos pobres, ensinavam às crianças nas escolas,visitavam aos presos nas penitenciárias e nas cadeias.

O grupinho de almas sérias cresceu até contar quinze. Os seusmembros jejuavam às quartas e às sextas-feiras, sujeitavam-se aelaborado exame próprio. Multiplicavam e tornavam ainda mais rígidasas regras que determinavam os trabalhos de cada hora e o emprego detodas as faculdades. O conselho dado a seu filho pela senhora SuzanaWesley contribuiu em determinar a fisionomia da pequena sociedade.Ela escreveu: “Tanto tempo para o sono, as refeições, as visitas, etc...Freqüentemente te faças a pergunta: Porque faço isto ou aquilo? Poreste meio chegarás ao grau de firmeza e constância digno de umacriatura racional e de um bom cristão”.

O Novo Clube naturalmente ocasionou bastante ridículo: logoprovocou uma oposição que se tornou violenta! Eis uma históriainteressante contada por Benson em sua Vida de Wesley:

“Um cavalheiro eminentemente douto e bem estimado pelapiedade, disse ao sobrinho que se unira à pequena companhia,que se ousasse assistir por mais tempo à comunhão semanal oexpulsaria de casa. Este argumento não surtiu efeito, pois o jovemcomungou na semana seguinte. O tio agora se tornou maisviolento, e pegando-lhe ao pescoço, sacudiu ao sobrinho paraconvencê-lo, mais eficazmente, que o participar do sacramentosemanalmente estivesse baseado em erro; mas também esteargumento parecia ao jovem não ser bem fundado e continuavacomungar semanalmente. Este homem eminente e tão bemestimado pela piedade agora mudou de tática. Por maneirassuaves e agradáveis abrandou as resoluções do jovem,

conseguindo que não continuasse tão estritamente religioso, edesde então começou a se ausentar da comunhão por cincodomingos em cada seis. Um aluno do curso adiantado,consultando com o doutor (o tio), conseguiu que os outros jovensprometessem que somente comungariam três vezes ao ano”.

Que devia ter sido o clima religioso da grande Universidadequando os seus dirigentes se preparavam deste modo, e por taismétodos, para combaterem a piedade entre os seus estudantes?Wesley respondeu aos ataques dirigidos à pequena sociedade porpreparar, em estilo socrático, uma série de perguntas, das quais asseguintes são exemplo:

“Se não havemos de ficar tanto mais felizes no futuroquanto mais praticarmos o bem aqui?

Se não podemos procurar a fazer bem entre os jovens daUniversidade; especialmente se não devemos procurar aconvencê-los da necessidade de serem cristãos, e de seremestudiosos?

Se não podemos tentar a convencê-los da necessidade demétodo e diligência, a fim de adquirirem tanto a instrução como avirtude?

Se não podemos tentar confirmar e aumentar-lhes adiligência por comungarem quantas vezes puderem?

Não podemos nos esforçar em fazer bem aos famintos, aosnus, aos doentes?

Se soubermos de qualquer família necessitada, nãopodemos lhes dar um pouco de dinheiro, roupa ou remédios,segundo a exigência do caso?

Se puderem ler, não seria lícito dar-lhes uma Bíblia, umLivro de Oração comum?

Não podemos indagar de vez em quando da maneira emque tenham empregado tais livros, explicando-lhes aquilo que nãocompreendam e salientando o que entendam?

Não devemos dar o que pudermos para que os filhos sejamvestidos e lhes seja ensinada a leitura?

Não podemos fazer bem aos presos?Não podemos dar emprestado um pouco de dinheiro

àqueles que, tendo um ofício procuram para si a ferramenta e omaterial necessários a seu trabalho?”

Naturalmente existe um traço da ironia socrática nestasinterrogações! Ninguém poderia combater as ações aqui descritas sem

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declarar a guerra à própria religião; e esta lista de perguntas incômodasa irrespondíveis, indubitavelmente silenciou por um momento, oszombadores. Mas se a diligência dos Metodistas na beneficência práticaaumentava, assim também se tornava mais intenso o gênio ascético –para não dizer fradesco – de sua religião pessoal. João Wesley, nessetempo, inventou para si e seus companheiros um sistema de examepróprio que Southey declara, com algo de razão, bem podia ser apenso(acréscimo, junto, anexo) aos exercícios espirituais de Ignácio Loyola.Eis uns exemplos:

“Tenho sido simples e consciencioso em tudo que fiz?“ E sobesta pergunta principal acha-se uma chusma (grande quantidade) deensaios microscópicos para determinar a “sinceridade” com que a almadevia se provar.

“Tenho orado com fervor?” Então segue uma lista das vezes quese devia orar todos os dias, e uma série de experiências paradeterminar o exato grau de fervor de cada oração – experiênciairresistivelmente sugestiva de um termômetro espiritual, graduado pararegistrar a altura do mercúrio.

Wesley adotou o costume que sua mãe lhe sugeriu, perguntando-se: “Tenho eu, em oração particular, parado freqüentemente para notaro meu fervor de devoção?” Isto quer dizer que a alma ansiosa devia teros olhos dirigidos, um para Aquele a quem se oferecia à prece e o outrofito vigilantemente sobre si mesmo para observar o seu própriocomportamento. O ideal de cada membro do Clube Santo nessa épocaera, manifestamente, conservar a própria alma sob o microscópio, evigiar-lhe cada movimento com uma solicitude incansável.

As experiências práticas, pelas quais cada membro devia seprovar, eram de uma espécie mais sã; mas o tom era bastante elevado:

“1. Tenho aproveitado toda a oportunidade provável para fazer obem; e para obstar, remover ou minorar o mal?

2. Tenho contado algo como demais precioso para ser empregadono serviço do próximo?

3. Tenho gastado pelo menos uma hora por dia em falar com umou outro?

4. Ao falar com estranhos tenho explicado o que a religião não é –não negativa, não externa – e então o que ela é – a recuperação daimagem de Deus – procurando que descubram onde estacionaram, e oque produziu este estacionamento?

5. Tenho persuadido a todos quantos eu tenho podido para

assistirem às orações públicas, aos sermões e aos sacramentos, e paraobedecerem às leis gerais da Igreja Universal, da Igreja Anglicana, doEstado, da Universidade, e seus respectivos colégios?

6. Depois de cada visita tenho perguntado àqueIe que meacompanhava, se eu dissera algo de mal?

7. Quando alguém tem pedido conselhos tenho lhe dirigido eexortado o quanto possível?

8. Tenho me regozijado com o meu próximo na virtude ou noprazer; chorado com ele na dor, e chorado por ele no pecado?

9. A boa vontade tem sido e parece ser, a fonte de todas asminhas ações para com os outros?”

Não se pode negar que aqui há elevada nota cristã do tipo da vidaalvejada, embora as perguntas representem propósitos mais do queposses. E as lindas virtudes da caridade, meiguice, devoção e diligêncianão tiveram raiz alguma. São deveras os frutos genuínos da religião;mas tiveram por raiz uma teologia defeituosa e incompleta. Deixavam aalma sem qualquer certeza de aceitação, e a consciência sem qualqueratmosfera de paz.

Quanto ao próprio Wesley, laborava na rotina das boas obras coma diligência que só se pode descrever como uma paixão, e com aausteridade quase digna de um faquir indiano. Ele já formara o hábitode se levantar sempre às quatro horas de madrugada, costume quecontinuava até quase o dia de sua morte. Descobriu que quandorecebia trinta libras por ano era possível viver de vinte e oito, e entãodava as duas libras restantes; e quando gozava do confortável benefícioda sua posição de lente ainda vivia de vinte e oito libras e dava o restode seus vencimentos aos pobres. Jejuava com a diligência e aseveridade heróicas, que, por fim, minou·lhe a saúde. Impunha-se umataciturnidade (característica de quem fala pouco, silencioso, calado)férrea.

O seu irmão Carlos recorda incidentalmente: “não possodesculpar o meu irmão em não dizer nada de Epworth quando agoramesmo volta de lá. A taciturnidade em respeito a coisas familiares é asua enfermidade. Foi muito que ele me contava quando me disse quetodos aí estavam bons, pois anteriormente não era tão comunicativo”.

Que contraste é este com o Wesley expansivo dos anosposteriores, com a sua língua jovial e face radiante; o Wesley de quemo Dr. Johnson – que tanto pregava a conversa – dizia, “eu poderiaconversar com ele o dia inteiro e a noite inteira também”; o Wesley, no

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qual, o Alexandre Knox – que o conhecia como bem poucos – achava“uma habitual alegria de coração”, manifestada tanto nas feições comona fala, descrevendo-o o como sendo “o mais perfeito exemplo dafelicidade moral que jamais conheci; descobrindo nas feições, fala etemperamento de Wesley” mais para ensinar-me o que é o céu naterra...do que em tudo que tenho visto, ouvido ou lido fora do “VolumeSagrado”. A diferença entre os dois Wesley – o Wesley asceta e oWesley evangelista – é a que se nota numa paisagem sobre a qualpaira a noite e aquela sobre a qual nasce o sol. Knox descreve aWesley como se tornou depois que descobrira o grande segredo da vidacristã. Nesta época de ascetismo em Oxford João Wesley estava aindaestava procurando o grande segredo, e procurando-o em direçãoerrada.

O zelo de Wesley neste tempo tremia à beira de um fanatismoexaltado. Ele escreveu: “Sou tentado a deixar de me dedicar a qualquerensino senão àquele que tende à prática”. Seriamente cogitava daformação de uma sociedade para a observação ainda mais estrita dosdias santos, do sábado como uma festividade cristã, de todos os dias dejejum da Igreja antiga, etc. Tornou-se para ele coisa de consciência queo vinho na Santa Ceia fosse misturado com água; pois diz Wesley:“Éramos, no sentido mais absoluto, ritualistas – High Churchmen”.Escrevendo ao pai, diz: “Ninguém está na graça da salvação enquantonão seja desprezado por todo o mundo”; e Wesley nessa época estavase qualificando diligentemente para ser assim desprezado, e achava umprazer mórbido no processo!

Existe também um traço de misticismo claramente visível noespírito de Wesley neste tempo, e parece estar em conflitoirreconciliável com o rígido ritualismo de sua vida exterior. O místico e oritualista que combinação estranha! Representam a união de elementosdiscordantes em uma só vida. O misticismo e o ritualismo não sãomeias-verdades; são contradições. O ritualismo põe a ênfase supremanos atos externos; e o misticismo nega a existência do mundo externo,e habita a região dos sonhos.

Wesley se desfez do misticismo primeiro; surpreendido, comodevia ter ficado, pelo conflito fundamental que este mantém com areligião prática. Escreveu a seu irmão Samuel uma análisenotavelmente clara das características do misticismo:

“Acho que onde quase fiz naufrágio da fé era nos escritosdos místicos; termo este que tomo como abrangendo a todos, e aestes somente, que desprezam quaisquer dos meios de graça.

Tenho preparado um breve esboço de suas doutrinas e peço avossa apreciação dele”.

“Homens inteiramente despidos de livre-vontade, de amor ede atividade próprias, entram já numa condição passiva, e gozamde uma contemplação tal que não somente os faz independentesda fé, mas da vista também, – de modo que se achaminteiramente livres de representações, pensamentos e discursos,não se perturbando mais com os pecados da enfermidade, nempor distrações voluntárias. Já renunciaram à própria razão eentendimento por completo, de outra sorte não podiam serguiados pela luz divina. Não buscam qualquer conhecimento claroe definido de coisa alguma; mas somente um conhecimentoobscuro e geral, que é muito melhor.”

“Tendo assim alcançado o fim, devem cessar os meios. Aesperança está absorvida pelo amor. A vista, ou algo mais que avista, tem tomado o lugar da fé. Todas as virtudes eles possuemna essência, e, portanto não necessitam praticá-las diretamente.Desprezam a devoção sensível de qualquer oração; como sendoum grande empecilho à perfeição. Não necessitam ler asEscrituras, pois são apenas a carta daquele com quem eles falamface a face. Nem precisam da Ceia do Senhor, pois nuncacessam de lembrar-se de Cristo numa maneira ainda maisaceitável“.

Uma tal interpretação de religião avizinha perigosamente a suanegação! Wesley discordava do misticismo sobre outro ponto também.Era lógico bom demais para não enxergar que, em última análise, omisticismo constitui a forma mais sutil de justiça própria; e toda a sortede justiça própria constitui uma rejeição fundamental de Cristo e de suaredenção.

“Se a justiça vem mediante a lei”, ou por qualquer espécie deesforço humano – então, segundo a tremenda frase de São Paulo –“morreu Cristo sem necessidade”. Não somente se torna desnecessáriaa sua cruz, mas uma intrusão. E não pode haver coisa mais linda do quea lógica clara e penetrante com que Wesley persegue o misticismo atédescobrir na sua última raiz uma forma de justiça própria.

Escrevendo da Geórgia, no continente americano, a seu irmão elecriticara os ensinos místicos de Law; o qual lhe ensinara que as obrasexteriores não eram nada quando a sós, e acrescenta:

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“Ele recomendou para suprir a falta, orações mentais eexercícios semelhantes, como sendo o meio mais eficaz empurificar a alma e uni-la a Cristo”.

“Mas estas coisas”, diz Wesley com a perspicácia que lheera característica, “eram tão realmente as minhas obras como sãoo visitar aos doentes ou o vestir os nus; e a união com Deus quese quer alcançar deste modo seria tão realmente a minha própriajustiça como seria qualquer outra que eu praticasse sob outronome”.

Em outro lugar, Wesley diz:“Todos os mais inimigos do Cristianismo são como nada;

os místicos são os mais perigosos; pois lhe dão punhaladas naspartes vitais, e os adeptos mais sérios do Cristianismo sãojustamente os mais suscetíveis de caírem por esses golpes”.

CAPÍTULO VIII

A Religião que Fracassou

O constrangimento de uma religião tal qual a que Wesley agoraqueria seguir era demais para a natureza humana. Nem mesmo o corporesistente de Wesley, com os nervos de arame e tecidos de ferro,poderia deixar de ceder. E mesmo que sobrevivesse aos jejuns, ao rigordos trabalhos e ao minguado tempo para o sono, que ele se impunha;não é de admirar que a sua saúde fosse minada, quando a tudo isso seacrescentava um espírito inquieto, uma consciência religiosa vexada eperturbada por uma infinidade de dúvidas. Parece até que, nessaépoca, mau trato do corpo constituía parte da religião de Wesley.

Numa carta humorística que Samuel Wesley escreveu em versosa seu irmão Carlos em 20 de Abril de 1732, ele pergunta:

“Does John seem bent beyond his strelngth to go;To his frail carcass literally a foe:Lavish of health, as if ill haste to die,And shorten time t'ensure eternity “?

Ou,

“João parece resolvido ir além das suas forças;literalmente fazer-se inimigo do próprio corpo:Pródigo de saúde como que querendo morrer,e encurtar o tempo para segurar-se da eternidade?”

A mãe Suzana, com solicitude que lhe era natural, temia que Joãotivesse a consumpção (definhamento progressivo e lento do organismohumano produzido por doença. Ato ou efeito de consumir-se); já tiveraséria hemorragia dos pulmões, e por algum tempo se achava emtratamento médico.

Outro membro do pequeno grupo, Guilherme Morgan, morreuneste tempo e isto trouxe sobre o Clube Santo as suspeitas de havê-lomorto pelas suas austeridades. O pai de Morgan lhe escrevera quinzedias antes da sua morte, queixando-se:

“Causa-me sensível perturbação em ouvir que estais

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visitando a vila de Holt, congregando as crianças e lhes ensinandoas orações e o catecismo e lhes dando um shil ling ao partirdes.Resolvi pedir conselhos de um clérigo sábio, piedoso e douto; e esteme disse que havia conhecido os piores resultados seguire m umzelo tão cego, e me fez ver claramente que estais errando porcompleto da verdadeira piedade e religião. Ele acha que sois aindajovem, e que o vosso juízo não está ainda amadurecido. E que como tempo vereis o erro do vosso procedimento, e pensareis como ele,e que então andareis como convém e em segurança sem tentardessobrepujar a todos os bons bispos, clérigos e outros homenspiedosos do século presente e passados”.

Na curiosa moral daquele século, “um clérigo sábio, piedosoe douto”, manifestamente julgava que um moço, culpado de terensinado as criancinhas a orarem, estava pecando contra a religião!Quando Morgan morreu , Wesley foi abertamente acusado de tercontribuído à sua morte. Isto fê-lo escrever uma longa e bela cartaao pai de Morgan, so b a data de 18 de outubro de 1732, dandorelação do Clube Santo e de seus métodos. A carta, que forma apágina inicial do famoso Diário, é uma história da pequenasociedade até essa data, e também uma defesa, e está assinaladapor qualidades que a fazem um dos documentos memoráveis naliteratura cristã.

As qualidades que faltavam n a vida religiosa de Wesleynesse tempo são mui evidentes. Faltava nele o elemento de gozo. Areligião deve preencher na paisagem espiritual a função da luz dosol, mas no céu esp iritual de Wesley não brilhava qualquer luzdivina, quer de certeza, quer de esperança. Ele imaginava quepoderia destilar, de exercícios religiosos meramente mecânicos, oprecioso licor do gozo espiritual; mas achou-se desesperado e, naspróprias palavras dele, “estúpido, cansado e sem emoção no uso dasordenanças mais solenes”. Também o temor, qual ave de mau agouro,lhe assombrava o espírito: temia que não seria aceito perante Deus;temia que perderia a pouca graça que já possuía; temia viver e tambémtemia morrer. Ele declara que não ousava tomar a si mesmo a liberdadeque outros gozavam. O seu irmão Samuel cujas cartas são sempretemperadas com o sal do bom senso lhe prevenia contra asausteridades que praticara e contra o rigor alarmante com que Wesleyse interrogava a si mesmo. Mas Wesley se defendia com o pleito – noqual, inconscientemente mostrou um sentimento que ele não possui aforça do seu irmão e não ousa tomar o risco:

“Admito (diz ele) que o riso muito vos convenha a vós;

mas seguir-se-á dai que me convenha a mim? Se vós vosregozijais sempre por terdes posto em fuga a vossos inimigos,como posso eu ter o mesmo gozo quando os meus inimigos meassaltam sempre? Sois contente que já passastes da morte paraa vida. Muito bem! Mas trema aquele que não sabe se ele vaiviver ou se vai morrer. Se tal é a minha condição ou não, quemsaberia melhor do que eu mesmo?”

Numa carta à sua mãe Wesley faz uma resenha das vantagensque ele goza, e pergunta:

“Que farei para tornar efetivas todas estas bênçãos?Devo deixar de vez a procura de toda a instrução que não tende àpratica? Em outros tempos eu desejava distinguir-me em línguase na filosofia, mas isto já passou”. Então clama: “Qual será ocaminho mais direto para a paz que eu suspiro? Não está emfazer-me humilde? Mas suscita-se a pergunta: Como posso fazeristo? Simplesmente admitir a necessidade disso não é o fazer-mehumilde”.

Então este brilhante, jeitoso e letrado lente de Lincoln, com ocorpo debilitado pelos jejuns, o espírito preso de saudades insaciáveisvolve para a mãe com o gesto de uma criança cansada. Nos diassimples, passados havia muitos, no presbitério de Epworth, a suamãe costumava designar uma hora a cada quinta-feira para palestrarcom o Joãozinho . Wesley escreve:

. “Em muitas coisas já intercedestes por mim eprevalecestes. Quem sabe se, nisto também, não tenhaisêxito? Se puderdes dar-me somente aquela pequena parte danoite de quinta-feira, que outrora, me destes de outra maneira,não duvido que agora me seríeis tão útil em corrigir-me ocoração como fostes então em formar o meu juízo. Quandovejo quão velozmente a vida corre e quão vagarosamentevem as melhoras, convenço-me de que nunca se temdemasiado medo de morrer antes de se ter aprendido a viver”.

O Cônego Overton, que di ligentemente procura abotoar aJoão Wesley, por todas as fases de sua vida, numa batina ritualista,insiste que Wesley nesse tempo era santo sem sabê -lo. É verdadeque o próprio Wesley, que devia ter se conhecido melhor do quequalquer outro quanto à sua condição espiritual declarou depois, quenesse tempo ele estava completamente destituído da verdadeirareligião; mas o Cônego Overton heroicamente insiste em defender aJoão Wesley contra João Wesley. Ele conta a história da diligência

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de Wesley em todas as ordenanças da Igreja, do seu zelo em atosde beneficência cristã, de suas elevadas aspirações pelas virtudescristãs, e pergunta: Se isto não é ser bom cristão, então que é? Elediz:

“Se o João Wesley não era verdadeiro cristão (quandoestava na Geórgia); então Deus ajude os milhões queprofessam e se chamam cristãos”.

Mas quem pode estudar as experiências religiosas deWesley nesse tempo e afirmar que representam os sentimentosespirituais que a religião visa criar e que realmente cria no coraçãocrente? Wesley, nesse tempo, vivia unicamente naquilo que se podechamar a teoria servil da religião. Não aprendera ainda o significadoda declaração: “De modo que não és mais escravo, porém filho”.

Entretanto Wesley ocasionalmente mostrava com clareza que,intelectualmente, possuía as doutrinas evangélicas. Em 1º de Janeiro de1733, por exemplo, pregou em Santa Maria, Oxford, um sermão notávelsobre “A circuncisão do Coração”; e como exposição dos ofícios doEspírito Santo na alma humana não pode ser ultrapassada, quer naforça quer na clareza doutrinária; ainda ocupa lugar entre os cinqüentae três sermões que, com as Notas de Wesley sobre o NovoTestamento , constituem o padrão teológico da Igreja Metodista em todoo mundo. Eis a definição do estado espiritual que aqui descreve:

“A circuncisão do coração é aquela disposiçãohabitual da alma que, nas Sagradas Letras, se chamasantificação, que significa claramente, ser purificado dopecado, de toda a imundícia da carne e do espírito; e, porconseguinte, ser revestido de todas aquelas virtudes queestavam também em Cristo Jesus, sendo renovado naimaginação de sua mente a ponto de ser perfeito como o éo nosso Pai Celeste”.

Seria difícil, em tão poucas palavras, fazer uma apresentaçãomais enfática da doutrina de “perfeição”, que é o característico – e aosolhos de muitos, o escândalo – do ministério posterior de Wesley. Opróprio Wesley diz em 1765: “Este sermão continha tudo que eu agoraensino em referência à salvação de todo o pecado, e de amar a Deusde todo o coração”. Entretanto o sermão pertence ao período nãoiluminado de sua teologia; quando o próprio Wesley se achava aflito porconstantes dúvidas quanto à sua própria condição espiritual!

No sermão de 1733 ele prossegue com a definição da fé que é

o segredo da vitória Cristã. “É, diz ele, um assentimento inabalável atudo que Deus tem revelado nas Escrituras; e especialmente àquelasverdades importantes, a saber, que Jesus Cristo veio a este mundopara salvar aos pecadores; levou ele próprio os nossos pecados em seucorpo sobre o madeiro; ele é a propiciação pelos nossos pecados; e nãosomente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo”. E aiWesley parou, mas em 1765, quando reeditou o sermão, eleacrescentou, com um significante, Nota bene, a seguinte anotação:

“É igualmente a revelação de Cristo em nossoscorações a evidência divina ou a convicção do seu amor; seuamor livre e imerecido para mim, pecador; a confiançainabalável na sua misericórdia perdoadora efetuada em nóspelo Espírito Santo; confiança esta que habilita a todo ocrente verdadeiro em testemunhar: ”eu sei que o meuRedentor vive“; que tenho para com o Pai um Advogado, eJesus Cristo é meu Senhor, e é a propiciação pelos meuspecados. Sei que ele me ama, e deu-se a si mesmo por mim;e ele me reconciliou com Deus, e tenho a redenção medianteo seu sangue, a saber, o perdão dos pecados”.

Por fim Wesley havia endireitado os seus pronomes! Estaspalavras são vibrantes com a nota essencial do Cristianismo; o acentopessoal, a cadência triunfante! Aqui o propósito mais central e divino daredenção de Cristo tornou-se realidade na experiência humana. A fénão é simplesmente o assentimento intelectual a certas proposiçõesteológicas ou históricas; é antes a alegre confiança da alma pessoalnum Salvador pessoal. Mas é esta justamente a nota que faltava nosermão de 1733, e faltava também na própria experiência de Wesleyaté aquela data. É mui instrutivo notar aquele pequeno mosaico, no qualestá traçada a alegre experiência de Wesley em 1765 – experiênciaesta que já havia durado mais de um quarto de século posto comotestemunha no meio das sentenças áridas do sermão de 1733.

Outra ilustração das curiosas oscilações teológicas de Wesleynesse período – a maneira em que, ao passo que apanhavaintelectualmente a verdade evangélica, falhava por completo em torná-la uma realidade na experiência – acha-se no contraste entre o primeirolivrinho que jamais publicou, um livro de orações publicado em 1733, ea segunda obra original que veio à luz uns dezoito meses depois, osermão sobre “Os Trabalhos e o Descanso dos Bons”.

As orações mostram um verdadeiro fervor evangélico; pelavisão, clareza, simplicidade e beleza, são incomparáveis. Mas no

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sermão de 1735 Wesley é outra vez o ritualista, pendendo de novo parao domínio da teologia sacerdotal. A perfeita santidade, ele declara, “nãose acha na terra. Certos restos da nossa enfermidade sempre serãosentidos”. E então pergunta: “Quem nos livrará do corpo desta morte?"A sua resposta curiosamente anti-evangélica é: “a morte destruirá devez todo o corpo de pecado”.

A morte, em suma, é o Cristo da alma, e o único libertador que aalma jamais conhecerá. É evidente que Wesley nesse tempo nãopossuía a visão clara e nítida da verdade cristã, verificada pela própriaexperiência. Oscilava, qual o pêndulo, entre concepções contraditórias.

Uma ilustração esquisita dessas oscilações acha-se numacorrespondência, um tanto absurda, que Wesley mantinha nesse tempocom uma mulher que no correr dos anos atingiu a fama social e literária– Maria Granville, depois Madama Pendarvis. Era mais velha queWesley por três anos, viúva jovem e fascinante, sobrinha do LordeLansdowne, rica, espirituosa e bonita. Eles encontraram-se em casados Kirkhams, e o jovem lente do colégio de Lincoln e a jovem viúvabrilhante e catita (elegante) encetaram uma correspondência ; Wesley,sob o nome de “Cyro”, e Maria Granville, sob o de “Aspásia”.

Durante meses “Cyro” e “Aspásia” trocavam cartas nas quaiscorre uma curiosa mistura de teologia e de sentimentos pessoais que seaproximam de um namoro. Cyro diz: “Contai-me, Aspásia, se será malque o meu íntimo coração arda ao lembrar-me das muitas provas deestima que já me mostrastes”. Então exorta a Aspásia a orar por ele, ediscute com ela certos problemas teológicos. Aspásia escreve: “Ó Cyro!Fazeis uma tão linda defesa! E como estais adornados com a beleza dasantidade”. Mais tarde Aspásia queixa-se que “o Cyro já me apagara damemória”.

Existe uma curiosa mistura de discussão doutrinária comsentimentos mui humanos nesta correspondência, e Cyro estava emiminente perigo de fundir o teólogo no namorado. Deveras ele às vezespassava os limites, e a própria viúva – embora tarde demais, e somentequando Wesley passara para outro domínio de sentimento – estavavisivelmente bem disposta a difundir um calor mui humano em suascartas.

Aqui transparece algo dos modos de Wesley em relacionar-secom o belo sexo, pois, nota-se que esta correspondência com a Aspásiafloresceu do tronco de uma correspondência anterior – com Miss Betty

Kirkham, Correspondência, na qual pulsava um mui definido amorhumano. Betty Kirkham era irmã de seu amigo de colégio; e é quasecerto que Wesley a amava a seu modo temperado, e que teria secasado com ela. Mas algum contratempo – talvez a autoridade paternade um ou de outro lado – intervinha, e Betty Kirkham casou-se comoutro, morrendo pouco tempo depois.

Foi na casa dos Kirkham que Wesley encontrou a madamePendarvis. Quando Wesley correspondia com Betty Kirkham lheapelidara de Varanese; e as suas primeiras cartas à Aspásia estãocheias de referências “À minha Varanese” e “À minha queridaVaranese”. Entretanto, Wesley vigiava cientificamente a suas própriasemoções, como namorado; e dizia a Aspásia:

“Não posso deixar de notar com prazer a grandesemelhança que existe entre as emoções que sinto agora emescrever a Aspásia e as que freqüentemente me trasbordavam ocoração quando comecei a relacionar-me com a nossa queridaVaranese.”

É mais uma prova que Wesley não possuía o pleno senso dehumor. Seria de se esperar que uma moça sentisse qualquer interessena circunstância do seu correspondente achar-se possuído exatamentedas mesmas emoções que antes sentira em outro namoro já perdido?Durante toda a vida, Wesley nunca se aproxima tanto ao absurdo comoquando se acha enamorado ou está no começo de um namoro. Talveznunca sentisse o amor no sentido geral da humanidade. Mas foi criadonuma família singularmente rica em influências femininas. Conhecia,como bem poucos poderiam ter conhecido, quão viva e espirituosa é ainteligência da mulher, e quão terno é o seu afeto, e quão clara é a suapenetração espiritual. E durante a sua vida toda ele procurava comavidez as amizades de mulheres puras e jeitosas.

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CAPÍTULO IX

Oxford perde o seu encanto

Uma prova expressiva do caráter claustral (enclausurado,fechado numa redoma) e concentrado da piedade de Wesley, nestaépoca, acha-se na sua recusa de assumir o lugar de seu pai emEpworth. O pai era já bem idoso, e de saúde precária; podia morrer aqualquer hora. Quem seria o seu sucessor? Da resposta desta perguntadependia, praticamente, o futuro da família de Epworth. O benefício erade valor; o pároco havia gasto uma parte considerável de seusvencimentos em melhorar o presbitério. Se João pudesse assegurar-seda sucessão, então a mãe e as irmãs teriam casa pelo tempo queprecisassem. O beneficio estava à mercê da Coroa, e insistiram comJoão Wesley que desse os passos necessários para assegurar-se danomeação.

Ele, hesitando, duvidando e debatendo, finalmente recusouterminantemente, justificando-se com o pai por uma carta de estupendocomprimento, cujo tamanho quase daria um panfleto. Uma decisão quenecessitasse de tamanha defesa devia ter sido duvidosa. As razões queWesley dava pela recusa, quando analisadas, são todas de umanatureza pessoal, senão egoísta. Ele declara que a primeiraconsideração é o modo da vida que conduzia mais para o meu própriomelhoramento! Ele necessita de convivência diária com os seus amigos,e diz, “não conheço outro lugar abaixo do céu, fora de Oxford, ondeposso ter sempre perto de mim uma meia dúzia de pessoas, do meupróprio pensar, empenhadas nos mesmos estudos... Ter-se um talnúmero de amigos tais, constantemente, a velarem por minha alma” éuma benção que, em suma, Wesley não pode tomar a resolução dedeixar. Em Oxford ele sempre goza da exclusão. “Eu não somentetenho tantos, mas também, tão poucos companheiros quantos desejo”.Está livre de cuidado; goza de toda a sorte de oportunidades espirituais- a oração pública duas vezes por dia, o sacramento da Ceia do Senhorsemanalmente, etc. “Outros façam o que puderem”, diz Wesley, “maseu não sou capaz de conservar-me firme, por um mês sequer, contra aintemperança no dormir, comer e beber, contra a irregularidade noestudo, contra a moleza e as indulgências supérfluas, a não ser” – emsuma, que tenha os auxílios para a vida cristã que se encontramunicamente em Oxford. Ele diz que “meios cristãos” o matariam. Eles

insensivelmente minam todas as minhas resoluções e me furtam opouco fervor que tenho. Nunca volto de uma estadia entre esses santosdo mundo sem sentir-me extenuado, desfalecido e exausto de todas asminhas forças”. A não ser que ele se abrigue sob as asas de uma fémais robusta do que a sua. João Wesley protesta que há de morrer; demodo que não se aventura afastar-se de Oxford.

Suscita-se mui naturalmente a questão de fazer bem a outros,mas Wesley laconicamente diz a seu pai, “a questão não é se eu possofazer mais em benefício dos outros aqui ou ali, mas onde posso fazermelhor para mim mesmo; sendo claro que, onde eu mesmo puder sermais santo, será onde poderei melhor promover a santidade em outros”.Mas este lugar é somente Oxford. Fora lhe dito que em Oxford “eradesprezado” e que, pelo menos, indo a Epworth, encontraria umaatmosfera de respeito. Mas Wesley estava naquela condição deenfermidade espiritual em que a perseguição constitui uma espécie depetisco. Ele responde, “o Cristão será desprezado em qualquer lugar eaté que seja assim desprezado ninguém está em estado de salvação”.

Tudo isto mostra que a piedade de Wesley era do tipoclaustral, que não suportaria o ar livre. Se não fosse bemacondicionada em algodão, nutrida às colheradas, e feita respira r deuma atmosfera medicada, morreria forçosamente.

O pai já se achava demais doente para lutar contra um filhode tão ingênua e, ao mesmo tempo, tão astuta lógica. Ele diz ao filhoSamuel : “Já tenho feito o possível, com a minha cabeça e corpodesfalecen tes, para satisfazer os escrúpulos do dever e daconsciência que o teu irmão levanta contra a minha proposta”, epede a Samuel que lhe ajude.

Samuel, agora entra na correspondência, e pergunta aoirmão, com admirável espírito, se todos os seus trabalhos h aviamdado nisto: Que houvesse uma necessidade mais absoluta para oseu próprio bem estar na vida cristã do que pela salvação de todosos párocos da Inglaterra! Tentou alistar a consciência de Wesley aolado de sua ida a Epworth. Ele perguntou:

“Não foste ordenado? Não prometeste deliberada eabertamente que havias de instruir, ensinar, admoestar eexortar a todos que estivessem a seu cargo? Entãoequivocaste por uma reservarão mental tão vil que resolvessesem teu coração que nunca terias cargo? Não é o colégio, nãoé a universidade, mas é a ordem das Igrejas na qual foste

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chamado.”

Em suma, Samuel diz a João Wesley que este tomouordens, não para servir de tutor num colégio, mas para apascentaralmas. E Samuel Wesley afirma:

“A ordem da Igreja te prende, e quanto mais teesforçares em contrário tanto mais seguro ficarás. Se existe oque chamamos verdade, eu insisto que, quando aoportunidade te ofereça, tens de cumprir aquela promessa, ouarrepender-te de a teres feito”.

Mas João era lógico demais e alerta para ser preso peloargumento do irmão. Um presbítero que recusasse todo o cuidado dealmas, sem dúvida, seria infiel; mas seria ele um perjuro por rejeitar aprimeira paróquia que lhe fosse oferecida? Entretanto, a suaconsciência lhe incomodava, e ele diz:

“Confesso que não sou juiz insuspeito do voto que fiz aoordenar-me; portanto, pelo correio, logo em seguida ao que metrouxe a tua carta, submeti a questão ao juízo do sumo sacerdotede Deus em cuja presença contraí este compromisso, fazendo-lhea seguinte pergunta: Eu prometera, no meu voto de ordenação,empreender a direção de uma paróquia ou não?”.

O apelo ao bispo em tais termos deixa transparecer aconsciência legal de Wesley. Ele cumpriria a letra do seu compromisso;mas precisava ter a interpretação na letra, e por autoridade oficial!

O bispo respondeu:"Não; contanto que, como clérigo, puderes melhor servir a

Deus e a sua Igreja na tua presente posição ou em outra”.

Wesley assim escapou do redil lógico (de ser encurralado, dasredes, das argumentações) de seu irmão Samuel; entretanto, dezmeses depois, com estranha inconsistência, ele partiu de Oxford paraGeórgia, assim fazendo aquilo que declara ser-lhe-ia impossível, ematenção cuidadosa da sua saúde espiritual, embora interesses sagrados– o conforto de um velho pai, o futuro de sua mãe e de suas irmãsdependessem disso. A lógica de seu irmão Samuel, no decorrer dotempo, tornou-se forte demais para a consciência legalista de Wesley. Erealmente há certa evidência que Wesley, depois da morte do pai, pediuo benefício; mas Sir Roberto Walpole não o favorecia e o pedidofracassou.

Ninguém pode ler as cartas que se trocavam entre João Wesleye seu pai velho e moribundo – com seu franco irmão Samuel fazendocoro – sem ver quão completamente centralizada em sua própriapessoa e quão destituída de fibra robusta era a piedade de Wesleynesse tempo. Estava tão ocupado em pensar da sua própria alma quenão podia dar pensamento algum a qualquer outro. E da sua própriaalma ele pensava de uma maneira que, há um tempo, era tão mórbida emedrosa, que claro é ainda não aprendera as primeiras letras do grandealfabeto do Cristianismo.

O pai de Wesley faleceu aos 25 de abril de 1735, e não havianada em toda a história de sua vida tão lindo como a maneira em que adeixou. Os anos lhe suavizaram. O tempo lhe refrescara o fervor do seusangue. A doença lhe dera uma nova perspectiva à teologia, e umanova ternura ao espírito. Ao passo que se aproximava das fronteirasmisteriosas da eternidade, a sua piedade se aprofundava; estavabatizado com novas influencias.

João e Carlos Wesley estiveram com ele no fim, e numa cartasob a data de 30 de abril de 1735, Carlos descreve para o seu irmãoSamuel a maneira em que o pai morrera. Algo da visão estranha quevem aos olhos dos moribundos foi concedido ao velho. Diz Carlos:“Freqüentemente eIe punha-me a mão na cabeça, dizendo: Sê firme! Areligião cristã certamente há de reviver neste reino. Tu o verás, mas eunão”. A João ele disse: "O testemunho íntimo, meu filho, o testemunhoíntimo é a mais forte evidência do Cristianismo”.

Este testemunho íntimo viera tarde ao velho, mas viera. Para ofilho era então uma experiência desconhecida. As próprias palavraseram ininteligíveis; pertenciam a uma língua desconhecida. João diz,quando depois contava a história, “eu não as entendia nesse tempo”.Entretanto, o que consolava tão grandemente a alma do pai moribundo,foi a mesma força que, mais tarde havia de transfigurar a vida do filho e,por ele, mudar a história religiosa da Inglaterra.

Quando chegou o fim, João, se inclinando sobre o pai perguntou-lhe, se estava perto do céu. Carlos diz: “Ele respondeu distintamente, ecom o ar da maior esperança e triunfo que se pode expressar por sons:“Sim, estou”. Logo depois da oração em que o meu irmão orecomendava a Deus, ele falou outra vez: “Já fizestes tudo”. Foramestas as últimas palavras”.

O sr. Samuel Wesley, o pai, deixou a família muito mal amparada.

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Alugara uns campos e o gado que neles havia foi confiscado no dia doseu enterro, por um proprietário duro, para satisfazer os atrasos noaluguel. Carlos ainda não se formara; os honorários de João mal davampara provê-lo com as suas necessidades; e o peso do sustento da Sra.Suzana Wesley e de suas filhas solteiras caiu sobre o filho Samuel. Opai concluíra, antes de morrer, a sua magnum opus – um comentáriosobre o Livro de Jó – e Wesley foi a Londres para oferecer um exemplarà Rainha.

Enquanto Wesley esteve em Londres, o Dr. Burton, do colégio deCorpus Christi, um dos diretores da nova colônia na Geórgia,apresentou-o ao general Oglethorpe, o fundador da colônia. Osdiretores estavam, nessa época, à procura de um clérigo que pudessepregar aos colonos e, também, aos índios na vizinhança, e Wesleyparecia-lhes ser justamente o homem para o lugar. Era douto, umpregador de zelo conhecido e intenso, e com uma paixão pelostrabalhos religiosos que, para pessoas menos zelosas, pareciafanatismo. Seria de se supor que a lógica que obstara (que servira deobstáculo, que impedira) a João Wesley de deixar Oxford para ir aEpworth por causa dos “riscos em mudar-se de clima espiritual”, teriaainda mais força no presente caso. Mas Wesley inconscientemente semudara de pensamento. A sua consciência se colocara ao lado dosargumentos do seu irmão Samuel.

Também grupos de universitários são, por natureza, temporários.Os membros têm de espalhar-se entre as suas respectivas carreiras; efoi isto o que aconteceu em Oxford. Morgan morreu, Gambold e Inghamestavam prestes a tomar curatos (assumirem o cargo de curas, ou seja,um pároc de aldeia ou vilarejo). O George Whitefield, que ainda não foraordenado, estava começando trabalho evangelístico no condado deGloucester. Broughton era capelão na Torre. A bela camaradagem doClube Santo em Oxford, à semelhança dos Cavalheiros da MesaRedonda do Rei Arthur, estava em dissolução. E Wesley, vendo oslaços a romperem, um por um, voluntariamente atendeu a esta novachamada rumo à Geórgia.

É claro também que, o próprio Wesley, se não se cansaracom o Clube Santo e seus métodos, havia visivelmente perdido afé nestas coisas. O seu programa de orações mecânicas, suasobras de piedade, suas austeridades físicas, eram simplesmenteum sempre caminhar espiritual, roda à roda, sem nunca chegar anenhures (a lugar algum). Wesley já fizera este giro durante seisanos, e sabia o que acontecia. No fim desses anos de

desenganos, cansaços e diligentes esforços, sentia que a religiãopossuía um segredo que ainda ele não alcançara por suaspesquisas, uma força que ainda não possuíra, um gozo que aindanão experimentara. Como seria possível traduzir a vida espiritualpor termos mecânicos sem que perecesse na transição?

Ao princípio, Wesley recusou o oferecimento da missão àGeórgia, mas com um acento que convidava uma repetição (umarecusa sem convicção). Ele declarou que não podia deixar a mãe,sendo indispensável ao seu sustento e conforto. Perguntaram-lhe, seiria, caso a mãe consentisse? Wesley julgava que seria impossível, maspermitiu que a consultassem. Se ele esperava que ela recusasse, eraestranha e equivocada interpretação da têmpera elevada e corajosa doespírito de sua mãe. A destemida senhora respondeu: “Se eu tivessevinte filhos, teria muito gosto que todos fossem assim empregados,embora eu nunca mais tornasse a vê-los”.

Entretanto, Wesley não tomou o consentimento da mãe comosendo final. Consultou -se com muitas pessoas , desde GuilhermeLaw e seu irmão Samuel até o poeta João Byron. Todosconcordavam que fosse. Samuel, sem dúvida, desejava que os aresdo novo mundo e a rígida disciplina de uma vida diferente tirassemdo caráter do irmão certos elementos mórbido s.

Aos 18 de setembro de 1735, Wesley consentiu e m ir. Tinhajá trinta e dois anos de idade ; possuía a melhor erudição do seutempo; havia praticado em Oxford as austeridades de um asceta, ese mostrara possuidor do gênio natural para a liderança.

Os diretores da colônia inglesa na Geórgia se julgavam felizesem achar um homem como este. Entretanto, muitos, entre os amigosde Wesley, estavam desapontados. A sua nomeação para Geórgialhes parecia um negro eclipse que caia sobre u ma carreira brilhante.Wesley, para justificar -se, explicou os seus motivos numa cartanotável, com a data de 10 de outubro, que é digna de citar -se emgrande parte:

“Meu principal motivo é a salvação da minha própriaalma. Espero aprender o verdadeiro sentido do Evangelho deCristo por pregá-lo aos pagãos. Eles não têm comentários quedesdizem o texto; nem filosofa vã para corrompê -lo, nemexpositores ambiciosos, sensuais, avarentos e luxuosos, parasuavizarem as verdades desagradáveis. Não têm partidos, neminteresses para servir, e são, portanto, idôneos para receberem o

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Evangelho em sua simplicidade. São como criancinhas –humildes, de fácil direção e que querem cumprir a vontade deDeus”.

“Espero que uma fé reta me abra o caminho para umaprática reta, especialmente quando forem removidas, pela maiorparte, as tentações que aqui me acometem com tanta facilidade.Não será pouca coisa o poder-se, sem receio de ofender, viverde água e dos frutos da terra. A choupana do índio não oferecequalquer alimentação à curiosidade, nem dilatação aos desejospelas grandezas, novidades e belezas. A pompa e as vaidades domundo têm lugar algum nos sertões da América.”

“..Tenho sido um triste pecador desde a meninice, aindaacho-me carregado de desejos vãos e perigosos; mas estou certoque, se eu mesmo conseguir a conversão, Deus há de empregar-me tanto em fortalecer a meus irmãos como em pregar o seuNome entre os gentios.”

“Não posso esperar alcançar aqui o grau de santidade queme seja possível ali. Não perco nada que eu desejo conservar.Ainda terei o necessário para o comer e vestir; e se alguémdeseja mais do que isso, saiba que a maior bênção a ele possívelseria o achar-se privado de todas as ocasiões de dar expansão aesses desejos que, se não forem logo extirpados, afogar-lhe-ão aalma na perdição eterna“.

(Obras deWesley, vol. VII, pág. 35)”.

A carta explica exatamente o aspecto que a missão de Geórgiaapresentava a Wesley, e quais motivos que o determinavam aempreendê-la. Por que ia pregar o Evangelho aos índios americanos?Ele nos diz: "Meu principal motivo é a salvação da minha própria alma”.A sua própria alma é ainda a sua principal preocupação ; avulta-se tãograndemente à sua imaginação desesperada que eclipsa (oculta,esconde) todo o resto da raça humana! É cônscio de não ter aindaaprendido o verdadeiro segredo do Evangelho de Cristo, e nisto eleestava de juízo perfeito. Ele deseja descobri-lo para si mesmo,entretanto, pelo processo de ensiná-lo aos pagãos do outro lado domundo!

Em suma, temos aqui um missionário, que nem credo possui,mas, que o busca numa longa viagem! Não espera tanto comunicá-lo

aos colonos e índios aos quais vai pregar e ensinar quanto esperaextraí-lo deles!

A nota de cansaço com Oxford e com todos os processosespirituais do Clube Santo, se faz ouvir pela carta toda. O seu aposentoquieto no quadrângulo do Colégio de Lincoln, sob a sombra da famosatrepadeira de Lincoln, com, um grupinho de rostos estudiosos e pálidos,ao redor de sua mesa, a estudarem seus Novos Testamentos emGrego – ele está solícito em deixar tudo isso em troca das planíciesamericanas açoitadas pelos ventos e da companhia de índios seminus!Oprime-o a Capela Colegial com o órgão sonoro, o murmurinho deorações incessantes e auditório douto e ordeiro. Aquilo que não acharana atmosfera da antiga Universidade ele espera encontrar nos rudescolonos da terra nova, ou – com ainda mais esperança – nos incultosselvagens que vagam pelas suas florestas.

Ele descreveu tão radiantemente a estes aprazíveis selvagens,que uma senhora, em admiração, exclamou com a força da lógicafeminina, “Pois, sr. Wesley, se já são tudo isto, que mais poderão lucrarcom o Cristianismo?”

Mas talvez a flor da verdadeira fé cristã que recusara crescer naatmosfera carregada de Oxford, poderia florescer no solo áspero deGeórgia. Wesley faria a revisão do seu credo segundo a supostaconsciência incorrupta (a consciência inocente, não corrompida pelopecado da civilização, de extrema bondade) de seus ouvintes índios.Ele diz: “Não posso esperar alcançar aqui o grau de santidade que meserá possível ali”. E somente dez meses antes ele declarara que o únicolugar na terra em que poderia esperar de conservar a mais fracapulsação de uma vida religiosa no seu sangue era Oxford. A mudançapara o clima espiritual de Epworth havia de matar a sua vida religiosa. Eagora, tão pouco tempo passado, foge de Oxford, como sendo o melhormeio de salvar a sua alma!

Desde então, o Metodismo tem enviado mil missionários a terras,pagãs, mas nenhum outro com tão estranho sortimento de motivoscomo os que levavam o seu fundador para a missão na Geórgia. Masse houver necessidade de mais prova de fracasso do credo religioso emque Wesley vivera até aí – a teologia ritualista, um ritualismo pesado evagaroso – ela se achará na explicação de seus motivos feita pelopróprio Wesley.

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CAPITULO X

Um Missionário Esquisito

A missão de Wesley na América, como já, bem pode ser descritacomo a peregrinação em busca de religião. E esta peregrinaçãofracassou! Ele embarcou para Geórgia aos 13 de outubro de 1735, eaportou de volta em Deal no dia 1º de fevereiro de 1738, tendo gastadoquase dois anos e meio na experiência e no fim achava-se maisprofundamente insatisfeito consigo mesmo do que no princípio. Pode-semedir o progresso espiritual desses vinte e oito meses trabalhosos eaflitivos por dois trechos significantes e datados.

Aos 10 de outubro de 1735, antes de embarcar para a Geórgia,ele escreveu em palavras já citadas, o que esperava na América:

“Meu principal motivo é a salvação da minha própria alma.Espero aprender o verdadeiro sentido do Evangelho de Cristo porpregá-lo aos pagãos”. E “não posso esperar alcançar o grau dasantidade aqui que me será possível ali”.

No seu diário, quando em viagem de volta da América, na terça-feira, 24 de janeiro de 1738, ele faz um resumo do que ganhara sob oscéus americanos:

“Fui à América para converter os índios; mas, ai!, quem meconverterá a mim? Passam de dois anos e quatro meses quedeixei a minha pátria nativa afim ensinar aos índios da Geórgia anatureza do Cristianismo; mas, eu mesmo, que tenho aprendido?Isto, que eu menos suspeitava: que, eu mesmo, indo à Américapara converter a outros, nunca fora convertido a Deus“.

É verdade que quando, muitos anos depois, Wesleyreimprimiu essas sentenças em seu Diário, ele acrescentou a notasignificativa, “Não tenho certeza disso” mas, pelo menos, as palavrasexprimem fielmente o seu juízo acerca de si mesmo quando de novo seachou na Inglaterra. Ele fora à América na esperança de achar ali aquiloque a Oxford e o Clube Santo deixaram de dar-lhe – uma experiênciareligiosa bem definida. Ele volta mais amarga e pungentementedescontente consigo mesmo do que nunca. E a narração desses mesesnuma terra longínqua, e sob céus estranhos, não é o capítulo menosinstrutivo na história espiritual de Wesley.

A pequena companhia de missionários era composta de JoãoWesley e seu irmão Carlos – que exercia o cargo de secretário doGeneral Oglethorpe, o governador da colônia – Benjamin Ingbam eCarlos Delamotte, ambos membros do Clube Santo. Dois mais, WesleyHall e Salmon iam unir-se ao grupo; mas Hall que era cunhado deWesley, quase no momento do embarque, recebeu a notícia de suanomeação para um benefício, e prontamente fez desembarcar a suabagagem. Ele não era da fazenda (do mesmo material) de que se fazemsantos e mártires! Salmon foi interceptado por seus amigos e obstado(impedido) de seguir, quase a força.

A viagem durou desde 14 de outubro de 1735 até 5 de fevereirode 1736, fato que mostra a lentidão da navegação desse tempo. Com aviagem começa o Diário imortal de Wesley, peça de literatura que emoutros tempos foi muito negligenciada, mas que agora é louvada quaseem demasia. Pelos interesses e qualidades variadas e pelos incidentesimperecíveis, merece, sem dúvida, ser classificado com o “Boswell”(referência a James Boswell, advogado e biógrafo escocês e um dosmaiores diaristas do Século XVIII) . E realmente, o Diário leva avantagem, sobre o “Johnson” de “Boswell”, no fato de tratar-se de umvulto maior do que, mesmo, o famoso lexicógrafo, e o seu herói étambém o escritor. Entretanto o Diário não é um livro de tagarelices;mas é uma autobiografia. Aqui temos Wesley, não como visto de fora,mas como Wesley contemplava a si mesmo. Em uma palavra, o Diárionos habilita a contemplar os homens, os livros e os acontecimentospelos olhos de João Wesley, e a apreciar o mesmo Wesley interpretado– e às vezes mal interpretado – pela própria consciência.

Se a viagem era vagarosa, pelo menos Wesley e seuscompanheiros não tiveram folga; começaram por confeccionar esubscrever um contrato entre si; documento este que traz a data de 3de novembro, e que reza:

“Em nome de Deus, Amém!Nós, abaixo-assinados, plenamente convencidos da

impossibilidade de promovermos a obra de Deus entre os pagãossem que haja a mais completa união entre nós mesmos ou, quetal união possa subsistir sem que cada qual ceda o seu juízoindividual ao da maioria, concordamos, Deus nos ajudando:primeiro, que nenhum de nós empreenderá qualquer coisaimportante sem primeiro propô-la aos outros três; segundo, que

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quando os nossos pareceres discordem, qualquer um cederá oseu juízo singular à determinação dos outros; terceiro, no caso dehaver empate, depois de pedirmos a direção de Deus, o negócioserá decidido pela sorte”. Assinam: João Wesley, Carlos Wesley,Benjamim Ingham e Carlos Delamotte.

Aqui vemos o instinto que Wesley teve pela ordem e comunhão,dando sinal de si. Os missionários não haviam de ser unidadesseparadas, mas uma companhia disciplinada. Nas últimas palavrasdaquele contrato temos a prática do sorteio – que corre comintermitências por todos os anos posteriores na vida de Wesley –erguido em lei e feito o padrão supremo de decisão em negócios dedifícil solução.

A viagem era tida, pela pequena companhia de missionários,como oportunidade para uma provação heróica de si mesmos.Apresentou-lhes a grata ocasião de despir -se de certos hábitosarraigados. Reduziram o número de suas refeições e limitaram a suadieta a arroz e biscoitos. Wesley, devido a um acidente teve de dormiruma noite no assoalho sem cama, e dai descobriu o fato aprazível que acama era supérflua; dai em diante podia ser dispensada. O asceta, paranão dizer “o monge”, estava aparecendo mais uma vez na vida deWesley! Ele agiu sob a teoria que a alma fosse uma fortaleza sitiada, eque cada faculdade física fosse uma avenida aberta ao inimigo. Umapetite subjugado à fome, ou suprimido por qualquer outra forma, seriamais um traidor enforcado!

Também em outras coisas o navio, que levava esses missionáriosestranhos, ficou convertido, em espécie de mosteiro flutuante. Cadahora do dia era dada a seu trabalho determinado. Levantavam-se àsquatro da madrugada, e cumpriam uma sucessão de tarefas ordenadas– meditações e exercícios espirituais que não deixavam um momentode folga perigosa, até às dez horas da noite quando iam dormir.

Um incidente na viagem· serviu de uma áspera provação para acondição espiritual de Wesley. Entre os passageiros havia um pequenogrupo de cristãos moravianos (crentes da Moravia, na Alemanha)desterrados, que pela simplicidade e seriedade de sua piedade, muitointeressavam a Wesley. Um temporal caiu sobre o navio, uma noite,justamente na hora que esses ingênuos alemães começavam o seuculto religioso. Wesley descreve o que segue:

“No meio do salmo com que começaram os seus serviços, omar arrebentou em ondas sobre o navio, rompendo a vela

principal, cobrindo o navio e derramando água nos diferentescompartimentos, como se os abismos nos quisessem engolir.Deu-se uma gritaria medonha entre os ingleses; mas os alemães(moravianos) continuaram a cantar calmamente. Logo perguntei aum deles: ”Não sentiste medo”? Respondeu-me: ”Não, graças aDeus”. Eu prossegui: ”Mas as vossas mulheres e crianças nãotinham medo“? Ele respondeu suavemente: “Não; as nossasmulheres e crianças não têm medo de morrer”. Deste grupo virei-me para os seus vizinhos trementes e agitados, fazendo-Ihes vera diferença, na hora da provação, entre aqueles que temem aDeus e aqueles que não o temem“.

Wesley então sentia que não conseguira o segredo desseestranho desprezo da morte. Ele disse então, e por muitos dias depois,“eu tenho o pecado do temor (medo)”. Ele sabia que a morte é o toquepara a religião, justamente como é o ácido para o ouro. É a prova – amais valiosa de todas. E sob o toque deste ácido terrível do temor, areligião que Wesley possuía nesse tempo lhe falhou.

Não quer dizer que ele recuava do mero sopro da gélida morte;pois em tal caso possuíra menos coragem do que o sargento derecrutas pode achar no mercado, ao preço de poucos tostões por dia.Mas existem elementos misteriosos na morte, que a fazem símbolo dotriunfo do pecado, o ato culminante do reinado escuro do pecado. Aalma humana é vagamente consciente que no mal moral existem forçasestranhas e trevosas – profundezas imensuráveis, relações com Deus ecom seu universo que são desconhecidas – e a morte traz a alma face àface com estes elementos últimos e extremos do mal. Assim aconteceque o pecado e a morte, se bem que parentes mui chegados,aborrecem-se um ao outro grandemente. E como a religião de Wesleynesta época não podia livrá-lo do temor da morte, ele julgou muijustamente que não achara ainda o completo livramento do pecado, omais triste progenitor da morte.

Logo que Wesley chegou em terra, achou face à face com o repto(desafio) daquilo que, para ele, era um tipo de piedade inteiramentenovo. Ele avidamente procurou o chefe da pequena comunidadeMoraviana, Augusto Spangenberg e, com a bela humildade quecaracterizava um aspecto de sua natureza, pediu-lhe conselhos –segundo diz Wesley – “a respeito da minha própria conduta”. O sinceropastor dos Moravianos lhe fez certas perguntas:

“EIe disse: “Meu irmão, tenho de fazer-te uma ou duas perguntas:Tens o testemunho em ti mesmo? O Espírito de Deus testemunha com

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o teu espírito que és filho de Deus? “Disse Wesley: “Fiquei surpreendido e não soube responder”.Ele notou isto e perguntou: “Conheces a Jesus Cristo?”Eu fiz uma pausa e disse: “Sei que eIe é o Salvador do mundo”.EIe respondeu: “É verdade, mas sabes que ele te salvou a ti?”Eu respondi: ”Eu quero crer que eIe morreu para salvar·me”.EIe somente acrescentou: “Conhece-te a ti mesmo?”Eu disse:“Sim”. Mas receio que eram palavras vãs.”

Wesley seria o último homem no mundo que havia deescandalizar-se com perguntas tão francas e sinceras; entretanto éclaro que o repto (desafio) do corajoso Moraviano lhe inquietoubastante. Pareceu ouvir nesta circunstância o eco das palavras do paimoribundo – “o testemunho íntimo, meu filho, o testemunho íntimo” -dos lábios de um homem de outra nação e de diferente escolateológica, que o encontrara ao por seus pés no solo do novo mundo.

Entretanto Wesley sentiu-se muito atraído aos Moravianos. Viveucom eles por algum tempo e viu os seus hábitos diariamente. Era amais bela forma de piedade que eIe ainda testemunhara – umarepetição da devoção e diligência ordeiras do presbitério de Epworth,mas saturadas de uma corrente de alegria que a família em Epworthnunca conhecera.

Wesley também esteve presente num culto Moraviano, celebradopara eleger e ordenar um bispo, e eIe descreve como a gravesimplicidade fê-lo esquecer-se dos dezessete séculos idos e imaginar-se em uma dessas assembléias em que não existiam formas e ritual,mas onde Paulo, o fabricante de tendas, ou Pedro, o pescador, presidia.

É curioso de se notar que, não obstante, a piedade simples dosMoravianos ter movido Wesley à admiração, e a fé moraviana ter-lhedespertado a inveja, entretanto tudo isto em nada diminuiu o fogo doseu zelo sacerdotal. O próprio centro de sua religião estava, semdúvida, se mudando inconscientemente; mas a crosta exterior doritualista (high-churchman) – os hábitos exteriores da sua vida – eraquase mais rígida e austera do que nunca.

Era campo bem estranho aquele em que Wesley agoratrabalhava. A colônia na Geórgia representava, talvez, a mais generosaexperiência em colonização conhecida na história. O seu fundador foi ogeneral Oglethorpe – douto, soldado, político, cavalheiro, filantropo, eentre tudo mais, pois a mãe era irlandesa, um irlandês generoso, fogoso

e irresponsável. Havia sido estudante em Oxford, soldado no exércitoinglês, havia pelejado no continente sob o comando do PríncipeEugênio, e no Parlamento Britânico havia antecipado o filantropoHoward. A condição dos encarcerados por dívidas nas prisões inglesas,moveu-lhe o coração piedoso. Conseguiu a nomeação de umacomissão do parlamento para relatar sobre a condição das grandesprisões inglesas de Fleet e Marshalsea; e como resultado incidental,surgiu o plano para colonizar a Carolina do Sul. A colônia foi confiada adiretores; Oglethorpe foi nomeado governador; grandes somas dedinheiro foram levantadas para dar começo à colônia; e um código deleis foi adotado, que, se em todos os detalhes não se via a sabedoriaperfeita, pelo menos representavam ideais mui nobres.

Uma cláusula proibiu a escravidão como sendo não somentecontrário ao Evangelho, mas às leis fundamentais da Inglaterra também.Teria sido um bem para os Estados Unidos da América e para a históriade toda a raça que fala a língua inglesa, se os regulamentos deOglethorpe para o ajuste deste ponto tivessem sido adotadosuniversalmente. A proibição da escravidão custou aos Estados Unidos,mais tarde, depois da independência das colônias americanas, a maisterrível guerra civil que a história conhece. O mais difícil problema sociale político que a grande República transatlântica tinha de resolver nuncateria existido se o precedente da Geórgia fosse seguido.

Mas a nova colônia não somente representava uma grandeexperiência social: também oferecia um abrigo aos falidos sociais detoda a espécie – insolventes ingleses, jacobinos escoceses, moravianosdesterrados, os náufragos do comércio e da política, as vitimas daperseguição religiosa. A colônia, desta forma, tornou-se numajuntamento das individualidades humanas sem nexo, representandotipos raciais, políticos e sociais de uma espécie mui variada. E maisainda, estava plantada no solo e respirava os ares do Novo Mundo,onde se esqueciam das convenções antigas, e a nova liberdadecomeçava a fermentar no próprio sangue. Era campo ideal paraexperiências sociais e religiosas. E, como contribuição para a paz danova colônia, Wesley intentava estabelecer pela disciplina sacerdotal, amais estrita interpretação da rubrica! Ele queria imprimir os costumes -ou o que julgava ser os costumes do primeiro século Cristão numacomunidade que vivia no século XVIII!

Isto prova quão completamente o ritualista e o sacerdote eramdominantes no Wesley desta época; trabalhava somente em plano quese pode chamar eclesiástico. Assim instituiu um culto de madrugada e

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outro antes de meio dia para todos os dias. Dividiu o serviço da manhã,separando a ladainha; celebrava semanalmente a Santa Ceia, masrecusava de administrá-la a todos que não tivessem batismo episcopal.Ele avivou o batismo por imersão, o que cria ser a pratica apostólica.Rebatizava filhos de dissidentes, e recusou admitir à Ceia do Senhor opastor dos Salzburguezes, porque – não obstante ter sido batizado –não fora feito segundo as mais rígidas formas canônicas. Quase vintenos depois, recontando este incidente ele escreveu: “O exclusivismoritualista pode ir além disso? E desde então quão redondamente tenhosido fustigado com a minha própria vara!”

O processo organizado contra Wesley, pelo grande Júri deSavannah em 1737 contém dez artigos, e a um destes, Wesley, comtodos sinais de verdadeiro pesar, confessou-se culpado. O seu crimeconsistia em ter batizado a criança de um negociante entre os índioscom somente dois padrinhos! “Isto”, clama o consciencioso ritualista,“eu confesso, foi uma leviandade; eu devia, a todo o transe, terrecusado a batizá-la até que houvesse um terceiro”. Falou aí overdadeiro ritualista, que não obstante crer que resultados espirituais eeternos dependem de formas mecânicas, no entanto, os sacrificará paramanter as formas! Segundo a teoria de Wesley o destino eterno dacriança dependia do seu batismo; ainda, mesmo com este terrível risco,Wesley cria que devia ter recusado a batizá-la, na falta de um terceiropadrinho!

Mas se o padrão de Wesley era severo para outros, não eramenos heróico para si mesmo. Ardia nele qual uma chama, o zelo pelosmais altos ideais de conduta e serviço. Não recuava diante de quaisquerausteridades de abnegação própria; visitava seus paroquianos de casaem casa por curso, tirando para este fim as horas entre o meio dia e astrês da tarde, quando todo o trabalho era suspenso por causa do calor.Vivia com a pobreza e simplicidade de um ermitão.

Em uma das escolas dirigida por ele e Delamotte, alguns dosalunos mais pobres iam descalços, e os meninos que estavam maisbem vestidos lhes olhavam com desdém. Para livrá-los desse orgulho, opróprio Wesley foi por algum tempo descalço. Vivia praticamente de pãoseco, e intercalava esta dieta rudimentar com jejuns constantes.

Na Geórgia reaparece o impulso social no Wesley. Um instintosábio e verdadeiro lhe advertia que uma religião solitária pereceria, e,como em Oxford, ele reorganizava o seu rebanho em pequenassociedades que se reuniam uma ou mais vezes por semana, afim de

exortarem-se mutuamente.

Mas o ministério de Wesley em Savannah falhou exatamentecomo falhara em Wroote, e com ainda mais efeito dramático. Eradestituído do verdadeiro poder espiritual; deixava de fazer os homensmelhores e fomentava desinteligências (divergência, desacordo,inimizade). “Como é que não há nem amor, nem mansidão, nemverdadeira religião entre o povo; mas em vez disso, orações meramenteformais?” – perguntou o Olglethorpe, atordoado pelas dissensõeseclesiásticas que enchiam os ares de todo o lado.

Nas palavras de Southey, Wesley, em vez de dar leite a seurebanho estava lhes “fazendo engolir o remédio de uma disciplinaintolerante” e a natureza humana revoltava contra a amarga dose.

Um paroquiano irado – como Wesley fielmente anota no seudiário – disse·lhe: “Não gosto de nada que fazeis. Os vossos sermõessão todos sátiras dirigidas a certas pessoas; portanto, não hei de ouvir-vos mais, e todo o povo é do meu parecer”. Os seus ouvintes, continuouo franco crítico, estavam mistificados e não podiam determinar seWesley era Protestante ou Romanista. “Nunca antes ouviram de uma talreligião. Não sabem o que pensar. E ainda mais o vossocomportamento particular; todas as desinteligências (divergência,desacordo, inimizade) que tem havido desde a vossa chegada têm sidopor vossa causa. De modo que podeis pregar o tempo que quiserdes,mas ninguém vos ouvirá”.

Se em Savannah os paroquianos estavam em desavenças com oJoão Wesley, em Frederica, tanto o governador como o povo estavamzangados com Carlos Wesley. O Carlos era tão austero como o irmão epossuía, talvez, menos jeito. Dentro de um mês os seus paroquianosestavam em plena rebelião tentando arruiná-lo com o governadoracusando-o de um propósito de destruir a colônia. O infeliz governadordescobriu que os seus capelães eram centros que originavam temporaishumanos. Ele perguntou a Carlos Wesley em tom amargo: ”Que diriaum incrédulo se visse as desordens que provocastes?”.

Oglethorpe era homem de temperamento impetuoso e de línguasolta; os seus inferiores naturalmente exageravam estas qualidades, e osobrepujava nos passos que tomavam contra o infeliz capelão. A CarlosWesley foi praticamente negado as coisas geralmente consideradasnecessárias à existência. Dos bens públicos proviam camas para todosna colônia, mas negavam-na ao pároco demasiado zeloso, o qual,

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enquanto padecia de uma febre lenta, tinha de dormir no chão: “Graçasa Deus”, disse o pobre Carlos Wesley, “ainda não é ofensa capital odar-me um bocado de pão!” Mas ele cria que a sua vida esteve mais deuma vez em perigo.

Um pouco mais tarde Oglethorpe saia ao encontro dos espanhóisque vinham contra a nova colônia. As condições eram desesperadoras,e ele não esperava mais voltar com vida; portanto despediu-se do seusecretário-capelão de um modo bastante agitado.

Ele disse, “Vou morrer, não me vereis jamais”.O seu secretário respondeu: “Se falo convosco pela última vez,

ouçais ao que em breve sabereis ser a verdade ao entrardes naexistência separada... Tenho renunciado o mundo. A vida é para mimmui amarga; vim aqui para sacrificá-la. Tendes sido enganado; euprotesto a minha inocência dos crimes de que me acusam, e julgo-meagora com a liberdade de dizer-vos aquilo que pensara de nuncamencionar”.

Seguiu-se uma explicação; Oglethorpe, um dos mais generosos,se bem que um dos mais impulsivos dos homens, lançou-se ao pescoçodo capelão e o beijou, e deste modo se despediram. Enquanto os botesse afastavam da praia, Carlos Wesley clamou: “Deus é convosco; ide.Christo ducet auspíce Christo”.

Quando Oglethorpe voltou são e salvo de sua expedição, Carloslhe disse que muito desejara vê-lo de novo, a fim de fazer-lhe outrasexplicações, acrescentando: “Mas, pensei que se morrêsseis teríeissabido tudo num momento”.

Oglethorpe respondeu: “Não sei que os espíritos desencarnadosse interessam pelos nossos pequenos negócios. Se o fazem, é como oshomens contemplam as tolices de sua meninice, ou eu a minha recenteraiva”.

Oglethorpe podia ficar furioso com os seus capelães, mas aindaos amava; e muitos anos depois, quando já encanecido (envelhecido)ele apresentava uma figura veneranda (venerável) – a mais bela figura,diz Anna More, que ela jamais viu e que em tudo “perfeitamenterealizava o seu ideal do Nestor” – é narrado que ele inesperadamente,encontrando-se com João Wesley, correu a seu encontro e o beijou coma simplicidade e afeto de uma criança.

Carlos Wesley com o seu colega, Ingham, voltaram à Inglaterraem Julho de 1736, mas João Wesley continuava no seu posto emSavannah.

É de estranhar que o temperamento ritualista de João Wesleyficasse tão pouco modificado pela admiração que ele sentia pelo ensinoMoraviano e pelo tipo de piedade que produzia. Os Moravianos deSavannah lhe ensinavam exatamente o que Pedro Bohler lhe ensinoumais tarde em Londres, mas o ensino nesse tempo lhe deixou a almano mesmo de antes. A explicação do próprio Wesley é: “Eu não osentendia; eu era demais douto e demais sábio, de modo que me parecialoucura; e eu continuei a pregar, a seguir e a confiar naquela justiçapela qual nenhuma carne se justifica”.

A verdade é que se o próprio Pedro Bohler tivesse encontrado aWesley em Savannah, ter-lhe-ia ensinado em vão. O rígidosacramentariano e ritualista tinha de ser fustigado, pela ásperadisciplina do fracasso, para fazê-lo sair da mais sutil e mortífera formado orgulho, o orgulho que imagina o segredo da salvação como estandono círculo dos esforços puramente humanos. Mais tarde Wesleydescreve a Pedro Bohler como “um que Deus preparou para mim”. MasDeus, nas experiências trabalhosas e humilhantes de Geórgia, estavapreparando a Wesley para Pedro Bohler.

Um namoro, tão mal dirigido e tão estéril foram todas asexcursões que Wesley fazia ao domínio do sentimentalismo, trouxe asua estadia em Geórgia a um fim repentino e inglório. Wesley, de suameninice, tanto pelo temperamento como educação, era mui susceptível– se bem que de nenhuma maneira ignóbil – a influências femininas Nopresbitério de Epworth, as influências femininas – desde a serena, sábiae inteligente mãe até o círculo de irmãs espirituosas – eram supremas.E Wesley, em todas as épocas, de sua vida, procurava – o queconstituía a alegria de seus anos tenros – a camaradagem de mulheresinteligentes. Mas em relação ao belo sexo, parecia sofrer uma curiosaparalisia da sua perspicácia natural e dirigia os namoros com menosjeito do que qualquer outro grande homem conhecido na história.

O principal juiz de Savannah, sr. Causton, era homem deantecedentes duvidosos e de gênio violento. A sua sobrinha MissHopkey, uma moça jeitosa e atrativa, enamorou-se de Wesley – ou pelomenos desejava que o pequeno, elegante e espirituoso lente do Colégiode Lincoln se enamorasse dela, e é claro que ela tentava, por todas asartes inocentes conhecidas ao belo sexo, apressar o fim desejado.

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Ela se tornou austeramente religiosa à moda de Wesley; assistiaa seus serviços com a diligência piedosa; vestia-se em conformidadecom o seu gosto austero; cuidou dele durante uma doença; aceitou oseu conselho sobre o assunto interessante daquilo que ela devia cear(jantar), e da hora em que eIa devia dormir.

Wesley tomava tudo isso, com uma simplicidade única, comosinal de um caráter angélico. Ele estava visível e francamente – se bemque pedantescamente (pretenciosamente, vaidosamente) – enamoradodela. Nos começos de dezembro eIe anota no seu Diário: “Aconselhei aDona Sophia que ceasse (jantasse) mais cedo e não tão perto da horade dormir. EIa acedeu (aceitou), e desta pequena circunstânciadepende uma infinidade de conseqüências! Não somente o seu próprioconforto por toda a vida, mas talvez a minha felicidade também”.

O seu colega Delamotte, que não contemplava a Miss Hopkeycomo rodeada de qualquer nimbo (esplendor, auréola) sentimental, eque não fora a Oxford debalde (inutilmente), bruscamente advertiu aWesley e perguntou-lhe se ele tencionava se casar com ela. Wesley,que neste período de sua vida era um eclesiástico de sangue frio,mesmo quando de namoro, descobriu que não era fácil responder aesta pergunta tão incomodamente direta. Resolveu então submeter àquestão, se devia ou não casar com Miss Hopkey, ao Bispo Moraviano– passo este que para a inteligência feminina, pelo menos, prova quenão sentia o mínimo amor pela moça. O caso finalmente foi submetido àdecisão dos presbíteros da Igreja Moraviana – juizes esquisitos notribunal de afeições! Eles consideraram o caso seriamente, e Wesley foichamado para ouvir a sua sentença.

Nitschmann perguntou-lhe “Conformar-vos·eis à nossa decisão?”.Depois de certa hesitação, Wesley respondeu, “Sim”. “Então”, disse oMoraviano, “Nós vos aconselhamos que não prossigais com o negócio”.Wesley respondeu, “Seja feita a vontade de Deus”.

Ainda se debate com bastante vigor se Wesley realmentepropusera casamento a Miss Hopkey. Moore, o seu biografo, afirma queWesley lhe dissera que “nunca lhe fizera proposta de casamento”. Poroutro lado, a própria moça, no processo contra Wesley no fim da suaestadia em Savannah, depôs sob juramento que “o sr. Wesley muitasvezes lhe propusera casamento, cujas propostas ela rejeitara”. Masninguém, lendo toda a história, deixará de ver que a ofensa real deWesley era a de não ter feito proposta a Miss Hopkey, ou pelo menos,

de não tê-la feito com suficiente clareza.

Aquela espirituosa moça soube que o seu namorado submetia osseus afetos à direção dos venerandos presbíteros Moravianos e,cismando que a decisão ser-lhe-ia contraria, prontamente se deu a umoutro pretendente. Aos 4 de março os Presbíteros Moravianos deram asua decisão; aos 8 de março, Wesley tristemente registra no seu Diário:“D. Sophia tratou casamento com o Senhor Williamson, homem que nãoé notável pela elegância, nem pela nobreza, nem pela vivacidade, nempor conhecimentos, nem pelo o bom senso, e menos de tudo pelareligião E no sábado 12 de março, quatro dias depois, casaram! Erapelo menos uma moça expediente (de inciativa)!”

Wesley achou na lição do domingo 13 de março as seguintespalavras: “Filho do homem, eis que tirarei de ti o desejo dos teus olhosde um golpe”; e acrescentou: ”senti-me traspassado como por espada”.Quinze anos depois ele havia de escrever o mesmo versículo outra vezno seu diário como nota de uma derrota ainda mais amarga de suasafeições.

Wesley, nesse tempo mais do que em anos posteriores, tinha porhábito registrar com uma quase incrível diligência, todos os atos de suavida e todas as fases de seus sentimentos. Os seus Diáriosgeorgianos, que ai existem, exemplificam o zelo incansável com quetraduziu a si mesmo em termos escritos. No Diário não somenteexiste uma página para cada dia, mas um espaço separado paracada hora do dia. Ele contava e registrava o emprego do seu tempocom a fidelidade do cuidadoso negociante em anotar o emprego doseu capital. Num incidente, tal como o caso com Miss Hopkey, que omoveu tão profundamente, naturalmente seria registrado comcuidado especial. Isto faz cr íveI uma outra versão, cuja autenticidadeé algo duvidoso, que existe, aparentemente na letra do próprioWesley. Segundo esta narrativa, Miss Hopkey tinha apenas dezoitoanos; as suas afeições haviam sido solicitadas por um sujeitoindigno, seus tutores tinham proibido toda a comunicação entre osdois. A moça estava muito sentida, e pediram a Wesley, comoministro, que lhe desse uma atenção especial. Isto resultou em certaintimidade entre eles, e logo Wesley descobriu que não somenteestimava em alto grau a Miss Hopkey, mas que tinha por ela umgrande afeto, o qual ele se persuadia de ser o que se sente por umairmã. Ele, entretanto, estava convicto que a vida de celibato seriamelhor para todos, e quanto a ele mesmo era quase imperativa; eela com a fácil resolução de uma moça sentida, também afirmara

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que sempre viveria solteira. Aproximava -se a crise do namoroquando fizeram uma viagem de bote desde Frederica até Savannah.A solicitude de Wesley nesse tempo é evidente, mas ainda segundoo modo pedantesco (arrogante), ele experimenta as suas emoçõespor trechos dos antigos padres gregos. Se realmente propôs ocasamento a Miss Hopkey é questão que a narrativa não determina.Ele conta de como, estando com ela, ladeando o fogo doacampamento, perguntou, se ela tinha tratado casamento com apessoa por quem se supunha que ela sentisse saudades. Elarespondeu : “Tenho tratado com ele ou com ninguém”, e logo sedesfez em pranto. “D. Sophia”, disse Wesley, “eu me estimaria felizse pudesse passar a minha vida contigo”. Estas palavras repentinas,ele acrescenta, “foram proferidas sem desígnio”; e a moçarespondeu com mais l ágrimas, mas o ingênuo lente do Colégio deLincoln persuadia-se que, embora ele deixasse do seu propósito deviver solteiro, ainda Miss Hopkey ficaria heroicamente firme no seupropósito de viver celibatária. Esta crença silenciou a Wesley;entretanto, recordando o incidente eIe diz: “Escapei por pouco.Admiro -me, mesmo agora, que eu não dissesse, “D.Sophia querescasar comigo? ”. É claro, pois, que ele não cria haver jamais proferi doas palavras decisivas.

Depois de miss Hopkey tornar-se em Sra. Williamson eranatural que Wesley a contemplasse com outras e novas vistas, eaquela moça espirituosa, talvez não se sentisse, por mais tempo,obrigada a consultar a respeito de seu vestuário ou de sua conduta,com seu antigo, se bem que demasiado vagaroso, namorado. Isto foipara Wesley somente outra surpresa dolorosa. Seriamente registrano seu Diário: “Deus me mostrou ainda mais da magnitude do meulivramento por abrir-me mais uma cena nova e inesperada nadissimulação de D. Sophia”. Mais tarde Wesley achou necessáriofalar-lhe "de certas coisas na sua conduta que ele julgavarepreensíveis”, e ficou muito admirado – o pobre! – que D. Sophialhe rebatesse as repreensões com grande veemência. O maridoascendeu -se com a ira da esposa e a proibiu de falar mais comWesley ou de assistir a seus serviços (cultos e demais ministraçõesreligiosas) . Mas parece que a noiva teimosa lhe desobedeceu.Wesley agora cogitava negar a Senhora Williamson lugar na Ceia doSenhor, e perguntou ao sr. Causton, o juiz: “Sr., que pensareis se eujulgar ser um dever do meu cargo a repelir (excluir) pessoa de vossafamília da Santa Comunhão?”.

O sr. Causton respondeu: “Se repelirdes a mim ou a minha

esposa, hei de exigir uma satisfação legal; mas não hei de molestar -me acerca de mais ninguém”.

Nos tempos, quando a Ceia do Senhor constituía, na frase deCowper, “a chave de emprego público” para os homens e a marcade respeitabil idade social para as mulheres, o ser repelido da Ceiado Senhor era prejuízo sério”. Aos 7 de agosto – cinco mesesdepois do casamento – Wesley recusou deixar que a srª. Williamsonparticipasse da Ceia do Senhor. Logo no dia seguinte foi lavradauma ordem para a apreensão de “João Wesley , clérigo, pararesponder às queixas de Guilherme Williamson pela difamação desua mulher, e por ter recusado administrar-lhe, sem causa, osacramento da Ceia do Senhor na congregação pública sem causa”. Omarido ofendido avaliou os seus prejuízos em mil libras.

Wesley foi preso, mas ficou solto sob fiança para comparecer napróxima futura sessão do tribunal. Pediram-lhe que desse por escrito asrazões por ter recusado à srª. Williamson a ceia do Senhor. Eleescreveu à srª. Williamson: “Se chegardes à mesa do Senhor nodomingo, eu vos advertirei, como tenho feito mais de uma vez, daquiloque fizestes de mal, e quando declarardes abertamente terdes vosarrependido sinceramente, eu vos administrarei os mistérios de Deus”.Mas a srª. Williamson não quis formalmente “notificar o pároco do seupropósito de se apresentar à comunhão”. Antes dela fazer isto, Wesleynão admoestaria daquilo que fizera de mal; e desta forma ficoudesconhecida, até hoje, a triste natureza da ofensa da srª Williamson.

Entretanto, um grande júri de 44 homens – a quinta parte de todosos homens de maior idade na cidade – considerou o caso. Havia dozeacusações contra Wesley, começando com a “de ter ele invertido aordem e o método da ladainha”, e concluindo com a “de ter feitopesquisas e ter se intrometido em negócios particulares de famílias”. Amaioria do grande júri julgou procedente dez das acusações; enquantoa minoria absolveu a Wesley e declarou que as acusações eram “umatrama do sr. Causton, a fim de desprestigiar o caráter do sr. Wesley”.Wesley, quando chamado à defesa, tomou a posição que nove das dezacusações eram de natureza eclesiástica, sobre as quais o tribunal nãotinha jurisdição alguma. A outra, que tratava dele ter falado e escrito àsrª Williamson, era de caráter secular e ele pediu que fosse o casojulgado já pelo tribunal.

Os seus inimigos, entretanto, não tinham pressa alguma em ver ocaso terminado; desejavam empregar as acusações como instrumento

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para fazer Wesley sair da colônia. O capelão militar de Frederica foinomeado para dirigir os serviços religiosos em Savannah, e assimWesley foi praticamente destituído do seu cargo.

As semanas se deslizaram vagarosamente. Como Wesleydescobriu que não podia conseguir o seu julgamento nem desempenharo cargo de capelão, resolveu partir para a Inglaterra. Afixou um papelnuma praça pública, em que declarava: “João Wesley pretende embreve voltar para a Inglaterra”, etc. Notificaram-lhe que não devia deixara colônia até que respondesse às acusações contra ele. Wesleyrespondeu que já assistira a sete sessões do tribunal para este fim, masque lhe fora negado este privilégio. Ele recusou assinar qualquercompromisso de comparecer perante o tribunal. Uma ordem foi baixada,exigindo que toda a gente leal obstasse (impedisse) a sua saída dacolônia. Era, realmente, um preso à vontade. É claro que os inimigos deWesley só desejavam fazê-lo sair da colônia e, ao mesmo tempo, dar asua partida a aparência de uma fuga da justiça.

Wesley dirigiu as orações vespertinas do dia e então, diz ele:“Como a maré favoreceu, sacudi dos pés o pó de Geórgia, depois de terpregado o Evangelho ali não como eu devia, mas como eu podia, porum ano e quase nove meses”. Em uma viagem trabalhosa, acontecidaem parte por bote, e em parte a pé, Wesley e seus três companheirosforam para Charlestown, e dez dias depois, aos 22 de dezembro, elepartiu para a Inglaterra. Fechou-se um capítulo bastante atribulado dasua vida.

CAPÍTULO XI

Chegando ao Ponto Desejado

Wesley voltou da América para Londres visivelmente derrotado. Oseu ministério na Geórgia falhara; o seu caráter fora desprestigiado; oseu futuro parecia obscuro. Wesley não era exatamente um foragido dajustiça, mas o próprio rebanho em Savannah empregara a lei paraafugentá-lo de suas plagas (terras, região). Chegaria à Inglaterragrandemente desacreditado; e nas meditações durante os dias longos emonótonos da sua viagem de volta, Wesley via tudo isto muiclaramente. A sua carreira estava prejudicada, senão arruinada. MasWesley seria o último homem no mundo a incomodar-se por causa dequalquer prejuízo à sua reputação ou bolsa ou carreira secular. Atragédia da sentença, ele o sentia, achava-se no fato que ele era umfracasso espiritual. A sua religião, apaixonadamente zelosa,intensamente heróica e disposta a todo o sacrifício, não lhe dava nem apaz no próprio coração, nem o poder de alcançar os corações deoutros.

Eis a amarga análise de sua própria condição neste momento:“Terça-feira, 24 de Janeiro de 1738. – Tenho uma bela

religião de verão. Falo bem; sim, eu mesmo creio, enquantonão existe perigo. Mas no momento que a morte me encara,o meu espírito se vê atribulado. Não posso dizer que omorrer é ganho. Tenho um pecado de temor (medo, pavor)que depois de ter estendido a última teia eu venha a morrerna praia! Penso sinceramente que se o Evangelho éverdade, então sou salvo; pois eu não somente dou todos osmeus bens para alimentar os pobres; não somente dou omeu corpo para ser queimado, afogado ou qualquer coisamais que Deus me proporcionar; mas eu sigo a caridade (nãocomo devo, mas como posso), se porventura eu conseguiratingi-la. Agora creio que o Evangelho é verdade. Mostro aminha fé pelas obras, a ponto de arriscar tudo sobre ela. Istoeu repetiria até mil vezes, se ainda pudesse escolher. Quemme vê, descobre que eu quero ser cristão. Por isso os meuscaminhos não são como os de outros homens. Portanto,tenho sido e ainda estou contente em ser um vitupério(vergonha, infâmia) e um provérbio de mofa (zombaria). Mas

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num temporal, eu penso, e que será se o Evangelho não forVerdade?!”

É esta uma narração amarga; salienta a sombra em que Wesleyentão vivia.

Wesley também se sentiu só, nesta triste viagem; Delamo tteficou na América; Carlos Wesley e Ingham já se achavam naInglaterra. Wesley não teve outra camaradagem senão os seuspróprios pensamentos amargos; e a sua profunda depressão se vêrefletida em cada linha do seu Diário. Ele se descreve como sendo“triste e mui pesaroso, embora não possa dar disso qualquer razão”.Nota em si um “temor e pesar que quase de continuo lheacabrunham”. Vê-se a mais pungente (lancinante, comovente,dolorosa) dor nas sentenças que ele escreve no seu Diário: “Fui àAmérica para converter os índios; mas, ai! Quem me converterá amim?” Ele prossegue deliberadamente em fazer um inventário de simesmo, e o faz com uma severidade que é pouco menos que cruel.É necessário citá-lo em cheio, com as notas em parênteses e emgrifo, que o próprio Wesley acrescentou anos depois, e querepresentam a sua mais amadurecida opinião de si mesmo:

“Diário de 29 de Setembro de 1736. – Passa de dois anose quase quatro meses que deixei a minha pátria nativa, a fimde ensinar aos índios da Geórgia a natureza do Cristianismo;mas, eu mesmo, que tenho aprendido? Isto (que eu menossuspeitava), que eu mesmo, indo à América para converter aoutros, nunca fora convertido a Deus (não tenho certezadisso). Não estou louco por falar assim; mas profiro palavrasde verdade e de perfeito juízo; que porventura alguns dos queainda dormem despertem-se, e vejam que se encontramcomo eu me acho.“

“São doutos em filosofia? Também eu era. Em línguasmodernas e antigas? Também eu. São versados na teologia?Eu também a tenho estudado por muitos anos. Podem falarfluentemente de coisas espirituais? Eu também fazia o mesmo.São abundantes em esmolas? Eis que dei todos os meus benspara alimentar os pobres. Dão o seu trabalho bem como osseus bens? Eu tenho trabalhado mais do que todos eles. Sãoprontos a sofrer pelos irmãos? Eu deixei amigos, reputação,conforto, pátria. Tenho tomado a própria vida na mão,peregrinando em terras entranhas; dei o meu corpo para ser

devorado pelo abismo, queimado pelo calor, consumido pelocansaço e fadiga, ou qualquer outra coisa que Deus queira memandar. Mas tudo isto (seja mais seja menos, não me importa)pode fazer-me aceitável a Deus? Tudo que eu jamais soubeou que possa saber, dizer, dar, fazer ou sofrer pode justificar -me à sua vista? Ou o uso constante de todos os meios degraça (que, entretanto, é direito, justo e do nosso estritodever)? Ou que nada saiba contra mim mesmo; no tocante àjustiça moral, eu seja exteriormente inculpável? Ou, para sermais explícito, a posse de uma convicção racional de todas asvirtudes do Cristianismo? Tudo isto me dá o direito ao carátersanto, celeste e divino de um Cristão? De modo nenhum. Sesão verdadeiros os oráculos de Deus; se ainda vamos ”à Lei eao Testemunho”, tudo isto, sendo enobrecido pel a fé em Cristo(eu tinha então mesmo a fé de servo, mas não a de filho) , ésanto, justo e bom. Mas na ausência da fé é, como a escoria eo refugo, só digno do fogo que nunca se apagará.”

“Isto, então, aprendi nos confins da terra , que sou”destituído da glória de Deus”, que todo o meu coração écorrupto e abominável e, por conseguinte, o é a minha vidainteira; visto que “a árvore má não pode dar bons frutos ”: quealienado, como me acho da vida de Deus, sou filho da ira”(creio que não); herdeiro do inferno; que as minhas própriasobras, os meus próprios sofrimentos e a minha própria justiçasão tão inadequados para reconciliar -me com o meu Deusofendido, tão inadequados para fazer qualquer propiciaçãopelos menores dos meus pecados – que são mais númerososdo que os cabelos da minha cabeça – que os mais preciososentre eles necessitam de uma propiciação para si mesmos, deoutra forma, nunca poderão subsistir no justo juízo de Deus ...“

“Se alguém disser que eu tenho fé, (pois muitas coisastais tenho ouvido de muitos conselheiros miseráveis), eurespondo, também os demônios o têem – uma espécie de fé; masainda são “estranhos às alianças da promessa”, também osApóstolos em Caná da Galiléia, onde Jesus “manifestou a suaglória”, em certo sentido, “creram nele”; mas não tiveram “a fé quevence o mundo”. A fé que eu quero é (a fé do filho) um plenodescanso e confiança em Deus, que, pelos méritos de Cristo,meus pecados são perdoados, eu mesmo sou reconciliado agraça de Deus.”

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Isto, mesmo depois da inserção das notas qualificativas de umadata posterior, constitui uma terrível descrição de si mesmo. Mais tardepodemos indagar se a sentença que Wesley passou sobre si mesmo,nesse espírito de depressão, fora inteiramente acurada; mas neste meiotempo, o seu espírito mesmo é digno de nota. O seu orgulho já se fora.A consciência de seu fracasso e de sua derrota é completa. Ele sabeque o Cristianismo contem algo não atingido ainda. O seu espírito sentea completa humilhação de si mesmo:

“Todas as minhas obras, toda a minha justiça, as minhasorações carecem de uma propiciação em si mesmas; de modoque a minha boca está fechada. Não tenho atenuação algumaque eu possa oferecer. Deus é Santo; eu sou impuro. Deus é umfogo consumidor; eu sou de todo pecador, digno de serconsumido”.

O Wesley que embarcou para Geórgia em 1735 e o Wesley quevoltou de lá para a Inglaterra em 1738 são assim homens inteiramentediferentes. Wesley havia posto a sua teologia à prova; à prova da vidaprática e ela falhara. Não conseguira a conversão dos índios; aprenderaunicamente que ele mesmo não fora convertido. Deve haver algumafalta fatal no seu credo ou em seus métodos. O segredo essencial doCristianismo – o seu dom de paz para a consciência, e de poder sobreos homens – lhe escapara. Porque havia feito fracasso? Que seriaaquilo que convertera uma coragem tão singular, uma devoção tãonobre, um tão esplendido altruísmo em um mero fracasso? Aquele quedescobrir o segredo do fracasso de Wesley terá chegado ao própriocoração do Cristianismo.

Esta nova convicção tinha, indubitavelmente, certas vantagens.Pelo menos, a teologia de Wesley já deixava de oscilações. Comovimos, ele já abandonara o misticismo; já enxergara a sua naturezamortífera. O seu ritualismo, também, falhara. Havia somente geradoporfias. O seu próprio legalismo austero havia deixado a alma semalimentação. Este asceta descobrira que um corpo castigado nãoassegura a paz da alma. E deste ponto a consciência e a inteligência deWesley oscilaram definitivamente para a interpretação evangélica doCristianismo.

Tudo isso foi, visivelmente, uma fase num grandedesenvolvimento espiritual. Wesley se preparava para o toque de outromestre, e para a entrada de uma nova experiência em sua vida.

Quando Wesley aportou em Londres, o navio que ia levar George

Whitefield para a América estava ancorado pronto pra zarpar. Wesleyhavia antecipado a inspiração da camaradagem de Whitefield; e sentiauma relutância em mandar um homem tão bom para o trabalho ingratoque ele mesmo abandonara em Savannah. Ele prontamente enviouuma nota a Whitefield que já estava a bordo do navio, na qual dizia:

“Quando vi que Deus me fazia entrar pelo mesmo ventocom que estáveis saindo, pedi conselhos a Deus. E tendes aqui aresposta”.

Envolvido na nota havia um pedacinho de papel com os dizeres:“Que volte a Londres“. Wesley tinha resolvido a questão da ida ou dapermanência de Whitefield pelo sorteio, e o resultado fora para ele nãoir à América. Mas Whitefield possuía um sorteio próprio, e logo lembrou-se da história do profeta – no Livro dos Reis – que voltou ao pedido deoutro profeta e, em conseqüência, foi devorado pelo leão; estalembrança fê-lo decidir em continuar a sua viagem; e Wesley na épocamais critica da sua vida foi deixado sem o seu grande camarada.

Whitefield a este momento estava na manhã (começo) de suamaravilhosa popularidade na Inglaterra. Era pouco mais do que rapaz,entretanto multidões ficavam encantadas com a música de sua palavra.E o contraste entre Wesley que se arrastava de volta à Inglaterra comohomem derrotado e de espírito quebrantado, e o Whitefield que partiano mesmo instante rodeado do nimbo (esplendor, auréola) de umapopularidade brilhante, é quase dramático.

Wesley desembarcou em Deal na manhã de 1° de Fevereiro elogo dirigiu oração e pregou na casa onde se hospedava.Tudo maispoderia ter-se escurecido no seu céu espiritual, mas sempreresplandecia com grande clareza o ponto do dever. Fosse ou não fossefeliz a sua própria condição espiritual, ele precisava se esforçar emconcertar a condição espiritual de outros. Vivia no espírito das palavrasque mais tarde ele colocou no serviço de consagração que havia de serlido anualmente em todas as igrejas que fundou: “Se eu morrer, hei demorrer à tua porta. Se eu tiver de me afundar, hei de afundar-me com oteu navio”.

Seguiu logo para Londres onde tinha de prestar, contas com osdiretores da Colônia de Geórgia. Ali encontrou o seu irmão Carlos, queficou mui surpreendido com a sua chegada. O seu conhecimento dosmoravianos em Savannah naturalmente fê-lo procurar os moravianosem Londres, e, na terça-feira, 7 de fevereiro – “um dia mui digno de serlembrado”, como diz no seu Diário – encontrou-se em casa de um

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negociante holandês, com Pedro Bohler, homem este que havia deinfluir grandemente sua vida.

Bohler fora educado na Universidade de Jena, e unira-se aosmoravianos quando ainda rapaz. Fora ordenado como missionáriomoraviano pelo Conde Zinzendorf, e estava de caminho para aCarolina, na América, quando Wesley o encontrou. Ele estava entãofazendo discursos, por um intérprete, a auditórios pequenos emLondres, e uma estranha influência espiritual acompanhava as suaspalavras.

Wesley e Bohler se reconheciam mutuamente, quase desde omomento do seu primeiro encontro, como sendo espíritos aparentados.O moraviano descreve a Wesley ao Conde Zinzendorf como sendo“homem de bons princípios que sabia que não estava crendoeficazmente no Salvador, e queria ser ensinado”. De Carlos Wesley elediz: “ele está presentemente muito perturbado em espírito, mas nãosabe como começar em fazer-se conhecido do Salvador. O nosso modode crer no Salvador parece tão fácil aos ingleses, que não se podemconformar com ele. Se fosse um pouco mais difícil, com muito maispressa achariam o caminho”. “Eles se supõem já crentes”, disse ojeitoso e sincero Moraviano, “e se esforçam em provar a sua fé pelassuas obras, e assim se atormentam de tal modo que os seus coraçõesficam muito atribulados “.

Wesley acompanhou a Pedro Bohler até Oxford, e escutouavidamente os ensinos do seu novo amigo. Ele suspeitou vagamenteque aqui, alfim (finalmente), estava o segredo, que por tanto tempo lheescapara. Entretanto as palavras simples do moraviano soavam nosouvidos de Wesley como os acentos de uma língua estranha. Diz ele:“eu não entendi, e muito menos ainda quando me disse: “Mi frater, mifrater, exco quendo est isto tua philosophia”. Que fizera à filosofia deWesley que merecesse ser assim lançada fora!

Mas Wesley queria ser ensinado e aos 4 de março anota em seuDiário que passou um dia com Pedro Bohler, “por quem, nas mãos dogrande Deus, eu fui, no domingo, 5, claramente convencido daincredulidade; da falta daquela fé pela qual somos salvos”. Mais tarde,Wesley diz: “Bohler ainda mais me surpreendeu por suas descriçõesque fez dos frutos da fé, do amor, da santidade e da felicidade que eleafirmava serem seus assistentes”. Wesley francamente aceitava esteensino; a verdadeira fé tem de produzir estes frutos. Mas Wesley erasempre o lógico, e redargüia (argüia, questionava, interrogava) a si

mesmo: ”Como posso pregar a outros, quando eu mesmo não tenhofé?” O conselho de Bohler era direto e prático: “Pregai a fé até que atenhas e, tendo-a, forçosamente haveis de pregar a fé”.

Coleridge sofisma (se engana, interpreta enganosamente) estaspalavras, dizendo que isto importava dizer-se (que o que foi dito porBohler a Wesley era o mesmo que): “Mintais com bastante freqüência epor bastante tempo e forçosamente e chegareis ponto de crê-lo”. MasColeridge não compreende nada do sentido do conselho de Bohler!Wesley não estava no humor de sofismar. “Logo no dia seguinte,segunda-feira, 6 de março”, diz ele “comecei a pregar esta novadoutrina, ainda que minha alma recuasse do trabalho. A primeirapessoa a quem eu oferecia a salvação unicamente pela fé foi um presosentenciado à morte”, e Wesley confessa que achou a tarefa neste casoainda mais difícil, porque “por muitos anos eu havia afirmadozelosamente a impossibilidade do arrependimento na hora da morte”. Osentenciado prontamente refutou as dúvidas de Wesley por aceitar anova doutrina, e, na força divina que esta aceitação gerou, mostrou “umbem comportado contentamento e uma paz serena” quanto estava nopróprio patíbulo.

Wesley ficou convencido que o ensino de Bohler, quanto à fé e osseus frutos era “escriturístico” (estava em consonância com o ensinadonas Escrituras Sagradas); sim, era a doutrina da Igreja Anglicana. Maspermaneceu ainda uma dúvida: "Como seria possível que o grandeprocesso da passagem do homem, da morte para a vida, se efetuassenum momento?” Entretanto, Wesley por um exame, achou que quasetodas as conversões registradas no Novo Testamento foraminstantâneas. Mas bem podia ser que, o que fosse comum no primeiroséculo tivesse se tornado impossível no século XVIII. Mas “no domingo22 de março”, Wesley anota, “fui tocado deste abrigo também, pelaevidência concorrente de várias testemunhas vivas, que testemunharamque Deus havia assim operado nelas mesmas, dando-lhes, nummomento, uma tal fé no sangue do seu Filho que foram transladadasdas trevas para a luz, do pecado e temor para a santidade e afelicidade. “Aqui” diz ele, “findaram-se os meus debates. Eu só soubedizer: Senhor, ajuda a minha incredulidade!”

Durante todos esses dias de perturbações e pesquisas, dedúvidas e suspiros, o zelo de Wesley no trabalho prático nuncaminguava; antes se tornava cada vez mais urgente. Fosse qual fosse asua própria condição espiritual era necessário que ele advertisse aoutros dos seus perigos e deveres. A todos – homem ou mulher, rico ou

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pobre que ele encontrasse, mesmo que fosse só por um momento – eIefalava alguma palavra pelo Mestre. O viandante (viajante) no caminho, opeão que lhe segurava as rédeas do cavalo, a criada da casa, ohóspede que por acaso se achava à mesa – a cada um, por sua vez,ele dava alguma palavra breve, solene, e imprevista de conselho, esempre com estranho efeito.

Numa casa de pasto (casa onde se come, restaurante, pousada),Wesley e seus companheiros foram servidos por uma moça jovial, que aprincípio lhes escutava com a maior indiferença. Entretanto, quando iamse retirando, “eIa Ihes fitou os olhos, sem mover-se nem dizer umapalavra sequer: parecia tão admirada como se visse alguém ressurgirdentre os mortos”. E devia ter havido algo para suscitar a admiração epara surpreender, nestes reptos (desafios) repentinos e inesperados deWesley. A sua aparência – o rosto delgado, claro e intenso, o olhar fortee penetrante, as vestes clericais, a testa do estudante, o modo de falarde um nobre – tudo isto dava um poder surpreendente ao apelorepentino e sem prefácio, que parecia romper da eternidade, e ter algo,da solenidade da eternidade.

Carlos Wesley já achara o livramento espiritual que buscara.Estava se recuperando de uma pleurisia (inflamação da pleura, a duplamembrana que envolve os pulmões); e quando a alegria do novonascimento lhe trasbordou a alma, Wesley diz que “a sua força física,também, voltou desde essa hora”. Coleridge considera isso como sendouma inversão de causa e efeito, julgando que simplesmentedesapareceu a pleurisia, e que Carlos Wesley tomou as melhoras desaúde por uma mudança espiritual. No mal interpretado fermento dessapleurisia desaparecida, Carlos Wesley, no pensar de Coleridge, viveude alguma maneira até o fim de seus dias! Tão simplesmente umgrande filósofo sabe explicar os fenômenos espirituais?

A conversão de Carlos Wesley foi assinalada por um incidentecurioso. Ele se achava de cama, triste, doente e acabrunhado;tremendo à beira de uma fé que ainda não soube exercer. Uma mulherdevota na casa, que ajudava em cuidar dele, sentia-se impulsionada afalar-lhe algumas palavras para confortá-lo. Mas ele, sendo ministro, eela apenas uma criada; como poderia ela se aventurar um talatrevimento?

Ela foi em particular ao Sr. Bray, em cuja casa Carlos Wesley seachava, e entre lágrimas lhe contou do impulso que com tanta energia aoprimia, e perguntou como eIa, uma criatura tão pobre, fraca e

pecaminosa, poderia empreender a direção de um ministro?

O Sr. Bray respondeu: “Vai em nome do Senhor; dize as tuaspalavras. Cristo fará a sua obra”.

Ambos se ajoelharam e oraram junto; mas depois de separarem,a mulher ajoelhou-se sozinha e orou de novo. Então se dirigindo compassos tímidos até a porta do quarto em que Carlos Wesley jaziadoente, ela disse suave, mas distintamente: “Em nome de Jesus, oNazareno, levanta-te! Tu serás curado de todas as tuas enfermidades!”.Carlos Wesley, segundo a sua própria narração, estava conciliando osono quando essas palavras, de lábios invisíveis, lhe feriram osouvidos. “Elas me emocionaram”, diz ele, “até o coração, nunca ouvipalavras pronunciadas com semelhante gravidade. Suspirei, e dissecomigo: ó que Cristo me falasse assim! Continuei deitado, pensativo etremente”.

Ele indagou, e logo a pobre criada disse: “Fui eu que falei, pobrecriatura pecaminosa que sou; mas as palavras são de Cristo. Ele memandou dizê-las, e me constrangeu tão fortemente que não puderesistir”.

E essas palavras pronunciadas por uma mulher ignorante, sobesse impulso misterioso, trouxeram o livramento espiritual a CarlosWesley!

Neste tempo Wesley começou a refletir quão mal os seus mestreshaviam lhe servido. Ele se sentara aos pés de Thomas Kempis, deJeremias Taylor e de Guilherme Law. Ele fora um dos estudantes maisdóceis; seguira-lhes o conselho, custasse que custasse, e lhe deixaramfalido! Kempis e Taylor estavam além do seu alcance, mas GuilhermeLaw ainda vivia. Era realmente o mestre de milhares; e Wesley virou-separa ele com uma espécie de repto (desafio) severo despertado pelaconsciência dos anos perdidos; e pela memória dos sofrimentos inúteis.“Durante dois anos”, diz ele escrevendo a Law, “vivi segundo a suateologia, e a ensinava a outros”. Para o próprio Wesley fora um jugoinsuportável, e para aqueles a quem Wesley pregara havia sido um somininteligível. Wesley, pela misericórdia de Deus, achara por fim ummestre, mais sábio, que lhe ensinara o verdadeiro segredo doCristianismo: “Crê e serás salvo! Crê no Senhor Jesus com todo o teucorarão, e nada te será impossível; despe-te completamente de tuaspróprias obras e justiça, e foge para Ele”.

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Neste ensino Wesley via a promessa de satisfação para todas assuas precisões (carências, necessidades).

EIe agora se dirige a Law:“Permita-me perguntar, como hás de responder ao nosso

Senhor comum por nunca teres me advertido disso? Por que tãoraramente eu te via falar no nome de Cristo; e nunca de um modoque predicasse coisa alguma de fé no seu sangue? Se disseresque me aconselhavas de outras coisas preparatórias para isto,que importaria tal proceder senão deitar alicerce sob o alicerce?Cristo não é o primeiro bem como o último? Se disseres, que meaconselhavas essas coisas porque sabias que eu já possuía a fé,então, deveras, não me conhecias em nada; não discernias o meuespírito em coisa alguma“.

Wesley prossegue:“Rogo-te, sr. pela compaixão de Deus, que consideres

profunda e imparcialmente se a verdadeira razão por não teresme instado a isso não seja justamente por nunca a terespossuído?”

Talvez nunca houvera antes um grande mestre tão bruscamentechamado a contas por seu próprio discípulo!

Law, respondendo a Wesley, fê-lo lembrar que tivera outrosmestres, os quais, sob bases iguais ele poderia chamar a contas.Perguntou-lhe:

“Há cerca de dois anos não fizeste uma nova tradução deThomas A. Kempis? Queres chamar a Kempis para dar contas epara responder a Deus por não ter te ensinado essa doutrina,como fizeste comigo?”

Mas Law prossegue, afirmando que havia ensinado a Wesleyexatamente o que Bohler lhe ensinara. “Já tivestes muitas conversascomigo, e ouso dizer que nunca estiveste comigo por uma meia horasequer sem eu me dilatasse nesta mesma doutrina da qual me fazescalado e ignorante”. Law era polemista tão formidável como o próprioWesley, e findou a carta com uma lançada severa:

“Se possuíres esta fé somente por poucas semanas, deixa-me advertir-te que não sejas demais pronto em crer que, por teresmudado de linguagem ou de expressões, mudastes também defé. A cabeça pode se divertir tão facilmente com a fé viva ejustificadora como com qualquer outra coisa; e o coração que

supões ser lugar seguro, por ser a sede do amor próprio, é maisenganoso do que a cabeça”.

A aspereza repentina com que Wesley tratou a Law é de fácilcompreensão; e ainda poderemos nos simpatizar com a defesa de Law.Law falhara por completo; os seus ensinos custaram a Wesley anos desofrimentos inúteis; entretanto a culpa não estava inteiramente com omestre. É verdade que nos livros de Law, e, sem dúvida nas suasconversas pessoais com Wesley, havia freqüentes e plenas exposiçõesdo plano evangélico de salvação. Mas a ênfase estava em outro ponto.Não havia perspectiva real na teologia de Law. E Wesley não se achavanaquele humor amolecido, proveniente da consciência de um fracassocompleto, no qual Bohler o achara, e que explica porque a doutrina deBohler se provara tão instantaneamente efetiva. Em suma, o segredo dofracasso de Law como mestre achava-se em grande parte na condiçãoespiritual do seu discípulo.

Mas Wesley estava no limiar de uma nova vida. A quarta·feira, 24de maio de 1738, foi para eIe o grande dia de livramento, e ele o temdescrito em palavras que já se fizeram históricas. Por dias buscara apaz, como Bohler lhe ensinara; “(1) por renunciar absolutamente toda adependência, quer total quer em parte, de minhas próprias obras oujustiça, nas quais eu havia confiado para a salvação, embora eu nãoconhecesse, desde a minha mocidade; (2) por acrescentar ao constanteuso de todos os mais meios de graça a constante oração, que Deus medesse a fé justificadora ou salvadora; uma mais plena reclinação sobreo sangue de Cristo derramado por minha causa; uma confiança nelecomo sendo a minha justificação, santificação e redenção”. Mas aindapairava sobre ele uma estranha indiferença, moleza e frieza, e umsenso constante de fracasso. Mas a madrugada de uma grande e novaexperiência aproximava-se.

Durante todas as horas do dia memorável de sua conversão écurioso notar-se, Wesley escutava solicitamente como se uma voz lhechamasse desde o mundo eterno. Parecia ouvir por toda parte algumeco profético de uma mensagem que vinha. O próprio ar parecia cheiode premonições e vozes suaves. Quando abriu o Novo Testamento àscinco da manhã, eIe nos conta como os olhos caíram sobre as palavras:“Ele tem nos comunicado as suas preciosas e grandes promessas, paraque por elas, vos torneis participantes da natureza divina”. Um poucoantes de sair do seu quarto Wesley outra vez abriu o livro, e com a forçade uma mensagem pessoal brilhou sobre ele desde a página sagrada àsentença: “Não estás longe do reino de Deus”. Estas vozes estranhas

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pareciam segui-lo por toda à parte. No Salmo na Igreja de São Pauloele ouvia traduzido na tempestuosa música o clamor do seu própriocoração, “Das profundezas a ti clamo, ó Senhor. Senhor, escuta aminha voz: sejam os teus ouvidos atentos à voz das minhas súplicas”.Então através do canto do bom coro, a trovoada do órgão, corria qual fiodelgado, uma música ainda mais divina, uma mensagem pessoal, umavoz que lhe respondia suavemente: “Espere, Israel, no Senhor, porqueno Senhor há misericórdia, e nele há abundante redenção. E ele remiráa Israel de todas as suas iniqüidades”. ”À noite”, diz ele, “eu fui, muitocontra a vontade, à sociedade na Rua Aldersgate, onde alguém lia oprefacio de Lutero à Epístola aos Romanos”, e mais de dois séculosdepois o grande alemão (Lutero) falou ao grande inglês.

O que seguiu deve ser contado nas próprias palavras de Wesley:“Faltava cerca de um quarto para às nove horas da noite

(20:45h), enquanto ele (o texto de Lutero) descrevia a mudançaque Deus efetuou no coração pela fé em Cristo; eu senti o meucoração estranhamente aquecido. Senti que realmente eu cria emCristo, em Cristo só, pela salvação; e foi-me concedido a certezaque ele me tirava os meus pecados, sim, os meus, e me salvavada lei do pecado e da morte. Comecei a orar, até onde podia afavor daqueles que haviam me desprezado e perseguido, damaneira mais acentuada. Então dei o meu testemunhoabertamente a todos que ali estiveram daquilo que eu agorasentia no coração pela primeira vez. Mas não passou muito tempoaté que o inimigo sugerisse: “Isto não pode ser a fé; pois ondeestá o gozo?”. Então fui ensinado que a paz e a vitória sobre opecado são essenciais à fé no Capitão da nossa salvação(Jesus); mas acerca dos transportes de gozo que geralmente sedão no começo, especialmente nos que tenham sidoprofundamente entristecidos, Deus às vezes os dá, às vezes osretém, segundo os conselhos de sua própria vontade”. (Diário deWesley, 24 de Maio de 1739).

As flutuações na alegria de Wesley nesses primeiros momentosde livramento realmente provam o parentesco de Wesley com oscorações crentes em todos os séculos. Talvez a natureza humana nãoseja capaz de sustentar um gozo perpétuo e intenso. Mas Southeyserve-se desta feição da experiência de Wesley para basear umargumento contra a sua genuinidade. “Aqui”, diz ele, “está umacontradição manifesta nos termos, uma certeza que não lhe deucerteza”.

Coleridge, como acontece com curiosa freqüência, discorda tantode Southey como de Wesley:

“Esta certeza”, diz ele, “não era muito mais do que a fortepulsação ou latejo da sensibilidade, acompanhando a veementevolição (querer, desejo, ato pelo qual a vontade se determina aalguma coisa) de aquiescência (consentimento, assentimento,anuência), desejo ardente de achar verdade uma certa idéia, e aresolução concorrente em recebê-la por verdade. Que a mudançaefetuou-se no meio de uma companhia de pessoas todaaltamente excitadas me fortalece e confirma na explicação”.

É claro, pois que Coleridge inventa os seus fatos. Não haviaexcitação alguma na pequena companhia onde somente uma voz seouvia, lendo nada mais excitante do que uma pequena exposiçãotraduzida do alemão. Mas ao passo que Coleridge desconfia de Wesley,também contradiz o Southey. Diz ele: “Certamente é fazer a palavra“certeza” absoluta demais quando se afirma a sua incompatibilidadecom qualquer sugestão intrusa da memória ou do pensamento”. Há umrasgo de penetração real nestas palavras.

Carlos Wesley não estava presente na saleta da rua Aldersgateno momento supremo da vida do seu irmão. Ele se achava em casadoente e estava em oração. O primeiro impulso de João Wesley e dosque o rodeavam era levarem as boas novas ao irmão menor.

Carlos Wesley escreve: “Cerca das dez horas (22h) o meu irmãofoi me trazido em triunfo por um grupo de amigos, e declarou: ”eucreio!”. Cantamos um hino com grande gozo e nos separamos comoração“.

Supõe-se que o hino que cantaram foi aquele que começa “:“Where shall my wordering soul begin:How shall I all to heaven aspire?A sIave redeemed from death and sin,A brand plucked from eternaI fire.How shall I egual triumphs praise.Or sing my great Deliverer's praise.”

Ou,

“Onde começará a minha alma admirada:Com aspirar ao céu inteiro?Um escravo remido da morte e do pecado,

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Uma tocha tirada do fogo.Como posso elevar triunfos dignos,ou cantar os louvores do meu Libertador? “

Carlos Wesley acabara de escrever este lindo hino no fervor desua própria conversão, e foi publicado alguns meses mais tarde. A suamúsica percorre toda a história do Metodismo; a experiência que elereflete, é repetida onde há almas humanas que recebem a Cristo comuma fé inteligente.

É interessante notar as relações históricas da conversão deWesley. As duas reformas – a de Alemanha e a da Inglaterra – tocamaqui. Realmente tocaram em época ainda mais remota. Quem desejatraçar o grande movimento espiritual que, sob Lutero transfigurou aAlemanha e criou o Protestantismo tem de ir além de Lutero até chegara um outro presbitério de Líncolnshire – a Lutherworty, onde JoãoWycliffe traduziu a Bíblia para o Inglês, e tornou-se o centro do grandemovimento espiritual que durante o século XIV alastrou-se pelaInglaterra. O reformador inglês Wycliffe influiu quase tão poderosamentena Alemanha como a sua terra nativa. O próprio João Huss não negou adívida que tinha para com Wycliffe, e o Concílio de Constancia quequeimou o corpo de João Huss (condenou-o a morrer queimado nafogueira como herege), ordenou que os ossos de Wycliffe fossemqueimados também. O Inglês e o boêmio, ao juízo do Concilio,representavam forças gêmeas, e deviam ser castigados com a mesmapena.

Os irmãos moravianos vinham, pelas gerações turbulentas que seseguiram, por direta descendência espiritual de Huss . Lutero era seuherdeiro espiritual. E assim depois de passarem mais de trezentosanos, os ensinos de Wycliffe voltaram à Inglaterra através de Bohler.Falaram falaram a Wesley dos lábios de Lutero na pequena reunião darua Aldersgate. Grandes dívidas são às vezes pagas abundantementedesta maneira.

CAPÍTULO XII

O que aconteceu no 24 de maio?

Pode-se perguntar agora: O que aconteceu na saleta à ruaAldersgate na noite de 24 de maio de 1838? Algo aconteceu: algo dememorável e perdurável. Mudou a vida de João Wesley, erguendo-acomo por um sopro, da dúvida para a certeza . Transformou afraqueza em poder. Sim, e ainda tem mais, mudou todo o curso dahistória!

Uma testemunha puramente secular, como Lecky declara queo movimento que teve por ponto de partida a reunião da saletanessa noite é historicamente de maior importância do que todas asvitórias esplendorosas ganhas por terra e mar sob o Pitt. Na faltadessa reunião não haveria Igreja Metodista em qualquer país, e oprotestantismo dos que falam a língua inglesa, se aindasobrevivesse – ou se não achasse outro Wesley – estaria falido deforças espirituais.

Mas a ciência exige que um efeito tamanho tenha uma causaadequada; e as causas predicadas, embora trazendo a autoridadede nomes famosos , são inadequadas a ponto de provocarem o riso.Coleridge, como já notamos, nada descobre na conversa de CarlosWesley senão o seu restabelecimento da pleurisia (inflamação dapleura, a dupla membrana que envolve os pulmões). É representadacomo sendo uma baixa na temperatura do seu sangue (visto queficou livre da feb re), e não a entrada de novas forças espirituais noseu caráter. Southey é semelhantemente disposto a resolver asexperiências espirituais de João Wesley em termos físicos. Eleatribui as emoções daquela grande hora na n oite de 24 de maio àcondição de seu pulso ou do seu estômago. Mas querer fazer doestomago de João Wesley, e não da sua alma, a cena (o local) defenômenos tão maravilhosos, a fonte de onde irradiam forças tãoextensivas, só pode ser considerado como um dos mais surpreendentesexemplos de humor inconsciente na história. As “explicações” deColeridge e Southey nada explicam; simplesmente refletem umarelutância obstinada em admitir a existência e a validez de forçasespirituais que constituem o último disfarce da incredulidade. Aexplicação daquela pequena reunião feita pelo próprio Wesley e

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daquela hora tão precisamente fixa, é que eIe foi convertido. E eleprovavelmente entendeu melhor o que aconteceu do que os seuscríticos que ainda nem eram nascidos.

Muitos porém, alegam que João Wesley fora convertido muitoantes daquela noite. “Se João Wesley não era cristão quandotrabalhava na sua rotina espiritual em Oxford e em Geórgia”, clama ocônego Overton, então, “Deus ajude a todos os que se professam e sechamam cristãos!”. Sem dúvida as multidões unir-se-ão – e deveras,com um semblante de alarme em dar ênfase ao parecer do CônegoOverton. Lembremo-nos da grande experiência que veio a Wesleydepois de ter lido o “Santo Viver”, do Bispo Taylor. Ele diz:

“Instantaneamente resolvi dedicar toda a minha vida aDeus – todos os meus pensamentos, palavras e ações – sendoconvencido de que não existe meio termo, mas que todas asparticularidades da minha vida – não algumas somente – têm deser um sacrifício a Deus, ou a mim mesmo; isto é ao Diabo”.

Não foi este o verdadeiro ponto da conversão de Wesley?

O ensino de Jeremias Taylor certamente serviu de choqueprecipitante a todos os desejos e convicções da natureza espiritual deWesley. Eles se cristalizavam com o toque, tornando-se inabalávelpropósito. Realmente naquele instante ele capitulou às grandes forças eaceitou os grandes deveres da religião. E o fez com uma inteireza edecisão que são raras na experiência humana. Ele diz:“Instantaneamente resolvi!“. Para Wesley nunca havia qualquerpossibilidade de meio termo, nem de convênio fácil. Embora a suainterpretação da verdade fosse tristemente errônea, a sua lealdade aela era de fibra heróica. A religião para ele não era um calmanteagradável, nem um prêmio que se paga para assegurar-se da vidaeterna, nem a orla ornamental da vestes superiores de sua vida. Eraantes o negócio principal da nossa existência. Havia também na religiãode Wesley, em todas as suas fases, a nota essencial da paixão. Eleseguiria a verdade, como a entendia, através de tudo, custasse quecustasse.

Mas era isto a conversão? Não fê-lo filho na família de Deus?Aqui estava, sem dúvida, aquela raiz de toda a religião, a vontadesubmissa. Porque, em seguir este ritmo entre a alma humana e Deus,não veio, no caso de Wesley, aquela música eterna de paz, destruindotoda a discórdia, que é o seu produto? Se tivesse morrido então nãoteria sido salvo?

Quanto a isto, o próprio Wesley duvidava. Ele deu parecerescontraditórios. Diz ele: “Eu mesmo, indo à América para converte r aoutros, nunca fora convertido a Deus”. Porém mais tarde com umasábia dúvida ele escreve acerca da afirmação anterior: “Não tenhocerteza disso”. Ele não tinha certeza de que não era realmenteconvertido antes de 24 de maio. Ainda mais tarde, e com umapenetração mais clara, ele se descreve esse tempo (antes de 24 demaio de 1738) como tendo “a fé de servo, mas não de filho”.

A verdade é que Wesley nesse tempo não entendia o cristianismono qual ele se criara e do qual era mestre. Havia se sentado aos pés demuitos instrutores e lido muitos livros. Havia sido sacerdotalista(clericalista. ritualista), asceta, místico e legalista, todos, por curso –sim, e por conjunto? Entretanto por todas essas fases elepersistentemente errara na interpretação da verdadeira ordem domundo espiritual. Ele cria que uma vida nova não era o fruto do perdão,mas a sua causa. Ensinava que as boas obras precediam o perdão econstituía o seu título; não o seguiam representando seu efeito. A cadafase de sua alma ele tinha errado o grande segredo do cristianismo, queestá tão perto, e ao nível da inteligência de uma criança; o segredo deuma salvação pessoal, o dom gratuito do infinito amor de Deus emCristo; a salvação que vem por Cristo mediante a fé; a salvaçãoatestada pelo Espírito de Deus e verificada na consciência.

O próprio Wesley nos dá a prova de que até essa data ele haviaerrado em sua concepção da religião. Temos a sua cronologia espiritualtraçada por seu próprio punho, numa série de juízos, todos datados ecatalogados, constituindo um mapa de sua experiência religiosa (Diário24 de maio de 1738). Ele dá tudo isso como espécie de prefácio para asua narração daquilo que teve lugar na saleta na rua Aldersgate, e eleexplica cada passo sucessivo daquilo que havia sido o alicerce de suareligião. Podemos citar estas apreciações, prefixando a cada fase, aépoca na vida de Wesley à qual pertencia:

“A Criança – Fui cuidadosamente ensinado que não mesalvaria senão por uma obediência universal; pelo cumprimentode todos os mandamentos de Deus; sendo diligentementeinstruído no significado deles. E essas instruções no tocante adeveres e pecados exteriores, eu recebia de boa mente emeditava nelas freqüentemente. Mas tudo que me ensinaramconcernente à obediência ou à santidade interior, eu não entendianem de nada me lembrava. De modo que eu permanecia tão

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ignorante do verdadeiro significado da lei como eu era doEvangelho de Cristo.”

“O menino de Escola – Os cinco ou seis anos seguintesforam passados na escola, e sendo removidas as restriçõesexteriores, tornei-me muito mais descuidado do que antes...Entretanto, eu ainda lia as Escrituras e fazia as minhas oraçõesde manhã e de noite. As coisas pelas quais eu esperava ser salvoeram: 1) não ser tão ruim como outra gente, 2) ainda conservar orespeito pela religião, 3) ler a Bíblia, assistir na Igreja e fazer asminhas orações.”

“O Estudante Universitário – Tendo me mudado para auniversidade onde fiquei durante cinco anos, continuei a fazer asminhas orações tanto em público como em particular... Não possodizer o que constituía a minha esperança pela salvação nessetempo, quando eu constantemente pecava contra a pouca luz queainda me restava, a não ser, que fosse nos acessos passageirosdaquilo que muitos teólogos me ensinavam chamar dearrependimento.”

“Ordens Sacras – Comecei a mudar toda a forma da minhaconversação, e a tentar sinceramente a entrar numa vida nova...Eu destaquei uma ou duas horas por dia para, um retiro religioso.Eu tomava a comunhão uma vez todas as semanas; vigiavacontra todo pecado, quer por palavra quer por ação... De modoque agora, fazendo tanto e levando uma vida tão boa, eu nãoduvidava que era bom cristão”.

“A Disciplina de Guilherme Law – Tendo encontradonesse tempo “A Perfeição Cristã”, de Thomaz A. Kempis, e “AChamada Séria” do Senhor Law, não obstante ter-meescandalizado com muitos trechos de ambas; contudo, por elaseu me convenci, mais do que nunca do grande comprimento,largura e profundidade da lei de Deus... Clamei a Deus que meajudasse; resolvi, como nunca antes, a não protelar o tempo delhe obedecer. E, por meus constantes empenhos para guardar alei interior e exteriormente até onde me dessem as forças, eu mepersuadia que seria aceito por Ele, e que eu estava então mesmona graça da salvação”.

“O Clube Santo – Em 1730 eu comecei a visitar as prisões,ajudando os pobres e doentes e fazendo qualquer outro bem que

eu pudesse com a minha presença ou com a minha pequenafortuna aos corpos e às almas de todos. Com este intuito eu meprivei de todas as coisas supérfluas e de muitas que sãochamadas as coisas necessárias à vida... Eu cuidadosamenteempregava, tanto em público como em particular, todos os meiosde graça a cada oportunidade. Não omitia ocasião de fazer obem. E por isso mesmo sofria muito. E tudo isto eu sabia ser nadaa não ser que fosse dirigido para a santidade interior. Portanto,aquilo que eu almejava em tudo isso, era a imagem de Deus, porcumprir-lhe a vontade e não a minha. Entretanto, depois decontinuar por alguns anos neste curso, julgando-me prestes amorrer, não pude achar que tudo isso me desse certeza algumada minha aceitação por Deus. E nisto fiquei bastantesurpreendido, não imaginando que durante todo esse tempo euhavia estado edificando sobre a areia, nem considerando que“ninguém pode pôr outro fundamento senão o que foi posto” porDeus “que é Jesus Cristo”.”

“O Místico – Logo depois um homem contemplativo meconvenceu ainda mais do que antes que as obras exteriores nãosão nada, estando a sós e em diversas palestras me ensinoucomo eu devia prosseguir para alcançar a santidade ou a uniãoda alma com Deus. Mas mesmo das suas instruções (se bem queeu as recebia então como se fossem as palavras de Deus) eu sóposso dizer agora: 1) Que ele falava com tão pouco cuidadocontra a confiança nas obras exteriores que me dissuadia de fazê-las de todo; 2) que me recomendava a oração mental e outrosexercícios semelhantes como sendo os meios mais eficazes empurificar a alma e uni-la com Deus. Mas estas coisas eram, narealidade, tanto obras minhas como o visitar aos doentes ou ovestir aos nus. E a união com Deus que eu assim procurava, eratão realmente a minha própria justiça como qualquer outra que euhavia seguido sob outro nome.”

“O Missionário – Deste modo refinado de confiar nasminhas próprias obras e justiça eu me arrastava pesarosamente,não achando nem conforto nem auxílio até a época da minhapartida da Inglaterra... Todo o tempo que estive em Savannah euestava agitando o ar. Sendo ignorante da justiça de Cristo, que,por uma viva fé nele, traz a salvação a “todo o que crê". Euprocurava estabelecer a minha própria justiça e deste modotrabalhava no fogo todos os meus dias... Antes eu havia servidoao pecado voluntariamente; agora eu o servia contra a vontade,

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mas o servia. Eu caia e me levantava para tornar a cair outra vez.Durante toda essa luta entre a natureza e a graça, que agorahavia durado mais de dez anos, eu tinha muitas e notáveisrespostas às minhas orações, especialmente quando me achavaem dificuldades. Eu tinha muitos e sensíveis confortos... Masainda eu estava “debaixo da lei” e não “sob a graça”.”

“A volta à Inglaterra – Com a minha volta à Inglaterra emJaneiro de 1738, estando em iminente perigo de morte e muitoinquieto por causa disso, fiquei fortemente convencido que acausa dessa inquietação era a falta de fé, e que o me apossar deuma fé verdadeira e viva era a única coisa necessária para mim.Mas eu ainda não fixara a minha fé no objeto adequado; euqueria que fosse fé em Deus somente, e não a fé em Cristo oumediante Cristo. Não sabia que eu me achava de todo destituídodesta fé, mas julgava apenas que não possuía uma suficiênciadela.”

Aquela longa análise de si mesmo é clara, explícita e final. Quantoa um conhecimento meramente intelectual, não é necessário dizer queWesley era familiar com o verdadeiro sentido do cristianismo. A teologiado seu mestre moraviano estava e ainda está nos Trinta e Nove Artigosde Religião. Mas para João Wesley como para a sua geração, eleshaviam se tornado num conjunto de sílabas pálidas, vazias de qualquersentimento vital. E a sua experiência prova que um credo podesobreviver como uma peça literária; pode ser cantado em hinos e tecidoem orações e solenemente ensinado como uma teologia e ainda serexausto (vazio) de vida real. As grandes frases podem ser destituídasde poder, quando não sejam mortas.

É um aviso para todo o tempo. A Igreja de Wesley retém hoje,e retém tenazmente as doutrinas que Wesley, até esta época, haviaerrado. Para nós são deveras acentuadas pela história que temformado. A sua autenticidade é estabelecida pela literatura e hinologiaque inspiraram. Elas têm passado tão completamente fora de toda acontrovérsia, tornando-se tão comuns, que perigam (correm o perigode) tornarem-se outra vez em fórmulas sem verificação.

Wesley declara que ele devia a sua conversão a Pedro Bohler.Qual foi, pois, exatamente esse ensino? Bohler inconscientemente fez aobra suprema de sua vida durante aqueles poucos dias em Londres eOxford quando conversava com João Wesley. O humilde moraviano,sábio unicamente na ciência espiritual tocou em Wesley e então

esvaeceu (desapareceu, perdeu importância)! Mas ajudou a mudar ahistória religiosa de Inglaterra, se bem que nunca ele sonhara tal coisa.

A natureza de seu ensino é bastante clara. Em suma, ensinou aWesley três coisas, coisas que estão no próprio alfabeto (no “ABC”) docristianismo, mas que, de algum modo, os ensinos do piedoso larWesley, da grande Universidade de Oxford, da antiga Igreja, e de livrosfamosos não lhe fizeram ver. A saber: 1) que a salvação é unicamenteem virtude da propiciação feita por Cristo e não por nossas própriasobras; 2) que a única condição para a salvação é a fé; 3) e que asalvação é atestada (testificada) à consciência espiritual pelo EspíritoSanto. Estas verdades hoje são mui comuns; para Wesley , eram nessaépoca de sua vida, eram descobertas.

Necessariamente o erro de Wesley era fatal. É bem claro que portodas as fases de sua experiência até esta época o “eu” de Wesley,sob muitas formas, havia tomado o lugar de Cristo. Wesley semprepunha a ênfase em si mesmo, em seus próprios motivos, atos,sacrifícios, orações, aspirações, e não no seu Salvador. E ái da almaque assim mudar o seu centro de fé, achando por centro, não os ofíciose a grande e radiante personalidade do Cristo vivo, mas os fragmentosimperfeitos de seus próprios atos e méritos! Nem mesmo aquilo que oEspírito Santo efetua em nós pode, em qualquer época, tomar o lugarcomo razão da nossa confiança diante de Deus, o lugar daquilo queCristo fez por nós.

Mas agora, como resultado dos ensinos de Pedro Bohler, umavisão verdadeira da obra e dos ofícios redentores de Jesus Cristo feriu avista de Wesley. Até então ele havia tomado, sobre si mesmo uma partedesses ofícios – um erro comum a todos os séculos, repetido emmiríades (quantidade indeterminada, porém muito grande) de vidas, esempre mortífero. Nos anos posteriores o seu texto bíblico predileto foi“Cristo Jesus se nos tornou da parte de Deus sabedoria, e justiça esantificação, e redenção” (1 Coríntios 1:30). Mas nos tristes anos queprecederam àquela memorável hora na rua Aldersgate, Wesley nuncaconcebera que Cristo Jesus havia se tornado, num sentido profundo emisterioso, justiça para a alma crente. Como Wesley mesmo diz:

“Eu, tinha fé, mais ainda não fixava a minha fé no objetoadequado; eu queria que fosse fé em Deus somente e não a féem Cristo ou a fé mediante Cristo”.

Nem a própria misericórdia de Deus – se essa misericórdia nosfosse apresentada sob forma diversa daquela que se nos apresenta no

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mistério de Cristo e de sua redenção – satisfaria a consciência humana.Wesley possuía, como bem poucos jamais a possuíram, a justaapreciação do pecado e de sua odiosidade: uma visão da lei divina –santa, augusta e imaculada – desonrada pelo pecado. E uma justaapreciação da discordância profunda e eterna que existe entre aconsciência do pecado e a justiça imaculada de Deus, obstando(criando obstáculos para) que haja paz alguma. Ser apenas perdoado,poupado pela misericórdia divina não bastava para Wesley, como nãobasta para qualquer alma. Tem de haver uma reconciliação permanentee fundamental com a justiça. E bastaria andar por todas as veredas daeternidade poupado pela misericórdia de Deus, mas ainda condenadopor sua justiça?

A alma humana necessita, na própria consciência, de um pontode contacto entre estas duas coisas opostas. E Wesley aprendeu deBohler o grande segredo do Cristianismo – que em Cristo se achaaquele sublime ponto de contacto. O dom de Deus à alma crente não ésimplesmente o perdão, mas a justificação. Cristo se torna para aquelaalma “o Senhor, justiça nossa”. De modo que a visão que transfigurou avida de Wesley era a dos ofícios completos e suficientes de Cristo naredenção – ofícios de graça que muito sobrepujam as nossasesperanças e são alem da nossa compreensão.

Mas Bohler também lhe ensinou o segredo da fé pessoal esalvadora. Wesley não teve fé antes do dia 24 de maio de 1738? Simteve, e ele mesmo nos diz que qualidade de fé era essa. “Era”, diz ele,“uma sombra especulativa, flutuante e vaporosa que vive na cabeça enão no coração”. As homilias de sua própria Igreja poderiam, é verdade,ter ensinado a Wesley, melhor definição da fé do que esta! “É uma certaconfiança e descanso que o homem tem em Deus”. Wesley possuíaesta definição de fé com uma perfeita clareza intelectual; mas foisimplesmente uma mera abstração sem existência real.

O dr. Dale nos faz notar que esta definição é em si um paradoxo.“Se a fé é a condição precedente à salvação, como pode ser a crençaque já estamos salvos?” Ele tenta resolver o paradoxo porperguntando: ”Não é verdade que Deus já nos deu – crentes eincrédulos semelhantemente – eterna redenção em Cristo?” A fé nãoproduz um fato novo, mas somente aceita e traz para o domínio daconsciência um fato que já existe independentemente dela.

Mas tal ensino facilmente entra no domínio do perigoso! Pode-seacrescentar que o paradoxo de fé está em outro ponto. Se for o dom de

Deus, como pode ser a condição de outros dons? Se a fé é o dom deDeus, a responsabilidade por sua não existência está com Deus! Comopode ser tido por culpado o homem em não possuir aquilo que só podelhe vir como dom de Deus?

A verdade, até onde for possível expressá-la nos termos de línguahumana, é que a fé representa o concurso de duas vontades, a divina ea humana. Ela é impossível sem a graça de Deus; de modo que a graçaé uma condição essencial e sempre presente para o seu exercício. Masa graça de Deus não produz a fé sem o consentimento da vontadehumana. Wesley aprendeu, mas aprendeu tarde e vagarosamente, quea fé não é meramente o esforço da alma desamparada em chegar aalgum ato ou sentimento de confiança. É a rendição da alma para agraça auxiliadora de Deus; e somente quando se realiza estacapitulação (rendição, entrega) é que a alma se acha elevada porum impulso divino para as grandes alturas de uma confiançajubilosa.

Wesley também aprendeu de Bohler, que o perdã o recebidode Cristo é atestado à alma perdoada pelo testemunho direto doEspírito Santo; de modo que traz consigo, como fruto imediato, apaz divina. É também certo que esta doutrina estava engastada(inserida, contemplada) no credo de Wesley, e ele a retinha comuma perfeita clareza intelectual. “Se permanecermos em Cristo eCristo em nós”, escrevera ele a sua mãe muitos anos antes disso,“forçoso é que sejamos cônscios disso. Se não pudermos ter certezade que estamos no estado de salvação, boa razão se ria todo omomento que passarmos, seja passado, não em regozijo, mas, emtemor e tremor. Então, sem dúvida , nesta vida somos de todos oshomens os mais miseráveis”.

Entretanto, inconscientemente, Wesley agira até aí sob a teoriaque a única confiança que o homem pode ter acerca da sua própriacondição espiritual , é aquela que ele recebe da contemplação desuas próprias boas obras, ou que ele extrai, pela força da lógica, detais obras. Praticamente tinha a crença da mãe, que qualquerconsciência divinamente dada da aceitação por parte Deus era umaexperiência rara e limitada a grandes santos. Ele conta com grandesimplicidade como Pedro Bohler, “ainda mais me surpreendeu porsuas descrições dos frutos da fé, do amor, da santidade e dafelicidade que afirmav a serem seus assistentes”.

Entretanto, se qualquer doutrina está sancionada largamente

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pelas Escrituras e pelo assentimento da razão, é esta doutrinachamada tecnicamente a “segurança”. Negá-la é dizer que a nossaconsciência espiritual não tem função alguma, ou que ela mente. Comoresultado do perdão tem se efetuado a mais estupenda mudança naalma; a sua relação com Deus e seu universo é transfigurada. Opecador perdoado não é mais um enjeitado, mas um filho. Será possívelpersuadirmo-nos que esta maravilhosa mudança não seja de algummodo comunicada à nossa consciência? Será da vontade de Deus queo filho recebido de novo na sua família continue a crer, o que agora émentira, que ele é ainda um enjeitado? Ainda que esteja sob os sorrisosde Deus ele deve continuar a pensar que ainda está sob o seudesagrado? Depois do desaparecimento da escura substância dopecado, será que Deus queira que a sombra permaneça; que a almaperdoada ainda carregue o peso do pecado que não está mais emconta contra ela, e sinta as manchas imaginárias de uma culpa que jáfoi apagada? Será crível (possível de se acreditar) que a única almadiante da qual Deus se coloca mascarado seja a alma perdoada? E queele traga tal máscara para esconder-lhe o seu perdão?

Certamente tal idéia constitui um paradoxo de uma espécieincrível! “Creio na remissão dos pecados”. É um credo triunfante, masquem se regozijaria num perdão tão furtivo (escondido) que nem aprópria alma que o recebe não saiba se o recebeu ou não?

A negação do testemunho do Espírito acarreta a maissurpreendente contradição. A alma antes do perdão crê, o que éverdade, que é condenada; mas depois do grande ato de perdão elacrê, o que é mentira, que é ainda condenada. E Deus se conserva nosilêncio! Não envia qualquer sinal ou penhor de conforto. É do Seuagrado – o Deus da Verdade! – que o seu filho perdoado aindapermaneça na atmosfera da falsidade! É esta uma coisa incrível emescala transcendente! Está em flagrante contradição com a Palavra deDeus: “O Espírito mesmo dá testemunho com o nosso espíri to deque somos filhos de Deus” (Romanos 8:16).

Este testemunho divino não pertence ao domínio de milagres.Não é independente, como mostra a experiência, de condiçõeshumanas. Varia segundo o estado do próprio coração hum ano;enfraquecendo -se com o enfraquecimento da fé ou tornando -se maisclaro segundo a inteireza da consagração.

É interessante notar as variações nos sentimentos do próprioWesley, ainda depois que lhe veio a grande experiência. Na mesma

noite de 24 maio, depois de ter deixado a saleta na rua Aldersgate,ele diz: “Fui muito acometido por tentações, mas eu clamei e eIasfugiram”. Voltaram repetidas vezes, e dois dias depois e le sedescreve “como estando pesaroso por causa das múltiplastentações”. Ainda mais tarde ele acha-se “com falta de gozo” , eatribui esta condição “à falta de oração oportuna”.

Na experiência de Wesley, em suma, como na experiência detodos os demais cristãos, há flutuações nos sentimentos espirituais.Mas a sua experiência tem agora uma nova feição. Ainda eranecessário que lutasse diariamente com as forças do mal; mas dizele: “Achei a diferença entre a minha condição agora e a de antes .Antes fui às vezes, se não freqüentemente, vencido; agora sousempre o vencedor!” Aqui (depois da experiência no 24 de maio de1738) estava a luta; mas aqui, também , estava a vitória.

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PARTE III

O Avivamento da Nação

CAPÍTULO XIII

A Inglaterra no Século Dezoito“A nossa luz parece ser a tarde do mundo”: com estas

palavras tristes e expressivas uma "Proposta para a ReformaNacional de Costumes”, publicada em 1694, descreve a condiçãomoral de Inglaterra aos começos do século XVIII. Raiava um novoséculo, mas parecia como se nos céus espirituais da Inglaterra aprópria luz do cristianismo estava sendo mudada, por alguma forçaestranha e malévola, em trevas. E era sobre uma paisagem moraldesta espécie, escurecida com as sombras como as de algumtemível e iminente eclipse espiritual , que João Wesley começou asua obra. É impossível entender a escala e o poder dessa obra,sem um esforço preliminar para idear (ter uma idéia, uma noção) ocampo em que foi feita.

Seria fácil multiplicarem-se as testemunhas, mostrando quãoexaurida de religião vital, quão maculada (manchada) em toda a sortede iniqüidade era a Inglaterra desse tempo. Os seus ideais eramgrosseiros; os seus divertimentos eram brutais; a sua vida pública eracorrupta; os seus vícios não inspiravam vergonha alguma. É verdadeque Walpole (Robert Walpole, 1º Conde de Orford, foi um dos chefesdo partido Whig ou liberal e principal ministro – First Lord of theTreasury – do rei George II até 1742) não inventou a corrupção política,mas eIe a sistematizou, e a erigiu em estandarte, e fê-ladesavergonhada! A crueldade se fermentava (excitava, estimulava) nosprazeres da multidão; e a podridão manchava os termos da conversageral. Os juizes praguejavam desde o tribunal; o capelão imprecava(rogava pragas, amaldiçoava) os marinheiros para fazê-los mais atentosa seus sermões; o rei o praguejava incessantemente, e em voz alta. Aduquesa de Marlborough, dizem, visitou um advogado sem deixar-lhe oseu nome. O secretário do advogado disse depois:

“Não pude atinar quem seria; mas ela praguejava tãoterrivelmente que devia ter sido senhora de qualidades”.

Leis ferozes ainda permaneciam nos códigos A própria justiça eracruel. Mesmo em 1735 homens foram esmagados por terem recusado ase confessarem réus de crime capital. A lei sob a qual mulheres eram

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susceptíveis a serem açoitadas publicamente ou queimadas à estacas(em fogueiras), foi ab-rogada (revogada, suprimida, anulada) somenteem 1794. O Temple Bar foi continuamente adornado com uma novamoldura de cabeças humanas. Era o século do tronco e de açoitespúblicos; de bebedices, e prisão por dívidas em cadeias bastante tristes(desumanas) para escurecerem com novas sombras o Inferno deDante. A bebedice era hábito familiar que passava sem reparo até entreos próprios ministros de estado. O adultério era um passa-tempo, cujavergonha recaia não na mulher infiel nem no seu amante, mas nomarido traído.

Mas não é justo julgar qualquer século apenas por seus vícios. Aimpiedade humana enche de trevas, em maior ou menor grau, qualquerséculo. Quem deseja ver até que ponto a Inglaterra baixara no séculoXVIII tem que julgá-la, não pelos elementos piores, mas pelos melhores– por sua religião, ou por aquilo que ela tomava por religião; e pelosmestres religiosos. Pois não pode haver prova mais cabal de umareligião do que a qualidade de mestres que ela produz.

Talvez não seja justo ir-se a um satírico em busca de um retrato;e as pinturas que Thackeray faz dos clérigos do século XVIII são, semdúvida, abertas à força de ácido. Mas não desmentem a vida; o seupoder está em serem elas verdadeiras. De George II, o pequeno,iracundo e belicoso (agitado, beligerante, dado à guerra) monarca coma moral e as maneiras de um Jonathan Wilde em púrpura, Thackerayescreve em frases pungentes. E George II, tinha clérigos (a seu serviço)que possuíam a mesma moral; e que até consentiam em tratar a suasrepugnantes licenciosidades como se fossem virtudes.

O rei George II havia morrido, e William Thackeray (escritorbritânico cuja obra foi marcada pela alternância entre textos puramentecômicos ou paródias com romances históricos sobre a sociedadebritânica e americana) diz que “foi o pároco quem veio chorar junto aseu túmulo, em companhia de Walmoden – uma das muitas concubinasdo falecido rei – e assentado aí, pretendia o céu para o pobre velho queali dormia. Aqui estava quem (o rei morto) não possuía nem adignidade, nem a instrução, nem a moralidade, nem espírito – quepoluíra a grande sociedade por maus exemplos; que na juventude, namaturidade e na velhice era grosseiro, baixo e sensual. Mas o sr.Portens, depois Monsenhor Bispo Portens, diz que a terra não era dignadele, e que o seu único lugar era o céu! Bravo, sr. Portens! O clérigoque derramou essas lágrimas em memória de George II vestiu o linhode George IlI”.

Thackaray pinta o retrato em tamanho natural (descreve arealidade) de outros clérigos dessa época – o tipo de uma classe – ocapelão e parasita de Selwyn, que descreveu o próprio caráter em suascartas. E Thackeray coloca o retrato temível na perspectiva da história,quando:

"Todos os prazeres e jogos indecentes em que se deleitavaforam exauridos, todas as faces pintadas em que olhara comsensualidade eram vermes e crânios (estavam mortas); todos osfinos cavalheiros cujas fivelas de sapatos ele beijara jaziam nasepultura. Este digno senhor toma a si o cuidado para nos dizerque não acredita na sua religião, ainda, graças a Deus, não é tãovelhaco como um advogado. Ele faz os recados, do sr. Selwyn, equaisquer recados, orgulhando-se diz ele, em ser o provedordaquele senhor. Ele assiste com o Duque de Queensberry –”oVelho Q“ – e troca anedotas com aquele aristocrata. Ele voltapara casa depois “de um dia trabalhoso, em fazer batizados”,como afirma, e escreve a seu protetor antes de assentar-se parajogar cartas e para cear perdizes. Ele se alegra no pensamentodo bife e vinho – é um ruidoso e turbulento parasita, lambendo ossapatos do seu amo entre explosões de riso, fingindo muito gosto,pois o sabor do lustre é igual ao melhor Claret na adega do “VelhoQ.”. Tem “Rabelais”, e “Horácio” as pontas dos dedos sujos. Éindizivelmente baixo – curiosamente alegre; bondoso e de bomhumor em particular – um bobo alegre de coração sensível, nãoum mexerico venenoso. Jessé diz que na sua capela em LongAcre “ele alcançou uma considerável popularidade pelo estiloagradável, varonil e eloqüente de seu discurso”.

“A incredulidade teria sido endêmica, e a corrupção nos ares?” –Pergunta Thackeray ao contemplar pastores tão estranhos. Os maushábitos de George II, diz ele, produziram os seus frutos nos primeirosanos de George III, e o resultado foi uma corte e sociedade tãocorruptas como a Inglaterra jamais conheceu. O Thackeray era satírico,mas estas pinturas (suas crônicas e demais escritos) nada devem ao felno seu tinteiro. A sátira, repetimos, está na sua veracidade.

Uma religião sempre tem a espécie de clero que merece; econsiderado como classe, o clero do século XVIII era grosseiro e semespiritualidade, porque representava uma fé vazia de toda a forçaespiritual. Se na Inglaterra dessa época procurarmos nas falências damoralidade exterior pelas causas espirituais, serão manifestas. Foi oséculo de um raso e ousado deismo (onde se acredita na existência de

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Deus, mas não há necessidade de um relacionamento pessoal com ele;Deus é impessoal, uma “força” do universo); de um deismo exultante emilitante auxiliado pelo humor e crítica, bem como defendido pelalógica. Havia cativado a literatura; dava as cores à imaginação popular;tingia o discurso vulgar; achava-se entronizado no lugar da fé cristã.

Mas o deísmo, qualquer que seja o seu tipo, é moralmenteimpotente; e o deismo do século XVIII nada era senão um traiçoeirobanco de areia no escuro do mar do ateísmo. Não nega a existência deDeus, mas o cancela como uma força na vida humana; quebrando aescada áurea da revelação entre os céus e a terra. Deixa a Bíbliadesacreditada, o dever passa a ser uma conjectura, o céu umaaberração da imaginação desenfreada, e Deus como sombra vagae distante. Por ele os homens eram deixados para subirem a um céuenevoado por alguma escada fraca de lógica humana. E naquelesdias tristes, enquanto havia uma cerração (nevoeiro) escura dodeísmo fora das Igrejas, no interior delas, ainda havia outra cerraçãoquase tão densa e má. O arianismo (uma heresia condenada em325 d.C. pelo Concílio de Éfeso na qual Teodoro Ário e seusseguidores afirmavam que Cristo era uma criatura de naturezaintermediária entre a divindade e a humanidade, não era Deus, massubordinad o a Deus como a primeira e a mais excelsa de suascriaturas ) aberto e confesso havia se apossado quase inteiramentedas Igrejas dissidentes (da Igreja Anglicana oficial do Estado Inglês ).E um inconsciente arianismo prático reinava, não obstante os seusartigos doutrinários de Religião, na própria Igreja Anglicana. Aconsciência do pecado estava mui fraca e juntamente com isso,havia se tornado mui fraca, também a doutrina d o Cristo Divino eRedentor.

A literatura religiosa desse século mostra quão curiosa mentepálida e ineficiente a noção de Deus havia se tornado entre aquelesque professavam ser seus ministros. Segundo Sir Leslie Stephen,Deus nesse tempo “era um ídolo composto da tradição e dametafísica congelada” (História do Pensamento Inglês, Volume IIpág. 338). Tinha havido um Deus; e e le havia anteriormente tocadona vida humana. Mas isto se dera em tempos bem remotos, e emterras bem distantes. Já Deus havia se “emigrado” de seu própriomundo. Ainda segundo Leslie Stephen, Deus tinha sido reduzido talcomo a grotesca concepção do Bispo Warburton, em “um juizsobrenatural do tribunal superior cujas sentenças foram executadasem um mundo desnatural ; um monarca constitucional que, havendoassinado o contrato constitucional tinha se retirado da gerência ativa

dos negócios do governo”. De Deus, como o Pai dos nossosespíritos, como atualmente vivendo em seu próprio universo eregendo nas vidas dos homens; de Deus, de quem se poderia terdito na linguagem de Tennyson: “Está mais perto do que a respiração,mais próximo do que as mãos ou os pés”, não se acha indício algum nateologia do século XVIII. A superstição, segundo os seus teólogos,consistia na crença que Deus seria capaz de revelar-se nos negócios domundo moderno. O fanatismo seria o imaginar que Deus se revelariapor qualquer toque, ou sopro, ou sentimento de influência à almapessoal.

O deismo, repetimos, engrossado com as nevoadas árticas egelado como o frio ártico, constituiu a teologia ativa desse século infeliz.Naquela teologia Cristo é reduzido a uma sombra. Serve ele de rótulopara um credo, mas preenche unicamente o papel de rótulo. O seuEvangelho não constitui qualquer “boa nova”, mas unicamente serve debons conselhos. Não constitui uma salvação, mas é apenas umafilosofia. Um chinês decente que levasse a sério os ensinos deConfúcio poderia ter pregado nove décimos dos sermões desseperíodo. Se o tal chinês escondesse o rabicho (os longos cabelospresos), mudasse de feições, disfarçando-se com uma batina esobrepeliz (a roupa sacerdotal), e se tivesse aprendido umas poucasfrases técnicas e falado dos Evangelhos como sendo verdadeirashistórias – se bem que um tanto remotas – poderia ter passado por umbom teólogo com apetite bem ortodoxo por um gordo benefício naInglaterra desse tempo. Leckey diz com cruel franqueza:

“Fora de uma crença na doutrina da Trindade e de umreconhecimento geral da veracidade das narrativas evangélicas,os clérigos de então, pouco ensinavam que não poderia ter sidoensinado pelos discípulos de Sócrates ou pelos seguidores deConfúcio”.

Mas o Cristianismo não é um código de moral; nem é um capítulode história antiga. (É fé em uma pessoa, na pessoa de Jesus!). É umagrupamento de verdades grandes e majestosas; verdades quesobrepujam o entendimento e que são envoltas em mistério; mas quetêm de formar as nossas vidas. Desde o princípio até o fim é umamensagem do amor redentor. O mistério de uma propiciação divina pelosangue de Cristo, do acesso a Deus mediante os ofícios sacerdotais deCristo, é a sua essência própria. O seu dom supremo é a vida de Deusrestaurada na alma humana pela graça poderosa do Espírito Santo.

Mas todas estas grandes doutrinas, que não são tanto

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pertencentes ao Cristianismo como seus constituintes, haviam de algummodo escapado, não meramente da fé humana, mas quase da memóriahumana nesta época do Cristianismo, do povo que fala a língua inglesa.A mensagem “de entrarmos no santo lugar pelo sangue de Jesus”(Hebreus 10:9) não significava coisa alguma para homens que se criamprivilegiados a entrarem em qualquer ocasião na presença de Deus comuns poucos cumprimentos delicados. Na religião desse tempo não havialugar para lágrimas de arrependimento. Faltava a nota de paixão e osilêncio da reverência havia desaparecido. E tudo isso, porque a visãode Deus ia se apagando; a consciência (da maldição) do pecado – dosignificado do pecado, e da sua cura preparada por Deus – haviaperecido.

Uma religião assim exaurida de suas propriedades sobrenaturaisnão possui poder algum sobre a consciência humana. Não podetransfigurar qualquer vida. Não inspira mártir algum, nem produz santos,nem envia missionários. Gera uma moralidade de têmpera ignóbil(desprezível, nojenta). Tem mais a aparência de uma atmosferaexaurida de oxigênio do que qualquer outra coisa.

E a religião do século XVIII recebia o apreço que merecia. Osseus sacramentos “os símbolos da graça propiciatória” se tornaram naspalavras de Cowper, “em Chave de ofício, ou chave falsa para posiçãooficial” (ou seja, era obrigatória a prática religiosa para se ter empregopúblico). Swift, em uma de suas cartas a Stella escreve: “Cedo fui visitaro Secretário Bolingbrook, mas ele, havia ido a suas devoções parareceber o sacramento. Vários outros velhacos (enganadores, logrões,burladores, fraudulentos) tinham feito o mesmo. Não foi pela piedade,mas pelo emprego, segundo ato do Parlamento”. Uma religião tal, nãopodia inspirar um ministério santo nem heróico; e o certo é que haviapouco de santo e ainda menos de heróico na têmpera do cleroanglicano nos dias dos primeiros reis George. O primeiro e grandedever da religião era se conservar tépida (morna, frouxa, fraca). Nãodevia haver nem entusiasmo, nem heroísmo. Deviam ser evitados todose quaisquer extremos. “Devemos cuidar que nunca nos sobressaiamosmesmo no prosseguimento da virtude”. Foi o conselho de um dospregadores dessa época. “Quer alvejemos o zelo, quer a moderação,cuidemos que não deixemos entrar o fogo num e nem a geada nooutro”. Estas palavras, diz Miss Wedgwood, “constituíam o moto (divisa,lema) da Igreja do século XVIII”. Os clérigos temiam muito mais serconsiderados demasiados crentes, do que demasiados incrédulos.

O Cristianismo foi diligentemente diluído por seus próprios

mestres (líderes), a ponto de se tornar insípido (sem sabor, sem efeito).O pecado contra o Espírito Santo é pelo Bispo Clarke diluído “em umarecusa de se ser convencido pela maior evidência da veracidade doCristianismo”. O motivo pelo qual a religião apela à consciência era nofundo um apelo à covardia. O Bispo Sherlock resolve a religião emjudicioso (sensato, prudente) jogo de azar. Diz ele substancialmente:“São dez para um que a religião é verdade. Se finalmente a religião forachada falsa, o cristão terá perdido unicamente a décima parte daimportância da aposta. Se a religião for achada verdade, o pecador teráfeito muito mal negócio”. A lógica é o único instrumento de uma religiãotépida (morna, frouxa, fraca). E achamos todos os sermões e ensinosdos clérigos do século XVIII em termos da lógica, e possuem a friezadesta. Os mestres religiosos desse tempo, em suma, só tinham meias-crenças, e de meias-crenças não se pode extrair qualquermoralidade heróica (vida com santidade).

Leslie Stephen diz a respeito de Blair, o mais famoso pregadordesse tempo, “que ele era simplesmente mascate (vendedorambulante) de coisas de segunda mão que davam a impressão deque o homem real havia sumido sem deixar nada senão umacabeleira e batina”. A idéia (concepção) que o Bispo Warburton teveda Igreja Cristã se vê numa de suas cartas. Diz ele: “A Igreja, àsemelhança da arca de Noé, é digna de salvação não pelos animaisimundos que quase a enchem e que fazem a maior parte do ruído edo clamor nela; mas pelo cantinho ocupado pelos racionais que sesentem acabrunhados mais com o mau cheiro dentro do que com atempestade de fora”. Middleton, outro dignitário eclesiástico dessetempo, escreveu uma carta ao Lorde Hervey, ridicularizando osartigos que ele mesmo estava prestes a subscrever a fim de tomarconta (alcançar) de um benefício.

“Ainda que haja muitas coisas na Igreja ”, diz ele, “de queeu nada gosto, entretanto, ao passo que eu suporte o mal,terei prazer em provar um pouco do bem e assim receberalguma compensação pelo feio assentimento e consent imentoque nenhum homem de bom senso pode aprovar. Lemos quecertos entre os discípulos de Jesus o seguiam, não por causade suas obras, mas por causa de seus pães. Para nós que nãotivemos a felicidade de ver as obras pode se permitir quetenhamos alguma inclinação pelos pães. Vossa Senhoriaconhece certo homem que, com idéia mui baixa do pãosagrado da Igreja, entretanto sente -se bem disposto a tomarboa porção do pão temporal. O meu apetite para um e outro é

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igualmente moderado. Não pretendo me regalar no banquetedos eleitos, mas, com o pecador do Evangelho, quero apanh aras migalhas que caem da mesa”.

Tal tipo de religião, servida por tais ministros, inevitavelmentehavia de produzir vidas de pouco valor. A piedade era simplesmentea peIe de hábitos exteriores, uma forma de prudência que seentendia ao mundo espiritual. Se os sermões empoeirados desseséculo forem postos no alambique e for destilada a sua essência vê-seque subsistiam em exortações tais como:

“Não vos embriagueis, pois isto arruína a saúde; nãomateis, pois haveis de ser enforcados Todo o homem deve serfeliz, e o modo de ser feliz é ser em tudo digno de respeito.”

A opinião que o Cristianismo era falso, mas ainda útil à sociedade,representava o credo prático das classes educadas. A nobre senhoraMaria Wortley Montagu fala de um plano para tirar o “não” dosmandamentos e incorporá-lo (o tal “não”) no Credo. É uma faísca desátira feminina, mas representa a teoria sobre a qual toda a multidãovivia.

O Bispo Butler tem pintado o espírito do seu tempo em coresescuras e imperecíveis. Ele diz: “A distinção deplorável do nosso séculoestá no confesso escárnio pela religião, e no crescente desprezo dela”.Mas o próprio Butler com todos os seus elevados talentos fornece, nasua própria pessoa uma prova cabal da cegueira e da morte espiritualdo seu tempo. Ele proibiu que os Wesley e Whitefield pregassem emsua diocese, embora, em todos os lados de sua catedral existisse aclasse degradada e abandonada na Inglaterra – os mineiros deKingswood, tão destituídos de todas as forças do Cristianismo como sefossem nativos no centro da África.

Que o melhor, o mais sábio, o mais poderoso e o maisplenamente convencido dos bispos desse tempo, tomasse tal atitudepara com Wesley e sua obra mostra qual era a têmpera geral do clerode então. A consciência de Butler não se inquietou com este lapso nomero paganismo de uma classe inteira, ao alcance do som dos sinos desua catedral, mas tornou-se piedosamente indignado com o espetáculode uma suposta irregularidade eclesiástica! O entusiasmo em homensbons, a seus olhos, era espetáculo mais alarmante do que o vício emhomens maus. Pode-se imaginar mais significante inversão de valoresespirituais?

Não há feição mais característica do século XVIII do que o seutemor (medo, pavor) pelo entusiasmo. Entusiasmo era coisa maldita!Um clérigo bom estava mais solícito em desfazer-se de qualquersuspeita de entusiasmo, do que em livrar-se do escândalo de heresia.Era século de compromissos; de compromissos na política, na filosofia,na teologia; e compromissos são fatais ao entusiasmo. Forçosamentematarão o entusiasmo, ou serão mortos por eIe.

Lembremo-nos que duas grandes ondas de paixão haviarecentemente inundado a Inglaterra – a onda do Puritanismo (ummovimento religioso protestante de origem presbiteriana com índoleconservadora e rigorista que rejeitava tanto a igreja católica quanto aigreja Anglicana, governada pelo rei inglês, e por isso mesmoperseguido e até martirizado pelos poderes ingleses) que tinhaexigências que culminara na Guerra Civil (entre os partidários do reiCarlos I da Inglaterra e o Parlamento inglês, liderado por OliverCromwell. Começada em 1642, acaba com a condenação à morte deCarlos I em 1649); e o retrocesso do Puritanismo que achara o seutriunfo na restauração. Grandes debates, à força da espada e domosquete, da prisão e do tronco, de atos do Parlamento e de sentençasde tribunais, haviam deixado o país exausto. O espírito de compromissodos Whigs (expressão de origem popular que se tornou termo correntepara designar o Partido Liberal no Reino Unido), que explica arevolução de 1688, havia capturado o domínio (se estabelecidotambém) religioso. Os homens ainda se sentiam doloridos com asferidas da luta. O espírito público achava-se no refluxo. Temia-se apaixão, odiava-se os fanáticos. Entusiasmo era palavra e atitudessuspeitas. A moderação era a coisa principal.

O entusiasmo tem ou deve ter o seu último reduto na religião, enos mestres religiosos. Mas no século XVIII o clero constituía na naçãoa classe em que os fogos (chamas) do entusiasmo achavam-se maisperto da extinção; e isto como resultado de seus próprios atos. Noslimites de uma única geração eles haviam ensinado, primeiro, o direitodivino dos reis, e zelosamente haviam perseguido a todos quedúvidassem dessa doutrina. Mas depois da chamada RevoluçãoGloriosa de 1688 (na qual o rei católico Jaime II da dinastia Stuart foiremovido do trono da Inglaterra, Escócia e País de Gales, e substituídopelo seu genro,o nobre protestante holandês Guilherme, Príncipe deOrange e a esposa Maria II, filha do rei James II), eIes haviam engolidoos seus princípios, jurando a fidelidade ao rei Guilherme, e tratando detirar dos presbitérios e casas pastorais o pequeno resto de seus irmãosque recusaram renunciar aos seus princípios com a mesma alegre

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facilidade! Princípio de espécie nobre e austera foi pelo momentodesacreditado, deste temível modo, pelo exemplo do próprio clero.

Havia alguns pontos luminosos na escura paisagem inglessadesse século XVIII. Entre os gordos e ricos bispos faltos deespiritualidade, vemos os vultos quase santos de Butler e Berkley. Oséculo que conta Guilherme Law entre os seus teólogos, e Watts eDoddridge. E entre os seus cantores, ainda possuía nas veias algo dofervor divino da religião. E deviam ter havido muitos presbitériosingleses, além do de Epworth, nos quais ardia a chama preciosa dapiedade familiar.

Entretanto, a vida espiritual de Inglaterra nesse momento estavaindubitavelmente se esgotando com rapidez. A sua vida públicacorrupta; o seu clero desacreditado; a sua Igreja gelada; a sua teologiaexaurida dos elementos cristãos. Tal era a Inglaterra do século XVIII!Necessitava-se de uma revolução espiritual para salvar um povo tal.

Os ventos de Pentecostes teriam de soprar novamente sobre opaís moribundo; os fogos de um novo Pentecostes teriam de cair paraascender outra vez a chama da fé nas almas dos homens. E Wesley foichamado, e educado por Deus, para fazer esta grande obra.

CAPÍTULO XIV

Começando a Obra

A conversão de João Wesley naquele 24 de maio de 1738confundiu alguns de seus amigos e alarmou a outros. Mrs. Hutton, mãede um de seus amigos, disse: “Se não fostes cristão desde que vosconheci, então fostes um grande hipócrita, pois nos fizestes crê-lo”.

Samuel Wesley recebeu as novas com uma espécie de iraconfusa que é quase divertida. Ele achou que o irmão sofria de umataque de “entusiasmo!” – uma moléstia muito mais mortífera do quequalquer outra conhecida à ciência medica. Ele escreve: “Cair noentusiasmo é ser perdido com testemunho. Eu almejava alegrementeum encontro com o Joãozinho, mas agora tudo se acabou e tenhomedo. De coração rogo a Deus que obste (impeça) o progresso destaloucura... Não entendo o que Joãozinho quer dizer em afirmar queanterior ao mês próximo passado ele nunca fora Cristão”, diz oeclesiástico. “O batismo não é nada?... Ou ele deve se desbatizar, ouser apóstata (quem abandona a fé ou o estado religioso ou sacerdotal),para que as suas palavras sejam a verdade”.

Mas João Wesley já mudara para outro clima espiritual. No seuclima espiritual o dia natalício do cristão tinha sido mudado do dia deseu batismo para o de sua conversão; “e nesta mudança”, diz missWedgwood, com profunda penetração, “cruzava a linha divisória entredois grandes sistemas”. Entretanto Wesley seria o último que havia deperturbar-se com o alarme e a perplexidade de seus amigos. Aos 13 dejunho – somente três semanas depois de sua conversão – ele seachava a caminho da Alemanha para visitar as povoações moravianas.Ele gostava de estudar a religião minuciosamente, e experimentá-lapelo supremo toque da vida. A experiência íntima da alma humanaconstituía para ele a lógica final. Na povoação moraviana de RerrnhuteIe acharia a comunidade inteira vivendo segundo as grandes verdadesque acabara de aprender, e ele se apressou em redargüir (aprender,replicar, avaliar) as experiências desses simples moravianos, e emestudar a ordem social que havia evoluído e a maneira de vida quelevavam.

EIe passou três meses nesta sindicância e, voltando à Inglaterra,

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aos 16 de setembro, em seu Diário nos dá uma descrição, meiadivertida, meia tocante, das conversas que teve com vários gruposdesse povo, e das perguntas solícitas mas simples com que redargüiaas suas crenças e emoções. Pela língua áspera e gutural do povoalemão, ou filtradas por uma tradução latina, as experiências de umapós outro desses moravianos devotos chegavam a Wesley e eleescutava pensativo e com olhos pacientes. Aqui estava a obra doEspírito Santo, traduzida em termos da vida humana e exposta diantedos olhos. Aqui estava a verificação do Evangelho de Cristo! Wesleyescreveu a seu irmão Samuel:

“Estou com uma Igreja cuja conversação está no céu, naqual se acha a mente que havia em Cristo, e que anda, como eleandou. Oh! quão santa e sublime coisa é o cristianismo, e quãolargamente separado daquilo – não sei o que é – que tem o nome,embora não purifica o coração, nem renova a vida”.

Wesley esteve com o Conde Zinzendorf, o chefe da comunidademoraviana, um homem que teve um gênio pela religião e era notável demuitas maneiras. Mas é curioso de se notar que Zinzendorf, cujaposição social estava muito mais próxima à de Wesley do que era a deBohler, fez muito menos impressão em Wesley do que fez Bohler, ohumilde missionário. Havia menos intervalo espiritual entre Bohler eWesley do que entre Zinzendorf e Wesley. E Wesley não estava nohumor que se importa com distinções sociais.

Wesley tomava parte nos cultos religiosos dos moravianos com omais vivo interesse, e se sentava com a simplicidade de uma criançaaos pés do presbítero plebeu, ou do pregador carpinteiro. Mas não foilhe possível desfazer-se do obstinado bom senso inglês, e ele estudavacom viva atenção todo o sistema de piedade ali produzido. Quandovoltou à Inglaterra ele escreveu uma carta ao Conde Zinzendorf,agradecendo-lhe, e louvando o que havia visto; mas, acrescentou, quenutria a esperança de poder mais tarde dar a seus amigos moravianos“o fruto do meu amor por Ihes falar francamente acerca de umas poucascoisas que não pude aprovar, talvez por não entendê-las”.

Mais tarde são minuciosamente descritas essas “poucas coisas”que o bom senso de Wesley não aprovara. Contudo Wesley voltou desua peregrinação aos moravianos com a fé fortalecida. As suas novasexperiências espirituais não eram realmente novas. Pertenciam a umacorrente de experiências humanas que se estendia por todos os santosaté os dias dos Apóstolos. Nestas experiências participaram centenasde homens e mulheres vivos, nos quais Wesley havia presenciado os

frutos da santidade antiga. Wesley trouxe de Herrnhut o conhecimentoexultante de que estava em boa companhia.

Desde aquele momento mudou-se o caráter da obra de Wesley.Ele estava vivendo em novo clima espiritual. A religião para ele nãoestava mais em prova; já era uma realidade! Pertencia ao domínio dascertezas. Ele possuía uma confiança exultante na sua proclamação, e aobra dele ganhava logo uma nova e estranha concentração de energia.

A história do seu trabalho na primeira semana é uma expressãonotável de zelo. Chegou a Londres na noite de sábado, 16 desetembro, pregou quatro vezes no domingo. Reuniu-se com apequena sociedade moraviana, que então contava trinta e doismembros, na segunda-feira. Na terça-feira visitou os condenadosna prisão de Newgate e pregou à noite na rua Aldersgate. Todosos dias da semana ocupados com a pregação e a visitaçãoparticular. E por fim Wesley achara a chave para o coraçãohumano. O seu discurso sempre possuíra um estranho poder emperturbar a consciência, mas agora se vê uma nova qualidade namensagem; qualidade esta que para as consciências, que antesperturbara, a paz.

O seu Diário abunda em breves e, às vezes, aparentementeinconscientes notas de êxito, tanto em pregar nas grandescongregações como em seu trato com indivíduos. “Um que, haviamuito, mofara de religião espiritual” mandou pedir que Wesley ovisitasse. “Ele possuía todos os sinais”, diz Wesley, “de um desesperocompleto, tanto nas feições como nas ações. Disse que havia sidoescravizado ao pecado por muitos anos, especialmente ao vício daembriaguez. Pedi que orássemos juntos. Em pouco tempo ele selevantou, as feições não eram tristes agora, e ele disse, “agora sei queDeus me ama e que me perdoou os pecados, e que o pecado não terámais domínio sobre mim”. E diz Wesley : “Foi lhe feito segundo a suafé”. Ele anota em outro lugar: “Em S. Thomaz, achava-se uma moçamaníaca, que gritava e se atormentava continuamente: eu senti um fortedesejo de falar-lhe. No instante que comecei a falar-lhe, ela se acalmou,as lágrimas lhe corriam pelas faces por todo o tempo que eu lhe dizia:Jesus, o Nazareno, pode e quer te livrar...”. ”Na casa do sr. Fox eudiscursei como de costume, o grande poder de Deus estava conosco, euma pessoa, que durante alguns anos havia sido desesperada, recebeuo testemunho de que era filha de Deus”. Notas semelhantes começamcintilar, quais estrelas no firmamento até aí nebuloso e tempestuoso, noDiário de Wesley.

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É claro que Wesley agora se achava de todo munido, no limiar doverdadeiro trabalho de sua vida – o despertamento religioso de seusconterrâneos. A sua educação espiritual, em certo sentido, é completa.Ele tem um verdadeiro evangelho para pregar; as boas novas dareligião como sendo um livramento, não como sendo uma nova eintolerável escravidão. Ele pode proclamar este evangelho com um forteacento de certeza. Tem sido verificado na experiência própria econfirmado pelo testemunho de multidões. Ele possui toda a inteirezade antes, a mais completa sinceridade, desprezo de concessões, e umespírito que não se poupava do qualquer sacrifício; mas através detodas essas belas qualidades agora corre algo de novo – nota de vitória,o fogo de alegria. Aqui certamente está um instrumento ajustado àsmãos de Deus para uma grande obra. Não é simplesmente que oespírito de Wesley oferece agora um meio transparente pelo qual averdade brilhe para outros espíritos. É antes um canal pelo qual,grandes forças – as energias vivificantes do Espírito Santo – corrempara outras vidas. Wesley, sob estas novas condições, é semelhante aofio elétrico que vibra de uma energia sutil e estranha. Ele tem poder!Mais do que aquele inerente na língua eloqüente ou na lógica dainteligência; poder que emana da eternidade, e que pertence à ordemespiritual, e lhe dá uma maravilhosa influência sobre as almas dos queouvem.

Mas se a pregação de Wesley produzia resultados mais diretos evisíveis do que antes, agora curiosamente provocava uma oposiçãoainda mais ativa do que nunca. A sua sinceridade perturbadora, apenetração de suas palavras como que aço afiado, haviam sidosempre demais severas para as congregações sono lentas daqueledia. Para eles a religião possuía somente os dons de um calmante;um processo tão inteiramente mecânico como as revoluções de umaroda de orações dos Tibetanos. Mas agora a energia perturbadoradas palavras de Wesley para ouvintes que só ped iam que não lhesincomodassem foi grandemente aumentada e as igrejas, umas apósoutras, se fecharam pronta e quase que automaticamente contra ele,depois de ter pregado nelas. Antes de findar -se o ano de 1738 eleera um pouco melhor do que um desterrado e clesiástico.

Neste período o seu Diário abunda em notas como estas:“Preguei duas vezes em S. João Clerkenwell, de modo

que receio que não suportem por mais tempo... Preguei à noitea congregações como nunca vi antes em S. Clemente, noStrand, como foi a primeira vez que preguei aqui, suponho que

será a última... Preguei em São Giles... O poder de Deus nosassistiu! Estou contente mesmo que eu não pregue mais aqui”.

Não paramos agora para analisarmos o segredo da oposiçãoque Wesley provocava, nesse tempo, entre o clero e os assistentesnas igrejas. Basta notar que nesse momento exato em que teve umamensagem a proclamar com confiança exultante – mensagem porcujas sílabas vibrava uma misteriosa força espiritual – quase todasas igrejas de Londres fecha vam-lhe as portas com grande estrondo!

E as igrejas recusando ouvi-lo, Wesley virou-se às prisões e aliachou os seus mais atentos ouvintes, e o seu maior êxito entre oscriminosos encarcerados. Criminosos que esperavam a forca deve -se lembrar, assentava m em multidões – testemunho da crueldade dalei nesses dias tristes – em todas as prisões inglesas. Carlos Wesleynarra ter pregado a uma triste companhia de sentenciados, em númerode cinqüenta e dois, e entre eles havia uma criança de dez anos.Rogers, o poeta, tão recente como 1780, relata ter visto uma carroçacheia de meninas vestidas de várias cores – o instinto feminino peloadorno sobrevivendo até o fim – em caminho a Tyburn para seremexecutadas, depois das desordens de Gordon. O trabalho de Wesleyentre estes entes que iam pressurosos (cheios de pressa ou de zelo)para a forca acha largo espaço no seu Diário. Aqui damos um exemplotípico entre muitos:

“Na quarta-feira eu e meu irmão fomos, a pedidodeles, para prestarmos os últimos ofícios a alguns malfeitoressentenciados... Foi o mais glorioso exemplo do triunfo da fé sobre opecado e a morte que eu jamais vi. Notando as lágrimas que corriamligeiramente pelas faces de um deles, eu perguntei-lhe: ”Como sentesno teu coração agora?” Ele respondeu calmamente: ”Sinto-me com umapaz que eu não poderia ter julgado possível, e sei que é a paz de Deusque sobrepuja todo o entendimento”.

No Diário de Wesley é interessante notar o rigor com que elecontinua a experimentar-se, e o cuidado, para não dizer a solicitude,com que ele coleciona e narra todas as variedades de experiênciaespiritual que ele vê. Escreve a muitas pessoas que têm vindo sob asua influência, pedindo que descrevam os efeitos que a religião produznelas; e Wesley, mesmo o mais franco dos homens, possuía algumencanto misterioso que despertava a franqueza em outros. Porconseguinte, o seu Diário regurgita de documentos que, mesmo lidoscento e cinqüenta anos depois, impressionam o leitor com uma curiosaconvicção da sua realidade e honestidade.

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Não foi qualquer curiosidade vulgar e ociosa que fez Wesleybuscar e registrar estas histórias. A verdade é que ninguém jamaiscontemplava a religião de uma maneira mais cient ífica, nem aexperimentava por métodos mais científicos, do que Wesle y fez. Paraele não era uma teologia para ser recitada, nem uma história para seaprender, nem uma filosofia para interpretar, nem era um código demoral exterior para ser obedecido; mas força divina penetrando avida humana e empreendendo a produção de ce rtos resultados nocaráter e na experiência humanos. E Wesley estava provando -se, asi mesmo, e a outros, pela pergunta: “Em realidade, produz osresultados que pretende produzir?“

“Primeiro, a experiência em seguida a inferência” (conclusão,dedução). Esta diz Huxley, ”é a ordem da ciên cia”. E a atitude deWesley para com o seu próprio trabalho, no sentido de Huxley, écompletamente científica. Ele parece um químico que estáensaiando uma nova combinação. Ele tem de vigiar, notar, verificaros resultados em termos da experiência humana que estacombinação produz.

Neste meio tempo achavam-se juntos em Londres os trêshomens que haviam de ser relacionados na memorável firma deserviços cristãos . Wesley chegou da Alemanha aos 16 de setembrode 1738; Whitefi eld voltou de uma breve visita da América emdezembro e Carlos Wesley estava servindo em Islington . Assim nosprincípios do ano 1739 os três camaradas, pela primeira vez desde adissolução do Clube Santo , de Oxford, achavam·se reunidos. Eramjovens sem posição eclesiástica, e ainda não tinham idéia alguma dagrande carreira que havia m de seguir em comum. Mas todos os trêshaviam aprendido de algum modo, o segredo esquecido docristianismo. Algo do seu poder primitivo havia caído sobre eles : oardor das línguas do fogo de Pentecostes estava em suas palavras;um sopro daquele vento impetuoso estava em suas vidas.

A abundante evidência desse misterioso poder acha-se emtodos os três. Carlos Wesley durante a ausência do seu irmão, queestava na Alemanha, fez um trabalho surpreendente entre oscondenados nas prisões e náufragos sociais dos presídios de Londres.Multidões se aglomeraram em redor de Whitefield onde quer que elesubia ao púlpito. Nas pequenas sociedades que já existiam, a presençados três era uma espécie de chama corpórea, e tiveram reuniõesnotáveis. Às vezes noites inteiras eram gastas em oração.

Na primeira noite de 1739, o próprio Wesley diz:“Os Srs. Hall, Kinchin, Ingham, Whithefield, Hutchins, e o

meu irmão Carlos, estiveram presentes em nossa festa decaridade, com cerca de sessenta irmãos. Cerca das três horas damadrugada, enquanto estávamos continuando em oração, opoder de Deus veio ao nosso meio maravilhosamente fazendoque muitos clamassem de excessivo regozijo, e muitos caíram aochão. Logo que se recobraram um pouco do pasmo e daadmiração com a Presença Majestosa, rompemos em vozuníssona: Louvamos-te ó Deus; te reconhecemos por Senhor!”

Tais reuniões, por certo, haviam de despertar o adormecidosentimento a respeito da ordem, no clero comum. A pregação dos trêscamaradas poderia incidentalmente dar resultados de uma espécielouvável. Tinham de confessar que haviam feito homens honestos deladrões, homens pacatos de bêbados, e homens bons dos que haviammaltratado as mulheres. EIes iluminavam os rostos humanos com oresplendor de um gozo misterioso, e habilitavam os condenados a iremà forca com salmos nos lábios; mas o seu trabalho possuía um víciofatal, o pior conhecido àquele século – era irregular! Estava tingido como temível e odiado entusiasmo, a pior coisa que podia haver! O próprioSouthey, contando a história cem anos depois, não pode perdoar osWesley em tudo por terem salvado homens e mulheres de uma maneiratão irregular; e Coleridge rompe o seu texto com uma divertidaanotação:

“Ó querido e honrado Southey! Este livro é o favorito daminha biblioteca entre muitos favoritos; este é o livro que euposso ler vinte vezes com prazer, quando não posso ler outracoisa qualquer... Entretanto, este livro prezado não é bom paraquem não tiver o espírito bem firmado. Os fatos e incidentes queachamos narrados nas Escrituras, e notados nas mesmaspalavras – e infelizmente os obreiros! Na página seguinte – sãotaxados de entusiastas e fanáticos”.

Os incidentes dos primeiros cinco capítulos dos Atos dosApóstolos, reaparecendo na vida atual depois de dezoito séculos –foram deveras, para muita gente boa, um espetáculo alarmante einquietador. E quantos não existem hoje que podem tolerar osfenômenos espirituais somente enquanto estejam fechadosseguramente dentro da capa da Bíblia, e à distâcia de muitos séculos.

Os dois Wesley não tinham qualquer sonho inquietador sobre a

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separação da Igreja, e não desejavam outra coisa, senão a aprovaçãode seus superiores espirituais; visitaram o Bispo de Londres para sejustificarem e explicarem os seus métodos. Gibson era diplomata,versado em antiguidades, homem de negócios; mas não se podeimaginar coisa mais remota do seu temperamento do que o zeloimpetuoso do reformador, ou do ardor flamejante do evangelista. Elecontemplou com visão perplexa os irmãos. Os sinais do sol americanoainda estavam nas suas faces; mas eram doutos cavalheiros,universitários. Era pena que abrasava neles tão ardente fogo de zelo.Não havia neles qualquer vestígio de dissidência. Não contestavam osArtigos nem o ritual da Igreja. O que mais o incomodava foi o fato delesos interpretarem literalmente em demasia.

Por exemplo, falavam com o Bispo sobre conveniência, sim, anecessidade, de re-batizar os dissidentes. Carlos Wesley,argumentando “que o certo e o incerto não significam a mesma coisa”,e onde estava em jogo a sorte de almas imortais não deviam assumirrisco algum. Mas o Bispo Gibson não desejava outra coisa senão deixarem paz os dissidentes, não obstante ser esta política inconsistente coma teoria da Igreja alta. Carlos Wesley visitou o Bispo Gibson mais tardepara notificá-lo que pretendia fazer um tal batismo.

- “É irregular, disse o Bispo, nunca recebo tais informes anão ser do ministro”.

- “Meu Senhor, a rubrica nem exige que o ministro vosnoticie, mas qualquer pessoa discreta. Tenho a permissão doministro”.

- “Quem vos autorizou a batizar?”- “A vossa senhoria”, disse CarIos, pois havia sido ordenado

presbítero por ele, “e hei de exercê-la em qualquer parte domundo conhecido “.

- “Tendes licença de cura?” Perguntou o Bispo. “Não sabeisque ninguém pode exercer as funções paroquiais sem a minhapermissão? É somente sub silentio“.

- “Mas sabeis que muitos tomam este silêncio porautorização, e vós mesmo o permitis”.

- “É uma coisa ser conivente, e outra é o aprovar. Tenhopoder de inibir-vos”.

- “E a vossa senhoria exerce este poder?” - perguntou-lheCarlos, manifestando-se a vista de uma ameaça o Wesley nele.Quereis me inibir agora”?

- “Porque quereis levar o negocio ao extremo?” - perguntouo Bispo amolado.

É claro que eram moços incomodativos estes, que recusavamdiluir a religião em civilidades, ou abotoá-la nas cerimônias de umasociedade polida.

Dos três camaradas, os Wesley – talvez por serem mais velhos emais conhecidos – eram tidos por mais suspeitos. Todos os chefesoficiais lhes fizeram cara feia. As oportunidades para pregaremtornaram-se cada vez mais limitadas. A Igreja era deveras uma duramadrasta para os dois irmãos. João Wesley fora cura na paróquia deseu pai por três anos, o único cargo eclesiástico que exercera naInglaterra. Carlos, sem título , serviu de cura em Islington por uns trêsmeses, e foi tocado dali quase com violência. Eis a únicarecompensa que a Igreja An glicana tinha para dar a seus dois filhosque representavam a maior força que moveu a InglaterraProtestante.

É costume se dizer que as surpreendentes manifestaçõesfísicas, que acompanhavam ao princípio, a pregação dos Wesley,explicam e justificam a recusa geral de todos os púlpitos a eles; masas simples datas no calendário desmentem esta teoria.

Na primavera de 1739 havia se dado somente um caso dasmanifestações físicas, depois tão notavelmente presentes sob apregação de Wesley, não obstante a Igre ja já havia fechado a suaporta para sempre contra o seu filho entusiasta. Southey achajustificação para exclusão dos Wesley, na assistência dos Wesleynas festas de caridade e nos serviços de vigílias celebrados pelaspequenas sociedades dos Moravianos. Já descrevemos uma destasreuniões que durou até três horas da madrugada, e que foiassinalada por uma onda de notável influência espiritual. “Talreunião”, diz Southey, “desafiava toda a prudência”. Era exemplo deuma devoção quase excessiva, que dava jus ta ofensa à melhorparte do clero. Uma “devoção excessiva”, diz ele, “mesmo que acheas faculdades mentais sãs, não é provável que as deixe assim”.Coleridge, com uma faísca de penetração mais perspicaz, atribui aoposição em relação ao novo movimento aqui lo que ele chama, “oveneno sutil da cadeira preguiçosa”.

Para os que possuem tal gênio espiritual “a prudência” pareceser a virtude principal, enquanto o zelo constitui a última e a piorofensa. Os Wesley inquietaram a consciência do clero do seu tempocom a sua sinceridade perturbadora. Eram “entusiastas”. Era o modo

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delicado para dizer que eram perigosos lunáticos. Assim em defesaprópria havia uma conspiração inconsciente para abafá-los. Mas aindasubsiste, depois de todas as explicações, o escândalo da Igreja atéhoje, a sobrepujante prova de sua cegueira, de ter fechado as portascontra os Wesley.

Mas Whitefield era o mais moço do grupo; até aí havia provocadomenos censura do que os seus camaradas. Os seus incomparáveispoderes de pregação lhe deram notável popularidade; e assim, naordem da providencia divina, foi lhe dado a quebrar os estreitos limitesda ordem mecânica da Igreja e preparar o caminho as novas forças quecomeçavam agitar a vida religiosa da Inglaterra.

Existe algo de divertido no despertamento vagaroso da suspeitano clero Londrino para com o Whitefield. Aqui havia um estranhofenômeno clerical, um pregador que empregava palavras de fogo nopúlpito; que chorava sobre seus ouvintes em paixão de piedade, e dealgum modo fazendo que o povo também vertesse lágrimas. É claro quenão havia quaisquer conveniências pedantes que pudessem resistir umclérigo tão jovem e ao mesmo tempo tão ardente. Ninguém sabiaexatamente o que ele havia de fazer em seguida. Ele estava pregandona Igreja de Bermondsey perante uma grande congregação, e umamultidão ainda maior enchia o terreno fora, sem poder entrar no templo.Whitefield perguntou porque não poderia sair e, servindo-se de umjazigo por púlpito, pregar a grande multidão que avidamente esperava?A visão daquela grande multidão que silenciosamente esperava aoredor da Igreja em Bermondsey, ele disse depois, “primeiramente mefez pensar em pregar ao ar livre. Falei disso a certos amigos, os quais,consideravam a Idéia uma loucura. Entretanto ajoelhamos em oraçãopedindo que nada fosse feito impensadamente”.

Na Igreja de Santa Margarida, Westmister, em um domingo demanhã, Whitefield foi quase à força empurrado ao púlpito e pregou emface do protesto dos oficiais, dando escândalo a todas as sensibilidadeseclesiásticas. Uns poucos dias mais tarde ele foi a Bristol, mas agora oclero em geral havia se alarmado. O secretário da diocese mandouchamá-lo, e lhe perguntou quem lhe dera autoridade para pregar nadiocese de Bristol sem licença, e leu para ele os cânones que proibiama qualquer ministro de pregar em casa particular. Whitefield alegou queisto não se referia a ministros da Igreja Anglicana. Quando foi lhecertificado o seu engano, ele disse: “Existe também um cânon, meuSenhor, que proíbe a todos os clérigos freqüentarem casas de bebidase jogarem cartas; porque não se executa este?” Então ele acrescentou

aquilo que ao medroso secretário parecia a pior das blasfêmias.

Havia coisas – por exemplo, as almas humanas – que este jovemcura tão altamente irregular julgava de mais valor do que os maisvenerandos cânones. Custasse que custasse ele tinha de pregar aosperdidos onde quer que os achasse. “Não obstante os cânones”, disseele, “só poderia pregar as coisas que sabia”.

A resposta foi escrita em forma, e o secretário então dissetristemente:

“Estou resolvido, Senhor, se pregardes ou discorrerdes emqualquer ponto desta diocese, primeiramente vos suspender e emseguida vos excomungar”.

Neste ponto eles se separaram, e Whitefield conta-nos que“depois de feita oração pelo secretário”, ele dirigiu um serviço na Rua S.Nicolau com manifesto poder. Ele acrescenta: “É notável que nuncativemos tão constantemente a presença de Deus entre nós como temosdesde que fui ameaçado de excomunhão “.

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CAPÍTULO XV

Pregação ao Ar Livre

Qualquer esforço para amordaçar a Whitefield era predestinado afracassar-se. É verdade que Whitefield tinha apenas vinte e cinco anosde idade; era um cura que havia pouco se ordenara, sem freguesia esem influência. O chanceler (bispo) da diocese de Bristol, com a testafranzida e com a ameaça de excomunhão nos lábios era figura dequalidade para meter medo. Qualquer cura comum teria sido extinguidopor completo com a ameaça! Mas Whitefield era cura de qualidadesinteiramente excepcionais. Um espírito tão ousado não se amedrontavacom as mangas de linho! Neste momento também Whitefield achou-sena presença daquilo que parecia lhe ser uma chamada urgente einadiável para pregar. Aí estavam os mineiros de Kingswood, umacomunidade de ignorantes, viciados, esquecidos, que, além de todos osoutros, necessitavam do cuidado e do ensino da Igreja Cristã; entretantoeram deixados completamente fora, não simplesmente de seusserviços, mas de seu pensamento.

Quando Whitefield partia para América um amigo sábio e de vivapenetração lhe disse, “se quereis converter índios, eis aqui os mineirosde Kingswood”. Como poderia um ministro de Cristo – um que possuíaos dons, e o temperamento de Whitefield, cônscio da mensagem divinae do poder também divino para publicar essa mensagem – prostrar-sediante tal multidão e ainda consentir a permanecer em silêncio? Asfeições mudas e pálidas constituíram uma chamada urgente demaispara ser desatendida.

As Igrejas não puderam achar lugar para Whithefield e na tardede sábado, 17 de fevereiro de 1739, ele se postou numa pequenaelevação de terreno fora de Bristol, chamada Rosa Verde, e pregou oseu primeiro sermão ao ar livre. Houve uma congregação de somenteduzentas pessoas, que boquiabertas escutavam-no. Era um espetáculoestranho: um clérigo de sobrepeliz (roupa sacerdotal), com voz quepossuía algo de trovão, pregando sermão à beira do caminho. “Eujulguei”, diz o Whitefield com seu modo incomparável, “que talvez euestivesse fazendo o serviço do meu Criador que tinha por púlpito umamontanha e por teto os céus”.

Havia justos cinco meses que João Wesley voltara da Alemanha.Eram meses de esperas, incertezas e desânimo, de oportunidades parao trabalho gradualmente limitadas. As portas de todas as Igrejasestavam sendo fechadas, uma após outra, contra João Wesley e seuscamaradas. Parecia que a Inglaterra não tinha lugar algum para eles, eque não podia lhes oferecer carreira. Aqueles cinco meses constituemuma pausa dramática no limiar do grande trabalho. Então, Whitefield, oprimeiro dos camaradas imortais, rompeu as linhas do costumeconvencional e da lei eclesiástica, pregando ao ar livre. Por aquele atoele passou para um mundo maior e mais livre, e daquele momento emdiante as novas forças espirituais que começavam a agitar a Inglaterraacharam – ou antes fizeram para si mesmas – canal livre.

Os cultos ao ar livre que foram encetados (iniciados) porWhitefield eram acompanhados, quase instantaneamente por resultadossurpreendentes. O seu primeiro auditório consistia de duzentaspessoas, o segundo era de três mil, o terceiro de cinco mil, e asmultidões se aumentavam ligeiramente até vinte mil. Whitefieldcontemplava o vasto mosaico de rostos humanos enegrecidos pelocarvão das minas, contando em palavras inesquecíveis como, enquantopregava, ele via as listas brancas que se abriam à força delágrimas naquelas faces sujas. Escreveu ele depois: ”Os céus emcima, os campos adjacentes, a visão dos milhares e milhares, uns emcarruagens, uns a cavalo, e outros trepados em árvores, e às vezes,emocionados e todos juntos banhados de lágrimas, e a tudo istofreqüentemente se acrescentava o cair da noite, formavam um conjuntoque era quase demais para mim e me vencia de tudo. Bem-aventuradosos olhos que vêem o que nós vemos”.

As autoridades eclesiásticas, por certo, acharam novosargumentos para rebaterem estes serviços. Constituíam uma nova eainda mais, alarmante expressão do “entusiasmo”. Estava-se fazendo oque não se devia, no lugar em que não se devia, e da maneira em quenão se devia. É um exemplo divertido do formalismo daquele tempoachar-se um homem tão sensato como Samuel Wesley, tomado dehorror pela circunstância de Whitefield “nunca ler a ladainha a seusesfarrapados congregados nos terrenos devolutos!”

Mas se os serviços repugnavam a consciência clerical, elesemocionavam o coração do povo. O afeto que Whitefield ganhou deseus ouvintes era filial e tocante. Eles esperavam avidamente as suaspalavras. Deram-lhe ofertas de seus pequenos ganhos para aqueleorfanato em solo americano que já Whitefield contemplava estabelecer.

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Derramaram lágrimas quando ele os deixou. Os serviços ao ar livrepareciam como poços artesianos. As águas esquecidas nas profundezasescuras subiam para a luz.

Mas Whitefield teve de partir para a Geórgia, na América, e elechamou a João Wesley de Londres para Bristol pra continuar o trabalhoque começara. Na pequena sociedade em Fetter Lane, a chamadafoi ouvida com receio. Um pressentimento da importância daresposta inquietou o espírito da pequena companhia. A Bíblia foiconsultada por sorte, e repetidas vezes, em procura de um textoque deveria servir de resposta decisiva. Mas somente apareciam aspassagens mais alarmantes. Uma rezava assim: “Subirás a estemonte e morrerás, no monte ao qual tu hás de subir, e te recolherásao teu povo”. Quando um texto sorteado se mostrou deste modoperturbador, outra vez se lançou a sorte, ainda repetidas vezes,mas sempre com o mesmo resultado. Existia uma estranha misturade superstição e de simplicidade na “bibliomancia” dos Metodistasprimitivos. Se o texto que lhes saia não lhes agradasse orejeitavam, e de novo consultavam por sorte as páginas sagradasna esperança de resultados mais auspiciosos.

Por fim Wesley decidiu ir, se bem que a chamada a Bristolparecesse aos seus ouvidos como uma chamada para o túmulo.Entretanto o seu propósito era inabalável, e aquele passo decidiutodo o caráter de todo o seu trabalho posterior.

João Wesley foi a Bristol e postou-se ao lado de Whitefieldenquanto este pregava ao ar livre. Wesley olhou com seriedade eadmiração sobre a vasta e estranha congregação; e no dia seguinte,servindo-nos das próprias palavras, disse: “eu me fiz ainda mais vil e,postado numa pequena elevação coberta de relva, preguei a umagrande multidão, sobre as palavras: “O Espírito do Senhor estásobre mim, que me ungiu para anunciar boas novas aos pobres”. ”

Whitefield pregou o seu primeiro sermão ao ar livre em 17 defevereiro de 1839 seis semanas depois, aos 2 de abril, João Wesleydirigiu o seu primeiro serviço ao ar livre; e ainda mais tarde, 24 dejunho, Carlos Wesley seguiu o exemplo de seus camaradas. Nocaso dele, também fora tocado das Igrejas para os campos. Asautoridades eclesiásticas haviam se tornado ativamente hostis. CarlosWesley estava servindo de cura, mas sem licença, e repetidas vezespregava na Igreja de Bexley; o pároco irregular e o cura ainda maisirregular foram chamados à presença do Arcebispo de Canterbury, aos

19 de junho daquele 1939. Carlos Wesley diz no seu Diário:- “A Sua Reverendíssima proibiu ao pároco

expressamente de deixar qualquer de nós pregar na suaigreja, e nos acusou de termos desrespeitado o cânon. Eumencionei que o Bispo de Londres havia autorizado a minhaexclusão a força. Ele não quis ouvir-me; disse que não entrariaem discussões. Perguntou-me que chamada eu possuía. Eurespondi: É me imposta a obrigação de anunciar o Evangelho”.

- “Isto é para São Paulo; mas não quero discutir, e nãoprossigo com a vossa excomunhão por enquanto”.

- “A vossa Reverendíssima tem me ensinado no vossolivro sobre o governo da Igreja, que se alguém forexcomungado injustamente que nem por isso é cortado decomunhão com Cristo”.

- “Disto” diz eIe, “sou eu o juiz”.- “Perguntei-lhe se o êxito do sr. Whitefield não seria um

sinal espiritual, e uma prova adequada de sua chamada; e lherecomendei o conselho de Gamaliel. EIe nos despediu; aPiers, com delicados protestos de consideração; a mim com ossinais de desagrado”.

Era quinta-feira. Whitefield instou com Carlos Wesley para pregarao ar livre no domingo seguinte. Carlos Wesley escreve em meditaçãoperplexa : “Se eu fizer isto, farei uma brecha, e tornar-me-eidesesperado”. Afinal decidiu-se, e ele nos conta no seu Diário a históriadaquele domingo notável:

“Domingo, 24 de Junho, dia de S. João Baptista – Aprimeira passagem das Escrituras em que lancei o meu olharfoi, “E disse-lhe seu servo: Ai meu senhor! Como havemosde fazer?” Fiz oração com West e saí em nome de Jesu sCristo. Achei cerca de dez mil pecadores impotentes queesperavam a Palavra em Moorfields. Convidei -os naspalavras do meu Mestre, bem como em seu nome. “Vinde, amim todos os que andais em trabalhos e vos achaiscarregados, e eu vos aliviarei”. “0 Senhor estava comigo, seumínimo mensageiro, segundo a sua promessa. Na Igreja deS. Paulo, os Salmos, as lições, etc., do dia me infundiramnova vida, Assim também o sacramento. O meu pesar haviadesaparecido com todas as minhas dúvidas e escrúpulos.Deus me iluminava o caminho e eu sabia que esta er a a suavontade a meu respeito.”

O Arcebispo Potter ameaçou a Carlos Wesley com a excomunhão

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por ter pregado em Moorfields e em Kennington ao ar livre; e os leigos,também partilharam nas prevenções do clero. Um proprietáriocarrancudo processou a Carlos Wesley por ter atravessado os seusterrenos para ir falar à multidão. O processo foi liquidado pelopagamento de dez libras, e o recibo ainda subsiste como documentohistórico. Reza assim:

“Goter versus Wesley. Prejuízos 10 libras; despesas 9libras, 16 schillings, 8 pence - 29 de Julho 1739, recebi do Sr.WesIey, pelas mãos do Sr. José Varding, dezenove libras,dezesseis schillings e seis pence, pelos prejuízos e despesasem seu pleito. WiIliam Gason, advogado do outorgante.”

Ao pé deste recibo Carlos Wesley escreveu: “Paguei aquilo quenão tirei”. E às costas do mesmo escreveu acerca da sentença na qualfora condenado: “Para ser julgado de novo naquele Dia”.

É interessante notar as maneiras – como se fossem homens quetivessem saído da terra firme para o mero espaço ou como se fossemaventureiros que principiassem uma revolução – com que Whitefield eos Wesley começavam, sucessivamente a pregar ao ar livre.

Que havia de tão alarmante na simples pregação de um sermãosob os céus abertos, com a relva por tapete e os horizontes porparedes?

Segundo ponderava o próprio João Wesley, há excelentesprecedentes para a pregação ao ar livre no Novo Testamento.Entretanto ele nos diz que ao ver Whitefield pregar aos mineiros deKingswood quão profundamente lhe abalara:

“Toda a minha vida, até mui recentemente eu tenho sido tãosolícito por tudo que se relaciona com o decoro e a ordem que euteria julgado que a salvação de almas seria quase pecado se nãofosse efetuada dentro de uma igreja”.

O próprio Whitefield escreve, aos 3 de abril:“Ontem comecei a desempenhar o papel de louco em

Gloucester por pregar de uma mesa na rua Thornbury”.

Entretanto João e CarIos Wesley haviam pregado freqüentementeà beira do rio, ou sob a sombra de grandes árvores na Geórgia, naAmérica, e isto sem qualquer idéia de ter faltado o decoro. Que havia detão alarmante num culto ao ar livre na Inglaterra?

Estavam sendo inconscientemente influenciados pelo meio: naInglaterra oprimida pelas convenções, sobre a qual o mero costumedecoroso pairava como dura e grossa geada, o pregar fora do púlpito,ou em qualquer outro lugar a não ser sob o teto de uma igreja, erapouco menos do que a impiedade. Era acompanhado dos riscos maismortíferos. A religião precisava ser conservada sob a proteção de vidroe acondicionada em algodão. Levá-la para a rua turbulenta e expô-laaos ventos adversos que sopravam nos morros ou nos campos abertos,seria pôr a sua existência em perigo!

Deve se lembrar também que a Inglaterra era uma rede deparóquias eclesiásticas, e cada paróquia era uma espécie depropriedade espiritual particular, com limites zelosamente cuidados. Osnovos pregadores, portanto, eram transgressores. Eram tambémtransgressores de um tipo mui inquietador. Para o clero sonolentodaquela época, o espetáculo de clérigos freqüentarem os mercados ouas praças de aldeias em busca de uma congregação não era menos doque alarmante. E a vastidão das congregações que atraiam, àprofundeza das emoções que despertavam, fê-lo espetáculo ainda maisalarmante aos olhos eclesiásticos. Estes homens estavam promovendouma conflagração!

Para o próprio João Wesley e os seus camaradas a tarefa depregação ao ar livre foi -lhes a princípio , como já vimos, muirepugnante. João Wesley diz, “Consenti em fazer-me ainda mais vil”,quando pregou da pequena elevação em Kingswood.Estremeceram-se todas as sensibilidades do catito (elegante) eritualista, com a experiência de postar -se na terra comum, enquantoo vento lhe abanava a cabeça descoberta, e pregar a uma multidãopromíscua. Mas Wesley, a seu modo lógico, tomou a resolução umavez para sempre, e a sua consciência obedeceu a sua lógica. Estavasimplesmente seguindo um grande e sagrado precedente emconsentir deste modo se fazer um “estulto por amor de Cristo”. Eledefende a sua causa com força irresistível numa carta a um amigoque havia lhe prevenido estes serviços irregulares e censurados:

“Baseado em princípios escriturísticos acho que nãoé difícil justificar o que faço. Deus, nas Escrituras, me manda,à medida das minhas forças, a instruir os ignorantes, a corrigiros pecadores e a confirmar os virtuosos. Os homens meproíbem de fazer isto na paróquia de outros; e isto é proibir-mede tudo, visto que eu não tenho paróquia própria, e talveznunca terei. A quem, pois devo atender, a Deus ou aoshomens? Se for justo diante de Deus ouvir-vos a vós antes do

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que a Deus, julgai-o vós. Pois é me imposta esta obrigação,porque ai de mim se não anunciar o Evangelho. Mas onde euhei de pregá-lo se eu seguir os princípios que me indicastes?Não na Europa, nem na Ásia, tão pouco na África ou naAmérica; pelo menos não em qualquer parte do mundohabitado por cristãos. Pois todas estas são de alguma maneiradivididas em paróquias. Se me disserdes. “Voltai-vos para ospagãos de onde viestes” – mas não posso agora pregar a eles,pois sob os vossos princípios, todos os pagãos em Geórgiapertencem ou à paróquia de Savannah ou à de Frederica”.

“Permiti-me agora vos dizer quais os meus princípiosquanto a este assunto. Considero todo o mundo como a minhaparóquia, quero dizer que, em qualquer parte que eu meachar, julgo conveniente, justo, e do meu estrito deveranunciar a todos que me querem ouvir as novas da salvação.E é esta a obra que eu sei que Deus me chamou a fazer, e certoestou que a sua benção está me assistindo nela. ” (Diáriode 11 de junho de 1739).

Esta primitiva pregação ao ar livre é a melhor expressão do gênioessencial do Metodismo. Torna audível aquilo que se pode chamar asua nota imperial; também torna visível o seu apaixonado zelo pelasalvação dos perdidos, tanto homens como mulheres. Na vidaeclesiástica daquele tempo havia pouco do espírito militante. E aindamenos de qualquer manifestação do elemento mais divino docristianismo, da piedade que busca os perdidos, buscando-os comcompaixão e com solicitude; não se poupando fadigas, e nem seimportando com as dificuldades ou com as convenções.

Todos os termos da grande parábola de Cristo eram, nesses diastristes – como é demais comum sempre – invertidos na própria Igrejade Cristo. Noventa e nove ovelhas estavam extraviadas no deserto, ehavia uma ovelha bem gorda e bem vestida no aprisco. E ao lado dessaovelha gorda se achava o pastor igualmente gordo queconfortavelmente dormia, deixando às noventa e nove no deserto oencargo de procurarem a ele. A ovelha desgarrada t inha de procurar aopastor e não o pastor a ovelha.

Mas quando Whitefield e os Wesley, com as portas de mil igrejastrancadas contra eles, se postaram perante a multidão de pecadoresimundos em Kingswood, ou diante de uma multidão de esfarrapadosdos viciados de Londres, em Moorfields, e proclamaram o Evangelho de

Jesus Cristo, então a fé saia de suas trincheiras. A religião sonolenta ecomodista desta época se levantou de sua poltrona e tornou-se viva eativa. Tomou a ofensiva em vez de esperar a agressão. A pregação aoar livre nos tempos modernos tem se tornado quase em moda, mas em1719 era uma grande revolução.

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CAPÍTULO XVI

Os Três Grandes Camaradas

Aqui no limiar do avivamento, vale a pena dar um esboço dos trêsgrandes camaradas que eram as principais forças humanas no seudesenvolvimento: João Wesley, Carlos Wesley e George Whitefield.

No começo Whitefie ld era o mais saliente. Ele foi adiante numnovo caminho, e ocupava um Iugar mais notável aos olhos do público.As portas das igrejas estavam se fechando impiedosamente contraJoão Wesley. O seu campo de trabalho parecia estar se limitando aoscondenados encarcerados que se achavam na sombra da forca, e àspequenas sociedades formadas sob a inspiração do moraviano PedroBohler. Mas Whitefield estava na rica aurora de sua fama comopregador. Os púlpitos ortodoxos estavam ainda abertos para ele.Multidões esperavam encantadas com a mágica de sua eloqüência.Cidades inteiras se comoviam com a sua vinda. Quando ele visitouBristol pela segunda vez, multidões de pé, em carruagens, e a cavalo,vieram ao seu encontro no caminho. O povo o bem dizia enquanto elepassava pelas ruas. Na igreja, quando ele pregava, os ouvintes solícitosse apegavam aos balaústres da galeria e outros até subiam para omadeiramento do teto para apanhar as maravilhosas vibrações de suavoz incomparável. “No início de qualquer movimento”, diz MissWedgwood com notável perspicácia, “é o impulso e não o peso que temo maior efeito”. Whitefield, por uma rara combinação de dons naturais ede fervor espiritual, foi bem preparado para dar impulso ao avivamentoque começava agitar a vida inglesa.

É certo que Whitefield e João Wesley representavam tipos muidiferentes, e eram produtos de forças dissimilares (diferentes). Faltava aWhitefield a lógica segura de Wesley, o seu tino para o governo, a suapaixão pela ordem e método. Wesley possuía uma natureza mais séria,profunda e forte. EIe era vagaroso em aprender, porém mais resolutoem reter. Whitefield era mais ligeiro, mais ardente e impulsivo: maspossuía um tão profundo gênio pela religião como o próprio Wesley.Também vivia num domínio de ardor espiritual desconhecido a Wesley.Pode-se dizer que possuía o dom supremo do orador numa forma queWesley não podia pretender: E a união de dois homens tais, com donstão diversos, ajuda a explicar o movimento religioso do século XVIII.

Os contrastes e as semelhanças entre os dois eram tambémigualmente notáveis. Wesley criou-se na vida séria do presbitério; e doabrigo deste teto seguiu diretamente a uma grande escola, e então paraa antiga universidade. Whitefield era filho de taberneiro, e passou osprimeiros anos na atmosfera da taverna. Em suas próprias palavras, eIese trajava de avental azul, lavava e arrumava quartos, e fazia o trabalhode um copeiro. EIe faz as confissões de seus vícios juvenis em tomquase histérico, e revelam um caráter curiosamente complexo. Furtavadinheiro da bolsa da mãe – mas repartia as moedas tão mal adquiridasentre os pobres. Furtava livros, mas eram livros devocionais quevisavam à formação de um caráter religioso. Foi enviado à escolasecundária do local, mas lhe era enfadonho o estudo, e voltou à tavernada mãe, com os seus trabalhos servis e companheiros baixos.Entretanto, o menino teve vislumbres de gênio, e por um feliz acasoobteve matrícula no colégio de Pembroke, Oxford, como servidor.

Não se distinguiu como estudante, mas as influências do ClubeSanto o prendiam. Carlos e João Wesley tornavam-se seus guiasespirituais, ainda que lhe faltavam o equilíbrio e a sobriedade. Elepassou por experiências religiosas, que seriam bem próprias à biografiade um santo medieval, ou de um asceta das primitivas eras cristãs.Sendo veemente em tudo mais, era também veemente noarrependimento, e nas austeridades que ele praticava no seu corpo.Vestia-se de roupa inferior, e vexava o corpo por privá-lo do sono, etomava o alimento mais insípido. Diz eIe, com seu modo exagerado:”Dias e semanas inteiras tenho passado prostrado em oração silenciosae vigilante”. Ele escolheu o lindo e famoso passeio do Christ Church porlocal de algumas de suas mortificações a si impostas, e se ajoelhavasob as arvores na escuridão, debaixo das chuvas do inverno ou da neveque caia até que o badalar do grande sino colegial lhe advertisse queas portas iam se fechar. Falando de sua juventude Whitefield faz estaterrível apreciação de si mesmo: “Desde o berço até a maioridade nãovejo nada em mim que não seja digno da condenação ”. Há um toque dehistrião (comediante) em Whitefield, mesmo na de sua própria biografiaespiritual.

Afinal lhe veio o livramento espiritual e num transporte de alegria,contando a história, ele clama:

“Oh! Com que gozo inefável, mesmo gozo cheio de gloria,quando foi o peso do pecado e veio-me a consciência permanentedo amor de Deus. Onde quer que eu fosse não podia deixar decantar quase em alta voz”.

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Por natureza Whitefield era tão radiante que ganhava o afeto detodos, e a sua transformação espiritual fê-lo ainda mais radiante. O seudom natural de orador, também já era manifesto, reconhecido comotendo uma sinceridade santa em religião, e que a única carreirainevitável seria o púlpito. Os seus amigos o instaram com demaisprecipitação nesta direção.

Whitefield escreveu:“Os meus amigos querem que eu dê cabeçadas no púlpito e

como é que certos jovens sobem ali e pregam, eu não sei. Antesde Deus ter-me chamado e empurrado para o trabalho, eusupliquei mil vezes, até o suor cair, qual chuva, do meu rosto, queDeus nunca me permitisse a entrada ao ministério.”

Apenas completara vinte e cinco anos quando se ordenoudiácono, e imediatamente ganhou fama como pregador . “Eu tencionavafazer 150 sermões”, diz eIe, “e pensava começar a pregar só quandotivesse com um bom estoque de sermões elaborados”. Mas, de fato,este maior dos pregadores ingleses, tinha apenas um sermão quandocomeçou a sua carreira. Em sua humildade submeteu a um clérigoamigo o seu primeiro e único sermão para mostrar quão inadequado erao seu preparo para o púlpito. O bom clérigo serviu-se da metade dosermão no culto da manhã e da outra metade no da noite, e devolveu-o,ao autor surpreendido, com um guineu em pagamento. Com o seuprimeiro aparecimento no púlpito Whitefield descobriu que nãoprecisava de manuscrito. Foi deveras tão estupendo o efeito daquelediscurso que alguns se queixaram ao bispo que não menos de quinzepessoas se enlouqueceram!

Whitefield não era grande estudante, nem em sentido profundoum pensador. Possuía poucos dons como líder de homens. Mas assuas sensibilidades espirituais eram singularmente vivas. Ele viu asgrandes verdades do cristianismo, onde outros simplesmenteraciocinavam acerca delas: e os fatos do mundo espiritual eram tãoreais a eIe, e em certo sentido tão claros, como o eram os fatos da terrae atmosfera com que os seus sentidos físicos tratavam. EIes lhecobriram sem, contudo, esmagá-lo. Sir James Stephen diz: “Poucoshomens jamais se moveram entre as infinidades de causas invisíveiscom menos embaraço ou menos temor silencioso do que Whitefield”.Deveras o ”temor silencioso” era impossível para homem, tão alta eharmoniosamente vocal como Whitefield.

Em estatura era pouco acima da mediana, com feiçõesnotavelmente claras e regulares, olhos azuis pequenos e bem fundos,que pareciam cintilar de vivacidade; um dos quais formava ângulocontrário ao outro, mas o resultante vesguear, como no caso de outrofamoso pregador inglês, Eduardo Irving, somente realçava mais aexpressão de seu rosto. Whitefield teve talvez a voz mais harmoniosa esonora que jamais emanava de peito humano. A sua melodiapermanecia nos ouvidos da multidão; as suas cadênciasassemelhavam-se às subidas e às descidas na escala de um grandecantor. Ainda em acréscimo, Whitefield possuía corpo de ferro e nervosde aço. Com a exceção de João Wesley, nenhum outro homem jamaisfalava a tais multidões ou discorria por tantas horas por dia, e por tantosdias seguidos, como Whitefield. O seu biógrafo diz que “geralmente nodecorrer da semana ele falava quarenta horas, às vezes, sessenta eisto a milhares de pessoas”. E fez assim durante anos e “depois de seustrabalhos em vez de descansar, empenhava-se em fazer súplicas eintercessões, ou em cantar hinos, segundo o seu costume, em todas ascasas em que fosse convidado.” Em suma, Whitefield, quase tantocomo Wesley, em sua capacidade quase milagrosa para o trabalho,parece pertencer a uma raça diferente.

Whitefield alcançou o seu maior triunfo como orador ao ar livre.Sir. James Stephen nos descreve um de seus sermões ao ar livre:

“Postando-se numa pequena elevação, a sua figura alta eelegante vestida com elaborado rigor, de atitude serena emajestosa, com olhos azuis claros, Whitefield contemplava osmilhares, enfileirados na planície, ou apinhados em todas aseminências adjacentes... mas os tons ricos e variados de uma vozde incomparável profundeza e compasso logo silenciaram todosos sons menos melodiosos – enquanto, numa sucessão rápida,as suas sempre variadas melodias passavam desde a calma dasimples narrativa, e a medida distinta do argumento, até aveemente repreensão e a ternura de consolação celeste. Àsvezes o pregador chorava copiosamente, e sapateavaveementemente e apaixonadamente, e com freqüência se achavatão emocionado que durante alguns segundos, podia-se imaginarque nunca se recobraria; então, a natureza necessitava de umpouco tempo para reaver a calma. A multidão agitada ficavatomada da paixão do orador, e exultava, chorava ou tremia a seuquerer.”

Whitefield pregou sob condições e a auditórios desconhecidos aqualquer outro orador. Ao passar pela praça de Hampton ele vê uma

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multidão de doze mil pessoas congregadas para testemunharem oenforcamento de um homem; aqui tem o auditório, o púlpito e o texto elogo cativa a multidão! Prega a uma outra vasta multidão que se ajuntoupara testemunhar o enforcamento de um criminoso, e o próprio carrascosuspende as suas funções enquanto Whitef ield discorre. Uns atoresambulantes armam um palco numa feira municipal; a multidão seaglomera para rir-se e para divertir-se. Mas Whitefield de repenteaparece, utilizando-se de toda a cena para fins religiosos, arruinando acolheita dos atores e prega um sermão de extraordinário poder.

Como orador Whitefield possuía características bem estranhas.Em geral, um pregador, se tem empregado um sermão uma dúzia devezes, acha que tem o feito em trapos; o som dele torna-se repugnanteaos próprios ouvidos. O discurso acha·se exaurido de toda a vitalidade.Mas Whitefield nunca chegou a sua maior efetividade antes de tê-lopregado quarenta vezes! Então se tornava, nos seus lábios, uminstrumento perfeito de persuasão.

Calcula-se que ele pregou mais de dezoito mil sermões; elemesmo publicou sessenta e três durante a sua vida; e o leitor em vãotentará descobrir neles o segredo do seu poder maravilhoso. Parecemordinários, familiares, egoístas e desajeitados. O segredo do seu poderestava na personalidade do pregador – o olhar expressivo,incomparável, os lábios trementes, o rosto que parecia irradiar um brilhomístico. Todas estas coisas eram simplesmente os instrumentos eservos de uma sinceridade apaixonada e espiritual, tal como raramenteardia numa alma humana. Aqui havia um homem que cria com absolutaconvicção toda a sílaba da sua mensagem. A sua visão do céu e doinferno era tão direta como aquela do grande Fiorentino. E aquilo quevia, ele possuía o poder do orador, poder do grande ator de fazer queoutros vejam. E em tudo, a eloqüência de Whitefield ardia – às vezesflamejava – uma compaixão e amor por seus ouvintes. Sir JamesStephen diz:

“Sente-se que agora se tem a fazer com um homem quevive como fala e que alegremente morreria para desviar ouvintesdo caminho da destruição, e para à santidade e paz!”.

Pode-se dizer que todos os sermões de Whitefield são apenasvariações de duas idéias: O homem é pecador, mas pode obter perdãomediante Jesus Cristo; o homem é imortal, que se acha entre as duaspoderosas alternativas, o eterno sofrimento ou a eterna felicidade. Aeloqüência do grande pregador era assim um instrumento de duascordas apenas. Mas que grandes e notáveis harmonias produziam!

Wesley e Whitefield discordavam em muitos pontos tanto nateologia como na moralidade prática. Whitefield era ardente calvinista,Wesley era arminiano convicto. Wesley considerava a escravidão comoo cúmulo de todas as vilanias; Whitefield comprava escravos nointeresse do seu orfanato em Geórgia, incluindo-os como gado na listade seus haveres, e piedosamente dava graças a Deus pelo seuaumento.

Mas não obstante todos os pontos de diferença Wesley eWhitefield pertenciam ao mesmo tipo espiritual, viviam sob o impériodos mesmos motivos elevados, e tinham partes quase iguais no maiormovimento religioso na história inglesa.

Southey declara “que se os Wesley nunca tivessem existidoWhitefield teria originado o Metodismo”, mas talvez nunca foi escritauma sentença de menos perspicácia. Fossem quais fossem as obras deWhitefield, o certo é que ele, o homem mais errático e sem plano detodos, nunca poderia ter construído a perdurável e majestosa fábrica(edifício, construção) do Metodismo.

A influência de Whitefield assemelha-se aos ventos tempestuososque açoitam a superfície do mar. Mas o verdadeiro símbolo do trabalhode Wesley acha-se nos recifes de coral construídos vagarosamente,célula por célula desde as profundezas do mar, nos quais o solo seforma, em que se levantarão grandes cidades para a habitação denações que ainda não nasceram. Whitefield agitou a superfície; Wesleyedificou desde as profundezas, e construindo profundamente, assimedificou para todos os séculos.

O ideal de Whitefield era voar de uma multidão de ouvintes aoutra. Wesley possuía o instinto social. Ele conhecia as forças quenascem da camaradagem, o abrigo criado pela camaradagem. Portanto,desde o começo de seu trabalho ele estava solicitamente organizandopequenas sociedades onde a vida espiritual acharia abrigo e nutrimento;sociedades que proporcionavam um reflexo externo para as íntimasexperiências espirituais daqueles que eram membros. EnquantoWhitefield estava movendo as multidões, Wesley estava organizandoestes pequenos centros de vida, e as sociedades que Wesley ajuntoueram as células do recife de coral! Wesley não inventou as sociedadesnem os seus convertidos. Tais sociedades se originavam como protestocontra a escura noite de imoralidade que pairava sobre Inglaterra depoisda restauração e antes do nascimento de Wesley. Pedro Bohler fê-las

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reviver e lhes deu um tom mais espiritual. Miss Wedgood, à vista disso,diz “que Inglaterra deu forma às sociedades e Alemanha lhes deu oespírito”. É uma das generalidades plausíveis que agrada ao ouvido,mas não suporta a luz dos fatos. Tudo que se necessita citar agora éque quando Wesley voltou da Alemanha e começou o trabalho real desua vida, mediante algum sábio e inconsciente instinto ele se ocupouem nutrir e multiplicar as sociedades que, em concerto com PedroBohler, já começara a formar. Este trabalho foi menos dramático e nãotão imediatamente visível como o de Whitefield, mas era muito maisperdurável.

É costume dizer de Whitefield, de João e Carlos Wesley, que oprimeiro era o orador e o segundo o estadista, e o terceiro o cantor domovimento religioso do século XVIII. Mas os três atores naquele grandedrama não podem ser postos em compartimentos separados erotulados desta forma. João Wesley possuía mais do que um pouco depoeta, bem como o gênio de estadista; e se a eloqüência é a arte deempregar a língua humana como instrumento de invencível persuasão,então Carlos Wesley era tão verdadeiramente orador como o seu irmãomaior, ou como o próprio Whitefield, embora de um tipo mui diferente.

Carlos Wesley, quando julgado pela obra que fez, foi um dosmaiores mestres de discurso persuasivo. Durante quinze anos eleviajava pelas cidades e vilas da Inglaterra e Irlanda, pregando emigrejas apinhadas de gente, ou a vastas multidões ao ar livre e semprecom grande poder. Existe algo de surpreendente na contemplação deuma multidão de quinze ou vinte e mil pessoas que silenciosamenteesperam pelo som de uma só voz humana. O próprio Whitefield, o maiorentre os pregadores ao ar livre, nos tem contado as suas impressões;diz ele:

“Tudo se calava quando eu começava, e o povo apinhadoao redor da elevação no mais profundo silêncio me encheu deadmiração. Contemplar tais multidões apinhadas em tal silêncio,ou ouvir o eco do seu canto que reboava (repercutia) de um aoutro extremo era muito impressionante”.

Atrair tal multidão, e contê-la encantada, agitá-la com a emoçãoreligiosa, derretê-la em arrependimento, acendê-la de regozijo, é umdos maiores empreendimentos dado à língua humana fazer. Fazê-lo diaapós dia, às vezes duas ou três vezes por dia; fazê-lo durante quinzeanos como o trabalho costumeiro da vida; fazê-lo com intermitência atéa velhice, é um empreendimento que bem poderia ter feito desesperarum Demóstenes (um dos maiores oradores grego)! E Carlos Wesley fez

tudo isso! Não possuía a voz de órgão nem o gênio dramático deWhitefield, nem ainda o estranho segredo de uma calma e sobrepujantesolenidade em discorrer como seu irmão João. O segredo do poder deCarlos Wesley em pregar estava no domínio das emoções. As lágrimaslhe corriam pelas faces; a sua voz tomava as cadências de infinitaternura, vibrando com o tremor das emoções; e o contágio de seussentimentos derretia as multidões.

Na velhice a pregação de Carlos Wesley tomou um carátercurioso. Pregava com os olhos fechados, fazia pausas prolongadas,com a cabeça inclinada na atitude de quem escuta, como se esperassealguma mensagem desde o domínio do invisível. Ele mexia com asmãos sobre o peito, ou se debruçava sobre o púlpito. Às vezes parava epedia que a congregação cantasse um hino até que lhe viesse amensagem. Mas no primor da sua vida ele era pregador de quaseincomparável poder, empregando sentenças que tinham a ligeireza epenetração de tiro de espingarda, e que vibrava com a eletricidade deemoções.

O desenvolvimento do poder extraordinário de Carlos Wesley napregação foi repentino e inesperado. Ele anota com a precisãocaracterística a data e quando pela primeira vez tentou pregar semmanuscrito. Ele diz: “Na igreja de S. Antolin, na sexta-feira, 20 deoutubro, vendo tão poucos assistentes pensei em pregar de improviso.Senti-me com medo, mas aventurei-me sobre a promessa: ”Eis que euestou convosco todos os dias”. Poucos meses depois se postava diantede uma multidão de quinze mil pessoas e falava sem temor, pausa oufalta de poder, pelo espaço de duas horas seguidas.

Carlos Wesley tinha as suas limitações. Por exemplo: ele nuncaconseguiu harmonizar os sentimentos naturais com as suas crenças deeclesiástico intransigente. O seu melhor biógrafo, Thomaz Jackson, dizque durante muitos anos ele entretinha sobre vários assuntos duascorrentes opostas de princípios, e agia sobre elas alternadamente comigual sinceridade, e sem qualquer suspeita de sua incoerência! Mas istonão é a inteira justiça a respeito de Carlos Wesley. O fato é que elepercebia a verdade mais pelas emoções do que pelo raciocínio, e assuas emoções generosas eram mais sábias do que as suas crençasracionais. Mas é muito certo que ele permaneceu sempre alegrementeinconsciente de qualquer falta de harmonia entre as suas teorias e assuas emoções.

Em teoria era ritualista da ordem mais estreita. Declarava que se

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deixasse a Igreja Anglicana, teria receio de encontrar-se com o espíritode seu pai no paraíso. Aquele mais irascível de ritualista havia de ralharcom ele no próprio domínio celeste! As incoerências de Carlos Wesley,nascidas do conflito inconsciente entre os seus impulsos generosos eas suas prevenções eclesiásticas, são divertidas. Ele foi o primeiro aadministrar a comunhão aos novos convertidos em edifício que nãotinha sido consagrado; entretanto ficou religiosamente horrorizadoquando os Metodistas pediram permissão de receberem a comunhãoatravés das mãos de seus próprios pregadores. Como pregador elepassou os seus primeiros anos em pregar ao ar livre, e os seus anos develhice em pregar na Capela de City Road, entretanto deu ordens, aomorrer, que não fossem depositados os seus ossos nas terras dessaCapela, porque não eram terras consagradas. João, o seu irmão maissábio, escreveu depois: “Que pena os ossos do meu irmão não seremdepositados onde os meus ossos descansarão. Certamente aquelaterra é tão santa como qualquer outra na Inglaterra; e ela contém osrestos de muitos justos”. É um exemplo da ironia da sorte que o horrorsacerdotal de Carlos Wesley, em pensar de seus ossos descansaremnas terras da Capela de City Road, tivesse o efeito de depositá-los emterras ainda menos sagradas. Pois, parece que a parte do cemitérioonde jazem nunca foi consagrada!

Carlos Wesley disse: “Meu irmão é em tudo esperançoso, eu souem tudo medroso”; mas isto não é bem exato. Carlos, emtemperamento era tão esperançoso como seu irmão João, mas umaspecto de sua natureza fê-lo temer os resultados de coisas que outro emais nobre aspecto de sua natureza obrigava-o a fazer.

Era homenzinho, míope, de fala apressada, de maneirasesquisitas, desultório (que salta de uma para outra parte; nãopersistente) em seus hábitos mentais, fogoso em seus ressentimentos,mui leal em suas amizades, e com uma simplicidade de espírito que fê-lo eminentemente amável. Faltava-Ihe a força e a fixidez (fixidade, quetem a qualidade de ser fixo, persistência, constância) de propósito, alógica certeira, e a inteligência ordeira e sistemática do seu irmão João.Mas o sobrepujava em certas coisas e era, o mais amável dos dois pelarazão que era menos perfeito (perfeccionista). Porque às vezes o amoré nutrido pelas coisas que têm de perdoar.

CAPÍTULO XVII

João Wesley como Pregador

O grande avivamento então se achava em pleno progresso, emesmo nesse tempo no trabalho eram visíveis duas linhas concorrentese paralelas. Uma foi agressiva e consistia numa grande corrente deserviços de pregação, cobrindo os três reinos durante toda a vida deJoão Wesley. A outra foi conservadora, e achava-se representada naspequenas sociedades que se formavam por toda à parte, e que davamabrigo aos novos convertidos.

O instrumento supremo de João Wesley era a pregação. Eleempregava outras forças: construía escolas, organizava sociedades,publicava livros, e empreendia grandes polêmicas, e era incansável nacorrespondência e na conversa. Mas nem a Iiteratura, nem acontrovérsia, nem a influência pessoal foi o instrumento mais prezadoou eficaz de Wesley. O movimento que Wesley representa é acima detudo um avivamento em escala inaudita, e de efeitos sem precedentes,do oficio e do trabalho do pregador. O apóstolo Paulo escreveu, comorepresentante da primeira geração de cristãos: “Aprouve a Deus, pelaestultícia (loucura) da pregação, salvar os que crêem”. E no movimentode Wesley, o cristianismo simplesmente reverte a seu primitivo e maiorinstrumento de poder.

Mas a pregação do novo movimento, como já vimos, desviava-sedas formas tradicionais. Era pregação ao ar livre, não se contentavadentro de paredes de pedra. Era pregação itinerante, não se limitava alugares fixos. Tomava por campo os três reinos. Passando pelossonolentos punhados nas igrejas procurava, com grande solicitude, asmultidões esquecidas de fora, que estavam deslizando para umpaganismo pior do que aquele que pairava sobre o solo inglês antes davinda de Agostinho. Em lugar de púlpitos os pregadores do grandeavivamento tomavam os outeiros, os mercados, as praças das ruas dascidades, onde quer que os homens lhes escutassem aí eles declaravama sua mensagem.

E as novas condições criavam novos métodos. As decorosasfrases que os clérigos sonolentos murmuravam a suas congregaçõestoscanejantes (que cochilavam, adormecidas) deram lugar à viva voz de

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homens vivos; de homens que se sentiam ser mensageiros diretos doEspírito de Deus. Se João Wesley e seus camaradas não fossemempurrados das igrejas, o gênio essencial do movimento, a natureza dotrabalho para se fazer, os métodos necessários ao seudesenvolvimento, teriam lhes levado para fora. Os antigos canais pelosquais corriam a verdade eram mui estreitos, e ainda se achavamentupidos. Nenhuma corrente podia passar por eles. Era necessárioabrirem-se novos canais, chamarem novas forças à luta, alcançaremnovas classes. Assim com o seu primeiro passo o grande avivamentorompeu os limites eclesiásticos que existiam então. Ele se foi para arua agitada, para os campos varridos pelo vento, onde quer quehomens e mulheres por quem Cristo morreu pudessem sercongregados. Eis a pregação tal qual como havia no primeiro século doCristianismo.

E João Wesley logo se tornou o vulto mais saliente na novacruzada. Faltavam-lhe alguns dos dons especiais de Whitefield comoorador; não obstante, teve tanto êxito em pregar ao ar livre como o seugrande camarada; e trouxe ao seu trabalho planos mais ordeiros, e umpropósito mais concentrado do que o próprio Whitefield.

Qual foi o segredo do poder de João Wesley como pregador? Emmuitas coisas se poderia imaginar que ele seria o último capaz de influirnuma multidão do século XVIII. Era cavalheiro por nascimento e hábito,douto por educação, homem de gostos delicados e quase fastidiosos,com o desprezo inerente no inglês pela emoção, e com o ódio doritualista contra toda a irregularidade. Possuía muito pouca imaginaçãoe sem poder descritivo. Em regra não contava anedotas, e nunca sedava a caçoadas. Que aptidão tinha em falar a plebeus, mineiros,garotos da cidade e a lavradores atraídos do seu arado?

Entretanto ele se erguia, um vulto pequeno, catito (elegante) esimétrico; o seu cabelo preto e liso apartado (dividido) com exatidão; asfeições claras e puras como as de uma menina; os seus olhoscastanhos cintilantes como pontos de aço. Sob a sua palavra a multidãose derretia e subjugava até parecer um exército derrotado, tomado detemor e quebrado de emoção; e freqüentemente homens e mulherescaíam ao chão num acesso de pavor. A sua voz não possuía nota declarim; mas era clara como flauta de prata, e percorria a multidãoadmirada até a extremidade mais remota.

Sem dúvida havia algo da força de um profeta na pregação deWesley. Ele recebia a sua inspiração de regiões bem distantes. Os seus

sermões impressos são apenas os ossos de seus discursos à viva voz,e são geralmente ossos secos, embora tenham algo das dimensões domastodonte (animal extinto cuja constituição física era semelhante à doelefante, o maior mamífero terrestre. A expressão aqui, portanto, refere-se à dimensão de grandeza dos tais “ossos secos”). Mas a suapenetração espiritual era quase surpreendente. Parecia enxergar oíntimo da alma humana, apontado o pecado secreto e o temorescondido. Possuía o poder de fazer cada individuo sentir como sefalasse só com ele. E havia algo no seu discurso – uma nota na voz, umcintilar do olhar – que inspirava à multidão respeito, e respeito que nãoraras vezes se aprofundava em temor. A maneira do orador era ade perfeita calma; mas era a calma do poder, da certeza, daautoridade que vem do mundo espiritual.

Nelson dá talvez, a melhor descrição de Wesley comopregador. Ele diz:

“O sr. Whitefield era para mim homem que sabia tangir(tocar) bem um instrumento, pois a sua pregação me eraagradável e eu o admirava, de modo que se qualquer umtentasse perturbá-lo eu estava pronto a defender o pregador.Porém eu não o entendia, mas me sentia como o passarinhoque vaga longe do ninho até que o sr. João Wesley veiopregar o seu primeiro sermão em Moorfields...Logo que elesubiu à tribuna, passou as mãos pelo cabelo e virou o rosto naminha direção, e me parecia que ele me fitava (olhava) osolhos. As suas feições me infundiram tanto pavor, mesmoantes de falar, que o meu coração oscilava como se fossepêndulo; e quando começou a falar, eu imaginava que ele medirigia todo o discurso. Quando terminou, eu disse comigo:“Este homem sabe contar os segredos do meu coração; masele não me deixou aqui; porque me mostrou o remédio, opróprio sangue de Jesus”. Eu imaginara que ele não falara amais ninguém senão a mim, e eu não ousei erguer os olhos,julgando que todos estivessem a me olhar... mas antes defindar o sermão o sr. Wesley clamou: “Deixe o perverso o seucaminho, o iníquo, os seus pensamentos; converta-se aoSenhor, que se compadecerá dele, e volte-se para o nossoDeus, porque é rico em perdoar (Isaías 55:7). Eu dissecomigo, “se isto for verdade, então eu voltarei a Deus hoje”.

Quem pode admirar-se de que um pregador com poder tãoextraordinário fizesse estremecer os corações das multidões, epusesse o selo sobre o espírito dos três reinos!

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Com a exceção de breves visitas a Londres, e uma ligeiraviagem ao País de Gales, João Wesley passou o resto do ano 1739em Bristol. Durante nove meses, calcula-se que ele pregouquinhentos sermões e exposições, somente seis destes em Igrejas.Era seu plano explicar a Bíblia a cada noite em qualquer uma daspequenas sociedades, e passar o dia em serviços ao ar livre. Eletem nos deixado um esboço de seus ensinos nesse período a seusauditórios no ar livre. Ele afirma que a religião não consiste denegações nem de moralidade exterior, nem de opiniões ortodoxas. É acriação da uma nova natureza em nós. A única condição é oarrependimento para com Deus e a fé em nosso Senhor Jesus Cristo.Aquele que crê é justificado mediante a redenção que há em CristoJesus, e, sendo justificado, tem a consciência da uma nova relação paracom Deus e de poder sobre o pecado.

É ensino claro e simples, mas é curioso notar-se que a doutrinade que somos salvos mediante a fé, que é a própria essência doCristianismo, e que era a nota saliente nos sermões de Wesley,provocasse a mais ativa inimizade. Wesley diz:

“Não falávamos de quase nada mais, quer em públicoquer em particular. Esta luz brilhava tão fortemente sobre osnossos espíritos a ponto de tornar-se o nosso tema constante.Era o nosso assunto diário tanto em verso como em prosa; e odefendíamos contra todos. Mas por fazermos isto, eles nosassaltavam de todos os lados. Por toda a parte nosrepresentavam como cachorros loucos, e nos davam o tratode tais. Apedrejavam-nos nas ruas, e várias vezesescapávamos da morte. Em sermões, jornais, panfletos detoda a espécie nos pintavam como monstros nunca vistos.Mas isto não nos abalava”.

A pregação começada sob estas condições novas foi seguida porresultados maravilhosos. Era a mesma pregação dos temposapostólicos, e com muitos dos resultados do século apostólico. Páginasinteiras do Diário de João Wesley parecem deveras com um novocapítulo dos Atos dos Apóstolos escrito em termos modernos. Acham-se aí narrat ivas de conversões, conversões repentinas quanto aotempo, dramáticas no caráter, arrebatadoras em seu regozijo. Maistarde, Wesley, a seu modo metódico, pediu que alguns de seusconvertidos escrevessem em clara e simples prosa a história de suasexperiências espirituais, e o resultado é uma série de documentoshumanos de interesse curioso e perdurável. O voar de um século

ainda os deixa vivos.

A história que o próprio Wesley fez dos resultados práticos dotrabalho, em resposta a certo crítico zangado, é a seguinte:

“A questão entre nós versa principalmente – senãointeiramente a fatos. Vós negais que Deus agora opere taisefeitos; ao menos, negais que os efetue desta maneira. Euafirmo ambos; porque com os próprios ouvidos ouvi e com ospróprios olhos, vi. Tenho visto, até onde é possível ver talcoisa, muitas pessoas mudadas num momento do espírito detemor, horror e desespero, para o espírito de amor, gozo epaz; e de desejo pecaminoso até então reinante nelas para obom desejo de fazer a vontade de Deus... Este é otestemunho de fatos que tenho ouvido e visto e soutestemunha quase diariamente... E que tal mudança foi entãoefetuada se manifesta, não unicamente pelo derramamento delágrimas nem por acesso, nem por terem clamado em altavoz; não são estes os frutos, como vós quereis supor, pelosquais eu julgo, mas por todo o teor de suas vidas, que atéentão era de muitas maneiras pecaminoso; mas daí em diantetem santo, justo e bom.”

“Eu vos mostrarei aquele que era um leão até então,mas agora é um cordeiro, aquele que era bêbado, mas agoraé um exemplo de sobriedade. O fornicador que era, agora“aborrece a túnica manchada pela carne”. São este osargumentos em favor daquilo que eu afirmo, a saber: queDeus agora, como em outro tempo, dá o perdão dos pecados,e o dom do Espírito Santo, a nós mesmos e a nossos filhos”.

(Diário, 20 de maio de 1739)

Mas logo se manifestou um fenômeno nas reuniões de JoãoWesley que ainda é um problema para a ciência; e que na ocasiãoparecia justificar as piores coisas que os maiores adversários deWesley diziam do avivamento. Manifestavam -se notáveis cenas deagitação e desespero físico. Era como se algum temporal deenergia, fora da ordem natural – se bem ou mal não podia serfacilmente determinado – passasse pelas multidões que assistiam. Aprimeira dessas cenas estranhas manifestou-se aos 17 de abril de1739, numa reunião de uma das sociedades. Wesley conta a história noseu Diário:

“Na rua de Baldwin, clamamos a Deus, pedindo que

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confirmasse a sua Palavra. Logo, uma pessoa que assistiaclamou em alta voz, com a maior veemência, mesmo numaagonia mortal. Mas continuamos em oração, até que Deus pôs umnovo cântico na sua boca, um hino ao nosso Deus. Logo emseguida duas pessoas mais foram tomadas de grande dor econstrangidas a clamarem na angustia de seu coração. Mas empouco tempo elas também romperam em louvores a DeusSalvador.”

Uma cena ainda mais notável desenrolava-se no mesmo localquinze dias depois. Wesley escreve no seu Diário:

“1° de maio – Na rua Baldwin, a minha voz mal se faziaouvida no meio dos gemidos de uns, e dos gritos de outrosque clamavam em alta voz por Aquele que é poderoso parasalvar. Um Quaker em assistência ficou muito zangado,franzia a testa e mordia os beiços, quando caiu como por umraio. Era terrível contemplar-se a sua aflição. Fizemos oraçãoa seu favor e logo ergueu a cabeça com regozijo e uniu-seconosco em ação de graças. Outro assistente João Hayden,tecelão, homem de vida e hábitos regulares, que sempreassistia nas orações públicas e na comunhão, muito zelosopela Igreja e contra os Dissidentes, trabalhava paraconvencer o povo que tudo isto era ilusão do diabo; mas nodia seguinte, enquanto lia um sermão sobre “A salvação pelaFé”, ficou repentinamente pálido, caiu da cadeira, começou agritar e bater-se no chão. Os vizinhos apavorados seajuntaram. Quando eu cheguei, achei-o no chão, a salaestava repleta de gente, e dois ou três o seguravam o melhorque podiam. Ele logo me fitou os olhos, e disse, “Sim, éaquele que eu disse iludira o povo. Eu disse que era ilusão dodiabo; mas esta não é ilusão”. Então gritou em alta voz, “Ó tu,diabo! Diabo maldito! Não podes permanecer em mim. Cristote lançará fora. Sei que a Sua obra começou. Podes me fazerem pedaços, mas não podes fazer-me dano”. Ele então sebatia no chão; o seu peito ofegava como se estivesse numaagonia mortal e grandes gotas de suor lhe corriam pelasfaces. Nós nos entregávamos à oração. Cessou a sua afliçãoe tanto o seu corpo como a alma foram postas em liberdade. Comvoz forte e clara ele clamou: “Da parte do Senhor se fez isto;maravilhoso é aos nossos olhos. Seja bendito o nome do Senhor,desde agora e para sempre”. Eu voltei após uma hora e achei-ocom o corpo fraco como o de uma criancinha que havia perdido avoz; mas a sua alma estava em paz, cheia de amor, e

regozijando-se na esperança da glória de Deus”.

Aos 21 de maio repetiu-se a cena, mas desta vez num culto ao arlivre:

“Enquanto eu pregava, Deus descobriu o seu braço e nãofoi numa sala fechada, nem em particular, mas ao ar livre, e napresença de mais de duas mil testemunhas. Um e dois e trêscaíram por terra tremendo excessivamente à presença do seupoder. Outros clamavam em voz alta e triste. “Que havemos defazer para nos salvar?”. À noite na rua S. Nicolau, fuiinterrompido, logo que comecei a falar, pelo clamor de um quepedia insistentemente o perdão e a paz. Outros caíram comomortos. Thomas Maxfield começou a gritar e a bater-se contra ochão, a ponto de ser necessário seis homens para poderemsegurá-lo. Muitos outros a clamar pelo Salvador de todos, tantoque a casa inteira, e em verdade a rua por alguma distância,estava em grande agitação. Mas continuamos em oração, e amaior parte achou descanso para as suas almas”.

Estas manifestações extraordinárias surpreenderam eincomodaram os próprios camaradas de João Wesley. Whitefield lheescreveu aos 25 de junho queixando-se de que Wesley davademasiada importância a estas confusões.

“Se eu fizesse assim”, diz ele, ”quantos clamariam em altavoz toda à noite”. Doze dias depois Whitefield esteve em Bristol eachou as mesmas cenas em seus próprios serviços:

“Na aplicação de seu sermão quatro pessoas caíram pertodele e quase no mesmo instante. A primeira estava deitada semsentidos e sem movimento. A segunda tremia excessivamente. Aterceira tinha convulsões por todo o corpo, mas não fez ruídoalgum a não ser uns gemidos. A quarta, igualmenteconvulsionada, clamava a por Deus com insistentes súplicas elágrimas”.

Estes acessos de angústia física não se limitavam aos cultospúblicos na multidão, indivíduos em casa foram acometidos. Aquidamos uma narração terrível que João Wesley registra no seuDiário:

“23 de Outubro – Fui solicitado a visitar uma moça emKingswood. Achei-a de cama, e duas ou três pessoas asegurá-la. A angústia, o horror e o desespero indescritíveismanifestavam-se no seu semblante pálido. As mil contorções

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do seu corpo demonstravam como os cães do inferno estavamatormentando-lhe o coração. Os gritos lancinantes que eladava eram quase insuportáveis. E la gritou: “Estou condenada,condenada; perdida para sempre! Seis dias passados talvezpodíeis ter-me ajudado. Mas agora é tarde. Pertenço ao diaboagora; entreguei-me a ele; sou dele e tenho de servi-lo e ireicom ele ao inferno; não posso me salvar, não serei salva. Eudevo, eu quero e tenho de ser perdida! ” Então a moçacomeçou a clamar pelo diabo. E nós principiamos a cantar:“Desperta-te, desperta-te, ó braço do Senhor”. E logo ela seacalmou como se dormisse; mas no instante que deixamos decantar ela rompeu outra vez com indizível veemência:“Arrebentai-vos, ó corações de pedra! Sou um aviso para vós.Arrebentai-vos! Arrebentai-vos, pobres corações de pedra! Soucondenada para que vós vos salveis. Vós não necessitais devos perder, ainda quando eu me perco”. Então, fitando osolhos em um canto do forro. disse: “Aí está. Vem, bom diabo,vem. Disseste que me rebentarias os miolos; vem e faze-odepressa. Sou tua, quero ser tua.” Nós lhe interrompemos, eoutra vez clamamos a Deus; e com isso eIa se acalmou comodantes.”

Um caso semelhante se deu uns poucos dias depois:“27 de Outubro – Chamaram-me a Kingswood outra

vez para ver uma pessoa, uma daquelas que antes haviasido tão doente. Uma chuva grossa caía quando eu saí decasa. Justamente então a mulher , distante uns cincoquilômetros, clamou: “Aí vem o Wesley, galopeando com aligeireza possível!“ Quando cheguei , ela deu umagargalhada medonha e disse: “Não há poder, não hápoder; não há fé, não há fé. Ela é minha, a sua alma éminha. Eu a tenho, e não hei de deixá -la ir”. Pedimos aDeus que nos aumentasse a fé. Neste meio tempo assuas dores se aumentavam mais e mais, a ponto depoder-se imaginar que devido aos acessos violentos, o seucorpo seria feito em pedaços. Um que fico u plenamenteconvencido que esta não era uma doença natural, disse: “Euacho que satanás está solto. Eu receio que ele não há deparar”. E acrescentou, “Eu te mando em nome do nossoSenhor Jesus Cristo, que me digas se tens recado paraatormentar outra alma qualquer”. Imediatamente respondeu:“Tenho, L-y, C-r, e S-h, J-s”. Nós nos entregamos outra vez àoração e não cessamos até que ela começou, com voz clara e

feições contentes e alegres, a cantar: “A Deus SupremoBenfeitor”.

As pessoas mencionadas aqui moravam um pouco distante dali;estavam neste momento com saúde perfeita; mas no dia seguinte elasforam acometidas da mesma maneira que a infeliz mulher cujo casoacabamos de descrever.

Tem se oferecido muitas explicações para estes curiososfenômenos. Southey os resolve no mero magnetismo animal e nocontágio de excitação. Ele diz com muito acerto “que há paixões tãocontagiosas como a peste, e o próprio temor não é mais contagioso doque o fanatismo”. Mas as sensibilidades e emoções as quais JoãoWesley apelava quando estas cenas se davam, certamente não podemser consideradas na categoria do fanatismo e na ocasião não se fazianem dizia coisa alguma para suscitar o temor. Isaac Taylor acha nestascenas a reprodução em termos modernos dos endemoniados do NovoTestamento. Para as inteligências seculares elas talvez relembrem amania dançante do século XIV ou dos Convulsionaires da França doséculo XVI. Somente que no caso de Wesley os sujeitos destasmanifestações eram os ingleses sólidos e não mulheres e criançasfrancesas.

Realmente fenômeno semelhante têm aparecido em lapsos detempo largamente separados, e sob circunstâncias bem diversas.Exatamente as mesmas cenas se davam na Escócia sob a pregação deErskine, a na América sob a pregação de Jonathan Edwards. MasEdwards indubitavelmente pregou um evangelho atemorizante e de umamaneira aterradora. Os métodos de João Wesley separavam-se por umintervalo bastante largo daqueles do grande evangelista americano.

Muitos admiram que essas manifestações começassem, não soba pregação de Whitefield, com a sua voz de leão e seus poderesdramáticos. Nem ainda sob a pregação de CarIos Wesley com seuapelo concentrado e sobrepujante às emoções. Elas se deram enquantoJoão Wesley, de testa séria, de olhar calmo e de voz clara e equilibrada,com seu apelo à razão e à consciência, pregava. Entretanto bem secompreende porque esses fenômenos começaram sob a pregação deJoão Wesley e não sob a de qualquer de seus camaradas. Whitefieldapelava aos sentidos e à imaginação; Carlos Wesley às emoções. MasJoão Wesley, não obstante a sua estranha calma, tocava numa notamais profunda, e movia os seus ouvintes por uma força mais poderosa.Havia algo nele – no seu olhar, nas cadências de sua voz; na sua

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solene e transparente sinceridade – que irresistivelmente convencia osque o contemplavam e ouviam das realidades das coisas espirituais.

“Wesley, diz Miss Wedgwood, operava em seus ouvintesuma tal apreciação do horror do mal, da sua misteriosaproximidade à alma humana, e da necessidade de um milagrepara separá-lo da alma, que ninguém, talvez, pudesse receber asua doutrina repentinamente sem que produzisse nele algumviolento efeito físico.”

Mas isto não explica por completo o caso. A verdade é que JoãoWesley teve a visão Dantesca, e possuía o poder de fazer outros veremo fato supremo do mundo espiritual, e a relação íntima que a almahumana mantém para com Deus, quão perto Deus está ao homem; arelação que os pecados do homem mantém para com a pureza deDeus; a precisão que o homem tem da compaixão de Deus; e a relaçãode todos os atos do homem em referência ao juízo de Deus. De modoque Deus aparecia, desde as regiões indistintas e remotas daeternidade, aos ouvintes de Wesley, como personagem amável emajestoso de todos, mas ainda tangível. E como pregava, e ao passoque os ouvintes se compenetrassem repentinamente da realidade domundo eterno, e de seus fatos estupendos, do pecado e da suaculpabilidade infinita, de Deus e da relação da alma com ele – comohavemos de nos maravilhar que as almas estremecidas de seusouvintes não comunicassem aos próprios corpos os tremores que lhesacometiam!

Indubitavelmente muitos elementos humanos operavam entre asforças que produziam estas cenas. A impostura, a histeria, o contágiodas emoções fortes, o fogo da excitação ardendo nas sensibilidades.Mas depois de fazer o desconto destas coisas ainda existe um resíduode fatos estranhos que eles não explicam. Tudo que se pode dizer éque o corpo e a alma são maravilhosamente entrelaçados; os seuslimites entre si não podem ser determinados com exatidão; agem ereagem e um sobre o outro. Uma doença grave afeta os própriossentimentos intelectuais. O vinho de uma forte emoção derramado sobas sensibilidades, eletrifica todos os órgãos físicos. As emoçõesespirituais, despertando à uma profundidade maior do que quaisqueroutras que pertencem à alma humana, bem podem, uma vezdespertadas, afetar com poder estranho o próprio corpo. Disso ninguémduvida senão aquele que nunca experimentou a majestosa grandeza deuma profunda emoção espiritual.

É fácil entender como esses estranhos fenômenos proveriam osinimigos do movimento metodista com novos argumentos emoposições. Const ituíram um escândalo clamoroso, geral e de bom som.Mas pelo menos serviam de anúncios (propaganda) para o avivamento.Encheram todas as inteligências de admiração e deram assunto paratodas as línguas. Um poder estranho parecia ter-se rompido desde omundo invisível sobre a humanidade. Era fácil ter suspeita do novomovimento, podia-se odiá-lo com veemência, argüi-lo intensamente,mas ignorá-lo, nunca.

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CAPÍTULO XVIII

O grande itinerante

João Wesley logo tomou o seu lugar natural de guia erepresentante do novo movimento, seja do metodismo, seja doavivamento. Não era meramente o teólogo e estadista, mas o douto eprincipal polemista; era ele o principal e o mais diligente, senão o maiorpregador desse movimento. A sua carreira como evangelista, agora empleno progresso, merece algum estudo, pois não há outra na históriamoderna que o iguale em largueza, ou constância ou na permanênciade seus resultados.

Wesley pregou o seu primeiro sermão ao ar livre aos 2 de abril de1739, e o seu último em Winchelsea aos 7 de outubro de 1790. Entreestas duas datas há um período de cinqüenta e um anos, todos cheiosde uma corrente de trabalho quase sem paralelo na experiênciahumana. Ao começo deste período os seus dois camaradas, Whitefielde seu irmão Carlos, eram, em dons e zelo, seus iguais. Carlos Wesleycasou-se em 1749 e o seu trabalho como itinerante logo se encolheu alimites mui estreitos. Whitefield faleceu na América em 30 de setembrode 1756. Wesley assim, naquilo que se pode chamar o plenodesenvolvimento do trabalho ativo, excedia a seu irmão por mais dequarenta anos, e a Whitefield por mais de trinta. Pode-se dizer tambémque o seu trabalho era de um tipo mais concentrado do que o de seusdois camaradas.

Na simples escala de seus trabalhos Wesley sobrepujava muito aWhitefield. Calcula-se que Whitefield pregou dezoito mil sermões, maisde dez por semana durante trinta e quatro anos de vida evangelística.Wesley pregou quarenta e dois mil e quatrocentos sermões, depois desua volta da Geórgia, um termo médio de mais de quinze sermões porsemana; e calcula-se que viajou em seu trabalho itinerante unsquatrocentos mil quilômetros. Em suma, Wesley era homem que,embora tendo a inteligência de um estadista, a cultura de um douto, amensagem de um apóstolo, possuía também o zelo ardente eincansável de um frade pregador da Idade Media.

O seu trabalho durante estes cinqüenta e um anos era de um tipoinvariável. Era a proclamação da mensagem simples e imutável do

Evangelho de Cristo para a multidão onde quer que ele pudesse reuni-la– no outeiro, à beira do rio, na praça da vila, ou sob o teto de umaigreja. Wesley não se cansava, nem desanimava, nunca duvidava nemse desviava. Os seus camaradas ficavam atrás, os amigos oabandonavam; um mundo de controvérsias calorosas fervilhava aoredor do seu nome e caráter. Nada disso afetou a Wesley. A brilhantechama do seu zelo ardia por muito tempo, e ardia sem diminuição, eainda ardia quando o próprio fogo da vida se desfazia em cinzas.

Quem traçar no mapa da Inglaterra os itinerários de João Wesley,aperceber-se-á de certas feições constante nas linhas seguidas nessesitinerários. Não cobriram toda a Inglaterra. Seguiam certas curvasgeográficas bem definidas. Nas suas campanhas evangelísticas,Wesley – servindo-nos da terminologia do soldado – tinha três bases:Londres, Bristol e Newclastle-on-Tine. Formavam um triângulo isóscele,e os itinerários de Wesley – descontando certa porcentagem deoscilações – giravam entre estes três pontos. Ele devia ter conhecido ocaminho desde Londres para a oeste até Bristol, e desde Londres parao norte até Newcastle -on-Tine como o carteiro urbano conhece asua zona de trabalho. Por que seria que Wesley seguia tãoobstinadamente estas linhas especiais? Por que deixou tão largosespaços da Inglaterra pratica mente sem visitação?

Um pouco de reflexão nos dará a resposta. A principal feiçãoda história inglesa desde os meados o século XVIII é a origem dasgrandes cidades fabris. Nos últimos cinqüenta anos do século XVIIIa população da Inglaterra aumentou cinqü enta por cento. Istoresultou do grande avivamento industrial que mudou a vida daInglaterra e lhe deu a preponderância no com ércio da Europa. Ositinerários de Wesley em sua pregação seguiram mais ou menos aslinhas do desenvolvimento industrial do país. Ele deixou quase semvisitação os largos campos dos distritos rurais, com as suasesparsas e vagarosas populações. Mas onde as correntezas da vidase achavam mais fundas , onde as pequenas vilas estavam sedesenvolvendo em cidades movimentadas, onde as alta s chaminésenchiam a atmosfera com a sua fumaça negra, aí Wesley pregava etrabalhava. A sua missão começou com os mineiros de Kingswood .E foi dedicada, durante quase toda a sua carreira, às multidões dascidades manufatureiras. Wesley assim – talvez com sabedoriainconsciente – estava batizando com forças divinas a vida do seutempo que novamente fermentava .

Pode-se acrescentar também que os seus itinerários eram

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planejados minuciosamente de antemão – os lugares que havia devisitar, as horas de chegada , os serviços que seriam realizados. Nãohavia nenhum desperdício de minutos, nenhuma oportunidadedesprezada, nenhum intervalo de descanso. E Wesley cumpriu osseus itinerários com resolução férrea. Não havia temporal, nemdistância, nem cansaço, que conseguissem interceptar o seu curso,quase planetário. Era seu costume pregar de manhã às cinco horas, ouainda mais cedo. Ele então montava seu cavalo, ou tomava seu carro etocava para outro lugar que havia marcado, onde outra grande multidãoo esperava. Assim durante todas as horas do dia, e todos os dias dasemana e todas as semanas do ano, durante um longo meio século. Elevivia como o soldado em campanha – levemente equipado, e prontopara marchar a qualquer momento. Mas para ele era campanha demeio século!

Entretanto era homem de grande nitidez e ordem, com o gosto deum douto em ter tudo perfeito ao seu redor. Em seu quarto e gabinete,durante oito meses de residência em Londres no inverno, não havia umlivro fora de seu lugar, nenhum pedaço de papel despercebido. Elesabia apreciar as comodidades da vida. Entretanto havia-se nas coisasmais insignificantes como se não esperasse continuar no lugar por umahora. Parecia estar em casa em todo lugar – acomodado, satisfeito efeliz; e ao mesmo tempo pronto, a qualquer hora, a empreender umaviagem de duzentos e cinqüenta léguas.

É difícil estimar os gastos físicos feitos em tal carreira. O viajarincessante sob os céus úmidos e inconstantes da Inglaterra, e peloscaminhos ruins daquele tempo, era trabalho estupendo. João Wesleyviajou em regra (em média) uns sete mil e duzentos quilômetros porano, na maior parte a cavalo, e fez isto até ter setenta anos de idade.Enquanto viajava assim geralmente pregava dois, três, e às vezes,quatro sermões por dia. Ele vivia entre as multidões. A sua vida durantemuitas horas do dia estava cheia de ruído, movimento e agitação.Entretanto no meio de todo este viajar e pregar ele levava consigo oshábitos estudiosos e meditativos do filosofo!

O seu vulto leve e compacto possuía a força e a resistência daborracha. Nada lhe cansava – poucas coisas lhe incomodavam. Era tãoinsensível às vicissitudes do tempo como um piloto do mar do norte.Não havia uma fibra mole, nem nervo doentio, nem músculo frouxo,nem onça (medida anglo-saxônica para capacidade que corresponde a28,350 gramas) de carne supérflua em seu corpo pequeno e

maravilhoso. Todo o momento, em que se achava acordado, tinha o seutrabalho e ninguém dava menos horas ao sono do que João Wesley.

Ele narra que num dia andou mais de 145 quilômetros entreBowtry e Epworth; e no fim estava um pouco mais cansado do quequando se levantara de manhã. Na Escócia ele chegou a Cupar, depoisde ter viajado quase cento e quarenta e quatro quilômetros, e nãoestava em nada cansado. “Muitas viagens difíceis”, diz Wesley, “tenhofeito antes, mas uma como esta nunca fiz, debaixo de vento e chuva,gelo e neve, terrível saraiva e frio penetrante”. Sob condições tão durasele havia andado a cavalo por quatrocentos e cinqüenta quilômetros emseis dias.

Tem algo de quase divertido a brevidade e a frieza mais do quefilosófica com que João Wesley registra as suas experiências comoviajante nos temporais e pelas estradas ruins daquele tempo. Ele nosproporciona pequenas vistas das paisagens e do tempo – paisagenscobertas de neve, pinturas de céus gotejantes, de ventos frios ecortantes face dos quais ele corajosamente prosseguia no seu itinerário.Ele talvez se sentisse por demais ocupado para falar muito acerca dotempo, ou para contar os seus sentimentos a respeito. Narra comsimplicidade o simples fato. Eis aqui uma pequena narração acerca dotempo:

“Os outeiros estão cobertos de neve, como no meio doinverno. Cerca das duas horas chegamos a Trewint, bastantesmolhados e cansados, havendo viajado abaixo de chuva e saraivapor algumas horas. À noite eu preguei para muito mais gente doque podia entrar em casa, sobre a felicidade daqueles cujospecados lhe são perdoados”.

Uma outra pintura companheira que bem pode fazerestremecer ao leitor moderno de fibra mole e comodista vem umpouco mais tarde:

“Havia tanta neve ao redor de Boroughbridge que sópodíamos prosseguir vagarosamente, e a noite nos sobreveioquando ainda nos achávamos dez ou onze quilômetro s dolugar onde tencionávamos pernoitar. Mas continuamos comopor acaso, através dos charcos, e cerca das oito horaschegamos em segurança a Sandhutton. Achamos a estradamuito pior do que no dia anterior, não somente por estar maisespessa a neve que tornava os caminhos intransitáve is emcertos lugares – somente anos depois eram conhecidos os

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caminhos feitos a pedra britada nestas partes da Inglaterra –mas também porque as fortes geadas depois dos degeloshaviam feito o chão, como o vidro. Nos vimos na necessidadede andar a pé, pois nos era impossível andarmos a cavalo, eos nossos cavalos diversas vezes caíram, enquanto osguiávamos a cabresto, mas nenhuma vez quando nosachávamos montados, durante toda a viajem. Passava já deoito horas quando chegamos a Gateshead Fell, que parec iaum vasto deserto branco. A neve havia caído e coberto todasas estradas, e estávamos em dúvida como havíamos deprosseguir , até que um homem honesto de New Castle nosalcançou e nos guiou para a cidade.”

“Muitas viagens difíceis tenho feito antes, mas uma comoesta nunca fiz, debaixo de vento e chuva, gelo e neve, terrívelsaraiva e frio penetrante. Mas já se passou; aqueles dias nãovoltarão jamais e, portanto, são como se nunca tivessemexistido.”

Deve-se notar que Wesley nem sempre teve o encorajame ntode multidões de admiradores para inspirá -lo. Alguns de seusserviços ao ar livre começavam sob circunstâncias tais que bempoderiam ser atribuídos à coragem de um apóstolo – se não fossepor coisa mais do que a condição de indiferença humana. Wesleydescreve assim um culto ao ar livre na Escócia:

“Às onze horas eu saí para a rua principal e comecei afalar a uma congregação de dois homens e duas mulheres. Aestes logo veio se unir cerca de vinte crianças. Às seis horasGuilherme Coward e eu fomos ao mercado. Permanecemos alipor algum tempo, e não aparecendo nem homem, mulher oucriança, comecei a cantar um salmo escocês, e quinze ou vintepessoas vieram ao som da minha voz, mas com grandecircunspeção, conservando-se de longe, como se nãosoubessem que poderia acontecer.”

Podemos acrescentar que isto se deu na sua terceira visita àEscócia, quando já era homem de fama.

Um exemplo da maneira com que João Wesley atacava umagrande cidade, se acha na sua narração do primeiro serviço em NewCastle:

“As sete horas eu desci a pé até Sandgate, a parte maispobre e desprezível da cidade, e postando-me na extremidadeda rua com João Taylor, comecei a cantar o Salmo 100. Três

ou quatro pessoas vieram para ver o que havia e logoaumentavam até chegar a quatrocentas ou quinhentas. Julgoque havia mil e duzentas ou mil e quinhentas quando conclui apregação; as quais eu apliquei as seguintes palavras solenes:“Ele foi ferido pelas nossas transgressões”. Notando que opovo, quando eu havia concluído, ficava pasmado e me olhavacom admiração, eu lhes disse: “Se desejais saber quem sou,meu nome é João Wesley. Às cinco da tarde Deus meajudando, eu proponho-me a pregar aqui outra vez”.

“Às cinco horas, o outeiro em que eu tencionava pregarestava apinhado de gente desde o pé até o cume. Nunca vitanta gente congregada, nem em Moorfields nem na praça deKennigton. Eu sabia que não seria possível que a metadeouvisse, embora a minha voz fosse forte e boa e eu me posteide maneira a ter todos à vista, havendo-se enfileirado no ladodo morro. A Palavra de Deus que apresentei era: “Curarei asua apostasia; ama-los-ei voluntariamente”. Depois de terpregado o povo estava a me esmagar de puro amor ebondade. Levei algum tempo para poder sair do lugar. E entãovoltei por caminho diferente do que eu tinha vindo; masdiversas pessoas nos haviam precedido ao hotel e meimportunavam veementemente para ficar com elas, pelomenos uns poucos dias ; e quando não, ao menos um diamais. Mas eu não consenti , pois tinha empenhado a minhapalavra de estar em Bristol, com a ajuda de Deus, na noite deterça-feira.”

Entretanto Wesley não teve de enfrentar unicamente os céustempestuosos e viagens intermináveis e enfadonhas. Teve de agüentaruma notável quantidade de oposição e vitupério públicos, que, às vezes,se transformavam em fortes e cruéis perseguições. A Inglaterra naúltima metade do século XVIII era brutal e ignorante. O seutemperamento era cruel; e os próprios esportes se assinalavam comquase incrível selvageria. E as multidões daquele tempo achavam tantoprazer em perseguir a um infeliz pregador metodista como emtestemunhar um pugilato ou em atormentar um urso. Wesley conta ahistória destas perseguições com o seu modo sucinto e pacífico, semcomentário ou queixa; mas através de suas palavras calmastransparece a história da brutalidade humana – e de coragem humana –não fácil de igualar.

Em Wednesbury, por exemplo, houve um período de perseguiçãoque se estendeu desde junho de 1743 até fevereiro de 1744. Nestes

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oito meses a cidade estava praticamente – quanto aos metodistas – sobo governo de arruaças. Os magistrados e o clero conspiraram com opovo contra os seguidores de Wesley. Estes sofreram quase tantasinjustiças como os judeus em Kischineff, sob o governo Russo. Eramsaqueados, açoitados e corridos pelas cidades e maltratados ao belprazer dos arruaceiros. Wesley faz um esboço da história:

“Desde o dia 20 de Junho p.p., o povo de Walsal,Darlaston, e Wednesbury, assalariado para este fim por seussuperiores. tem saqueado as casas de seus pobres vizinhos;arrancando dinheiro daqueles que o tinham; tirando-lhes oudestruindo-lhes os bens e comestíveis; açoitando-lhes eferindo-lhes os corpos; ameaçando-lhes a vida; abusando desuas mulheres – algumas de uma maneira demais horrívelpara se publicar – e declarando abertamente que haviam deacabar com todos os metodistas no país, país cristão onde ossúditos inocentes e leais de sua Majestade foram destamaneira tratados durante oito meses, e são agora por seusatrozes perseguidores, taxados publicamente de arruaceirose incendiários”.

Uma arte predileta e mortífera de perseguições era prender osseguidores e pregadores de Wesley e obrigá-los a ingressarem noexército ou na marinha. A história de Thomas Beard merece sercontada como narrada no Diário de Wesley:

“Thomas Beard era um homem sossegado e pacífico quehá pouco tempo foi arrancado de seu ofício, mulher e filhos, eenviado a servir como soldado, isto é banido de tudo que era paraele prezado e querido e obrigado a viver entre leões, por nenhumoutro crime praticado ou pretenso, do que o de chamar ospecadores ao arrependimento. Mas a sua alma em nada seatemorizou com os seus adversários. Entretanto depois de umcerto tempo o corpo sucumbiu sob o grande fardo. Ele então foienviado para o hospital em New Castle, onde aindacontinuamente louvava a Deus. Aumentando a sua febre, foisangrado. O seu braço arruinou-se e gangrenou e foi amputado;dois ou três dias depois Deus lhe deu baixa e chamou-o para oseu lar eterno”.

Das experiências pessoais de Wesley alguns exemplosmerecem menção:

“Apressei-me em ir a Gaston Green, perto de Birmingham,onde havia ponto de pregação às seis horas. Mas era perigosopara os que ficaram para ouvir, pois pedras e torrões estavamvoando por todos os lados, quase sem intermissão (interrupção),por mais ou menos uma hora. Entretanto bem poucas pessoasforam embora. Depois eu assisti na sociedade e exortei-os, emface de homens e de demônio, a continuarem na graça de Deus”.

Uma experiência ainda mais excitante lhe esperava um poucotempo depois:

“Segui para Falmonth. Quase ao sentar-me, a casa achava-se rodeada de todos os lados por uma multidão inumerável degente. Talvez não houvesse mais ruidosa confusão em tomar umacidade por assalto. O vulgacho (multidão, povo) clamava em altavoz: “Fora com o Canorum (palavra que os habitantes deCornwald geralmente empregavam para metodista). Onde está oCanorum? Não havendo resposta, eles logo forçaram a portaexterior e encheram o corredor. Somente existia entre nós e osdesordeiros uma parede de tábuas que não duraria por muitotempo. Eu agora tirei da parede um grande espelho receando quetudo viesse a cair junto. Quando começou o seu trabalho, comtantas imprecações (pragas, xingamentos), a pobre Catharinaestava de tudo surpreendida e clamou:” Ó Senhor que faremos?“Eu disse: “Oremos”. E realmente naquele instante parecia que asnossas vidas não valiam uma hora (muito pouco). Ela perguntou:“Mas, senhor, não achais melhor esconder-vos, entrar numaposento?” Eu respondi. “Não, é melhor que eu fique onde estou”.Entre os que estavam de fora havia os tripulantes de unscorsários que acabavam de chegar no porto. Alguns destesficaram muito incomodados com a morosidade dos outros,tomaram-lhes o lugar, e todos juntos, pondo os ombros à portainterior, clamaram: “Eia rapaziada, eia!“ Cederam de vez asdobradiças e a porta caiu para dentro da sala. Eu adiantei-me atéchegar ao meio deles e disse: “Aqui estou. Quem dentre vós temalgo a me dizer? A qual de vós tenho feito mal? A vós, ou a vós,ou a vós? Continuei a falar até chegar mesmo, sem chapéu comoeu me achava – pois propositalmente eu deixara o chapéu paraque eles me vissem plenamente a cara – ao meio da rua, e entãoerguendo a voz lhes disse: “Vizinhos, patrícios, desejais ouvir-mefalar?” Eles clamaram veementemente, “Sim, sim. Fale, ele há defalar. Ninguém lhe impeça”.

“Nunca vi antes – nem mesmo em Walsal – a mão de Deus

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tão claramente manifesta como aqui. Ali eu tinha muitoscompanheiros que estavam prontos a morrerem comigo, aquinenhum amigo senão uma menina que também foi me tirada numinstante, logo que ela saiu da porta da casa da Sra. B. recebialguns golpes, perdi uma parte da roupa, e fui coberto de terra.Aqui embora as mãos de centenas de pessoas se achavamlevantadas para darem em mim ou para me apedrejarem,entretanto eram todas sustadas no ato, de modo que ninguém metocasse, nem com um dedo sequer, nem lançassem coisa algumana minha direção desde o começo até o fim, de modo quenenhuma mancha me ficou na roupa. Quem pode negar que Deusnão ouve a oração, ou que ele não tenha todo o poder no céu ena terra?“

Sob tais condições Wesley ainda prosseguiu, com irresistívelligeireza, em seu grande trabalho. A área de seus trabalhos alargava-se. Ele foi para o norte até a Escócia, fazendo nada menos de vinte euma viagens pelas cidades e vilas escocesas. Ele atravessou o canalde S. George quarenta e duas vezes e fez a impressão de sua grandepersonalidade e zelo ardente sobre a Irlanda. Ele atraiu para sicamaradas e achou ajudantes e pregadores entre os seus convertidos,tornando-se não um combatente singular mas o general de um exército.E o trabalho de pregação – constante em zelo, vasto em escala eintenso em ardor, como era – formava somente uma parte do labor deWesley. Lado a lado com estes itinerários de pregação existe umacorrente continuada de outras formas de atividades. Levantavam-segrandes polêmicas, como veremos mais adiante, e seguiram o seucurso, e morreram; perseguições foram sofridas e esquecidas; e igrejasconstruídas. Mil escândalos romperam-se ao redor de Wesley. Os seusamigos lhe abandonaram, e seus camaradas muitas vezes lheprovaram infidelidade. Foi apedrejado pelas multidões, mofado pelosdoutos, desprezado pelo clero e não raras vezes, os mesmos homensque ele tirara do pecado e da morte viraram-se contra ele. O seu irmãoCarlos casou com uma mulher rica e rodeou-se com os confortos de umlar fixo. Whitefield ficou absorto em seu orfanato na América.

A única alma firme e inabalável que nunca duvidava, nemtitubeava, nem se desanimava, foi João Wesley! Ele era o apóstoloitinerante, quase até a hora da sua morte. E ele imprimiu ascaracterísticas de sua própria vida, para todo o tempo, sobre a Igrejaque fundou. É a Igreja do ministério itinerante.

Mais tarde, o trabalho de Wesley toma uma nova forma – uma

forma mais trabalhosa do que as suas viagens intermináveis – einfinitamente mais perturbadora. Doutrinas falsas apareceram entre osseus seguidores; estranhas formas de imoralidade manifestaram-se; e avida espiritual enfraqueceu. Durante os últimos anos de seu apostoladoWesley estava incessantemente "purificando” as suas sociedades,expulsando os membros indignos e estabelecendo a disciplina salutar.Em suma ele estava edificando uma Igreja sem o saber e semtencioná-lo. E através de todo o pó e tumulto de suas viagens depregação, os vigilantes vêem as linhas de uma grande Igreja, que seerguia, como veremos mais tarde. É uma Igreja que não foi formadano sossego do gabinete do fil ósofo, mas nos fogos do conflito e dapolêmica. Cada nova fase do grande edifício é construída segundoas exigências, e para preencher alguma precisão urgente e visível.Ela é experimentada pela dura e rígida lógica dos fatos. E quando seconta a história do trabalho de Wesley como pregador itinerante,grandes domínios de sua vida ainda não são tocados nem descritos.Era estudante, diretor e general de uma grande campanha, bemcomo pregador; e se não fosse nada disso, si mplesmente a suacorrespondência e produções literárias seriam suficientes paraencherem a vida de um homem qualquer. Mas quando todas essasformas de atividades variadas – como pregador estudante, viajantedirigente, polemista e escritor – são encerrad as nos estreitos limitesde uma só vida humana, a soma total de energia que representam,não é menos do que surpreendente.

Como fez? Ele lia, escrevia, pregava; era de fato o bispo deum grande rebanho espiritual. Estava sempre no púlpito ou a cavalo .Nunca se achava apressado! Qual era o seu segredo?

A verdade é que os seus trabalhos como pregador acham -seintercalados com freqüentes espaços de folga. Este homem queparecia viver entre as multidões, ainda tinha na vida largos espaçosde solidão. Ele prega va a congregações às cinco horas da manhã,então montava a cavalo ou embarcava na sua carruagem e dirigia -se para o lugar da próxima reunião. Entre as duas multidões eletinha horas de solidão – para pensar, ler e planejar. Pode -seacrescentar que ele era mestre na arte perigosa de ler a cavalo. Oseu trabalho era realmente um tônico físico . Pregar às cinco horas damanhã, talvez, pareça forma heróica de diligência; mas realmenteWesley demonstrou que era forma de exercício físico mui salutar!Pregar ao ar livre, com os ventos do céu soprando-lhe em redor, era –considerado pelo lado físico – uma forma de ginástica salutar.

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Essas pregações ao ar livre acham a sua melhor exposição noDiário de Wesley. O Diário famoso subsiste principalmente em brevesnotas de sermões e textos, com pequenas e ligeiras referências àsmultidões que os escutavam – o tamanho, o comportamento, a maneiraem que o discurso lhes impressionou, etc. Estas narrações sãocuriosamente condensadas e lacônicas. São escritas em taquigrafiamental bem como literal. Wesley vê a multidão por um momento,condensa a história do sermão e de seus resultados numa só sentença;acrescenta um desejo piedoso por uma benção, e então seguepressurosa e abruptamente para outra multidão. E aquela notanotavelmente ligeira; e economicamente parcimoniosa em descrição, écaracterística do Diário inteiro. Então vêm, intercaladas entre essasnotas de sermões, textos e multidões, narrações de conversõesestranhas, de curiosas experiências espirituais, de encontros compersonalidades excêntricas, e de conversas esquisitas com elas, comnotas sobre livros, paisagens e acontecimentos.

Não é fácil compreender, ao correr a vista por estas sentençasligeiras e comprimidas, a intensidade do labor que representam. Bempoucos oradores de hoje sabem que é falar a uma multidão de cinco milpessoas: o gasto de energia nervosa, a tensão sobre a garganta e océrebro, sobre o corpo e a alma. Mas João Wesley fez isso, nãosomente a cada dia, mas freqüentemente duas ou três vezes por dia. Eo fez durante cinqüenta anos e a tensão não o matou!

A campanha de Gladstone em Midlotham em 1879 é famosa nahistória: mas limitou-se a um pedacinho da Escócia; durou quinze dias erepresentou, talvez, vinte discursos. Mas Wesley dirigiu a suacampanha numa escala que reduz os feitos de Mr. Gladstone a umainsignificância. Ele a fez no grande palco dos três reinos, e a mantevesem quebra (interrupção) durante mais de cinqüenta anos!

Mr. Gladstone, em Gravesend, em 1871, falou por duas horas aum auditório de vinte mil pessoas, e Mr. João Morley, o seu biógrafoadmirado, afirma que o discurso, tanto física como intelectualmente, é omaior feito da carreira de Mr. Gladstone. Mas para Wesley o falar aauditórios tão vastos e sob circunstâncias igualmente difíceis eraexperiência comum que ele repetiu incessantemente até a extremavelhice. Gladstone tinha sessenta e dois anos quando fez o discurso deGravesend. Quando Wesley tinha esta idade o seu Diário está repletode notas como esta:

“Domingo, 10 de agosto de 1766. Depois de ter-se feitooração na Igreja, preguei no cemitério a uma grande

congregação: à uma hora da tarde a vinte mil e entre cinco e seishoras a outra congregação igual. Foi este o dia do maior trabalhoque tenho tido desde que saí de Londres, sendo obrigado a falarem cada lugar desde o começo até o fim, até onde desse a minhavoz. Mas as minhas forças têm sido segundo o meu dia”.

.Sete anos mais tarde (23 de agosto de 1773) ele diz:

“Preguei nos poços de Grennap a mais de trinta e duas milpessoas, a maior assembléia a que jamais dirigi a palavra, talveza primeira vez que um homem de setenta anos fora ouvido portrinta mil pessoas numa só ocasião.”

Portanto a voz de João Wesley devia ter sido de muito mais forçado que a de Gladstone. Ele escreveu no seu Diário sob a data de 5 deAbril de 1752:

“Cerca de uma hora eu preguei em Bristol. Notando quealguns estavam sentados no lado oposto do outeiro, depois pedique alguém medisse a distância, e achamos cento e quarentajardas do lugar onde eu me postei, entretanto o povo ouviuperfeitamente. Não julguei que havia voz humana que tivessealcance tamanho”.

Não é exagero dizer-se que João Wesley pregou mais sermões,viajou mais léguas, trabalhou mais horas, fez imprimir mais livros einfluiu em mais vidas do que, qualquer outro inglês do seu século outalvez de qualquer outro século. E o trabalho nem lhe cansou! Em 1773ele escreve:

“Tenho setenta e três anos, e estou muito mais forte parapregar do que quando tive vinte e três”.

Dez anos mais tarde este admirável homem de 83 anos escreve:“Já entro nos meus oitenta e três anos. Sou uma maravilha

para mim mesmo. Nunca me canso em pregar, em escrever, nemem viajar”.

Em seus discursos às multidões deve-se lembrar que Wesleytratava dos assuntos mais tremendos; ele despertava as mais profundasemoções nos seus ouvintes. E quando havia erguido uma vastamultidão de homens e mulheres a um fervor elevado e intenso deemoção religiosa, ele passava apressadamente para outra multidão enela operava o mesmo milagre. Ele mesmo mantinha uma calmanotável – uma calma que representava o equilíbrio das grandesemoções, não a sua ausência – em todos os seus serviços. Mas as

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emoções que as suas palavras acordavam nas multidões atenciosaseram freqüentemente de notável intensidade. Ele de alguma maneiratornou-se canal de forças estranhas; tinha o poder de conter uma vastamultidão do povo e artistas ingleses num silêncio solene, fixo e temível.De repente uma onda de emoção sobrepujante corria sobre os ouvintes,os homens caíam como que fulminados por um raio sob a sua palavra.Muitas vezes ele nota que, enquanto pregava, via-se obrigado a pararpara cantar ou orar, a fim de permitir que as emoções de seusouvintes achassem expressão. Ele dá muitos exemplos do efeitoimediato, visível e dramático de seus sermões.

Para congregar as multidões Wesley não se serviu dequalquer dos meios familiares de hoje. Não havia anúncios, nemcomissões locais, não havia jornais amigos, nem as atrações d egrandes coros. É ainda um problema saber -se de que modo asmultidões foram induzidas a se congregarem, porque Wesley nãooferece qualquer indicação de organização alguma para este fim.Parecia como se os ouvintes lhe esperassem, para surgirem à suafrente, como se por algum sibilar misterioso, vindo do espaço. Erahábito constante de Wesley pregar às cinco horas de cada manhã efreqüentemente foi despertado muito antes desta hora pelas vozes,às vezes pelos hinos, da multidão que já se ajuntara. Como foi queele conseguiu ajuntar no crepúsculo da aurora, e freqüentementeenquanto as estrelas ainda eram visíveis no céu, tais multidões paraouvi-lo?

Quem lê o Diário e as cartas de Wesley durante este períodohá de notar uma mudança notável. Algo tem desapa recidorepentinamente da vida de Wesley. A inquietação velha eimpertinente – o cansaço, a amarga censura de si mesmo, o suspirode anelos derrotados – todos já se foram! Estas coisas haviamconstituído durante quatorze anos a sua religião. Agora tudo semudou. Eis um homem que já alcançara a certeza. A religião não épara ele uma simples aspiração, mas é uma possessão. É homemde um espírito mais humilde do que nunca; entretanto ligada a estahumildade de criança existe a confiança exultante de um grandehomem santo, a calma serena de uma alma que já passara além doconflito e alcançara a vitória. A sua serenidade de espírito quecuidado algum podia perturbar, nem ansiedade alguma escurecer,não era menos do que uma maravilha. Se aparentemente falha por ummomento, é só por um instante, para a admiração do próprio Wesley.Diz ele:

“Eu me admirara muitas vezes de mim mesmo – e às

vezes o mencionara a outros – que dez mil cuidados de váriasespécies não me pesavam mais o espírito do que dez milcabelos me pesavam a cabeça. Talvez eu começasse aatribuir algo disso às minhas próprias forças. E talvezresultasse que no domingo 13 o poder me fosse negado e eume sentisse perplexo acerca de muitas coisas. Uma após outrame acossava constantemente, e turbava o espírito, mais emais, até eu achar necessário correr pela vida, e isto semdemora. De modo que no dia seguinte, segunda-feira 14, eumontei a cavalo, dirigi-me a Bristol. Logo que chegamos a casaem Bristol minha alma achou-se aliviada da sua indizível cargaque me havia pesado o espírito, mais ou menos, por algunsdias”.

“Um pouco mais trabalho”, para esta vida tão cheia de fadigas,era, no dizer de Wesley em outra passagem do seu Diário, um tônicoque matava o cuidado!

Qual foi o poder que fundia uma vida, tão dividida entre tantosinteresses, numa unidade; que dava a uma única vontade o poderresistente de aço e que fazia de um homem falível uma força tremenda,e o conservava num plano tão alto? A explicação acha-se no domínioespiritual. Wesley havia se apossado do segredo central docristianismo. Ele vivia, pensava, pregava, escrevia, trabalhava sob oimpério unido de motivos augustos, as forças divinas da religião.

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CAPÍTULO XIX

Uma Nova Ordem de Auxiliares

Ainda depois de sua conversão Wesley possuía todas ou quasetodas as prevenções do ritualista; e entre as mais obstinadas destasestava a sua prevenção contra a pregação leiga. Tocar neste ponto,como ele mesmo dizia, era tocar na menina dos olhos. Somente oclérigo devidamente ordenado ligado por uma corrente multissecular deordenações até os próprios Apóstolos tinha o direito de se por no púlpitopara pregar a seus semelhantes. Que um simples leigo ordenado porninguém, subisse àquela sagrada eminência, ou ousasse interpretarcom lábios seculares as Escrituras a seus semelhantes, para Wesleyparecia nada menos do que um sacrilégio. Ele sentia ao contemplar talespetáculo, como sentiria o sacerdote judeu se visse alguém que nãofosse da tribo de Levi a ministrar ao altar. Entretanto, tal é a sátira dahistória, Wesley era destinado a fundar, a Igreja que emprega maispregadores leigos e lhes emprega com mais êxito e honra do quequalquer outra Igreja conhecida na história!

Foi a irresistível compulsão dos fatos que sempre para ele a maisalta forma de lógica, venceu-lhe a prevenção. O seu trabalho estendeuem escala que lhe sobrepujava as forças. O número de seus conversostão rapidamente se multiplicava que se tornou imprescindível queWesley provesse pela supervisão deles. Tinha de ter auxiliares eassociados. No princípio uns poucos clérigos de temperamentoespiritual lhe ajudavam; mas eram poucos. A opinião pública de suaclasse também lhes estava oposta. Estavam ancorados em suasparóquias. Não podiam marcar passo com o impetuoso trabalho deWesley, nem com a força poderosa que ele representava. De fato elesse tornavam receosos do movimento e das forças estranhas quepulsavam nele. Os que odiavam o movimento tiravam conforto dareflexão de que se achava suspenso pelo fio delgado de uma só vidahumana. Quando, pelo cansaço, doença ou morte, ficassem silenciadosos lábios desse homem, ficaria igualmente silenciado todo o tumulto doavivamento. Com a morte de Wesley, criam eles, o seu trabalhodesapareceria. Não tinha aliados, nem poderia ter sucessores. MasWesley escreveu mais tarde:

“Quando eles imaginavam que efetivamente havia cerrado aporta e trancado a avenida única pela qual o auxílio poderia

chegar a dois ou três pregadores, fracos de corpo bem como dealma, os quais, humanamente falando, eles razoavelmenteesperavam, haviam de gastar-se em pouco tempo; quandohaviam ganho a vitória, como imaginavam por terem conseguidotodos os instruídos da nação, Aquele que está sentado nos céus,ria-se, o Senhor zombava dele, e investia contra eles de um modoinesperado. Das pedras Deus levantou os que haviam de suscitarfilhos a Abraão. Nós não tivemos mais arraigadas previsões dissodo que vós. Ainda mais; tínhamos as mais arraigadas prevençõescontra isso, mas afinal tínhamos de admitir que Deus deu asabedoria lá do alto a estes homens indoutos e ignorantes, demodo que a obra do Senhor prosperava nas suas mãos, epecadores diariamente se convertiam a Deus” (Southey Vol. I,pág. 307).

De antemão, era uma das certezas do avivamento que Wesleyatrairia a si um corpo de auxiliares dentre os seus conversos; entretantoé quase divertido notar-se quão dificilmente, e com que passosrelutantes, para não dizer resistentes, ele se moveu nessa direção. Masfoi levado por forças demais poderosas para serem resistidas. As novase alegres energias espirituais que se despertavam nas multidõesinevitavelmente rompiam em palavras. Eram vãos os esforços para,conservá-las decorosamente inarticuladas.

Depois que Whitefield pregara uma tarde no cemitério de Islingtonum leigo, por nome Bowers, no regozijo de sua nova vida espiritual,subiu à mesa quando Whitefield concluíra e começou a falar à multidão.Todas as sensibilidades eclesiásticas foram feridas pelo espetáculo.Carlos Wesley, que se achava presente, tentou em vão fazer com queBowers se calasse e, por fim, como protesto, retirou-se indignado. Ozelo deste leigo demasiado ousado era inextinguível. Ele tentou, emoutra ocasião, pregar nas ruas de Oxford, foi preso pelos guardas, erepreendido asperamente por Carlos Wesley pela obstinação com queusara de sua língua.

É admissível que o orador voluntário necessitasse de repressão;mas Wesley foi obrigado a escolher dentre os seus camaradas os queos seus olhos jeitosos – e ele possuía a perspicácia de um grandegeneral em descobrir instrumentos idôneos – consideravam deprudência e confiança, bem como zelosos e aptos, para zelarem osconversos em um lugar enquanto ele seguia para outro lugar depregação. Os auxiliares eram em todo o caso voluntários. Assim pelosfins de 1739 Wesley registra:

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“Veio-me um moço chamado Thomas Maxfield, desejandoajudar-me como filho no Evangelho. Logo mais veio outro,Thomas Richards, e então ainda outro Thomas Westal. Todos ostrês desejavam servir-me como filhos, como auxiliares, quando eonde eu determinasse.”

Os nomes desses homens merecem viver na história; poisconstituíram a guarda avançada de um grande e nobre exército.

Mas se Wesley aceitava tais auxílios o fazia com bastanterelutância, com muitas dúvidas, e somente a título de grandenecessidade. Não lhes proibiu, nem Ihes sancionou expressamente, eao princípio, apenas “permitiu” a pregação leiga. Mas isto com dúvidas,e dúvidas que olhavam em duas direções; duvidava se devia fazertanto, e duvidava se não devia fazer mais.

“Não é nos manifesto, diz ele, que presbíteros, achando-seem nosso caso, devam nomear ou ordenar a outros, mas é claroque podemos dirigir, bem como permiti-los a desempenhar aquilopara o qual cremos que foram movidos pelo Espírito Santo afazer. Julgamos que os que são unicamente chamados de Deus enão dos homens, tenham mais direito a pregar do que aquelesque são chamados unicamente pelos homens e não de Deus.Mas é inegável que muitos clérigos, embora chamados peloshomens nunca foram chamados por Deus para pregar oEvangelho. Primeiro, porque eles mesmos de tudo negam, simaté ridicularizam a chamada interior; em segundo lugar nãoconhecem o que é o evangelho; e, por conseguinte não o pregame nem o podem pregar. Que ainda não fui longe demais, sei eu;mas se tenho ido bastante longe, eu duvido seriamente. Clérigosque destroem almas me colocam mais dificuldades do que leigosque as salvam”. (Southey, VoI. I pág. 307)

A principio Wesley permitiu aos auxiliares a exortarem, masrigorosamente proibiu-lhes de pregarem. Poderiam fazer uma exposiçãodas escrituras, mas não se aventurar no trabalho solene de proferir umsermão. Entretanto isto obviamente era um arranjo que não poderiaperdurar. Quem havia de determinar, o ponto exato aonde a exortaçãochega à grandiosa dignidade de um sermão? E porque um discursolícito, e até louvável, como exortação se tornaria repentinamente emimpiedade quando identificado como sermão?

João Wesley se achava em Bristol quando lhe chegaram as novas

de que MaxfieId, o seu primeiro auxiliar, que ele deixara em Londres,estava pregando. Todo o sacerdotalismo (clericalismo, ritualismo)existente em Wesley, e havia muito sacerdotalismo atrás de seu narizcumprido e abaixo de sua cabeleira, se incendiou. Apressadamentevoltou a Londres, cogitando em irritante alarme sobre o supostoescândalo. Mas a sabia mãe lhe disse ao encontrá-lo:

“Tende cuidado, João, o que ides fazer daquele jovem, poisé ele tão certamente chamado por Deus para pregar como vós.Examinai quais os frutos de sua pregação e então o ouvi por vósmesmo”.

As palavras da mãe tocaram numa corda mui sensível nainteligência e consciência de Wesley. “Os frutos de sua pregação!“ Sãofinais! O sermão que converte almas está assinalado com a aprovaçãode Deus. As prevenções de Wesley eram fortes, mas sempre cediamdiante dos fatos. Ele escutou, vigiou, meditou e decidiu. Disse afinal: “Édo Senhor, faça Ele o que lhe aprouver”.

Wesley logo achou outro exemplo, ainda mais notável e decisivodo que o de Maxfield, onde a pregação de um leigo foi assinalada, emcaracteres visíveis a todos com a aprovação de Deus; João Nelson,cuja história espiritual é um dos romances do metodismo primitivo, poralgum tempo exortara a seus vizinhos em Bristol. Ele disse de si mesmonesse tempo, ”Antes eu desejaria ser enforcado numa árvore do quepregar”. Mas as multidões que lhe rodeavam para ouvir as suaspalavras, achando nelas a energia transformadora, lhe animavam, eNelson, surpreendido por si mesmo, achou-se culpado de ter pregadoum sermão. Ele escreveu a Wesley pedindo que lhe aconselhasse:“Como prosseguir no trabalho que Deus começara por um instrumentotão rude como eu me acho?”. Em seguida Wesley desceu a Bristol.Nelson diz: “Ele sentou-se à lareira, na mesma atitude que eu sonharaquatro meses antes, e falou as mesmas palavras que eu sonhara queproferira”. Wesley achou tanto o pregador como a congregação deBristol levantados sem qualquer ato ou conhecimento dele, e enquantocontemplava e ouvia, sentiu que a questão de pregação leiga foradeterminada para todo o sempre. Ele logo reconheceu nesta novaordem de obreiros cristãos, que lhe surgia diante dos olhos, a soluçãode um grande problema.

Que espécies de homens eram os auxiliares que assim rodeavama Wesley e davam largueza, continuidade e permanência a seutrabalho? As suas biografias estão escritas em volumes já desbotados equase esquecidos, donde nos surgem as suas faces com efeito curioso.

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A arte do século era bem cruel a seus fregueses , e os retratos dosauxiliares de Wesley, forçoso é confessá-lo, são não poucas vezes deuma qualidade assustadora. Não são muitas vezes faces deintelectuais. A santidade ainda não teve tempo para suavizar as feiçõesrudes e fortes do lavrador, do pedreiro, ou do soldado raso. Southey(um historiador metodista), ao descrever, por exemplo, o retrato de JoãoHaime, dá um catálogo cruel de suas feições:

“olhos pequenos e sem expressão, sobrancelhasescassas, um nariz largo e vulgar, num rosto de proporçõesordinárias, pareciam assinalar um sujeito que seria contente emviajar a passos lentos pelo caminho da mortalidade, sem desejarmaior prazer do que fumar e beber em qualquer cantinho.Entretanto João Haime passou a vida inteira numa continuadasessão espiritual”.

Mas “a sessão espiritual” de João Haime, com as alternativas defogo e gelo, de grande ansiedade e arrebatamento exultante, era afinal,infinitamente mais nobre do que o contentamento animal em que amaioria de seus conterrâneos nesse tempo vivia.

Estes homens, não obstante todas as limitações, merecem sercontados entre os heróis de Deus Possuíam algo da paciência divina,da coragem que coisa alguma pode abalar, dos mártires do cristianismoprimitivo. Eram santos como Francisco de Assis, e sonhadores comoJoão Bunyan. Tinham uma visão constante do mundo espiritual.

Para Bunyan, “tudo acima de Elston Green era céu, embaixo erainferno”. E os primeiros predadores de Wesley viram a todos os homensentre tais extremos medonhos. Possuíam todo o zelo dos pregadoresfrades da Idade Média, com uma teologia melhor do que a destes e umamoralidade infinitamente melhor. A sua palavra servia de canal de umpoder que estava além tanto da compreensão como da análise darazão. Deveras, quanto mais os críticos enfaticamente escarneciam dahumilde origem, da educação insuficiente, e da simplicidade inculta,destes primeiros pregadores do metodismo, tanto mais maravilhosoparece o seu trabalho. Qual era o poder estranho que se apossoudestes homens incultos, lhes transformando e erguendo às alturas degrandes e sagradas emoções, e que não somente os fazia oradores quearrebatavam as multidões, mas apóstolos que salvavam almas? Mas omilagre grande e perpétuo do Cristianismo, o milagre que opera atransformação de bêbados em homens sóbrios, ladrões em homenshonestos, e prostitutas em mulheres castas, foi, de algum modo,efetuado pela pregação dos auxiliares leigos de Wesley. Foi deveras

operado em escala que deixou o ministério ordeiro e formal inteiramentefalido.

A vida dos primeiros pregadores do metodismo pertence aodomínio da literatura esquecida; entretanto, os que exploram essasbiografias mortas acharão nelas presa rica e esquisita. É pela maiorparte escrita em um inglês comum, o inglês de Bunyan e Cobbett.Abundam em incidentes estranhos, e são retratos notavelmente clarosde caracteres descomunais. A história de João Nelson, por exemplo,poderia ser descrita como “A graça Abundante” de Bunyan, outra veztraduzida em termos humanos. Nelson era tipo o do verdadeiro yorkano(cidadão de York, na Inglaterra, que deu nome nos Estados Unidos àcidade de Nova York), forte, cabeçudo, dotado de humor esquisito e debom senso, e dotado, também, de uma capacidade pelo sentimentoprofundamente religioso. Ele possuía segundo diz o próprio Southey,“espírito tão elevado e coração tão corajoso como qualquer inglêsjamais”. As lutas religiosas pelas quais passou merecem classificação,com as de Bunyan ou de Francisco de Sales e são descritas com igualclareza. Ele teve uma mocidade tempestuosa, e aos trinta anos deidade diz:

“preferiria ser antes enforcado a viver outros trinta anossemelhantes aos que já passei. Decerto, Deus não fez o homempara ser um tal enigma para si mesmo e deixá-lo assim! Devehaver algo na religião que eu ainda não conheço pra saciar oespírito vazio do homem, ou então ele está em pior estado doque os amimais que perecem”.

João Nelson ouviu Whitefield pregar, mas o mais melífluo (de vozou maneiras brandas ou doces, que flui como mel, brando) de todos ospregadores não agradou o forte yorkano. Mais tarde João Nelson ouviuJoão Wesley. Diz ele: “Ó quão feliz manhã aquela para a minha alma”.A sua descrição da pregação de Wesley é clássica e já foi citada.

Pode-se imaginar quão heróico seria o temperamento com queNelson tomaria a sua religião. Não conhecia meios termos. Ele levou oseu espírito heróico para o domínio de sua piedade e repreendeu opecado tanto nos nobres como aos demais. Era pedreiro e nesse tempotrabalhava no Exchequer, um edifício real. O mestre de obras exigiu quetrabalhasse no domingo, dizendo que era negócio do rei e que até osDez Mandamentos teriam de ceder diante da realeza. O honestoyorkano declarou que não trabalharia no domingo para homem algumna Inglaterra. O mestre lhe disse: “Então a tua religião te faz inimigo dorei”. Nelson respondeu: “Não senhor, os maiores inimigos do rei são os

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que profanam o domingo, os blasfemadores, os bêbados, e osfornicadores, estes atraem sobre o país e sobre o rei os juízos deDeus”. Foi-lhe dito que teria de perder o emprego se não obedecesseàs ordens; mas ele respondeu, “que seria melhor ter falta de pão do quevoluntariamente ofender a Deus”. O mestre asseverou que Nelsonestaria logo tão louco como Whitefield, se continuasse assim. Disse aJoão Nelson:

"Que fizeste que precisas de falar tanto da salvação?Sempre te considerei tão honesto como qualquer homem noserviço e eu era capaz de confiar-te a guarda de quinhentaslibras”. Nelson respondeu: "Bem poderias e não terias perdidoum penny sequer. Mas eu tenho muito pior opinião de ti agora”,disse o mestre. “Mestre”, respondeu ele, “eu te levo a vantagem,pois tenho muito pior opinião de mim mesmo, do que tu podester”.

O zelo de João Nelson era de tipo tão ardente que de seusescassos ganhos ele pagou um de seus companheiros de ofício para ire ouvir a João Wesley pregar, e deste modo dar à sua alma umaoportunidade. A religião iluminava com lampejos de poesia aimaginação inculta deste pedreiro de York e ao descrever os seussentimentos ele diz: “A minha alma parecia respirar vida de Deus tãonaturalmente como o meu corpo respirava vida do ar comum”. O vigáriode Bristol, onde Nelson morava, para abafar este sincero cristão,conseguiu que fosse, à força, sentar praça (prestar serviço militar), eisto em desafio da lei, e a história de seus sofrimentos derrama uma luzestranha sobre as condições sociais da Inglaterra nesse tempo.

Sendo preso, fizeram Nelson marchar pela cidade de York, ondeera bem conhecida a sua reputação como um desses novos fanáticos emetodistas odiados. “Era, diz Nelson, como se o inferno se movessedebaixo para encontrar-me na chegada. As ruas e as janelas seapinhavam de gente, que chamavam e gritavam como se eu fossealguém que arrasasse a nação. Mas Deus me fez a testa como bronze,do modo que eu pudesse contemplá-los como gafanhotos, e passar acidade como se não houvesse mais ninguém ali senão eu e Deus”.Nelson, ainda que forçado a entrar nas fileiras, contudo teimava que afarda vermelha não o eximia das obrigações de pregador, e os seusoficiais ficaram surpreendidos quando ele lhes repreendia na cara porcausa de suas imprecações. Que soldado cacete (maçante) este! Umjovem porta-bandeira resolveu reprimir este ousado recruta, emanifestou talento bastante na invenção de insultos e crueldade parainfringir-lhe. Nesta fase da história o yorkano natural aparece por um

momento na autobiografia do honesto João.“Surgiu-me uma tentação forte”, diz ele “quando refleti

neste homem ignorante e perverso que me atormentava destaforma e eu capaz de amarrar-lhe a cabeça aos pés! Descobri emmim um osso do homem velho”.

Nelson, afinal, obteve baixa pela influência da senhoraHuntingdon, mas a sua história é um pedacinho de inglês tão picantecomo qualquer que se encontra na literatura do século dezoito. E a vidade muitos destes pregadores são ricas em tais narrações heróicas,comoventes, e às vezes absurdas, mas com um cintilar de nobrezamanifestando-se através das ações mais simples.

Por exemplo, Alexandre Mather, em virtude do seu sangueescocês possuía certa rigidez de corpo e uma energia fogosa notrabalho que para um homem qualquer pareceria incrível. Era padeiro,trabalhando um número de horas que o temperamento moderno achariaintolerável, entretanto achou tempo para ser um dos mais efetivosauxiliares de Wesley.

“Não tive tempo algum para a pregação senão o que eutirasse do sono, de modo que freqüentemente eu não conseguioito horas de sono numa semana. Isto junto com o trabalhopesado, abstinência constante, e freqüentes jejuns, aniquilou-metanto que o meu patrão muito cismava que eu havia de me matar,e talvez os seus receios não fossem infundados. Eufreqüentemente tirava a camisa tão molhada de suor como sefosse mergulhada em água. Depois de me apressar em concluiros meus negócios fora, voltava à tarde todo suado, à casa detarde, e mudando de roupa, corria para pregar em uma ou outradas capelas, e então andava ou corria de volta, mudava de roupaoutra vez, e entrava para o serviço às dez horas da noite,trabalhava constantemente durante a noite toda, e pregava ascinco horas da manhã seguinte. Eu então corria de volta paratirar o pão do forno às seis e um quarto (6:15h) ou às seis e meia,trabalhava na casa do forno até oito horas, e então saía paraentregar pão até a tarde, e talvez à noite ia outra vez pregar”.

Outro auxiliar de Wesley era o Thomaz Olivers, gaulês, com todasas qualidades do temperamento gaulês, o fervor, a simplicidade, anatureza poética, a capacidade pela ira repentina. Descrevendo a suaprópria condição espiritual depois de sua conversão, ele diz:

“Em verdade vivi pela fé. Vi a Deus em tudo – os céus e a

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terra e tudo que neles há me mostravam algo dele – sim, até deuma gota de água, de uma folha de erva, de um grão de areia, eutirava a instrução”.

Temos muitos exemplos divertidos acerca das suscetibilidadesemocionais de Olivers. Numa ocasião, enquanto almoçava por volta domeio dia, veio-lhe o pensamento de que ele não era chamado parapregar; a comida que então estava perante ele não lhe pertencia, e eraladrão e larápio em comê-la.

Não pôde concluir a refeição, desfez-se em lágrimas; e, tendo dedirigir um serviço à uma hora (13h), saiu em direção da casa depregação, chorando por todo o caminho, e chorou copiosamenteenquanto lia o hino, e enquanto orava e pregava. Naturalmente umaemoção contagiosa corria pela congregação, muitos entre osassistentes, “clamavam em alta voz por causa da inquietação de suasalmas”.

João Wesley mostrou-se um capitão ideal destes eclesiásticosirregulares (pregadores leigos). Eram seus filhos espirituais, bem comoseus auxiliares. O governo que exercia sobre eles tinha algo depaternal; e, no entanto, a disciplina que lhes impunha era quase heróicaem seu rigor. Eram soldados em campanha, e há mais do que umsimples toque da severidade militar as quais lhes sujeitava. Estasregras descem até os detalhes mais comuns acerca do comer e dovestir, dos modos, das horas de dormir, dos métodos de trabalhar, e deconduta geral. Nunca houve um grupo de homens que trabalhasse commais diligência, que se tratasse com mais simplicidade, ou querecebesse menos salário em moeda corrente do que a primeira geraçãode pregadores metodistas. “Nunca estar sem emprego. Nunca estar emcoisas triviais”, era regra que Wesley lhes deu – regra esta que foi osimples reflexo de sua própria prática.

O cuidado que Wesley votava a seus pregadores foi qualificadopor uma ampla apreciação da fraqueza da natureza humana. Eis algunsde seus regulamentos:

“Sede sérios.Seja o vosso moto: Santidade ao Senhor.Fugi de toda a leviandade como se fugissem do fogo do

inferno, e de coisas triviais como se fossem imprecações.Não toqueis em mulher alguma (exceto os casados com

suas respectivas esposas e os solteiros após se casarem); sejaistão amáveis quanto quiserdes, mas os costumes do país não são

para nós.Não recebais dinheiro de ninguém: se vos derem de comer

quando estiverdes com fome, e roupa quando delas precisardes,é quanto basta; mas não prata, nem ouro; que não haja ocasiãoque ninguém diga que nós nos enriquecemos pelo Evangelho”.

A inteireza, com que Wesley investigava e regulava os hábitosdomésticos de seus pregadores, manifesta-se em muitos exemplos. Elepergunta:

"Negais a vós mesmos de todo o prazer inútil, quer dossentidos, da imaginação, ou da honra? Exerceis a temperança emtudo? Por exemplo: No comer, somente tomais a qualidade e aquantidade que melhor vos serve tanto o corpo como a alma?Vedes a necessidade disso? Não comeis carne na ceia? Nãoceais tarde? Tais coisas naturalmente tendem a minar a saúde docorpo. Somente comeis três vezes ao dia? Se quatro vezes, nãosois exemplos excelentes para o rebanho! Não comeis mais doque o necessário a cada refeição? Podeis saber que sim, pelopeso do estômago; pela sonolência e indisposição; e daqui apouco, pelo enfraquecimento nervoso.Tomais unicamente aquantidade de bebida que vos servem melhor tanto ao corpocomo à alma? Bebeis agora? Já bebestes água? Por que adeixastes, senão por causa da saúde? Quando começareis outravez, hoje? Com que freqüência bebeis vinho ou cerveja? Todosos dias? Precisais deles ou estais a desperdiçá-los?”

Ele declarou como seu próprio propósito de não comer senãohortaliças nas sextas-feiras, e de tomar somente pão torrado e águade manhã, e esperava que os pregadores observ assem a mesmaespécie de jejum.

João Wesley adiantava-se tanto sobre os do seu século quechegou a compreender o poder educacional da imp rensa, esistematicamente serviu -se de seus pregadores como seu veículo.Pregador algum podia fazer qualquer excursão pessoal ao domíniode escritor, sem a permissão de Wesley; mas um sortimento doslivros que o próprio Wesley publicava, formava parte da equipagemde todo o itinerante. Wesley diz:

“Leve-os convosco, por todas as cidades. Es forçai-vosnisso. Não vos envergonheis; nem vos canseis; não deixeispedra alguma por revolver ”.

O ministério dos auxiliares de Wesley era ao princípio, de

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espécie mui ativo. Ele julgava que um pregador esgotaria a suamensagem em qualquer vizinhança no decorrer de sete ou oitosemanas. Depois desse período, dizia Wesley, «o pregador nãoacha mais assunto para pregar de manhã e à noite todos os dias,nem o povo quer vir para ouvi-lo. Entretanto, se ele não permanecerpor mais de quinze dias, achará bastante assunto, e o povoalegremente ouvirá”. Francamente prossegue Wesley: “Sei que seeu pregasse por um ano inteiro num só lugar tanto eu mesmo comoa congregação ficaríamos adormecidos”. Wesley, sabiamentebenevolente, tanto para os pregadores como para as congregações,insistia que seus auxiliares pregassem sermões curtos. Deveras seriade grande vantagem que um dos seus regulamentos fosse pintado emletras de ouro das as igrejas do mundo, hoje. Os pregadores foramadmoestados “a começarem e a terminarem justamente na horamarcada, e a concluírem o culto sempre dentro de uma hora, mais oumenos”; a adaptarem o assunto ao auditório; a escolherem o texto maisclaro e a cingirem-se ao texto, não se afastando dele nemespiritualizando de mais. Não deviam vociferar.

Wesley escreveu a um de seus auxiliares:“Deixai de gritar, pois é pôr em perigo a vossa alma. Deus

vos adverte agora por mim, a quem ele colocou sobre vós, falai detodo o coração, mas em voz moderada. Eu muitas vezes falo emalta voz, muitas vezes com veemência, mas nunca grito; nuncame esforço demasiado. Não ouso fazer isto. Sei que é pecadocontra Deus e contra a própria alma”.

Certamente se encontra nisso o sabor do bom senso. E onde nahistória, jamais houve tal combinação de zelo, que era, pela meratemperatura, sugestivo de fanatismo, ligado com tanta sanidade e comtanta inteligência prática!

Southey diz em espírito de mofa (zombaria, depreciação), dessespregadores primitivos, “que eIes não possuíam outra qualificação comoensinadores senão um bom sortimento de vigor animal e de uma fácilverbosidade, talento que, de todos, com menos freqüência acha-seligado a uma inteligência sã”. Mas esta é uma entre muitas passagensna sua “Vida de Wesley” em que as prevenções de Southey o cegamaos fatos. Esses homens eram, sem dúvida como um deles sedescreve, “pães pretos”. Mas pelo menos eles sabiam, e sabiam bem,e pela forma mais certa de conhecimento nascido da experiênciaverificada – tudo que ensinavam. Wesley energicamente diz a respeitodeles:

“Na única coisa que professam saber, não são ignorantes.Creio que não há ninguém entre eles que não seja capaz deprestar um exame em teologia substancial, prática e experimentalque poucos entre os nossos candidatos a ordens sacras, mesmona universidade, digo-o com tristeza e vergonha, mas com ternoamor, seriam capazes de fazer.” (Southey VoI I, pág. 310)

Entretanto o próprio Wesley, como douto, odiava a ignorância, etrabalhava com uma diligência quase divertida para educar os seusauxiliares. Insistia que fossem leitores, e lhes repreendia asperamentequando lhes achava negligentes de seus livros. Assim escreve a umdeles:

"A vossa capacidade na pregação não aumenta. É amesma hoje que era há sete anos. É viva, mas não profunda,Tem pouca variedade; não tem largueza de pensamento.Somente a leitura pode remediar isto, junto com a meditação e aoração diárias. Vós vos prejudicais grandemente por estaomissão. Sem isto nunca serás um profundo pregador, e nemmesmo cristão completo. Começai! Determinai uma certa parte decada dia para o exercício particular. Podeis adquirir o gosto quepor ora vos falta. O que parece cansativo no começo, depois setornará agradável. Quer gostais quer não, lede e oraidiariamente. É em abono da vossa vida. Não há outro meio; deoutra maneira estareis vos ocupando com trivialidades durantetoda a vida, e sereis pregador bonito, mas superficial. Fazeijustiça a vossa própria alma, lhe dê o tempo e os meios para oseu crescimento; não vós façais passar fome por mais tempo”.

Wesley estava sabiamente solícito acerca do estilo de seusauxiliares no púlpito; e segundo ele, no púlpito, a principal de todas asvirtudes, de espécie literária, era a clareza. Ele escreve a um de seusauxiliares:

"A clareza é necessária para vós e a mim, porque temos deinstruir gente de tão pouco entendimento. Por isso, nós, mais doque ninguém; ainda que pensemos com os sábios, precisamosfalar com todos. Devemos empregar constantemente as palavrasmais comuns, curtas e fáceis que a língua nos oferece, contantoque sejam puras e apropriadas. Quando comecei, em Oxford, afalar ao povo, no castelo da cidade, notei que ficaramboquiabertos e admirados. Isto logo me obrigou a mudar de estilo,e a adotar a linguagem daqueles a quem eu me dirigia; e aindahá uma dignidade da sua simplicidade que não édesagradável para os da classe mais nobre.“

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Os pregadores do metodismo primitivo, se não sabiam muito do“pensamento elevado” (acadêmico, escolarizado, culto), tinhamexperiência (e cultura) abundante da “vida simples”. Wesley quis queMather lhe acompanhasse em viagem de pregação na Irlanda, eperguntou-lhe quanto julgava suficiente para o sustento da mulherdurante a sua ausência. Mather fixou a quantia modestamente em 4shillings por semana, E esta foi como excessiva! A mulher de umauxiliar metodista naqueles dias heróicos devia ter possuído um espíritoainda mais frugal do que a mulher de João Gilpin. Esperava-se que oauxiliar, quando em viagem de pregação, achasse a comida entre osseus ouvintes. Quando estava em casa a esposa recebia um schilling eseis pence por dia pela manutenção do marido, entendido que quando omarido fosse convidado comer fora o preço da refeição seria deduzidode um schilling e seis pence. À esposa dava-se quatro shillings porsemana com mais uma libra por trimestre por cada filho.

Na IX Conferência Metodista, que se celebrou em outubro de1752, em Bristol, foi estipulado que os pregadores recebessem dozelibras por ano para se proverem das coisas necessárias. A sua lista decoisas devia ter sido de brevidade espartana. Mas, mais de doze anosdepois, na Conferência de 1765, foi admitida e ouvida uma delegaçãodo circuito de York que achava excessiva a soma de doze libras porano! Antes de 1752 cada circuito fazia o seu próprio arranjo financeirocom os pregadores e às vezes eram de uma espécie bastanteinteressante.

Ainda em 1754, era costume no circuito de Norwich, por exemplo,dividir o dinheiro da coleta da festa de caridade entre os pregadores, e“isto”, diz Myles, com certo acento melancólico, “era muito pouco”.

Quando houve na história uma ordem de pregadores tão poucodispendiosa como a dos primeiros auxiliares de Wesley? Elesentesouraram muito no céu, mas aqui no mundo tinham os bolsos bemvazios. Um deles, João Jane, morreu em Epworth. Os seus havereseram insuficientes para pagar as despesas do enterro, que importavamem uma libra, dezessete schillings e três pence. Todo o dinheiro quedeixou importava em um schilling e quatro pence. Wesley laconicamentediz, “bastante para qualquer pregador solteiro deixar a seus herdeiros”.

É verdade que muitos desses pregadores primitivos deixaram aWesley. Eles acabaram por tomar pastorados entre os dissidentes dometodismo ou aceitaram ordens na Igreja Anglicana. Alguns foram

levados por uma ou outra novidade teológica. Pode-se oferecer por elesmuitas atenuantes. A sua posição não estava definida; e o seu lugar nogrande movimento estava indeterminado. Eles faziam o trabalho deministros sem terem ainda qualquer direito ao ofício ministerial. Mas équase impossível exagerar o papel que desempenharam no movimento.O ministério metodista de hoje vem em descendência direta deles.Deles também saiu a grande ordem de pregadores leigos, sem a qual opróprio metodismo não poderia existir.

Para cada ministro metodista hoje no mundo, há mais ou menosdez pregadores leigos; e para cada sete sermões pregados em cadadomingo de púlpitos metodistas, seis são proferidos por pregadoresleigos. Todo o ministro que ocupa um púlpito metodista já passou poresta ordem. O grande sinal e penhor do caráter não sacerdotal dometodismo se acham em dois fatos. Os ministros repartem o seu ofíciode pregação com os pregadores leigos, e o seu ofício pastoral com osguias (de classes ou guias-leigos).

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CAPÍTULO XX

Como se abrigaram os novos conversos

Conversos (os novos convertidos) agora se multiplicavam comligeireza; haviam crescido na escala de um exército, e surgiu umproblema novo e difícil, nascido do próprio êxito de Wesley. Como haviade zelar por seus conversos? Eles tinham a inculta simplicidade decrianças; estavam espalhados sobre uma grande região; e a atmosferaespiritual a seu redor era-lhes desfavorável. Os clérigos (sacerdotesanglicanos) seus pastores naturais, tinham para com eles,freqüentemente, o temperamento de lobos, tratando-os como se fossemenjeitados, e tocando-os da mesa da comunhão. Os conversos olhavama Wesley como sendo o seu diretor espiritual; entretanto como podiaele, um evangelista que corria incessantemente (vivia de modoitinerante) para pregar a novas multidões, conservar-se em contatopessoal com os conversos que deixava atrás de si?

É, portanto, com algo do gozo da descoberta, o acento de umArquimedes espiritual a gritar “Eureka”, que entre a agitação do seutrabalho e o aumento constante das multidões de conversos, Wesleyrecebe a sua primeira visão da reunião de classes, e vê a sua grandeutilidade. Ele diz: “É exatamente isto que por tanto tempo nos faltava.”

Entretanto a nota de exultante surpresa que ouvimos de Wesley éde admirar-se. Sociedades religiosas de alguma espécie constituemuma feição constante e familiar de toda a sua história até essa data.Enquanto estudava em Oxford, eIe escreveu no seu Diário, que umhomem sério – que ele não identifica quem – lhe disse: “ tendes deachar companheiros ou fazê-los; a Bíblia nada sabe de uma religiãosolitária”. E é certo que Wesley, com algum instinto sábio, sempre deu asua religião uma forma social. Ele fundou uma sociedade em Oxford;estabeleceu outra a bordo do navio que o levou à América; organizououtra logo que chegou a Savannah, e freqüentou a sociedade dosMoravianos na rua Aldersgate logo que voltou à Inglaterra. Eledetermina as datas do seu almanaque espiritual pelas váriassociedades que vieram à existência: a sociedade de Oxford em 1729,de Savannah em 1736, de Londres em 1737, etc. Foi na pequenasociedade moraviana da rua AIdersgate , em Londres, que o próprioWesley se converteu. E Wesley não somente organizou novas

sociedades, mas alegremente serviu-se das que existiam.

Sociedades dentro da Igreja existiram muito antes do Metodismo.Apareceram nos tempos dissolutos que seguiam a restauração, erepresentavam um esforço por parte da consciência cristã dessa épocapara organizar-se, mesmo na própria defesa, contra o víciodesavergonhado que afrontava toda a decência, e contra aincredulidade trocista (zombeteira) que ameaçava destruir a religião. Nanarração que Woodward fez dessas sociedades temos, diz missWedegwood, ”uma descrição exata da reunião de classes, feita seisanos antes do nascimento de Wesley”. Mas isto é bastante exagerado,porque nessas sociedades anteriores faltavam os elementosessencialmente espirituais da reunião de classe. Os Moravianostambém plantaram as suas pequenas sociedades, aqui e ali, no soloinglês, ou chamaram a si as que já existiam. De modo que é verdade,se bem que meia verdade, que Wesley não inventou as sociedadesreligiosas na Inglaterra. Mas ele deu nova forma às que existiam e Ihesincumbiu de uma nova função. As sociedades religiosas descritas porWoodward eram pequenos viveiros de moralidade. As sociedadesmoravianas eram ou tornaram-se meros centros de quietismo (de cultivode uma espiritualidade mística segundo a qual a perfeição moralconsiste na anulação da vontade, na indiferença absoluta e na uniãocontemplativa com Deus). A sociedade Metodista, em sua forma final –a reunião de classe – é coisa profundamente diferente.

João Wesley, por certo, achou o grande princípio da comunhãoreligiosa em operação na igreja apostólica (a Igreja dos tempos dosapóstolos de Jesus). Em suas reuniões de classe ele simplesmenteorganizou de novo aquele princípio e o traduziu em novos termos, e ofez elemento e condição permanente da vida eclesiástica. E em fazeristo, ele era fiel aos mais nobres ideais da ordem na Igreja.

Há duas teorias possíveis de relação eclesiástica. Uma pode-sechamar a Teoria de Bonde: Temos um grupo de pessoas quecasualmente se assentam lado a lado, por uns poucos minutos, namesma direção; são impelidas pela mesma força e zeladas pelasmesmas instrumentalidades. Mas são estranhas entre si e não possuemlíngua comum. Não são ligadas por qualquer elo de parentescoconsciente ou articulado. Sociedade (vida comunitária, companheirismocristão, mutualidade nos cuidados e serviços de uns aos outros), a nãoser no sentido mecânico – ou digamos geográfico – não existe entreelas (as pessoas se assentam no bonde ou no ônibus mecanicamenteuma ao lado das outras, mas estão assim mecanicamente).

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Então há o que se pode denominar a Teoria da Lareira ou teoriafamiliar da Igreja. Temos aqui um círculo de entes humanosentrelaçados por um parentesco consciente e reconhecido. Falam umalíngua comum; tem gozos, tristezas e perigos comuns. Empenham-seem ajudar e proteger uns aos outros; o que toca num é sentido portodos (é como uma família e amigos que se reúnem ao redor de umalareira num dia frio).

Qual destas duas concepções de comunhão na Igreja, a do bondeou a da lareira, é mais próxima ao ideal de Deus, não será difícil sedizer.

Na Igreja dessa época não existia tal comunhão familiar, e era istoum dos segredos da sua decadência. Southey descrevendo uma fasena vida de João Nelson, diz que “um ministro judicioso (que julga comacerto, sensato, prudente, consciente) devia ter conhecido o homem (ocoração do homem e suas possibilidades e necessidades de afeição ede vida comunitária), poderia ter-lhe o ensino preciso. “Mas, acrescentacom inconsciente severidade, a espécie de relação (familiar. Afetiva,comunitária) que isto implicaria entre o pastor e o seu povo, quase nãoexistia em parte alguma, e de modo algum era possível existir nametrópole”. Coleridge com isso rompe numa forte anotação,perguntando: “É verdade isso? E a igreja de que se pode dizer isso seráa verdadeira Igreja de Cristo?”

Wesley que bem conhecia a Igreja do seu tempo, diz dela:“Olhai para o leste, oeste, norte ou sul, mencionais a

paróquia que quiserdes: haverá ali a comunhão cristã? Não éverdade que a maioria dos paroquianos constitui somente umacorda de areia? (a ligação dos paroquianos não era pelos ternoslaços de misericórdia, mas por algo frágil e seco). Que relaçãocristã existe entre eIes? Que comunhão em causas espirituais?Que vigilância e cuidados exercem uns sobre as almas dosoutros?”

Mas se na Igreja dessa época havia pouca comunhão direta entreo ministro e os seus paroquianos, ainda menos existia, entre os própriosparoquianos (os membros da igreja). A Igreja havia perdido não se sabea quanto tempo uma das suas funções mais nobres: a funçãounificadora entre homens e mulheres de todas as camadas. E Wesleyestava fornecendo uma das necessidades primit ivas e imperecíveis davida cristã em qualquer século, e sob todas as condições, quando na

formação de suas sociedades – e mais tarde da reunião de classes –fez desta comunhão uma feição permanente da vida na Igreja.

É curioso notar como, por aquilo que se pode chamar um “acaso”– pela mera compulsão dos acontecimentos, e não por plano consciente– as sociedades Metodistas vieram à existência. Foi com o conselho domoraviano Pedro Bohler que João Wesley fundou a sociedademetodista que se reuniu em Fetter Lane. Mas, em 1738, depois deseparar·se dos Moravianos, o Foundry tornou-se o centro do seutrabalho. Ele relata:

“Pelos fins do ano 1739, vieram ter comigo, em Londres,oito ou dez pessoas que pareceram estar profundamenteconvencidas do pecado. Desejaram que eu empregasse algumtempo com elas em orar e em aconselhá-las como fugirem da iravindoura”.

Wesley marcou às quintas-feiras, à noite, para este fim. O númerorapidamente aumentou. “Na primeira noite, cerca de doze pessoasvieram, e na semana seguinte trinta ou quarenta. Estas aumentavamaté cem; e então”, diz Wesley, “tomei os seus nomes com a indicaçãode suas moradias, afim de visitá-las em suas casas. Assim, semqualquer plano prévio, começou a sociedade Metodista na Inglaterra –uma companhia de homens unidos com o fim de auxiliarem-semutuamente a obrar a sua salvação”. Formou-se uma sociedadesemelhante em Bristol, e mais tarde em outros lugares.

Aqui, pois, estava a sociedade metodista, mas ainda não areunião de classe. Esta apareceu três anos mais tarde, em 1742; e foium esforço pagar a primeira dívida da Igreja Metodista que deu origemà reunião de classe.

Havia uma dívida bastante elevada sobre a casa de cultos emBristol, e os membros da sociedade consultavam entre si como apagariam. Certo capitão Foy cujo nome merece viver (não seresquecido) levantou-se e disse: “Cada membro da sociedade dê umpenny por semana até que seja paga a divida”. Alguém respondeu:”Muitos são pobres, e não podem dar tanto”. Então disse o primeiro,“Podeis me dar os nomes de onze dos mais pobres; se puderem daralguma coisa, bom; os visitarei cada semana; e se não poderem dar eudarei por eles e por mim também. E cada um de vós visite onze dosvossos vizinhos semanalmente recebendo o que derem, e supra o quefaltar”. Assim se fez; e logo se descobriu que o plano dava muito maisdo que dinheiro. Wesley diz:

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“Mais tarde, alguns destes me informaram que haviamachado que fulano ou sicrano não vivia cristamente como devia.Logo pensei, esta é a coisa que por tanto tempo nos faltava”.

Aqui havia a sugestão de uma supervisão mui extensa e aomesmo tempo minuciosa; o mais efetivo pastorado que o gênio dohomem inventou ou que a graça de Deus empregou.

O instinto de Wesley pela exatidão, o seu hábito em seguir umasimples indicação até torná-la em instituição veio logo em cena. Areunião de classe foi sistematizada; feita co-extensiva com oavivamento. A sua inteligência educada e disciplinada percorria toda ahistória em busca de precedentes e detalhes, e os achou emabundância. Uma testemunha tão desapaixonada como Paley achou nomodo de viver – suas formas e seus hábitos – da primitiva Igreja Cristã,“uma semelhança mui notável com os Unitas Fratrum e com osMetodistas modernos”. Os tesserae, os símbolos de membros na IgrejaApostólica, foram reproduzidos no bilhete, símbolo de membro na IgrejaMetodista.

O valor das sociedades – especialmente na sua formaamadurecida de reunião de classe – era simplesmente imensurável.Elas deram coerência ao avivamento e nutriram a sua vitalidade. Cadanovo convertido trazido à reunião de classe achou-se membro de umgrupo ligado por grandes emoções possuídas em comum: tristeza pelopecado, gozo do perdão, a consciência de uma nova vida, umasolicitude comum pela salvação de outros, uma aspiração comum pelasaltas posses da experiência cristã. Ele recebia da sociedade ainspiração, e achava nela as salvaguardas de camaradagem. O abrigoque estas sociedades lhe deram era de valor indizível. A simples friezado mundo secular teria matado a vida espiritual novamente nascida nasmultidões. O encanto de camaradagens anteriores teria se manifestado.Mas nas novas camaradagens nas quais os conversos foram trazidosachava-se uma energia contra-balançante.

Wesley logo reconhecia na reunião de classe o mais efetivoinstrumento de disciplina que um fundador ou cabeça (líder) da Igrejapoderia desejar.

“É quase inconcebível”, diz ele “as grandes vantagensque se têm colhido deste pequeno e prudente regulamento ;muitos felizmente agora experimentavam a comunhão cristãde que antes não tinham idéia alguma, começavam a levar as

cargas uns dos outros, e naturalmente zelavam uns pelosoutros. Homens maus foram expostos e repreendidos.Suportamo-los por algum tempo; quando abandonavam osseus pecados nós os recebemos alegremente; quandoobstinadamente persistiam neles, declarávamos que nãoeram um de nós”.

Cada classe tinha o seu guia, e a reunião dos guias tornaram-seem tribunal disciplinar da Igreja. O bilhete que era o símbolo de membrorenovava-se de três em três meses, durante a visitação pessoal de cadaclasse, por Wesley mesmo ou por um de seus auxiliares. A simplesnegação de bilhete quebrava a sua relação de membro e excluía osindignos, e Wesley, que com um instinto sábio colocava a eficiênciaantes de grande número, purificava as classes deste modo, de ano emano, com uma dedicação completa.

O que o Metodismo tem ganhado em todos os países e por toda asua história da reunião de classe não pode ser expresso em palavras. Ainstituição dá continuidade, escopo e permanência ao trabalho pastoralda Igreja. Com um ministério itinerante uma tal organização éindispensável. Sem ela não pode haver um pastorado efetivo. Estagrande instituição não somente influiu profundamente na obra de Wesleyenquanto eIe vivia, mas tem deixado um sinal profundo e permanentesobre o próprio metodismo. A reunião de classe dá fala à religião; elamata o acanhamento mudo e obstinado acerca das coisas espirituaisque à semelhança da fria geada endurece tanta gente boa. Se oMetodismo tem desenvolvido em seus leigos o dom da palavra, daoração e do serviço, mais do que qualquer outra Igreja , é isto devidoà reunião de classe. E o selo da reunião de classe está sobre opróprio ministério do Metodismo. Na reunião d e classe todo oministro aprende, por assim dizer, a gramática de sua línguaespiritual. Ele recebe dela um ardor, uma certeza, uma força quenão emana de nenhuma outra instituição.

A reunião de classe tem os seus riscos característ icos. É nãopoucas vezes desacreditada pela falta de elasticidade e variedadena sua direção. Mas para o próprio Metodismo ela é um centro depoder espiritual. Pode -se predizer com grande confiança, se bemque melancólica, que quando a reunião de classe morrer, o próprioMetodismo, se sobreviver, sofrerá uma mudança silenciosa, masprofunda e desastrada. Começará a ossificar (transformando-se ereduzindo-se em rígido esqueleto). As formas mais uma vezparecerão de mais valor do que os fatos (ou seja, reaparecerá o

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formalismo, o ritualismo, o clericalismo, o tradicionalismo, etc ). Otriste, mas familiar, ciclo de mudanças pelas quais uma grande igrejase petrifica, e se prepara para ser posta de lado por alguma ag êncianova e mais intensa mente religiosa, terá começado.

Agora, porém, nos interessa somente notar a contribuição queas suas sociedades fizerem para o êxito do trabalho de Wesleydurante a sua vida, e o grau em que elas, em conseqüência influíramna vida de toda a Inglaterra. As sociedades sem dúvida supriram esatisfizer am a necessidade especial de religião viva, genuinamenteespiritual e socialmente relevante que havia nesse momento naInglaterra. Diz a Miss Wedgwood:

“O desejo por alguma relação comum, mais largo do quemero parentesco, mais forte do que a mera nacionalidade deveser forte em todo o tempo; talvez foi especialmente forte no séculoXVIII. Uma reação da obra da Reforma nesse tempo levou muitospara o Romanismo; e ajuntou outros muitos em pequenassociedades cimentadas por um interesse comum nas coisas daeternidade. Mas em parte alguma este instinto encontrava-se tãoabsolutamente satisfeito como nas fileiras do Metodismo. “

Em suma, nas sociedades de Wesley, apareceu uma nova eextensa fraternidade, a qual cobriu a Inglaterra como rede viva,vinculando homens ou mulheres, separados uns dos outros pelas largasdiferenças de educação e posição social, de riqueza e pobreza, numasó família. Produziu entre eles mil ministrações benévolas. E comocontribuição à vida social da Inglaterra nesse tempo, essas sociedadestiveram valor que ainda não tem sido devidamente apreciado. Não eraque possuíssem meramente a influência do sal no sangue do corposocial; ou que cada pequena reunião de classe fosse um centro deenergias religiosas, influindo em tudo que tocasse; mas as classesconstituíram uma fraternidade, entrelaça de vínculos espirituais, e assimfeita indestrutível. E esta fraternidade sobrepujava as barreiras sociais,transpondo os abismos que separavam as massas. Não somente tornoua sociedade mais pura, mas a fez mais forte e unida. As ministraçõessociais, da religião não são sempre apreciadas como deviam sê-lo; etais ministrações nunca acharam uma expressão mais feliz do que nassociedades de Wesley.

CAPÍTULO XXI

Soldados Metodistas

Será mal interpretado um grande movimento religioso se fortraduzido meramente em termos pessoais. Assemelha-se às agitaçõesda maré; é o resultado de forças planetárias; ergue-se de profundidadesinsondáveis; faz-se sentir em pontos mui distantes uns dos outros;enche, com o seu ruído e espuma, no mesmo instante, centenas depequenas baías. É certo que o grande movimento religioso do séculoXVIII, ainda que tendo, como suas figuras mais proeminentes, GeorgeWhitefield e os irmãos Carlos e João Wesley, estendeu-se muito alémda influência pessoal deles. Lavrou-se qual contágio invisível atravésdos ares; e certas fases de seu desenvolvimento, com as quais nemWhitefield nem os Wesley quase nada tinham pessoalmente, eram deum caráter notável.

Por exemplo, as forças do grande avivamento, alcançaram oexército inglês e produziram ali resultados mui pitorescos. O exércitoinglês em Flandres é mais conhecido aos homens da rua pelo famosotrecho, em “Tristram Shandy”, acerca de suas imprecações. Esse infelizexército tendo por general em chefe o Duque de Cumberland,marchando e pelejando ao lado de aliados estranhos, e acerca decausas que pouco conhecia e ainda menosprezava, essas sem dúvida,em condições mui tristes. Pode-se pensar em religião entre osHuguenotes (designação depreciativa que na França os católicos deramaos protestantes) de Henrique de Navare, ou entre os Ironsides deCromwell; ou entre os Protestantes holandeses sob Guilherme deOrange; mas quem pode imaginar o aparecimento espontâneo dequalquer sentimento ou emoção religiosa no bravo, mas mal dirigido,imprecante (que roga pragas e maldições a alguém) e dissoluto exércitoinglês em Flandres nos dias de Fontenoy e Dettingen!?! E, entretanto, aliteratura do Metodismo nos dá vislumbres da vida íntima do exércitoque os historiadores não conhecem, mas que são de grande interessehumano.

Por exemplo, em maio de 1744, um ano depois de Dettingen equase um ano antes de Fontenoy, o exército britânico achava-seacampado num morro perto de Bruxelas e não longe de Waterloo; aliuma tarde, um grupo de soldados içou uma bandeirinha e começaram a

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cantar. Os camaradas afluíram do acampamento e ajuntaram-se emredor. Um soldado raso, tipo de sua classe – corpo quadrado, pescoçocurto, rosto largo, sobrancelhas escassas, e olhos inexpressivos –começou a pregar. A sua voz se ouviu longe, mas era a voz de uminculto. Ele usava o inglês do plebeu (do povo simples), e que osplebeus entenderia, para falar do pecado e do juízo, do amor de Cristoe de sua salvação. A multidão em redor dele, soldados aguerridos,familiarizados com as dificuldades da marcha com as durezas da vidano campo, com os perigos da linha de batalha, escutou em profundosilêncio. Eram milhares em número, e o som do seu canto encheu ovale.

E esta cena repetiu-se no acampamento todos os dias –freqüentemente duas ou três vezes por dia! O pregador era JoãoHaime, que depois se tornaria um dos auxiliares de João Wesley. Nessaépoca, embora Haime ainda não conhecesse a Wesley face a face, erafruto do grande movimento religioso que Wesley simbolizava.

Aqui temos outro pequeno retrato de batalha, tirado do sangrentocampo de Fontenoy: dois soldados Metodistas se encontram naescuridão depois do conflito. Ambos tiveram parte na encarniçada lutano caminho entre Fontenoy e a floresta de Barri. Haviam permanecidofirmes nas fileiras, enquanto a frente e os flancos foram castigadospela artilharia francesa; e no fim h aviam retrocedido com os restos,quebrados mas não vencidos, da divisão inglesa. Haime conta comopassaram na batalha:

“Quando W. Clemente teve o braço fraturado por umabala, queriam levá-lo para fora do conflito. Mas ele disse: ”Não,ainda tenho um braço para segurar a espada. Não vou porora”. Quando veio uma segunda bala, fraturando o outro braço ,ele disse: “Estou tão feliz quanto posso ser fora do Paraíso”.João Evans, tendo as duas pernas cortadas por uma bala decanhão, foi deitado em cima de uma peça de campanha paramorrer; e ali, enquanto pôde falar, louvava a Deus com lábioscontentes”.

“Por minha parte estive no fogo mais forte do inimigodurante cerca de sete horas. Mas eu disse a meus camaradas :“Os franceses não têm a bala para me matar hoje”. Depois desete horas no fogo, uma bala de canhão matou o cavalo emque eu vinha montado. Um oficial clamou: “Haime, onde está oteu Deus agora?” Eu respondi: “Senhor! Ele está aqui comigo,e ele me fará sair desta batalha”. Em seguida uma bala decanhão lhe cortou a cabeça. Meu cavalo caiu sobre mim e

alguns exclamaram: “Haime se foi!”. Mas eu respondi: "Não fuiainda...” Eu tinha de ir longe pelo meio da nossa cavalaria, asbalas voando por toda parte. Por todo o caminho multidões dehomens achavam-se prostrados, ensangüentados, gemendoou já mortos. Certamente passei pela fornalha ardente; masnão me queimou nem sequer um cabelo da cabeça. Quantomais violenta tornou-se a batalha, tanto mais força Deus medeu. Eu era tão cheio de gozo quanto pude conter. ”

Então o João Haime nos conta como ele encontrou-se com oseu camarada na confusão da noit e, depois que o ruído da fuzilariahavia cessado:

“Quando ia me retirando do campo encontrei -me com umdos nossos irmãos, o qual levava um pequeno vaso na mão,procurando água. Não o reconheci de momento, pois estavamuito ensangüentado. Ele sorriu e disse: “Irmão Haime, estoumuito ferido”. Eu perguntei: “Tens Jesus Cristo no coração? ”.“Sim, disse ele, “e o tenho tido comigo durante o dia inteiro.Tenho visto muitos dias bons e gloriosos, com muito de Deus,mas nunca vi mais disto do que hoje. Glória a Deus por todasas suas misericórdias!” (Lives of Early Methodist Preachers,Vol. I, pág. 167)

Quando se pode imaginar um exemplo mais notável do podersobrenatural da religião do que aquele que se vê nestes dois soldadosenegrecidos como pólvora que, saídos de grande batalha, contam umao outro quão notavelmente haviam sentido a presença consoladora deDeus durante todo aquele terrível e violento dia!?!

A maneira em que o grande avivamento influía no exército inglês,o pessoal em que trabalhava, os fenômenos que produzia, são maisexemplificados em narrativas individuais. Wesley, que se interessavasabiamente em religião traduzida em termos de experiência individual,fez que seus auxiliares historiassem as suas vidas religiosas, e publicoumuita destas narrativas na revista Arminian Magazine, e entre estastemos algumas biografias dos que haviam sido soldados. Sãodocumentos verdadeiramente humanos no sentido moderno,assinalados pela veracidade em cada sentença; e, sendo escritos porhomens apanhados na correnteza de um grande movimento religioso,são de valor real na história.

Pode-se tirar um exemplo da história de Staniforth, o qual erasoldado até a idade de vinte e nove anos, e um pregador sob a

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liderança de Wesley nos cinqüenta anos seguintes.

É difícil imaginar um pedaço de humanidade mais duro ou menosesperançoso do que o Stanniforth em seus dias de moço, segundo elemesmo descreve. Era filho de um cuteleiro (fabricante ou vendedor deinstrumentos de corte, tal como o cutelo) de Sheffield – pródigo,cabeçudo, ignorante e ingrato – pecava grosseiramente e sem remorso.Possuía os apetites de um animal, e aparentemente não tinha maissentimento moral do que um animal. Ele ficou atraído à soldadesca(bando de soldados indisciplinados) encantado pela camaradagemprofliga (depravada) dos soldados. Na história da sua juventude a figurade sua mãe se faz ver vagamente: ela chorava sobre seu filhoextravagante, ia aos lugares de vícios freqüentados pelo indigno rapaz,afim de conduzi-lo para casa, lamentava os seus vícios, e comprou asua baixa do exército, depois que ele havia se alistado, com as suaspequenas economias. O Stanniforth diz: “tudo isso não me fazia amenor impressão. Não senti gratidão alguma nem a Deus nem aohomem”. Ele se alistou outra vez e marchou, deixando a pobre mãechorando na rua. E Stanniforth em sua autobiografia dá mais umretoque terrível: “Eu não somente era bravo e genioso, mas tambémcabeçudo e malicioso, sem qualquer sentimento humano, e atéregozijei-me na dor da minha mãe”.

A história de Stanniforth nós dá uma triste pintura da vidabrutal, e dos vícios também brutais, de um soldado inglês no séculoXVIII. Era de um espírito perverso e indomável, e familiar izado comas prisões militares e os cruéis castigos militares daq uela época.Stanniforth mais de uma vez escapou por pouco de ser fuzilado pelanegligência de seus deveres de soldado. Em 1743 o seu regimentopartiu para Flandres poucos dias depois da batalha de Dettingen. Seo exército inglês praguejava muito nesse tempo, é certo que osoldado Stanniforth contribuía com mais do que o seu quinhão parao exercício de sua blasfêmia. A mãe de coração quebrantado delonge lhe mandou cartas tristes, e pequenos mimos comprados comos ganhos difíceis; mas este soldado bêbado, sa lteador eblasfemador não sentia qualquer gratidão por este amor .

Neste tempo Stanniforth tornou-se amigo de outro soldadoraso, um rapaz de Bernard Castle, chamado Marcos Bond, que emtodos os traços de educação, caráter e temperamento era o exatooposto de Stannifoth. Mas suscitou -se uma amizade de espécieantiga, tal como poucas vezes se encontra. Bond e Stanniforth eramsimplesmente Damon e Pythio (heróis romanos do século IV a.C. que

representavam uma amizade sincera) trasladados para o século XVIIIe transformados em soldados britânicos. A história de Bond eramuito simples. Era filho de pais piedosos e temia a Deus desde aidade de três anos. Em criança foi assaltado de grandes e terríveistentações. Nas palavras de Stanniforth, “ele foi violenta econtinuamente importunado a amaldiçoar a Deus”, e num dia fatal,quando ainda não tinha sete anos, saiu para o campo, entrou embaixo de uns arbustos e com os lábios pueris (infantis) proferiu astemíveis palavras, palavras que para a sua consciência infan til,selou a sua perdição, e que realmente escureceu a sua vida durantelongos anos. Onde este menino de sete anos teria sabido algo deblasfêmia contra Deus? Ele guardou o seu segredo terrível , que lhecausava culpa e sofrimento; pensou que era certa a sua perdição elevou consigo um coração quebrantado (humilhado, quebrado).Com dezoito anos ele sentou praça (foi servir ao exército) naesperança que logo seria morto! Ser soldado era para ele umcaminho indireto para o suicídio. Este soldado tristonho quesilenciosamente marchava nas fileiras, que não bebia nempraguejava, e que sempre meditava naquela blasfêmia remota desua meninice, foi deveras uma figura esquisita no exército dessetempo.

Bond caiu sob a influência do soldado pregador, João Haime,e passou a experimentar a alegria e a liberdade do perdão divino.As novas forças nele tinham de achar expressão. Ele tinha dehistoriar a sua libertação para alguém; e por algum impulsoestranho ele escolheu o pior homem da companhia como seu amigoconfidencial. Uma história mais estranha para ouvidos maisadmirados nunca se contou. Sobre isso Stanniforth escreveu:

“Ele veio a mim, e relatou o que Deus fizera para a suaalma. Mas era para mim língua desconhecida; não acompreendia; e logo que ele saia de perto de mim eu mecostumava caçoar de tudo que ele dizia”.

Mas Bond era paciente e invencível em seu afeto por seucamarada pródigo; e por fim venceu-o.

Stanniforth diz:“Ele me encontrou um dia quando eu me achava em

grande necessidade, não tendo nem comida, nem dinheiro,nem crédito. Quando ele veio e convidou-me para ouvir apregação, eu lhe disse: "Melhor seria que tu me desses decomer e beber; pois estou com fome e sede”. Ele levou-me a

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um mascate e deu-me de comer e beber. Então me tomou amão e me guiou a um lugar cerca de meio milha distante doacampamento. Eu não tive desejo algum de ouvir de religião,pelo contrário, fui com grande relutância. Quem era o pregadoreu não sei; mas sei que Deus me falou ao coração. Dentro depoucos minutos, eu me achava em profundo desespero –cheio de dor com um profundo sentimento de pecado e aflição,mas temperado com um desejo pela misericórdia. E agora eu,que nunca tinha orado durante a minha vida, continuamenteclamava a Deus. Em tempos idos eu não podia chorar; masagora a rocha foi fendida; abriu-se uma fonte, e as lágrimas decontrição me corriam em plenitude pelas faces. Um clamor porDeus que ainda não cessou foi me posto no coração, e, tenhofé que nunca cessará." (Lives of Early Methodist Preachers,Vol. II, pág. 156)

Bond exultou-se com as lágrimas do seu aflito amigo. Umatransformação estranha e instantânea se operou nos hábitos deStanniforth. O soldado salteador, duro, bêbado blasfemador tornou-sehomem pacato. Teve um desejo insaciável pelos cultos religiosos. Foi auma reunião da soldadesca e postou-se desajeitado e solitário, entre osseus camaradas. Um veio e perguntou-lhe, quanto tempo haviafreqüentado a pregação. Ele respondeu que a noite passada fora aprimeira vez. O rapaz então o levou à parte e disse, oremos. Stanniforthdisse: “Não posso orar; nunca orei na minha vida!”. O seu camarada fê-lo ajoelhar a seu lado, e neste instante veio o Bond. Depois da oraçãoperguntaram a Stanniforth, se possuía uma Bíblia ou qualquer outrolivro bom. Ele disse que não; e nem se lembrava de ter jamais lido aBíblia. Bond tinha como seu tesouro principal um pedaço de uma velhaBíblia. Ele disse: “Leve-a contigo, pois eu posso passar melhor sem elado que tu”.

Para Stanniforth tudo era uma grande novidade, ainda estava detudo sem conforto, mas os seus antigos camaradas de farra tentaramem vão fazê-lo voltar a seus hábitos anteriores. Mas ele disse damudança que experimentara:

“Eu agora possuía uma consciência muito viva; eu nãopodia beber, nem praguejar, nem jogar nem roubar mais. Eu nãotirava uma maçã, nenhum cacho de uvas, coisa alguma que nãome pertencesse”.

Bond se encarregou não somente da condição espiritual do seucamarada aflito, mas de seus negócios em geral. “Ele indagou de todos

os meus negócios, e, sabendo que eu havia contraído algumas dívidas,disse: “Os seguidores de Cristo devem ser justiceiros (amantes dajustiça, cumpridores da lei e deveres) primeiro, e depois caritativos(caridosos, solidários, freaternos). Unamos os nossos soldos (salários),vivamos tão economicamente quanto nos possível; e com o que sobrarpagaremos suas dívidas.” Quando se pode imaginar um mais lindoexemplo de amizade cavalheiresca (fraterna, cristã)! Os dois camaradasagora se achavam acesos de um impulso comum; eles tinham derepreender o pecado. Eles tinham de cantar a história estranha emaravilhosa de Cristo e seu amor. Os camaradas (amigos) Ihesescutavam, admiravam e se derretiam e com eles se uniam; é comonota Stanniforth: “A chama se alastrou por todo o acampamento demodo, que tivemos grande número de ouvintes”.

Em Gand, onde o exército estava acampadopor algumas semanas,Bond e Stanniforth alugaram duas salas, uma para a pregação e outrapara reuniões particulares, e aqui se reuniam duas vezes por dia,pequenos grupos de soldados. Entretanto, durante todo esse tempoStanniforth achava-se no mais profundo desespero espiritual. A suacondição espiritual foi deveras um paradoxo. Ele estava vivendopiedosamente, mas ainda suportava o fardo de pecados não perdoados.Por fim achou entrada no mundo de Iuz por uma porta estranha.

“Julguei-me a criatura mais infeliz neste mundo, mui abaixodos brutos e das criaturas inanimadas; que em tudocorrespondiam aos fins de sua criação, causa que eu nunca haviafeito! Desde meia noite até as duas horas era a minha vez de ficarde sentinela num ponto mui perigoso. Eu tinha um companheiro:mas eu pedi que ele me deixasse sozinho, e isto ele fez commuito boa vontade. Logo que eu me achava sozinho eu ajoelhei,resolvido a não levantar mais, mas a continuar clamando esuplicando a Deus até que Ele me mostrasse a sua misericórdia.Quanto tempo eu estava nesta aflição eu não sei. Mas olhandopara o céu vi as nuvens se abrirem com luz excessiva e vi a Jesuspendurado sobre a cruz. No mesmo instante estas palavras foramseladas ao meu coração: "Os teus pecados te são perdoados”. Omeu coração ficou livre. Toda a culpa se foi, e a minha alma seencheu de uma paz indizível. Eu amava a Deus e a toda a raçahumana, e desvaneceu em mim todo o temor da morte e doinferno. Eu me senti tomado de pasmo (assombro, espanto) eadmiração. (Lives of Early Methodist Praachers, Vol. lI, pág. 161).

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Quem não se sente comovido pela visão desta sentinela sozinhaà meia noite, velando na frente do acampamento inimigo, orando,chorando e lutando? E repentinamente rompe sobre ela desde aescuridão uma visão tão maravilhosa como a que veio sobre Paulo foradas portas da cidade de Damasco. A visão foi real? Quem se atreverá adizer qual a maneira em que Deus poderá se manifestar a uma alma talqual a deste soldado indouto e desesperado? Quando na manhãseguinte, Bond se encontrou com seu camarada, não havianecessidade de qualquer palavra de explicação. O rosto de Stanniforthdenunciava a história. Bond lhe disse: “Sei que Deus tem posto a tuaalma em liberdade; vejo-o no teu rosto”.

A obra agora se estendeu com nova energia. As reuniões erammais freqüentes e atraiam maiores auditórios. “Deus nos aumentou onúmero cada dia, de modo que tivemos alguns (auditórios, ouvintes,trabalho de pregação) em quase todos os regimentos”.

Stanniforth teve a sua primeira experiência de batalha emFontenoy. Logo antes do começo da luta o seu regimento foi mandadopostar-se em repouso.

Os homens se estenderam ao chão. Stanniforth nos conta comoele se adiantou uns poucos passos e caiu com o rosto sobre a relva, e“supliquei que Deus me livrasse de todo o medo e me habilitasse aportar-me como cristão e bom soldado. Graças a Deus ele me atendeu,e me tirou todo o temor! Eu entrei nas fileiras outra vez e tinha a pazbem como o gozo no Espírito Santo”.

E como pelejaram estes soldados e pregadores metodistas?Sobre o assunto existe bastante evidência. Wesley registra que haviajantado com um coronel de um dos regimentos que servia em Flandres.O qual lhe disse:

“Ninguém luta como os homens que temem a Deus. Antesquero quinhentos desses tais do que qualquer regimento noexército”.

A religião suavizou os espíritos incultos destes soldadosmetodistas, lhes dando uma notável ternura, mesmo para com os seusinimigos. Diz o Haime:

“Aos vinte e nove marchamos bem perto do inimigo, equando os vi no seu acampamento me senti movido de amor ecompaixão por suas almas”. Foi deveras um sentimento tãoestranho quanto era nobre num soldado britânico da coluna

inimiga!

"Uns dias antes da batalha", diz um destes soldadosMetodistas, "um deles, estando à porta de sua barraca,rompeu em transporte de alegria, sabendo que a sua partidase aproximava, e estava tão cheio do amor de Deus que eledançava diante de seus camaradas. Na batalha antes demorrer, ele declarou abertamente: ”Vou descansar dos meustrabalhos no seio de Jesus“. Creio que antes nunca se ouviucoisa semelhante no meio de exército tão ímpio como oinglês. Alguns feridos exclamavam: “Vou ter-me com oAmado”. Outro dizia: ”Vem, Senhor Jesus, vem depressa“! Emuitos que não estavam feridos, clamavam ao Senhor, queos levasse para si. Havia tanta coragem na batalha entre estepequeno rebanho de desprezados que os oficiais ficaramadmirados; e o confessam até o dia de hoje”. (Lives of EarlyMethodist Prenchers – vol II, pág. 163)

Fontenoy é uma das batalhas mais sangrentas da história. É difícilmencionar batalha em que havia menos baixas entre os generais, oumais coragem e persistência nas fileiras. O regimento do soldadoStanniforth participou na ação mais quente do dia. Ele diz: “Durante odia inteiro eu me achava muito animado, e tão calmo em pensamentocomo se eu estivesse a ouvir um sermão. Não desejava a vida nem amorte, mas me sentia completamente feliz em Deus”. Terminada a lutaos Metodistas sobreviventes se reuniram.

“Começamos então a indagar quais entre os do nossoregimento haviam ido ao céu. Sentimos a falta de muitosdentre os do nosso regimento. Um dizia: “Ó quão feliz eu mesinto!” Enquanto falava, um tiro de canhão lhe tirou a cabeça.Perdemos quatro pregadores e muitos membros da sociedademetodista. Mas o meu querido companheiro, com os outrosirmãos do regimento ainda permaneciam como o coração deum só homem.” Tal era a religião dos soldados nesse tempoantes de quaisquer entre eles se corromperem com idéiasnovas! Eu então pensava, que esta condição de vida é a únicapara amar e servir a Deus. Eu não havia de trocá-la porqualquer outra, fossem quais fossem as vantagensoferecidas.” (Lives of Early Metodista Preachers, VoI. lI, pág.169)

O regimento de Stanniforth foi chamado outra vez para a

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Inglaterra pelo levantamento das Highlands a favor do príncipe Carlos.Depois de Culloden, o regimento recolheu-se ao quartel em Canterburye Stanniforth enamorou-se e casou; mas no mesmo dia do seucasamento foi chamado a seu regimento, então sob ordens repentinas aseguir para a Holanda. Ele beijou a esposa e marchou. Tomou parte nabatalha renhida (disputada, sangrenta), mas inútil à frente de Maestricht,e ali perdeu o seu fiel amigo Marcos Bond. O comandante, príncipeCarlos, abandonou a sua retaguarda (parte das tropas) para adestruição, e escapou com o seu exército principal. Stanniforth diz:

“Nós estávamos à espera de ordens de retirada, mas opríncipe Carlos esqueceu-se de mandá-las, estando muitoentretido com os seus copos e as suas senhoras. A retaguardafoi atacada por forças sobrepujantes (superiores ), pelejou combravura até ficar desfacelada e então se retirou.”

Stanniforth também registra :“Todo este tempo eu me achava esperando e todo o

temor havia desaparecido. Não havia tremor no meu espírito, ea presença de Deus estava comigo o dia inteiro. Meu queridocamarada estava à minha direita, e havia estado durante todaà noite. Como nós nos achávamos na primeira fileira, veio umabala de fuzil que lhe feriu a perna, ele me caiu aos pés, eolhando para mim, disse: “meu caro, estou ferido”. Eu commais outro o tomamos nos braços e o levamos fora das fileiras,enquanto ele me exortava a permanecer firme no Senhor. Nóso deixamos, e deixando -o, voltamos às fileiras. Em nossaretirada eu encontrei -me outra vez com o meu querido amigoque havia recebido outro balaço na coxa. Mas o seu coraçãoestava cheio de amor, e seus olhos cheios da luz do céu. Euposso dizer com verdade: Ah! Caiu um grande cristão, um bomsoldado, um amigo fiel.”

Depois de sua baixa do exército Stanniforth tornou-se um dospregadores de Wesley, e levou para a sua pregação a energia e acoragem de seus dias de soldado. Ele morreu de velho, e entre asúltimas palavras disse: “Meu Deus sou teu; que conforto divino , queprivilégio saber que Jesus é meu!”

Haime era soldado de outro tipo, e passou por uma experiênciabem curiosa: ele era rapaz de Dorsetshire, violento emtemperamento, e grosseiro em discurso, e completamenteextravagante em conduta. Ele, como Marcos Bond, por umaexperiência espiritual que hoje seria quase desconhecida – uma

tentação violenta para blasfemar de Deus. Afinal cedeu, no silênciodo seu coração ele formulou as temíveis palavras e então o tentadorlhe disse: ”Tu és infalivelmente condenado”. O infeliz jovem ficou decoração quebrantado (humilhado, quebrado ). Ele vacilou por algumtempo entre planos de suicídio e terríveis acessos de prazeresviciados. Os terrores do pecado lhe assombravam. Ele teveexperiências que dificilmente acharão paralelas senão na literaturafradesca.

“Uma noite ao deitar-me, não ousando, dormir sem oração,caí de joelhos, e comecei a ponderar: “Que devo pedir? Nãotenho nem a vontade nem o poder de fazer qualquer coisa boa”.Então me veio a lembrança: “Não hei de orar, nem quero serobrigado a Deus por qualquer misericórdia”. Levantei-me dosjoelhos sem orar e deitei-me, mas não em paz. Nunca antes tiveuma noite tal. Eu senti como se o meu corpo estivesse no fogo etinha um inferno na consciência. Eu estava plenamente convictoque o diabo se achava no quarto”.

Ele foi violentamente tentado a repetir o ato de blasfêmia contraDeus, e em certo dia quando a tentação vinha sobre ele com violênciasobrepujante, diz ele:

“Tendo eu um pau na mão eu o arrojei (joguei-o com força eímpeto) na direção do céu, contra Deus com o mais forte ódio.Logo vi no céu uma criatura semelhante a um cisne, porém maior,em parte preto e em parte pardo. Voou a meu encontro, e passouum pouco acima da minha cabeça, indo aterrar-se (pousar) aumas quarenta jardas distante, e dai ficou me olhando. Isto se deunum dia mui claro, e por volta das 12 horas”.

Haime agora sentou praça num regimento de dragões, deixando amulher e filhos, Quando o seu regimento se achava em marcha para aEscócia o primeiro vislumbre de luz rompeu na escuridão do pobresoldado. Caiu-lhe nas mãos “A Graça Super abundante ao PrincipalPecador”, escrito por João Bunyan. E através do espaço de mais decem anos a voz do mecânico do Bedfordshire falou ao coração desteaflito soldado.

“Um dia andando à beira do Tweed eu clamei em alta voz,tendo sede de Deus: “Oh, que tu me dignasses ouvir a minhaoração, e deixasses subir a ti o meu clamor!” O Senhor me ouviu.Mandou-me resposta graciosa. Ele me ergueu da masmorra.Tirou-me a tristeza e o temor, e encheu-me a alma de paz e gozo

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no Espírito Santo. O rio corria com ligeireza e toda a naturezaparecia regozijar-se comigo. Eu me senti deveras livre; e se eutivesse tido alguém para guiar-me nunca mais precisaria cair naescravidão”.

Mas o raio de luz esvaneceu-se logo, e outra vez o pobre Haimeandou no mundo de terrores. “Muitas vezes”, diz ele, “eu parava narua temendo que se eu prosseguisse cairia no inferno”.

Qual é o segredo de experiências tais como a de Haime e Bond?Não nasceram sob a sombra de qualquer credo temível. Nenhumateologia sombria lhes envenenara a imaginação. Praticamente nãopossuíam teologia alguma, quer boa quer má. O segredo está no sensovago e inconsciente dos terrores de um Deus ofendido despertado naconsciência humana, sem ser acompanhado por qualquer visão damisericórdia perdoadora de Deus em Cristo.

O regimento de Haime foi enviado a Flandres, e vagarosamente,com muitas lutas e quedas, ele achou caminho para a luz e a alegria.Ele escreveu a Wesley, e a resposta deste é interessante, pois forneceuma idéia da correspondência que Wesley mantinha com as multidõesde todas as classes.

“É de uma grande benção”, escreveu Wesley, “que Deus játe fez participante, mas se continuares a esperar nele ainda verásmaiores coisas do que essas. Este é somente o começo do reinodo céu que Ele há de estabelecer no teu coração. Se Ele te dercompanheiros no caminho estreito, estará bem e estará bem seEle não o fizer. Tanto mais Ele mesmo te ensinará e fortalecerá.Ele te fortalecerá no íntimo do teu coração. Mas não percasoportunidade alguma. Fala e não te cales. Declara aquilo queDeus tem efetuado na tua alma. Não te importes com a prudênciadeste mundo. Não te envergonhes de Cristo, nem de sua palavra,nem de seus servos. Fala a verdade com amor, mesmo no meiode uma geração corrupta”. (Lives of Early Methodist Preachers,vol. II, pág. 158.)

Haime tomando o conselho de Wesley, começou a falar de Cristoa seus camaradas. EIe tomou parte na batalha de Dettingen, e a suanarração da luta é de muito interesse.

“Logo que eu me uni ao regimento o homem à minhaesquerda caiu fulminado. Clamei a Deus, e disse: “Em ti tenho

confiado, não permitas que eu seja confundido”. O meu coraçãose encheu de amor, paz e gozo inefáveis. Eu me achava numnovo mundo. Eu soube dizer com verdade: “Ele é precioso paraos que crêem”. Suportei o fogo do inimigo durante sete horas. Equando a batalha terminou fui enviado com outros em busca dotrem de bagagem, mas voltamos sem êxito. Neste meio tempo oexército havia mudado e eu não sabia o rumo que tomara. Fui aocampo onde a batalha fora ferida (acontecera), e tal cena demiséria humana eu nunca vi! Era bastante para comover ocoração mais duro. Não sabia que caminho eu devia tomar,temendo cair nas mãos do inimigo. Mas tendo começado a chovermulto, eu segui avante, embora não soubesse para onde ir. Entãoouvi o rufo de um tambor, adiantei-me na direção de onde vinha osom e logo me achei com o exército. Mas não me era possívelachar a minha barraca nem consegui que me recebessem emqualquer outra. Assim estando muito molhado e fatigado, eu meenvolvi na minha capa e deitei-me para dormir. E ainda quecontinuasse a chover sobre mim, e a água correu embaixo demim, eu tive a melhor noite de descanso da minha vida”.

Depois da batalha, o exército retrocedeu para Flandres e ficaramaquartelados perto de Gand. Haime, conta como ele começou reuniõesali:

“Estando em Gand, fui uma manhã à Igreja Anglicana àhora do costume. Mas não havia nem gente nem ministro.Quando eu ia entrando na igreja, dois homens que pertenciam aotrem entraram, João Evans e Pitman Stag. Um deles disse: "Agente demora-se". Eu disse: "Entretanto eles julguem, vivamcomo quiserem, irão ao céu depois da morte. Mas receio que amaioria ficará grandemente desapontada”. Eles me contemplaramcom admiração, e queriam saber o que eu estava a dizer. Eu Ihesdisse: “Nada de impuro pode habitar com o Santo Deus”. Tivemosumas palavras mais e designamos uma reunião para a noite.Alugamos um quarto e reunimos cada noite para orar e ler asEscrituras Sagradas. Dentro em pouco éramos como pássarospintados, ou homens esquisitos. Mas alguns começaram aescutar na janela, e logo desejavam se reunir conosco. Logo asnossas reuniões se tornavam mais queridas do que o próprioalimento.

Devia ter sido mui difícil se manterem-se serviços religiosos entretropas que estavam constantemente de marcha; mas Haime nos explicao seu método.

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"O nosso plano geral foi, logo que nos achávamosestabelecidos em qualquer acampamento, construirmos umtabernáculo, com dois, três ou quatro compartimentos. Um diavieram três oficiais para ver nossa capeIa, como eles achamaram. Fizeram-nos muitas perguntas. Um perguntou-meparticularmente daquilo que eu pregava. Eu respondi: “Pregocontra o praguejar, a impureza e a bebedice; e exorto aos homensque se arrependam dos seus pecados que não venham aperecer”. Ele começou a imprecar horrivelmente, e disse que seestivesse no seu, poder me açoitaria até que eu morresse. Eu lhedisse: “Senhor, vós tendes uma comissão sobre os homens, maseu sou comissionado por Deus para dizer-vos que tendes de vosarrepender dos vossos pecados ou perecereis eternamente”.

O fogo alimentado com tanta coragem estendeu-se, e Haime diz:“Tivemos agora trezentos em nossa sociedade, e seis pregadores, nãome contando a mim”. A sangrenta batalha em Fontenoy tristementereduziu o piedoso grupo, mas o bom trabalho ainda prosseguiu. E nãoraramente oficiais se achavam entre os ouvintes de Haime e um dia oDuque de Cumberland veio e postou-se entre a multidão que escutava.

Mas a experiência humana é suscetível a mudanças trágicas.Haime foi tentado e caiu. Ele nos dá a data com triste exatidão. Aos 6de abril de 1746, eu estava desprevenido, e caí em uma grandetentação. “Veio com a ligeireza do relâmpago, não sabia se aindaestava com os meus sentidos; eu caí, e o Espírito de Deus retirou-se demim”. Durante vinte anos o pobre Haime andou na sombra daquelaqueda. Ele passou por experiências religiosas que a nada se assemelhatanto como aos mais escuros confins do inferno de Dante. A dor lheminou a saúde e até afetou os seus sentidos.

“Eu não podia ver o sol por mais de oito meses. No dia maisclaro do verão eIe sempre parecia como uma massa de sangue.Ao mesmo tempo perdi o uso dos meus joelhos. Não possodescrever o que senti. Eu podia dizer com verdade: "Tu tensenviado fogo aos meus ossos”. Muitas vezes me achava tãoquente como se estivesse a perecer de incêndio. Muitas vezesolhei para ver se a minha roupa não estava em chamas. Tenhoentrado no rio para me refrescar, mas sem resultado. Pois quepoderia apagar a ira de Deus que Ele havia soltado contra mim?Outras vezes em pleno verão tenho me sentido com tanto frio queeu não sabia como suportá-lo. Toda a roupa que eu vestia não medava calor, eu tiritava (tremia, batia os dentes), e até os próprios

ossos tremiam. Deus permita que nunca sintamos quão quente ouquão frio é o inferno”.

Mas fossem quais fossem as águas fundas em que Haime sedebatesse, ele ainda pregava, admoestava e exortava. “Alguns poderãoindagar, o que me movia a pregar, em quanto eu me achava em tãotriste estado? Eles terão de perguntar a Deus, pois eu não sei. Os seuscaminhos são insondáveis”. Em outro lugar Haime diz: “QuandoSatanás tem sugerido fortemente – ”No fim de tudo eu vou te levar!” –no momento que eu vou pregar, eu tenho respondido, às vezes comdemais calor (convicção): “Hei de livrar mais um de tuas mãosprimeiro”. E muitos, enquanto eu mesmo permanecia nó abismo,foram verdadeiramente convictos e convertidos a Deus.

Não é fácil imaginar se uma figura que ao mesmo tempo sejamais digna de lástima nem mais heróica do que a deste soldado-pregador, carregado do fardo daquele pecado remoto e ainda pregandoa outros o Evangelho que ele mesmo não fruía. Depois de sua baixa doexército Haime foi a Wesley e pediu que o aceitasse como um de seuspregadores. Wesley contemplou com olhos ladinos (astutos, críticos),mas bondosos o rosto desfigurado do veterano e o aceitou. Mais tardefê-lo por algum tempo o seu companheiro pessoal, levando-o consigonas viagens. Foi assim que Haime achou caminho para umaexperiência satisfatória, e morreu com quase oitenta anos de idade. Asua última oração, proferida em voz desfalecente, era:

“Ó Deus Todo-poderoso, Tu que habitas na luz inaccessívela mortais, e onde coisa alguma de imundo pode entrar, purifica ospensamentos dos nossos corações; concede-nos continuamentea tua doce paz e o sossego e a certeza do teu favor”.

Homens como Haime, Stanniforth e Bond são tipos de umaclasse; são figuras que simbolizam as forças de uma revoluçãoespiritual. Estes homens, pelo menos durante as primeiras épocas desuas vidas religiosas, pessoalmente deviam pouco a Wesley.

Haime em sua primeira carta a Wesley diz:”Sou a vós estranho na carne. Não sei se tenho vos visto

senão uma vez quando vi a vós pregando aos devolutos(desocupados) de Kinnington. E então eu vos aborreci tantoquanto agora, pela graça de Deus, vos amo”.

Eles suportaram grandes lutas antes de ver a face dele(encontrarem-se pessoalmente com João Wesley), mas Wesley era o

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seu diretor natural. A sua simpatia pelo exército era sempre viva ealerta. Ele registra no seu Diário, falando da Irlanda: “A primeirachamada é para a soldadesca”.

O caráter de Wesley era de uma natureza que apelavaespecialmente para aquilo que se pode chamar a imaginação militar – asua coragem, o seu instinto pela disciplina e o seu porte e acento decomando. Era também a única figura visível em todo o movimentoespiritual que afetou estes soldados. Estes falavam de Wesley em suasmarchas, escreviam a ele de seus acampamentos, passavam de mãoem mão, como jóias, as cartas que eIe havia escrito a alguns deles Equando davam baixas era natural que se unissem a suas sociedades.

Aqueles corajosos soldados metodistas jazem esquecidos emcovas espalhadas sobre o continente; mas vale a pena tê-los emmemória: mostram-se como as novas forças espirituais, passando pelaInglaterra, alcançaram pessoas, grupos e classes que pareciam muitoalém do alcance dos pregadores e guias daquele movimento.

CAPÍTULO XXII

Como o Trabalho se Estendeu - Escócia.

Já se sabe que uma revolução espiritual, tal como agora sedesenrolava, não poderia ser contida em estreitos limites geográficos.Os próprios ventos haviam de levá-la por terras e por mares.

Georde Whitefield foi o Avant Courrier do movimento, o príncipeRupert (filho mais jovem do rei Frederico V apontado como comandanteda cavalaria real durante a Guerra Vicil Inglesa e explorador da partenorte da então colônia inglesa naa América do Norte) exército espiritual.

João Wesley possuía menos imaginação e mais senso prático doque o seu camarada (amigo). Os horizontes remotos não lhe tentavam;o seu espírito se concentrava no trabalho logo à mão. Com o sábioinstinto de grande líder, ele procurava fazer seguro (consolidado) cadapasso tomado antes de dar outro.

Foi assim que dez anos antes de Wesley, Whitefield chegou àEscócia. Os Erskines, que encabeçavam uma dissidência da IgrejaEscocesa nos começos do século XVIII, e haviam formado o que eraconhecido como o Presbitério Associado, instaram que ele viesse, e emjulho de 1741 ele visitou a Dunfermline e teve uma Conferência com oErskine Velho.

Whitefield pelo menos possuía um ponto de ardente contacto eidentificação com os Erskines. Era calvinista (adepto da teologia dapredestinação defendida de João Calvino, que se opunha à teologia dasalvação pela graça de Tiago Armínio, a principal doutrina da pregaçãode João Wesley) convicto, e a convivência com o grande avivalistaJonathan Edwards na América havia dado a seu Calvinismo umatêmpera (tempero, consistência) ainda mais resoluta. Mas tambémexistia entre eles (Whitefield e os Erskines) um ponto fundamental dediscórdia. Os dissidentes, segundo seu modo escocês, eram fanáticosno assunto de governo eclesiástico. Eram tão solícitos pelos direitos dopovo na escolha de seus ministros, como eram pela vera doutrina dosdecretos eternos, ou da divindade de Cristo. A impiedade das leis dapatronagem era para eles tão detestáveis como as piores formas dearianismo (teologia do Bispo Ário sobre Jesus que foi condenada pelos

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Concílios Gerais da Igreja como sendo heresia). Como os seus inimigosnaturais, os sacerdotalistas, a sua teologia não tinha perspectiva.

É certo que os Erskines desejavam cativar a Whitefield. RalphErskine escreveu: “A não ser que venhas com o propósito de unir-vos epermanecer conosco no Presbitério Associado eu teria receio dasconseqüências da vossa vinda”. Mas Whitefield menos que ninguémseria o homem a meter-se em estreitos limites eclesiásticos. Ele visitouo Presbitério Associado composto de homens sérios e veneráveis, eescreve que depois de uma breve conversa, eles procederam à escolade um Moderador:

“Eu perguntei: “por quê?”. Eles responderam quedesejavam discorrer comigo e instruir-me a respeito do GovernoEclesiástico, e da Liga e Aliança SoIenes. Eu respondi que elespoderiam poupar-se deste trabalho porque eu não tinha escrúpuloalgum acerca disso, e que determinar o governo eclesiástico epregar acerca da Liga e Aliança SoIemnes não eram do meuplano” (Wesley e Whitefield na Escócia, por ButIer, pág. 23).

Whitefield acrescentou que ele “nunca tinha feito assunto deestudo da Liga e Aliança Solenes, sendo ocupado de coisas de maiorimportância. Isto ao ouvidos dos venerandos dissidentes, não eramenos do que a blasfêmia ousada. Alguns teólogos zangadosexclamavam que “cada prego no tabernáculo era precioso”. Aos olhosde Whitefield o prego estava em perigo de ser considerado maisprecioso do que tabernáculo inteiro! Eles pediram que Whitefieldpregasse só a eles, até que recebesse mais luz.

“Eu perguntei, por que pregar somente para eles? OSr.Ralph Erkine disse “que eIes eram o povo de Deus”. Eu entãoperguntei se Deus não tinha mais gente além deles, e nasuposição de que todos os demais fossem gente do Diabo,certamente precisariam mais da pregação, e que eu, portanto, meachava mais e mais resolvido a sair aos caminhos e valados(propriedades cercadas por valas, trincheiras ), e que se opróprio Papa me desse emprestado o seu púlpito dali mesmoeu alegremente proclamaria a justiça de Cristo. (Wesley eWhitefield na Escócia por Butler, pág. 24).

Para certo correspondente que tentara converter a Whitefield àsidéias corretas de ordem eclesiástica, o grande pregador expôs comsimplicidade toda a sua teoria da ordem na igreja. Ele diz:

“Eu desejo que não vos incomodeis a vós em a mim em

escrever-me acerca da corrupção da Igreja Anglicana. Creio quenão existe igreja perfeita abaixo do céu; mas como Deus, na suaprovidência, houve por bem me enviar para pregar simplesmenteo Evangelho a todos, julgo que não é necessário jogar-me fora”.

Em suma, o esforço para fazer Whitefield preso a uma pequenarede de teorias eclesiásticas foi como se alguém tentasse chamar umaave marítima do seu majestoso voar no espaço e a tentar engaiolar.

Whitefield logo começou a pregar ao ar livre em Edimburgo. AEscócia é terra de grandes pregadores, mas ainda nunca ouvirapregação que se igualasse à de Whitefield. A sua voz sonora emelodiosa ressoava sobre as grandes multidões como vibrações de umgrande sino. O seu ardor, a nota apaixonada que percorria a suaretórica, as cadências trêmulas da sua eloqüência, as lágrimas quevisivelmente lhe corriam pelas faces, o zelo flamejante que ardia emcada sílaba e que dava energia a todo o gesto – estas coisas cativavamas multidões escocesas. Em regra, a pregação escocesa apela mais àrazão do que à emoção, e geralmente um auditório escocês não querver a emoção nem manifestá-la. Mas existem fontes profundas desentimento escondido no caráter viril dos escoceses, profundezas cujaexistência é muitas vezes desconhecida por seu possuidor; e Whitefieldsoube descobri-las.

Ele visitou a Escócia quatorze vezes, e nunca antes nem depoishouve tais triunfos, sobre auditórios escoceses por uma só voz. Elepregou, nos campos ao redor de Edimburgo a multidões de 20.000pessoas. Na sua segunda visita foram erguidas grandes fileiras debancadas no Hospital, e alugadas aos ouvintes por preços estipulados.A energia concentrada e constante do trabalho de Whitefield na Escóciabem pode parecer incrível nestes tempos modernos. No domingo elepregou quatro vezes em Edimburgo a vastas multidões e fez umapreleção à noite numa casa particular. Na segunda-feira pregou trêsvezes e outra vez fez uma preleção à noite. Na terça-feira ele pregousete vezes e escreve no fim do dia: “Sinto-me, tão renovado comoquando levantei de manhã”. De que substância foram constituídos asua carne e sangue?

Mais tarde, quando no pleno desdobramento de seus serviçosapinhados, ele calmamente anota no seu Diário:

“Sinto-me grandemente fortalecido na alma como no corpo,e não posso passar bem sem pregar três vezes por dia”.

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A pregação não lhe minava as forças, antes parecia fortalecê-la!

Butler na sua mui interessante obra “João Wesley e JorgeWhitefield na Escócia”, diz que Whitefield influiu nas cidades escocesaspela sua pregação como o pregador Jerônimo Savonarola influiu emFlorença; mas a pregação de Whitefield foi mais intensamente espiritualdo que a do grande florentino, e tomava um voar mais elevado. Talvez aobra de Whithefield na Escócia alcançou o seu auge em Cambuslang.Aqui um pregador escocês Mc Culloch, homem de belos dotes e dezelo intenso, preparara o caminho para Whitefield. Nas palavras dopróprio Whitefield podemos descrever a cena quando pregava:

“Ao meio dia eu cheguei a Cambuslang e preguei às duashoras a um vasto concurso de gente; outra vez às seis, e outravez às nove da noite. Certamente nunca houve tais comoçõesespecialmente às onze horas da noite. Durante uma hora e meiahavia muito choro, e muitos em grande desespero, davamexpressão em vários modos, que não se pode descrever. O povoparecia morto às centenas. O seu desespero e clamor eramcomoventes. Nos campos durante a noite inteira se ouviam asvozes de oração e louvor” (Wesley e Whitefield na Escócia porButler, pág. 36).

Mais tarde, se produziam efeitos ainda mais notáveis:“Nunca antes vi uma comoção tão universal. A emoção se

movia com a ligeireza do relâmpago de ama a outra extremidadedo auditório. Milhares se achavam banhados de lágrimas – algunstorciam as mãos outros quase desmaiavam e outros clamavam elamentavam um Salvador traspassado. Toda à noite emcompanhias diferentes, pessoas oravam a Deus e O louvavam”.

Que Whitefield fez a vida espiritual de toda a Igreja Escocesapulsar com mais ligeireza, na ocasião, não é de duvidar. Entretanto nãodeixou qualquer marca permanente sobre a religião Escocesa.Edimburgo hoje não tem mais sinal dele do que Florença tem deSavonarola.

Os Dissidentes que convidaram a Whitefield para a Escóciacontemplavam o seu êxito com alarme e desgosto. Visto ele não querermarchar sob a bandeira deles era-lhes nada menos do que inimigo. Elesconcertaram (combinaram) um dia de jejum e humilhação por teremdado qualquer apoio a WhitefieId, “Presbítero da Igreja anglicana quehavia tomado o juramento de supremacia e abjurado a Liga e Aliança

Solenes”. Todos os resultados de sua pregação eles secamenteatribuíram ao Diabo – tão cego é o fanatismo!

Em 1751, dez anos depois que Whitefield passara a fronteira,capitão GalIatin, piedoso oficial do exército, estacionado emMusselburgo, convidou a João Wesley para visitá-lo. Whitefield instoufortemente com ele que não fosse, dizendo-lhe francamente:

“Não tendes nada ali, pois os vossos princípios são tão bemconhecidos que mesmo que falásseis como um Anjo ninguém vosouviria; e se ouvissem, não teríeis outra coisa a fazer senãodiscutir com um e outro de manhã até a noite”.

Deve-se admitir que Wesley tinha algumas qualificaçõesclaramente prejudiciais a uma viagem à Escócia. Todos sabiam que elese aborrecia da teologia calvinista. Ele era pregador do tipo que se podechamar escocês, apelando mais a razão e à consciência do que asemoções, e faltava-lhe o poder sobrepujante de emocionar queWhitefield possuía. Portanto, a sua pregação, para os ouvintesescoceses seria privada do encanto de novidade. Mas como Wesleyescreveu a Whitefield:

“Se Deus me mandar, o povo há de ouvir. Não procurareidiscussões; pois calculadamente me absterei de pontos decontrovérsia, e me cingirei (aterei, restringirei) às verdadesfundamentais do cristianismo; e se houver ainda alguns quequeiram discutir, poderão fazê-lo; mas eu não discutirei com eles”.

A primeira visita de Wesley à Escócia durou dois dias. Masretornou à Escócia dois anos depois, em 1753, e dai em diante umavisita à Escócia de dois em dois ou de três em três anos constituiuparte do seu trabalho regular. Visitou a Escócia vinte e duas vezes, eainda que a sua pregação não produzisse os efeitos maravilhosos eimediatos da pregação eloqüente de Whitefield, contudo influiu no paísmais permanentemente do que o seu grande camarada. Ele criou oMetodismo Escocês, ramo da grande árvore metodista, que embora devolume diminuto entre os outros ramos, todavia tem dado fruto precioso.

O Velho Erskine conseguiu de momento suscitar muito ódiocontra Wesley por avivar a controvérsia calvinista. Ele reeditou naEscócia com prefácio espalhafatoso, as cartas trocadas entre Wesley eHervey o autor de “Theron e Aspásio” e foi possível perceber até quegrau de amargurada discussão em coisas teológicas pode chegar otemperamento escocês.

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“Os Dissidentes, diz Wesley, que tenho encontrado sãomais destituídos da caridade do que os próprios papistas(católicos). Nunca encontrei um papista que sustentasse oprincipio de matar os hereges; mas um ministro dissidente sendoao ser perguntado: ”Se estivesse a vosso poder, não faríeis cortaro pescoço a todos os metodistas?”, respondeu logo: “Pois então,o profeta Samuel não cortou a Agague em pedaços diante oSenhor?” Ainda não encontrei um papista em todo o Reino queme dissesse na cara que todos –exceto eles – têm de sercondenados. Mas tenho visto muitos Dissidentes que semescrúpulo algum afirmavam que ninguém senão eles mesmosserão salvos”.

Mas os Dissidentes, com o seu espírito amargurado, não refletiamo temperamento geral do povo escocês. Por toda parte grandesmultidões escutavam a Wesley e lhe mostravam grande honra.Somente uma vez, enquanto pregando ao ar livre, foi-lhe manifestadoqualquer desacato. Mais de uma cidade escocesa lhe franqueou asportas. Ele achou na senhora Maxwell, de Edimburgo e no Dr. Gillies, deGlasgow, amigos e auxiliares de lealdade indelével (permanente,inapagável) e de grande influência. Whitefield disse nesse tempo emuma de suas cartas que Wesley estava fazendo um grande erro emformar na Escócia sociedades segundo o modelo de sua obra naInglaterra. Mas Wesley possuía um conhecimento demasiado profundo,tanto da natureza humana como da vida religiosa, para crer que seusconversos (os que se convertiam com sua pregação) sobrevivessem seele os deixasse sem o abrigo e o estímulo de camaradagem espiritual.E aquilo que Whitefield considerou como o erro de Wesley na Escóciafoi, na realidade o segredo de seu perdurável trabalho ali.

Na organização dessas sociedades e das classes metodistasWesley estava realmente seguindo um nobre precedente escocês. Osreformadores escoceses do século XVI, como os Lollardos do séculoXV, formavam reuniões para ”as profecias“, que eram quase análogasàs reuniões de classe fundadas por Wesley. Essas sociedadesreligiosas eram fortes na Escócia durante o período da Aliança, econstituíram as raízes profundas e vigorosas que conservaram areligião com vida sobre o solo escocês. É lícito dizer-se que osreformadores escoceses anteciparam muitas feições do trabalho dopróprio Wesley. Uma vida intensamente espiritual, com certeza, ondequer que se encontre, e quaisquer que sejam as condições históricas,naturalmente há de achar expressão, numa comunhão viva. E asreuniões para “a profecia” de Knox, e as reuniões de classe na Igreja de

Wesley, são expressões independentes do mesmo impulso universal,do espírito religioso.

É, ainda divertido se ler as descrições que Wesley faz de seusauditórios na Escócia: admirado da sua ordem, seriedade e falta deemoção. Ele disse:

“Eles ouvem muito, sabem tudo e nada sentem. São tãosábios que não precisam de mais conhecimentos e tão bons que,não precisam de mais religião”.

A imobilidade de seus ouvintes escoceses provocou em Wesley agrande franqueza em falar. Ele diz: “Raramente falo com tantaaspereza como na Escócia, mas nunca soube de qualquer pessoa naEscócia que se ofendesse com a franqueza; neste respeito os nortistassão modelo de toda a raça humana”. Outra vez escreve: “Eu me admirodeste povo; eu emprego as palavras mais ásperas aplicando-as damaneira mais cortante; ainda me ouvem, mas não sentem mais do queos bancos que se sentam”.

Ele nutriu grande respeito pelo bom senso dos escoceses,dizendo: “Mostrai-lhes somente que é coisa racional e eles seconformam a qualquer coisa”. Mas Wesley não estava em nada dispostoa variar os seus métodos para agradar aos escoceses. Os escocesesgostavam de um pastorado fixo; mesmo que não fosse por outra razãosenão o instinto de propriedade que faz o escocês em geral afrontar-se quando tiver de repartir, nem que seja o seu ministro, com outros.Assim pediram a Wesley que modificasse o itinerário de seusauxiliares. Ele lhes escreveu em resposta:

“Enquanto eu viver, os pregadores itinerantes hão de seritinerantes; isto é, se quiserem ficar em conexão comigo. Asociedade em Greenock está à sua própria vontade; eles oupodem ter um pregador entre eles e os de Glasgow ouninguém. Mas mais do que um para os dois lugares não podeter. Tenho demais amor tanto para os corpos como para asalmas dos nossos pregadores para deixá -los se limitarem a umsó lugar. Tenho pesado a causa, e hei de servir os escocesescomo sirvo aos ingleses ou deixá-los.”

Um dos seus auxiliares em Glasgow tinha-se conformado aocostume escocês a ponto de organizar uma sessão eclesiásticaWesley escreveu-lhe de Cork:

“Sessões! Presbíteros! Nós Metodistas não temos talcostume, nem qualquer Igreja de Deus sob o nosso cuidado.

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Eu exijo que tu Jonatas Crowther dissolvas essa sessão assimchamada em GIasgow. Desobriga -os de mais se reunirem-se.E se quiserem sair da sociedad e que saiam: nósreconhecemos somente pregadores ecônomos (encarregadosda administração dos bens, despenseiros) e guias de classes;sobre estes os auxiliares em cada circuito presidem. Devias terte cingido ao plano metodista desde o princípio. Quem recebeua minha autorizarão para variá-lo? Se o povo de GIasgow oude outro qualquer lugar, se cansam de nós, lhes deixaremospara si mesmos. Mas estamos prontos ainda a ser-lhes porservos no amor de Cristo, segundo a nossa própria disciplina,mas nenhuma outra.”

Wesley amava o seu trabalho escocês e os seus ouvintesescoceses, e continuou as suas viagens na Escócia até os últimosanos de sua vida. Alguns dos exemplos mais tocantes na velhice deWesley, prosseguindo com ardor inextinguível no seu trabalho,quando os seus sentidos começavam desfalecer, eram na Escócia.Ele tinha oitenta e oito anos quando fez a sua vigésima segundavisita à Escócia, e planejou a sua viagem e os serviços de pregaçãoem escala tão grande como sempre. Eis uma narração dada por um deseus auxiliares da sua última visita à cidade Escocesa de Dumfries:

“Ele veio nesse dia de Glasgow, percorrendo cerca de centoe dez quilômetros, mas as suas forças estavam quase exaustas, equando ele tentou pregar bem poucos podiam ouvi-lo. A sua vistatambém estava muito fraca, de maneira que nem podia ler o hinonem o texto. As rodas vitais estavam prestes a pararem; mas assuas palestras eram agradavelmente edificantes, sendo umamistura de sabedoria e seriedade de um pai com a simplicidadede uma criança”.

A narração de Wesley mesmo é: “viajei ontem quase cento e trintaquilômetros, e preguei à noite sem dor alguma. O Senhor faz comoquer”.

Butler na sua obra sobre a influência dos metodistas de Oxford nareligião escocesa diz, que Wesley era para a Escócia, “um resplendorespiritual e ainda que o Metodismo como corpo individual não fossegrande na paisagem escocesa, não obstante a sua influência sobre avida espiritual da Escócia tem sido profunda e perdurável”.

CAPÍTULO XXIII

Como o Trabalho se Estendeu - Irlanda

A Irlanda era para João Wesley um campo novo, estranho, bravioe infeliz – um paradoxo da civilização; campo em que, não por qualquercrueldade da natureza ou por qualquer propósito de Deus, masunicamente pelos ódios e tolices do gênero humano, as coisas boas setornavam más. A lei inspirava crime. A religião alimentava ódios. Aliberdade tornava-se autor da tirania. A Irlanda dos primeiros Georges edas leis penais! Havia outro pedaço qualquer do mundo civilizado ondea religião de Jesus Cristo, se avizinhasse tanto à derrota e onde otrabalho da religião parecesse tão desesperado?

Lord Hutchinson, recordamos, condensou a Irlanda de entãonuma sentença terrível: “Uma aristocracia corrupta, um vulgacho (povo)feroz, um governo anarquizado e uma nação dividida”. A sociedadeconstituía uma teia de ódios temíveis. Os protestantes detestavam eoprimiam aos católicos; os anglicanos detestavam e oprimiam aos não-conformistas (anglicanos e outros protestantes de outros segmentos emesmo os independentes que não aceitaram o Ato de Uniformidade, em1662, que exigia total aceitação do Livro de Orações anglicano); os ro-manistas (católicos romanos) odiavam a ambos e, quando se lhesoferecia a oportunidade, os matavam. Green diz: “Depois da capitulaçãode Limerick todo o católico irlandês – e havia cinco vezes mais católicosirlandeses do que protestantes – foi tratado como estrangeiro eforasteiro na sua própria pátria“. (Short History, pág. 811).

O governo estava nas mãos da duodécima parte (uma pequenaminoria) da população que o explorava a seu favor para encher osbolsos às expensas das outras onze partes. Os ódios de classe eramnutridos pela lei. O católico irlandês estava praticamente fora da lei emseu solo nativo; o presbiteriano irlandês vivia sob a ameaça do Ato deProva (uma série de leis penais inglesas do século XVII queinstauravam a revogação de diversos direitos cívicos, civis ou de famíliapara os católicos e outros dissidentes religiosos não anglicanos,impondo, por exemplo, que toda pessoa que ocupasse um empregopúblico, civil ou militar, tinha que prestar juramento de lealdade à Igrejada Inglaterra e parcipar da eucaristia); e o próprio anglicano Irlandêstinha de tirar o chapéu e ficar com ele na mão (um ato de respeito e

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reverência) na presença do anglicano que possuísse o mérito de serInglês.

Mas é o paradoxo de negócios Irlandeses no século XVIII quemais impressiona o estudante no século XX. Representa uma inversão,quase sem paralelo na história, de toda a ordem natural. Os ingleseshaviam ganho a liberdade na Irlanda somente para negá-la aosirlandeses da Irlanda. As duas forças mais nobres na sociedadehumana são a autoridade da lei e a autoridade da religião. São, oudevem ser aliadas. Mas na Irlanda de então eram inimigos mortais. Aprincipal finalidade da lei na Irlanda visava a eliminação daquilo quequatro em cada cinco de seus habitantes tinha por sua religião. Emparte alguma o protestantismo – ou melhor, o que se dizia serprotestantismo – se achava tão forte, e em parte alguma ele haviafracassado tão completamente. Em nenhum outro país o romanismo seachava tão vexado e coagido; e em nenhum outro país ele se vinha tãoperto do triunfo! Foi perseguido e a perseguição converteu os seussacerdotes em fanáticos, e lhes enobreceu em mártires.

O protestantismo que a Irlanda conheceu nesses tristes temposhavia tomado emprestado do antigo Império de Roma sua política deperseguição: a perseguição neste caso era irmã gêmea da avareza.Estava tão pronta em bater a carteira de suas vítimas ou em confiscaras suas fazendas, como em punir-lhes a teologia tão notavelmentecorrupta. O povo irlandês por sua vez, estava casado com a suareligião, não simplesmente por forças espirituais – freqüentemente nãotinham nada de espirituais – mas por um conjunto de forças queconstituíam uma contradição do termo espiritual: ódio de classe; alembrança de injustiças imperdoáveis, injustiças às vezes sofridas, àsvezes cometidas; a lealdade a sua classe; a sua ignorância. Ou numapalavra: os seus ódios. E nunca houve ignorância tão completa, nemódios tão amargos! Eram ódios raciais, que tinham as suas raízes nahistória, e que se conservavam vivos e fundos pela opressão.

E jamais o protestantismo pecou tão fatalmente contra o própriogênio como na Irlanda desse tempo. O pároco protestante tirava odízimo das batatas do povo romanista para o seu próprio sustento; masnão fazia esforço algum para convertê-lo, entendê-lo, falar a sua língua,ou para iluminar a sua ignorância. A descrição dada por Lecky da Igrejado Estado na Irlanda desse tempo tem um toque da ironia severa deTácito:

“A Igreja do Estado na Irlanda era do pobre no sentido quefoi ele que pagava o seu sustento , mas em nenhum outro sentido.

Os seus aderentes (adeptos da Igreja do Estado, ou seja, daIgreja Anglicana) constituíam menos do que a sétima parte dapopulação e estes pertenciam quase exclusivamente à classemais abastada. E este maravilhoso estabelecimento foisustentado principalmente pelos dízimos. A missa dos católicosirlandeses que viviam em choupanas numa pobreza abjeta emiserável que dificilmente achava paralelo na Europa, e tiravamuma parca subsistência para si e para as suas famílias depequenos lotes de terras que plantavam batatas, lotes estes quefreqüentemente não excediam de 250 a 400 metros quadrados. Odízimo do produto destes pequenos lotes foi exigidorigorosamente do miserável inquilino em benefício de um clérigoque lhe hostilizava violentamente a religião, clérigo que em muitoscasos ele nunca tinha visto, e de cujas ministrações nuncarecebia benefício algum.” (Lecky, vol. lI, pág. 197).

“Prosseguiu-se num sistema de meia perseguição”, dizSouthey, “de odiosa injustiça e de condenável ineficácia. Bonsprincípios e sentimentos generosos foram, portanto, incitados aformarem aliança com a superstição e o sacerdotalismo; e ospadres, que a lei somente reconhecia afim de castigá-los, casodesempenhassem as funções do seu ofício, estabeleceram umdomínio mais absoluto sobre espírito do povo irlandês do quepossuíam em qualquer outra parte do mundo. Seria difícil achar,nos limites da história, outro caso em que conspirassem forçastão variadas e poderosas em degradar o caráter e em destruir aprosperidade de uma nação”. (Southey, vol. lI, pág. 107)

Que tipo de caráter foi criado por estas condições perversas? Osirlandeses são notavelmente susceptíveis às influências que lhes advémda história, da legislação e da Igreja. Lecky diz:

“Jamais houve outro povo que meditasse mais sobre asinjustiças passadas, ou que se apegasse mais tenazmente ahábitos velhos ou que se deixasse governar mais pelaimaginação, associação ou costume”.

E a história, a lei e as Igrejas todas combinaram para corrompê-los. Citamos outra vez a Lecky:

“Estavam seminus, famintos, e de tudo destituídos de todasas coisas necessárias, de toda a educação, expostos a expulsõesde seus lares a qualquer hora, moídos ao pó por três grandesencargos: 1 - os aluguéis que se pagavam, não aos proprietários,mas aos intermediários; 2 - os dízimos pagos ao clero - muitas

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vezes clero ausente - da Igreja de seus opressores; e 3 - asespórtulas (esmolas, donativos), pagas a seus próprios padres”.(Lecky; vol I, pág. 241)

E foi em campo tão pouco esperançoso, e semeado tãoabundantemente de joio, que João Wesley e o metodismo iam entrar.Southey diz que “todas as circunstâncias eram tão favoráveis aoprogresso do Metodismo em Irlanda quanto lhe eram adversas emEscócia”, e ele prossegue em citar o fracasso da Igreja estabelecida,etc. Mas isto é uma inversão absurda de fatos. Na Escócia Wesley pelomenos falava como protestante a protestantes. Não era visto ali comoum represente de uma raça estranha e odiada (os ingleses invasores,colonizadores e opressores). Mas na Irlanda o ódio do romanista peloprotestante, a desconfiança do irlandês a respeito de tudo que sechamava (que tinha a ver) inglês, e a amargura nascida de injustiçaspolíticas e ódios raciais, cuja origem remontava há séculos longínquosseriam todos colocados contra Wesley.

No entanto, grandes são as forças da religião simples e genuína!Pela maravilha da verdade, verdade com o amor por veículo e ministro,Wesley na Irlanda conseguiu um êxito que foi certamente maior do queaquele que teve na Escócia, e segundo unicamente ao êxito queconseguiu na Inglaterra.

Não se pode medir a obra do Metodismo na Irlanda pelas capelasconstruídas, os circuitos estabelecidos, ou as sociedades formadas. OMetodismo foi a primeira e a mais nobre entre as forças curativas queinfluíram na história irlandesa, e que têm feito tanto em transformá-la.Nele se encontrava uma forma de religião que não carregava a lançanuma mão, e um processo de proscrição na outra. Aqui haviamensageiros do Evangelho de Cristo, cujo principal característico nãoera a fome insaciável pelos dízimos dos bolsos daqueles que odiavamtanto a eles como a seu credo.

O Metodismo salvou o protestantismo como força espiritual naIrlanda. Fez algo em obstar (impedir) o temível divórcio entre as classesque ameaçava destruir a própria sociedade. Quando ele passou para osolo Irlandês, tornou-se visível uma forma do protestantismo que sofriaa perseguição em vez de infringi-la. Falava a linguagem do primeiroséculo cristão, e possuía algo, ao menos, do espírito desse séculolongínquo – do seu zelo heróico, de sua fé exultante, de sua simpatiaterna e pronta.

João Wesley mesmo não trouxe para Irlanda qualquer curapolítica, e permanecia tão afastado das rixas partidárias dos irlandeses,quanto se afastava das lutas teológicas dos escoceses. Mas pelomenos deu um olhar, com a vista penetrante de estadista cristão,através da densa cerração da política irlandesa. Era “homem do rei e daIgreja”, com um pouco do toreyismo de Oxford no seu sangue.Entretanto no que tocava a Irlanda, era em juízo e simpatia um Pittianoantes de Pitt! Eis como ele descreve o romanismo da Irlanda:

“Pelo menos noventa e nove em cem dos Irlandeses nativospermanecem na religião de seus antepassados. Nem é deadmirar-se que os que nascem papistas geralmente vivam emorram tais, quando o protestantismo não acha melhores meiosde convertê-los do que as leis penais e os Atos do Parlamento”.

Ele relata como a cavalo pelas estradas da Irlanda, com o livroadiante de si, lia a obra pouco acurada de Sir João Davies: “UmaNarração Histórica Concernente à Irlanda”, e no seu Diário comenta:

“Ninguém, lendo estes dados, pode ficar surpreendido que,fértil como é a Irlanda, sempre permanecesse esparsamentehabitada; porque ele faz bem patente – 1) Que o assassinatonunca foi crime capital entre os Irlandeses nativos; o assassinosomente pagava uma pequena multa ao chefe da sua tribo. 2)Desde quando os ingleses se estabeleceram aqui, os irlandesesainda não receberam benefício algum das leis Inglesas. Nãopodiam processar qualquer inglês; de modo que os ingleses lhesaçoitavam, espoliavam e até lhes matavam a vontade. Daí, 3)vinham guerras contínuas entre eles, durante trezentos ecinqüenta anos consecutivos e desta maneira, tanto os Inglesescomo os irlandeses nativos continuavam poucos e pobres “.

Wesley acrescenta que no massacre geral de 1641, e na guerraque seguiu, “mais de um milhão de homens, mulheres e crianças foramdestruídos no espaço de quatro anos”, um pedaço de aritméticaimaginaria que prova de novo quão difícil coisa para os que vivem pertode grandes acontecimentos históricos, apreciar o seu verdadeirotamanho.

A missão de Wesley na Irlanda, entretanto, sempre foi espiritual,tanto nos métodos como nos fins. Chegou a Dublin aos 9 de agosto de1747; era domingo, os sinos das igrejas estavam a repicar, e ele foi,como era do seu costume, diretamente ao serviço na Santa Maria, epregou nessa igreja à noite. O Metodismo já havia achado lugar emDublin. Um auxiliar leigo da Inglaterra, Thomas Williams, havia reunido

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uma sociedade ali, e alugara uma velha capela Luterana como lugar depregação. Aqui Wesley pregou a multidões que enchiam o edifício e oterreno ao redor.

Passou quinze dias em Dublin, estudando atenciosamente ocaráter de seus ouvintes irlandeses.

Não havia neles sinal algum da seriedade escocesa; e nada daestultícia do rústico inglês. Os novos ouvintes eram espirituosos,corteses e acessíveis; e como o mesmo Wesley anota: “Um povoimensamente amável”. Mais tarde Wesley descobriu que o converso (onovo convertido) irlandês, com a sua franqueza e generosidade céltica,a sua susceptibilidade a emoções, tinha os defeitos de suas qualidades.“As águas”, dizia ele em descrever uma congregação que se desfez emlágrimas sob um de seus sermões, “alargavam-se demais para seremfundas”. Também registra, quão pouca relação a religião do povoirlandês freqüentemente tem com o seu entendimento. A ignorância nocaso dele não estorva nem limita a devoção. Ele diz:

“Quanto mais converso com esta gente, tanto mais ficoadmirado. Que Deus tem feito uma grande obra entre ele émanifesto; entretanto a maioria deles, tanto crentes comoincrédulos, não são capazes de fazer uma narração racional dosprincípios mais simples da religião. É manifesto que Deus começao seu trabalho no coração; então a inspiração do Todo-Poderosodá entendimento”.

Depois de somente quinze dias de trabalho em Dublin, Wesleyescreve:

“Se eu ou meu irmão pudesse estar aqui por uns poucosmeses, não duvido que haveria aqui sociedade maior do que emLondres”.

Mas quinze dias depois de sua partida, o seu irmão Carlos,acompanhado por CarIos Perronet, chegou, e continuou o seu trabalho;e mesmo nesse curto intervalo, entre a partida de um irmão e achegada de outro, a qualidade variável da tempera irlandesa e o ciúmeinquieto dos padres romanistas se manifestaram. Os padres ficaramalarmados! Aqui se via uma nova espécie de protestantismo que exerciasobre os seus rebanhos uma magia estranha. Devia dar-lhe combate!Portanto aparecia um padre irlandês nos limites da multidão queescutava o auxiliar Metodista, e enxotava o povo com gestos eimprecações, qual cachorro de rebanho a perseguir as ovelhas que sehaviam desviado a pastos proibidos.

Um motim papista assaltou a capela em Dublin, fazendo umafogueira dos bancos e do púlpito, e ameaçando matar a qualquer umque ali assistisse. Este rompimento de violências do povo na Irlandageralmente teve o apoio das autoridades locais, que eram protestantes,e que, não raras vezes, odiavam mais aos Metodistas do que aospapistas. O próprio Carlos Wesley foi apedrejado nas ruas de Dublin.Uma mulher foi morta a socos num assalto que o motim deu numareunião Metodista. Um dos auxiliares de João Wesley, João Beard,morreu em conseqüência dos maus tratos recebidos, e foi o primeiro –mas não o último – mártir Metodista na Irlanda.

A segunda visita de Wesley à Irlanda (em 1748) durou três mesese foi assinalada por labor intenso, por alguns resultados triunfantes, epor muita perseguição. Wesley achou que os seus ouvintes irlandesesnão tomavam muito a sério a sua religião. Não encontrou neles aconvicção profunda, e o sobrepujante senso do pecado, que semanifestavam nos seus conversos ingleses e escoceses. Wesleyregistra: “Preguei os terrores da lei da maneira mais forte de que eu eracapaz. Entretanto, os que estavam prontos a devorarem toda a palavranão pareciam digerir parte alguma dela”. Mas de algum modo, Wesley –o catito (elegante), intenso, metódico e calmo Inglês – possuía osegredo de cativar o amor de seus ouvintes irlandeses.

Em Athlone pregou para vasta multidão no mercado, e comdificuldade se separou dos admiradores que lhe rodeavam. Afinal partiu;mas uma milha distante da cidade, num outeiro no qual havia umaencruzilhada, achou outra multidão de crentes que o esperava parainterceptá-lo. Abriu-lhe caminho até achar-se no meio, quando fecharama seu redor e não o deixavam ir. A multidão cantava hino após hino, equando, por fim, Wesley escapou, ele declara “que homens, mulheres ecrianças ergueram as vozes num clamor que nunca antes ouvi”.“Entretanto, daqui a um pouco”, acrescenta ele, com uma repentinavisão do mundo feliz, “havemos de nos encontrar para nunca maisseparar-nos, e a tristeza e o choro fugirão para sempre”.

O mais violento motim do povo foi o de Cork. Ali o povopraticamente tomou conta da cidade sob a direção de um cantorambulante de modinhas, que era meio tolo meio velhaco, por nomeButler, o qual costumava comparecer na rua mascarado de clérigo, comuma Bíblia numa mão e um pacote de modinhas na outra. Osmagistrados simpatizavam-se com a multidão, e os Metodistas foramcaçados nas ruas como se fossem bichos. Um apelo ao intendente

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resultou somente na resposta que os padres papistas eram protegidos,mas Metodistas não. Muitos Metodistas, tanto homens como mulheres,foram atacados a pau ou feridos à espada; as suas casas foramsaqueadas e grandemente prejudicadas. Fizeram um informe contraCarlos Wesley como sendo “pessoa de má fama, vagabundo,perturbador ordinário da paz real, pedindo que fosse desterrado(expulso da Irlanda)”. Uma queixa semelhante foi formada contra todo oauxiliar Metodista que nesse tempo se achava na Irlanda.

Quando o processo veio perante o tribunal o juiz indagou, ondeestavam os acusados? Ele olhou sobre Carlos Wesley, com o grupo deseus pregadores em redor, enquanto eles vinham para frente, e ficoupor algum tempo visivelmente agitado, e impossibilitado a proceder.Diante dele estava um grupo de curiosos réus! A primeira testemunhapelos acusadores foi o Butler, que sendo redargüido (indagado) arespeito do seu oficio respondeu que era cantor de modinha. Então ojuiz levantou a mão em admiração e clamou: “Eis aqui seis cavalheirosacusados de vagabundagem; e o principal acusador é vagabundo deprofissão”.

A perseguição ainda não matou qualquer credo ruim que fosse;não era, pois provável que obstasse (impedisse) a marcha doMetodismo. Na Irlanda os pregadores Metodistas tinham muitasexperiências estranhas; muitos trabalhos; muitos conversos (novosconvertidos) esquisitos; muitos seguidores descomunais; mas o seuêxito era grande. O próprio Wesley fez um sumário dos frutos do seutrabalho em Dublin. Diz ele:

“Em certas fases, a obra de Deus em Dublin era maisnotável do que em Londres. 1) É muito maior, em proporção aotempo e ao número de habitantes. 2) A obra é mais pura. Durantetodo esse tempo, enquanto eram tratados com gentileza ebondade, não havia ninguém entre eles teimoso ou rebelde;ninguém que queria ser mais sábio do que os seus mestres;ninguém que sonhava em ser imortal ou infalível, ou incapaz deser tentado; em suma, nenhuma pessoa desequilibrada ouentusiasta; todos eram calmos e pacíficas”. (Diário, 26 de Julho,1762)

Pode-se acrescentar que Wesley adaptou os seus métodos àscondições da sociedade irlandesa. Ele tinha de fortificar a moralidade deseus conversos em certos aspectos pela mais rígida disciplina. Eleexpulsou sumariamente de suas sociedades àqueles que ajudaram asaquear a carga de um navio naufragado até que fizessem a restituição.

O autor do rifão (provérbio) notório que “a limpeza vive às portaspegadas à santidade” naturalmente contemplava com severidade oshábitos relaxados e sujos de muitos dentre os seus conversos. Eleexigiu que seus pregadores, tanto no vestir como nos hábitos, fossemuma repreensão a todo o relaxamento. Assim escreve a um de seuspregadores irlandeses, instruindo-o, com franca clareza, a evitar toda apreguiça e indolência, toda a vileza, imundícia, relaxamento, etc:“Qualquer que seja a vossa roupa, que seja inteira: que não sejaesburacada, rasgada, nem esfarrapada”. Achou necessário dizer-lhe:“Livrai-vos de piolhos. Curai a vós e a vossa família da sarna”.

Ganhou muitos conversos (convertidos) dentre os católicosromanos irlandeses, e um destes, por nome Thomaz Walsh , teria tidonotabilidade em qualquer século e sob qualquer forma da sociedade.

Southey fala largamente sobre o caso de Walsh, visivelmenteinclinado a um sentimento de admiração pela erudição que esteestranho converso adquiriu. Aqui havia um irlandês, filho de carpinteiro,de pais romanistas fanáticos, que renunciara ao romanismo (a fécatólica romana) como resultado de uma revolta intelectual contra osseus erros. Ele fora trazido a uma vida espiritual plena e feliz enquantoescutava um pregador Metodista fazer exposição, numa rua deLimerick, das palavras de Cristo: “Venham a mim, todos os que andamem trabalhos, etc.”. As palavras de Wesley sobre Walsh: “o homem sefez o melhor versado na Bíblia que tenho conhecido”. Sabia o hebraicoe o grego tão bem como se fosse a sua língua nativa. Se fosseredargüido (indagado, questionado) de qualquer palavra hebraica ougrega na Bíblia, depois de pequena pausa, dizia quantas vezes e ondese encontrava, e o seu significado em cada lugar.

Mas Walsh era mais do que notável sábio em certas coisas. Elepossuía um gênio pela religião; e a sua vida, segundo Southey, “poderiabem convencer até um católico que santos se acham em outrascomunhões bem como na Igreja Romana”. Walsh mesmo descreve asalturas, que se pode chamar de montanhosas, as quais foi elevado emvirtude da sua conversão. Ele diz:

“Agora senti na verdade que a fé é a substância ousubsistência das coisas esperadas, a prova das coisas não vistas.Deus e as causas do mundo invisível, das quais eu ouviraapenas, agora me apareciam no seu verdadeiro aspecto comorealidades substanciosas. A fé me deu a visão de um Deusreconciliado e de um Salvador todo suficiente. O reino de Deusestava dentro de mim. Eu tirava água das fontes da salvação,

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andando e falando com Deus todo o dia: tudo que eu cria ser avontade dEle isto eu fazia de todo o coração. Eu sabia amar semfingimento aos que me odiavam e orar por aqueles que memaltratavam e perseguiam. Os mandamentos de Deus eram omeu prazer”. (Southey, voI. lI, pág. 119)

Walsh trouxe a piedade a seus estudos, e aqui está a oraçãoque costumava servir de pref ácio a cada hora que ele novamente sededicava ao estudo:

“Senhor Jesus, deito a minha alma a teus pés para serensinada e governada por ti. Do mistério tira-lhe o véu e mostra-lhe a verdade como ela é em ti mesmo. Sê tu meu sol e minhaestrela tanto no dia como de noite”.

A sua religião possuía algo que não era meramente da terra.Ele parecia, respirar ares estranhos. Seus pés pisavam a terra, maso seu espírito estava nas regiões celestes. Southey diz:

“Os seus amigos lhe descreviam como semelhante a quemhavia voltado de outro mundo, e talvez fosse esse jeitodescomunal que fez o padre romano dizer a seu rebanho queaquele Walsh que se tornou herege e andou pregando morrerahavia muito, e que quem agora pregava sob esse nome era oDiabo com as feições dele. Dizem que ele passava pelas ruas deLondres, dando tão pouca atenção às coisas em redor de si comose estivesse no deserto, cego a tudo que teria atraído a atençãode outros, e tão indiferente a todos os sons de excitação, reclamee exultação como aos ventos que sopravam. Ele mostrou amesma influência de belas paisagens e do sol. A única coisa nanatureza de que ele falava com animação foi o firmamentoestrelado, porque ali contemplava o infinito... Às vezes ele pareciaabsorto, dizem, em meditação gloriosa, de joelhos, com o rostovirado para o céu e os braços cruzados sobre o peito, em talsossego que quase não se percebia-lhe a respiração. A sua almaparecia absorta em Deus; e da serenidade e de algo queassemelhava-se ao resplendor que se notava no seu semblante eem todos os seus atos depois, facilmente se via o que tinha sido asua ocupação. Ainda no sono predominava o hábito devocional, ea sua alma se elevava a Deus em gemidos, suspiros e lágrimas.Testemunham a seu transporte e êxtase, e registramcircunstâncias que eles mesmos crêem ser provas da suacomunhão com o mundo invisível”. (Southey, vol. lI, pág. 122)

Se a religião de Walsh possuía um ardor que se aproximava ao

nível de paixão, ainda era assinalada por uma bela caridade e sanidade.Eis como ele fala da Igreja Romana que ele havia deixado:

“Eu lhes dou testemunho que têm zelo de Deus, porém nãosegundo o conhecimento. Muitos entre eles amam a justiça, amisericórdia e a verdade; e não obstante os seus erros emsentimento e, portanto, na prática – tal seja a majestade qual sejatambém a sua misericórdia – podem ser assim tratados. Mas euconfesso abertamente que agora, desde que Deus me iluminou ainteligência e me deu a verdade tal como é em Jesus Cristo, se euainda permanecesse na Igreja de Roma, não poderia ter-mesalvo. A respeito de outros nada digo; sei que todo o homemlevará o seu próprio fardo e dará conta de si mesmo a Deus.Perante o mesmo Mestre tanto eles como eu permaneceremos depé ou cairemos para sempre. Mas o amor e a terna compaixãome constrangem a fazer as minhas preces perante Deus a favordeles. Todas as almas são tuas, ó Senhor Deus; e tu queres quetodos venham ao conhecimento da verdade e se salvem. Rogo-te,ó Deus eterno, a mostrar a tua terna misericórdia a essas pobresalmas que por tanto tempo se enganaram pelo deus deste mundo,o Papa e o seu clero. Jesus, que amas as almas e que és o amigodos pecadores, envia-Ihes a tua luz e verdade para guiá-las”.(Southey, vol. lI, pág. 116).

É quase divertido notar-se os contrastes entre os dois tipos querepresentam os extremos da longa fileira dos auxiliares de Wesley, JoãoNelson, o pedreiro de Yorkshire e Thomas Walsh, o filho de carpinteiroirlandês. O primeiro era Inglês típico: cabeça quadrada, forte de corpo,com pouca imaginação, mas muito humor; dotado do sal de bom sensoe com o dom da palavra no Inglês caseiro que dá idéia de João Bunyanou Guilherme Cobbett. O segundo, Walsh, é o tipo céltico com o seuardor, e o seu toque de melancolia e seu parentesco com o mundoespiritual. Walsh não teve nem a força corporal, nem a sanidade dejuízo, nem o constante bom senso de João Nelson. E Nelson nuncapoderia ter sido douto, sonhador e místico como Walsh. Nunca subiu aoseu fervor nem foi tocado por sua melancolia. Mas os dois eramsemelhantes na coragem, no fogo e zelo com que serviram oMetodismo, e proclamaram a mensagem até o fim de suas vidas àsmultidões. E um movimento religioso que criou, e serviu-se de tiposespirituais tão diversos, foi certamente mui notável.

Wesley visitou a Irlanda pela primeira vez em 1747, e entre estadata e a da sua morte ele atravessou o mar irlandês não menos dequarenta e duas vezes. Tão próspero foi o seu trabalho em solo irlandês

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que ele celebrou em 1752 a primeira Conferência Metodista Irlandesa; aqual reuniu-se em Limerick, durando dois dias, e os membrosconstituintes eram Wesley e nove de seus auxiliares. A primeiraConferência Irlandesa, à semelhança das primeiras ConferênciasInglesas, gastou muito tempo num vigoroso exame da teologia e doensino dos auxiliares; e as notas das “Conversações” são às vezesquase humorísticas em sua franqueza e pungência. “Até que pontoqualquer um entre nós crê na doutrina da Predestinação?” - diz uma dasperguntas. A resposta é: “Ninguém entre nós a crê em sentido algum”.Certas perguntas e respostas têm um gosto local. As congregaçõesirlandesas eram naturalmente dadas a conversas, dai vem a pergunta,“Como daremos exemplo ao povo de decoro no culto público? Primeiro,ajoelhemo-nos sempre em oração, fiquemos de pé durante o canto eenquanto se repete o texto. Segundo, sejamos sérios e quietos tantodurante o serviço (o culto), como enquanto estamos a entrar e sair”.

Há também um gosto do local numa outra pergunta e resposta.“Não devemos pregar mais expressamente e mais fortemente sobre aabnegação do que temos feito até aqui? ”. Resposta: “Pois não; maisespecialmente neste reino, onde quase nunca se fala nem pensanela”. Outra pergunta: “Que devemos evitar quase tanto como oluxo?”. Resposta: “A vadiação (levar vida ociosa, na farra, não terocupação e responsabilidades), de outro modo destruir -se-ia a obrade Deus na alma; e para cortar essa vadiação, não passemos umdia sequer sem darmos pelo menos uma hora à oração particular .“

Este era exatamente o ensino pungente; forte e prático, que osconversos emocionados de Wesley no sul da Irlanda precisavam. Eeste ensino, em conexão com a doutrina evangélica do tipo maisfervoroso, e pregado na mais fervorosa maneira, deu na Irlandafrutos mui notáveis.

CAPÍTULO XXIV

Através do Atlântico

Quem deseja ver o modo estranho e esquisito – adiantando-sesobre todos os planos humanos, ou independentemente deles – em queum grande movimento religioso tal qual o do século XVIII, se estende,bem pode estudar a história da extensão do trabalho de Wesley naAmérica. As forças do grande movimento voaram através do largoAtlântico como faíscas levadas pelo vento – o vento que sopra ondequer.

Não havia campo humano que parecia menos promissor – notocante a condições espirituais do que o oferecido pelos Estados Unidosnesse tempo. Possuíam a aspereza de colônias novas, onde as forças einstituições da vida civilizada somente achavam-se meio desenvolvidas.Uma população esparsa espalhava-se por uma imensa área geográfica,e onde hoje se encontram algumas das maiores cidades do mundoachavam-se então pouco mais do que vilas. Por exemplo, a Filadélfiaem 1739, quando Whitefield chegou ali, tinha apenas 2.076 casas, euma população de dez a onze mil pessoas. A maravilhosa voz deWhitefield podia se ter feito ouvir pela população inteira num sóauditório. A vida social estava na sua forma mais rude; a vida industrialsó começava se mexer; as instituições da própria religião, em largasregiões, ainda estavam sem existência.

Franklin conta uma história interessante de período ainda maisprimitivo, quando alguém intercedia com o Procurador Geral dessetempo, pedindo patente de incorporação e fundos para oestabelecimento de um colégio na Virgínia, e fez lembrar ao Procurador“que o povo da Virgínia tinha almas que necessitavam da salvação tantocomo as da Inglaterra”. Mas a grande autoridade da lei exclamou:“Almas, sejam condenadas as vossas almas! Plantai tabaco!” E emlargos distritos das colônias primitivas este conselho brusco e pagãofora seguido. O povo considerava o negócio do plantio do tabaco – ouseu equivalente – como sendo muito mais urgente e importante do queo da salvação de suas almas, se, realmente, acreditaram ter almas quenecessitassem de salvação. Também já nos horizontes políticos dosEstados Unidos se divisava a ameaça de uma guerra iminente dacolônia desejosa de liberdade com a pátria-mãe, guerra esta que havia

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de dividir o povo inglesa durante os anos desconhecidos do porvir.

É bem curiosa a história do primeiro estabelecimento doMetodismo no solo americano. Em 1752 João Wesley visitou umainteressante colônia de alemães, do Palatinato sobre o Reno,estabelecida na Irlanda – um grupo de pequenas vilas, Ballingarene,KilIeheen e Courtmatrix. A sua visita resultou em muitas conversões ena formação de algumas sociedades Metodistas. Wesley registra avisita sem comentário no seu Diário; pois ele formava parte do trabalhodo dia. No entanto, naquela pequena comunidade Germano-Irlandesa,ele tinha, sem saber, plantado a semente da qual havia de nascer maistarde sob outros céus a grande Igreja Metodista dos Estados Unidos.

Um de seus conversos foi Philippe Embury, que se tornoupregador leigo; um homem que não possuía qualquer dote notável deinteligência, entretanto, o seu nome – quase por acaso – tem se tornouparte da história. Embury era parte de um grupo de imigrantes germano-irlandeses para os Estados Unidos em 1764. Ele estabeleceu-se emNova York, mas lhe faltava a coragem para ali começar a obra religiosa,e por uma reação forçosa e notável a sua própria vida religiosacomeçou a morrer. Outro grupo desses imigrantes germano-irlandeses,da mesma vizinhança, chegou em Nova York no ano seguinte. Entreestes, Bárbara Heck, mulher humilde, mas de caráter corajoso, eMetodista sincera. O seu zelo acendeu-se com veemência feminil(feminina) quando achou que o primeiro grupo de imigrantes haviapraticamente se esquecido do seu Metodismo. Uma história familiar,mas de duvidosa autenticidade, relata como ela foi a uma sala ondeEmbury e seus companheiros estavam jogando cartas; ela pegou nobaralho, jogou-o no fogo e clamou a Embury: “Tereis de pregar para nósou então todos iremos juntamente ao inferno; e Deus requererá o nossosangue das vossas mãos”. O homem repreendido balbuciou: “Nãoposso pregar, pois não tenho nem capela nem congregação”. BárbaraHeck lhe respondeu: "Pregai na Vossa própria casa, e para a nossacompanhia". E assim se pregou o primeiro sermão Metodista naAmérica sob um teto particular e a um auditório de cinco pessoas.

Diz-se às vezes, em referência a este incidente, com ar de mofo,que o Metodismo Americano “nasceu numa mesa de jogo”: mas háevidência que o próprio Embury não havia perdido os seus hábitosMetodistas e nem tinha se tornado em jogador de cartas.

A obra que começou deste modo espalhou-se. Logo se formouuma congregação e organizou-se uma primeira sociedade Metodista.

Era para esta congregação que veio, num domingo, um oficiai inglêsplenamente fardado; caiu de joelhos com os outros adoradores, e uniu-se com eles no canto quando se levantaram. Era o Capitão Webb do42º Regimento, soldado denodado (intrépido, destemido) que seconvertera ao escutar um sermão pregado por João Wesley em Bristol.

Webb era soldado distinto e, de muitos modos, homem notável!Pelejou no sítio de Louisburgo, sendo gravemente ferido. Recebeu umbalaço que, entrou pelo lado direito da cabeça, dirigindo-se para baixo,furou-lhe a vista direita, caiu na boca e no choque incidente à ferida,Webb engoliu a bala. O camarada que veio examiná-lo disse: “Estámorto!” Mas o indomável Webb disse em voz bem baixinha: “Não, aindanão morri”. Viveu e acabou tomando parte em muitas outras guerras emque a Inglaterra estava envolvida. Ele, por exemplo, estava com apequena, mas heróica coluna de soldados que, à meia noite de 12 desetembro de 1759, escalou a penha (penhasco, penedo, fraga) secolocando nas “alturas de Abraão” (num lugar bem alto) e, na temívelbatalha da manhã seguinte ele viu a morte de Wolfe e a destruição dopoder francês no Canadá.

Era homem robusto, de rosto cheio, e o pedaço de pano verdeque lhe cobria a vista vazada deu-lhe às feições um aspecto peculiar.Ele costumava levar consigo ao púlpito a espada, e antes de começar apregação a deitava sobre a mesa em frente. Era peça de aço valente(rijo, resistente), e junto com o rosto assinalado pelas batalhas dopregador, nunca deixou de impressionar o auditório.

João Adams, o segundo Presidente dos Estados Unidos, bom juizde oratória, descreve a Webb como “o soldado velho, um dos homensmais eloqüentes que jamais ouvi”. Webb levou para a sua religião todasas belas qualidades do soldado – a coragem, a lealdade, a iniciativa.Tornou-se pregador local, e costumava ir ao púlpito pregar em uniformede rigor. Ele estava destacado com o seu regimento em Albany, quandoouviu sobre a existência da sociedade Metodista em Nova York; assimdesceu o rio, fez-se conhecido, e logo deu o impulso de uma novaenergia aos trabalhos Metodistas.

Uma mulher encabeça a grande lista dos conversos cristãos naEuropa: Lídia, a vendedora de púrpura de Filipos. Igualmente nosEstados Unidos a figura de uma mulher, a de Bárbara Heck, está nafrente do Metodismo Americano. E ao lado dela se achavam os vultosde dois leigos, Embury, o carpinteiro e Webb, o soldado.

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Construiu-se a primeira capela Metodista em Nova York, nosEstados Unidos e em todo o continente americano. Embury com aspróprias mãos fez o púlpito e dele pregou o primeiro sermão aos 30 deoutubro de 1768. Era um edifício baixo de pedra, 60x42 pés, e tinhalareira e chaminé. Isto se fez para escapar às exigências da lei queproibia a construção de quaisquer casas de culto a não seremanglicanas (a igreja oficial do Estado inglês e soberano das colôniasamericanas). A obra se estendeu com ligeireza e escreveu-se uma cartaa João Wesley pedindo-lhe que enviasse um dirigente, e acrescentandoque, caso a Conferência Inglesa não pudesse pagar a passagem dopregador, os membros da pequena sociedade em Nova York venderiamos paletós e as camisas para prover os fundos.

Deve-se lembrar que Wesley tinha uma tática bem definida eprudente em suas operações. Ele tomava passos curtos, e nunca ialonge de sua base. Não ultrapassou o canal de S. Jorge até maio de1747, nem passou a fronteira escocesa até 1751. Transpor o Atlânticoaté a América parecia, a seus olhos prudentes, uma política, senãoousada, pelo menos, demais apressada. Um pouco mais tarde, quandose pedia que o próprio João Wesley visitasse a América, ele respondeu:

“O caminho não está claro; não tenho que fazer alienquanto puderem passar sem a minha presença. Presentementesou devedor ao povo da Inglaterra e da Irlanda”.

Mas o clamor da América foi mui urgente; um metodista pertinazescreveu:

“O Senhor Wesley diz que a primeira mensagem de seuspregadores é para as ovelhas perdidas da Inglaterra. E não ashá na América? Elas se extraviaram da Inglaterra para asmatas virgens daqui, e estão correndo desenfreadamente atrásdas coisas deste mundo. Estão bebendo vinho a cântaros(exageradamente), estão pulando e dançando, e servindo aodiabo nos bosques e embaixo das árvores verdes. E não sãoovelhas perdidas? E não há ninguém entre os pregadores quequeira vir aqui? Onde está o Senhor Brownfleld? Onde está oJoão Pawson? Onde está o Nicolau Manners? Estão vivos, enão querem vir aqui?“ (Southey vol. II, pág. 202)

Não fora possível recusar este apelo, e a Conferência de 1769chamou por voluntários para irem à América. Dois auxiliares, RicardoBoardman e José Pilmoor, se ofereceram. Não foram enviados atravésdo Atlântico com as mãos vazias. Os membros da Conferência – acompanhia de homens que talvez trabalhassem mais e recebiam menos

do que qualquer outro grupo na Grã-bretanha nesse tempo – ajuntou assuas moedas escassas. Precisavam de vinte libras para pagar apassagem dos voluntários através do Atlântico, e levaram consigo asoma de cinqüenta libras como penhor do amor fraterno do Metodismoda Inglaterra para o da América. Aqueles dois auxiliares, poisencetaram a cristianização de um continente com somente cinqüentalibras!

A Conferência de 1771 fez uma contribuição ainda mais notávelpara a vida religiosa dos Estados Unidos. Ela mandou Francisco Asburye Ricardo Wright para a América; e Francisco Asbury era sem dúvida adádiva mais nobre que Inglaterra deu a seus filhos além do Atlântico.Ele ainda não chegou a ser devidamente apreciado, nem pelosamericanos nem pelos próprios metodistas.

Foi no ano em que Whitefield morreu que Asbury pisou em soloamericano, e enquanto este desconhecido de Staffordshire não possuiunenhum dos poderes notáveis da oratória de Whitefield, ainda estavadestinado a fazer uma impressão mais profunda e permanente sobre avida religiosa da América do que aquela feita pelo grande pregador.

Este filho de um casal do povo começou a pregar quando rapazde dezessete anos. Seguiu, para a América quando tinha sido auxiliarpor somente quatro anos, e estava ainda, em termos modernos, “emexperiência”. Ele encetou aquela peregrinação que havia de guiá-lo adestinos gloriosos, sem ter um penny no bolso. No vasto e rude palcoda América ele fez o papel de apóstolo, sem ostentar o seu apostolado;e deveras, sem no mínimo ter qualquer idéia que fosse apóstolo. Assuas viagens rivalizam em termos de tempo e distância – se nãosobrepujam! – às do próprio João Wesley, e foram feitas em condiçõesmuito mais difíceis. Ele achou pouso (hospitalidade e abrigo) nas rudeschoupanas dos pioneiros (os primeiros habitantes europeus na maiorparte dos territórios norte-americanos); o seu curso (caminho)atravessou as florestas sombrias e quase desertas, passou as largasplanícies e rios sem pontes. O seu salário durante a maior parte de suavida era inferior a 20 libras por ano. Alto e magro, o seu corpo delgadopossuía a rigidez do aço, ao passo que o seu temperamento possuía agentileza de uma mulher.

Foi um Fletcher sem o temível aspecto de outros mundos queestava constantemente visível na testa de Fletcher; foi um Wesley sema imperiosa vontade, obstinação, e inclinação para o alto“eclesiasticismo” do seu grande líder. Mas o próprio João Wesley nãopodia ter viajado, pregado ou trabalhado mais do que ele. A vida santa

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(consagrada) de Fletcher não tinha talvez mais da atmosfera de oraçãodo que a de Asbury. A oração formava parte de cada fibra de sua vida.Com a magia (o poder sobrenatural) da oração ele influiu em todos queencontrava, por um só momento que fosse. Permanecendo nachoupana de algum colono por dois ou três dias ele tinha oração com afamília em cada refeição. Nenhum visitante vinha à casa de Asbury semser recebido ou despedido com oração. Asbury não possuía o gênio decomando de Wesley, mas dava-se melhor com o caráter e as condiçõesda vida americana do que o seu grande líder. Não tinha prevenção declasse; não pertencia a qualquer escola política; nem tinha qualquertendência a ritualismo. Ele conservou a unidade, como Wesley talveznão teria feito, entre as sociedades Metodistas na América durante asanguinolenta guerra civil (pela independência das 13 Colônias), e asconteve pela sábia suavidade que o amor ensina; pois o seu únicogênio foi aquele dado pelo amor. Neste aspecto ele parecia mais com oFletcher do que com Wesley; era realmente uma versão inglesa plebéia(popular) daquele suíço angélico. Asbury era meio serafim (anjo, pessoade beleza e caráter raros) meio plebeu (popular) – um serafim com otoque do comum que se encontra no povo, mas nem por isso menosseráfico (angélico).

Não obstante a brevidade de sua relação pessoal com o Asbury,Wesley pôs nele o seu selo característico. É ainda visível nas suassentenças curtas e vigorosas. Estava bem legível a seuscontemporâneos na nitidez no vestir, na sua diligência metódica, na suaavidez pela instrução, e nos seus hábitos de estudante. Este homem deStaffordshire, viajando cinco mil milhas por ano, pregandoincessantemente, dando três horas por dia à oração, e sem moradiacerta, entretanto tinha por regra fixa ler cem páginas por dia. Asbury fez-se douto e tornou-se senhor do latim, grego e hebraico.

A que ordem misteriosa pertenciam tais homens? Parecem terpossuído faculdades que jazem esquecidas nos homens em geral, eque tiraram a vida de fontes mais ricas. As experiências que para outroshomens são raras e momentâneas – sentimentos de emoção e devisão, que vem e desaparecem de momento – eram para homens taiscomo Wesley, Fletcher e Asbury condições permanentes e comuns davida. São deveras revelações das forças não utilizadas que dormemesquecidas na religião.

Não é necessário louvar a inteligência de Asbury. O amor lheensinou a sabedoria, e o amor lhe deu poder. Pelo encanto deste amor,ele alcançou alturas de influência impossíveis à energia meramente

intelectual. Ele curou as divergências de 1779-80 entre os ramos norte esul da recém nascida Igreja Metodista na América, não à força deargumentos, nem pelo mero jeito ou autoridade, mas por suas lágrimase orações, e por aquele amor que cintilava em suas lágrimas erespirava em suas orações. Homem solteiro e solitário; rústico pornascimento, que nada devia às escolas e pouco a dotes naturais; nãotendo qualquer poder de debate, e aparentemente não possuindo domalgum para a liderança; entretanto, na história de sua Igreja, como Deusvê, e o escreve, e há de guardá-lo, bem poucos vultos são maiores doque o bispo do Metodismo nos Estados Unidos Francisco Asbury.

João Wesley, bom juiz de homens como foi, não reconheceu noprincípio os proeminentes dons de Asbury. É verdade que reconheceu amansidão que constituiu a nota saliente no caráter de Asbury, mas nãodescobriu logo a força e a sagacidade envoltas nessa mansidão.Wesley possuía os instintos de um general; e acreditava que naformação da nova Igreja no solo inculto da América, seria necessáriauma mão forte; portanto em 1773, ele mandou, como reforços aotrabalho na América, a Thomas Rankin e a Jorge Shadford. A sua cartade autorizarão a Shadford é característica.

“Eu te solto, Jorge, no grande continente Americano.Publica a tua mensagem à luz do sol, e faze todo o bem quepuderes”.

Rankin, que figura nas cartas de Wesley como “querido Tommy”,era escocês de nascimento, soldado de educação – soldado da escolade João Haime – e Wesley o fez auxiliar geral das sociedades naAmérica, com o propósito expresso de apertar mais as rédeasdisciplinares ali. Rankin certamente trouxe para a sua religião algo datêmpera (austeridade, índole, temperamento), e muito da disciplina dosoldado. Sabe-se que o mesmo Asbury, onde era coisa de princípios,era capaz de exercer mão de ferro; mas o toque de Rankin era o de açotrabalhado! O seu senso de ordem ficou tão profundamente abaladopelas manifestações físicas que se viam em certos avivamentos que eleficou disposto a queixar-se dos mesmos avivamentos. Ele levou para asreuniões das Sociedades os acentos mandantes do soldado, e poralgum tempo parecia como se a natureza meiga de Asbury, com asinfluências mais belas e sábias que ele representava, seria banido docampo. Em suma, a fábula de Esopo a respeito do torneio entre o sol eo vento foi novamente, exemplificada no contraste entre os métodos dosdois homens; e como na fábula, a meiga luz do gênio de Asbury semostrou mais eficaz do que o vento forte e rijo personificado naadministração de Rankin.

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O Metodismo desde o começo cresceu com rapidez quasetropical no solo Americano. Era adaptado ao gênio do povo, e quadrava(adaptava-se) perfeitamente com as suas circunstâncias. Um ministériotão móbil e empreendedor como a cavalaria ligeira de um exércitoinvasor, espalhou-se por todo o vasto continente. Os primeirospregadores trouxeram os métodos de Wesley, e as tradições doprimeiro grupo heróico de seus auxiliares à América. Sobrepujaram amarcha dos imigrantes e trabalharam mais do que os colonos; levarama mensagem e o espírito de religião por toda à parte. E ano após ano ahistória de novas sociedades e múltiplas capelas, e de um semprecrescente exército de auxiliares, foi relatado à Conferência Britânica (daqual o Metodismo das Colônias fazia parte).

Asbury contribuiu grandemente para isso pelo jeito de suaadministração. Ele possuía muitos dons de um grande general; sabiaescolher os homens; podia olhar sobre um continente inteiro e ver osseus pontos estratégicos, e colocar em cada lugar o homem justamenteadaptado ao posto. Ele sabia, também, combinar exatamente otemperamento e o gênio do pregador com o grau de espiritualidade decada Sociedade; e não obstante a sua meiguice, Asbury possuíasuficiente resolução para agir sob sua própria interpretação da situação.Distribuiu os seus auxiliares pelo continente com o método e com muitoda perícia de um grande general na distribuirão de suas tropas.

Entretanto o Metodismo na América foi logo no começograndemente embaraçado. Uma guerra civil estava preste a serebentar. A primeira Conferência reuniu-se enquanto os canhões deLexington estavam ainda despedindo a suas vibrações sinistras atravésdo mundo. O encontro histórico de Coke e Asbury na América, aos 13de Agosto de 1776 (*), era o ponto de partida da grande IgrejaMetodista Episcopal dos Estados Unidos. Somente três semanas antesfora assinada a Declaração da Independência e os laços quevinculavam as 13 colônias à Inglaterra foram desfeitos. Fundar umanova Igreja em solo sacudido por terremoto político de tamanha escalaera tarefa que bem poderia se considerar como demasiado grande paraas forças humanas conseguirem. Mas algo mais sábio do que oentendimento humano e mais poderoso do que a força humana sededicou à tarefa.

(*) Nota do Tradutor Eduardo E. Joiner: - O ilustre autor W. H.Fetchett errou quanto ao encontro entre Coke e Asbury. Coke só visitou

à América em fins do ano 1784, e a Igreja Metodista Episcopal foiformalmente organizada em Baltimore no Natal desse ano.

Os auxiliares que Wesley enviara através do Atlântico par aAmérica eram, por certo, ingleses ou escoceses de nascimento,simpatizavam com a sua terra nativa, compartilhavam da obstinadalealdade de Wesley. Durante o conflito entre as colônias e a Inglaterrasurgiu um grande mal estar entre os pregadores europeus e ascongregações compostas pelos americanos: os metodistas americanosmui naturalmente tiveram suspeitas de que os pregadores que eramfaltos de patriotismo, para não dizer anti-americanos.

Wesley do outro lado do Atlântico (que opunha-se aindependência das colônias) declarava nesse mesmo momento que tãoprontamente teria sociedade com um bêbado ou com fornicador comocom revoltoso (ou seja, que o simpático ou militante pela independênciaamericana era tão pecador quanto um bêbado ou fornicador). Com quecomplacência, pois, poderia o Rankin, ex-praça da Cavalaria, com maisdo que o instinto ·do soldado pela disciplina e o ódio do soldado peladeslealdade, contemplar os revoltosos? Um por um os primeirosauxiliares de Wesley tiveram de retirar-se da América, retornando àInglaterra. Mais tarde o Congresso americano exigiu que os pregadoresfizessem juramento de fidelidade ao novo governo; mas isto até o muipaciente Francis Asbury se recusou a fazer. Ele foi multado em 5 libraspor pregar sem fazer o juramento, e foi praticamente silenciado durantedois anos, e teve de ficar escondido por grande parte deste tempo.

Os tristes efeitos da guerra civil refletem-se nas Atas daConferência Inglesa. Durante dez anos – dez anos tristes emelancólicos – 1773 a 1783 – não há menção alguma do trabalhometodista na América. É como se esse trabalho – uma igreja inteira! –desaparecera! De 1773-1784 não se publicou Ata alguma daConferência Americana.

Pode-se acrescentar que Wesley aumentou grandemente asdificuldades de seus auxiliares na América, por suas expressões(posicionamentos) políticas na Inglaterra. Em 1775 ele publicou umfolheto de quatro páginas intitulado: “Um apelo calmo a nossas colôniasamericanas”. Talvez nem antes nem desde então, houvesse um tãopequeno pedaço de papel impresso que produzisse tamanha sensação.Mais de 40.000 exemplares foram vendidos em poucas semanas. Ofolheto moveu a gratidão quase lacrimosa dos membros do governoinglês, admirados de achar ao lado deles um homem como Wesley, que

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conhecia tão bem o vulgo (povo) e que tinha sobre ele tanta influência,mas o folheto ofendeu profundamente a todos que eram opostos àguerra, e trouxe sobre o próprio Wesley uma tempestade de invectivas(insultos). Os seus amigos na América tentaram suprimir (dar fim) ofolheto, queimando todos os exemplares que por lá chegaram. Wesleybruscamente declara em seu folheto que os americanos não tinhamnenhuma razão de queixa, e, que não foram destituídos de direitoalgum. Afirmou que o Parlamento Britânico tinha poder para tributar àscolônias americanas, e que a revolta no fundo não era luta pelaliberdade; mas um esforço para subverter a monarquia.

Mas o tal “ApeIo Calmo” de Wesley era, de fato, uma simplesabreviação do bem conhecido folheto de Johnson, “Tributação não éTirania”, adornado com o nome de Wesley e umas poucas sentenças doseu nervoso inglês. A sua publicação, nesta forma, não sem razão,expôs Wesley a acusação de plágio. O folheto estava também emflagrante contraste com certas expressões de Wesley em data anterior.Por exemplo, em 15 de junho de 1755, Wesley se dirigiu ao LordeNorth, protestando contra o tratamento dado aos americanos. Eleescreveu:

“Todas as minhas prevenções são contra osamericanos; porque sou High Churchman - ritualista - filho deHigh Churchman, crendo assim, desde a infância, nas idéiasde obediência passiva e de não resistência; e não obstante asminhas bem enraizadas prevenções, não posso deixar depensar, se penso coisa alguma, que um povo oprimido está apedir nada mais do que o seu direito legal, e isto do modomais modesto e inofensivo que a natureza do caso permite.Mas pondo de lado todas as considerações da justiça ou dainjustiça, eu pergunto se é de bom senso empregar a forçapara com os americanos? Estes homens não se assustarão; eparece que não serão vencidos tão facilmente como noprincípio se imaginara. Talvez contestarão cada polegada deterreno; e, se morrerem, morrerão com a espada na mão”.(Tyerman, voI. I, pág. 198).

Sentimentos admiráveis são estes; mas ao passo que Wesleyescreveu deste modo em particular, como foi que escrevesse de ummodo tão diferente para o público?

A verdade é que na política Wesley estava susceptível a falar comconhecimentos inadequados sendo demasiado ocupado num domíniomaior para poder se assenhorear dos fatos pertinentes a um mundo tão

diferente. Em negócios políticos, também, tanto por educação como porcaráter, fez que ele fosse o que se chamava nesse tempo um Tory.Somente quando a sua consciência se tornava peremptória se corrigiaas suas idéias políticas.

Facilmente se entende como as expressões de Wesley naInglaterra aumentariam as dificuldades de seus pregadores na América.Mas é forçoso dizer que Wesley era muito mais sábio por seuspregadores do que por si mesmo. Ele lhes escreveu assim:

"O vosso papel é o do pacificador; deveis ser amáveis eternos para com todos, mas sem ligar-vos a partido algum. Naface de todas as solicitações quer sejam por palavras ásperasquer por suaves, não digais uma palavra sequer contra um ououtro partido; conservai-vos puros; fazei o que puderdes paraajudar e suavizar a todos; mas cuidai que não vos metais nasrixas de outros”.

Com o mesmo espírito CarIos Wesley lhes escreveu dizendo:"Quanto aos negócios públicos desejo que sejais como eu.

Não sou nem de um lado nem de outro e, entretanto sou deambos: ao lado da Inglaterra nova e velha”.

Logo veio a crise dos negócios eclesiásticos na América – criseque apressou a solução da mesma questão na própria Inglaterra.Wesley exigiu que os seus auxiliares na América, como na Inglaterra seconservarem, não somente em relações de amizade para com a IgrejaAnglicana, mas deviam até se considerar os humildes e desconhecidosservos dela. Não deviam administrar os sacramentos, nem celebrarcultos nas horas dos serviços na Igreja, nem haviam de se chamar-seDissidentes (dissidentes da Igreja oficial). Mas o número de párocos nosEstados Unidos era diminuto (pois a maioria durante a guerra retornoupara a Inglaterra); as paróquias (as vilas, cidades e áreas geográficasque um pároco tinha sob sua responsabilidade) eram vastas, e comdemais freqüência eram servidas de homens sem zelo nem piedade.Era absurdo imaginar que as enérgicas e crescentes Sociedades doMetodismo continuariam a depender da caridade – caridadefreqüentemente mesquinha e pouco generosa – de uns poucosclérigos anglicanos (que, tal como acontecia na Inglaterra,desprezavam os metodistas ) para a ministração dos sacramentos.

A guerra civil de fato, destroçou toda a política de Wesleyneste assunto. A maioria dos clérigos anglicanos abandonou as suasparóquias e fugiram das colônias revoltadas. A administração dos

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sacramentos nas Sociedades Metodistas ameaçava ficar – e poráreas largas praticamente ficou – obsoleta e quase esquecida.

A questão dos sacramentos na América tornou -se assimurgente e peremp tória. João Wesley pediu aos bispos (anglicanos)ingleses que ordenassem alguns de seus auxiliares para atenuar acrise, mas eles o recusaram. Os bispos ingleses não tinham grandedesejo para ministrar os benef ícios da religião a revoltos osamericanos que guerreavam contra a pátria mãe e ao seu soberanolegitimo. Wesley escreveu ao Bispo de Londres:

“Tenho dó da pobre América e das ovelhas dispersas ali;em parte elas não têm pastor algum, especialmente nascolônias do norte; e a condição das demais é pouco melhor,pois os seus próprios pastores não têm compaixão delas”.

João Wesley com paciência característica esperou por quatroanos antes de agir. Escreveu duas vezes a Lowth, o Bispo deLondres, homem de espírito liberal e de simpatias generosas,pedindo que ordenasse, pelo menos, um pregador que pudesseviajar entre as Sociedades Metodistas Americanas para administraros sacramentos. Mas Lowth recusou. Ele disse: “Já existem trêsministros naquele país”. Wesley mui naturalmente respondeu : “Equantos são estes para zelarem por um continente?” Não somenteeram demasiado pouco em número; mas eram visivelmentedestituídos do caráter necessário para o trabalho a se fazer.

Wesley escreveu novamente ao Bispo Lowth:“Vossa Senhoria não teve por bem ordená-lo (auxiliar de

Wesley), mas vossa Senhoria teve por bem ordenar e mandarpara a América outros homens que sabiam algo de Grego eLatim, mas que não sabiam mais de salvar almas do que depescar baleias”.

Os fatos para Wesley sempre possuíam uma lógica final. Nessetempo ele começara contemplar toda a situação com olhosdesvendados das prevenções eclesiásticas. Ele refletiu que, talvez,fosse um bem os bispos não terem ordenado os pregadores metodistas.

“Se eles Ihes ordenassem agora (escreveu ele) haviam dequerer governá-los; e quão seriamente isto nos embaraçaria! Masos nossos irmãos americanos agora se achando totalmentedesembaraçados, tanto do Estado inglês como da sua hierarquia,não ousamos embaraçá-los nem com um nem com outro. Estãoagora com a plena liberdade de seguirem com simplicidade as

escrituras e a Igreja primitiva; e julgamos melhor que elespermaneçam firmes naquela liberdade com que Deus tãomaravilhosamente lhes libertou”. (Southey voI. lI, pág. 213).

Ele resolveu a dificuldade ao ordenar um superintendente oubispo para a América. Wesley age com deliberação, e expõe comgrande força as razões que lhe influíram. Por que fez para a Américaaquilo que recusara fazer para a Inglaterra? Ele responde:

“Aqui há bispos que têm jurisdição legal. Na América não háninguém, nem existem ministros nas paróquias; de modo que naextensão de centenas de milhas não há ninguém para administrarnem o batismo nem a ceia do Senhor. Aqui, pois se findam osmeus escrúpulos; e julgo-me com plena liberdade, não estouviolando ordem alguma, nem invadindo os direitos de ninguém,por nomear e enviar trabalhadores para a seara”. (Southey, voI. lI,pág. 213).

Desta forma, pois, Wesley e Creighton, clérigo que era tambémum de seus auxiliares devotos, ordenaram a Thomaz Coke comosuperintendente, e Ricardo Whatcoat e Thomas Vasey comopresbíteros para a América. Coke, por sua vez devia ordenar a FrancisAsbury.

Wesley, a seu modo prático, só iria até onde tinha de ir, mas nãomais longe. É verdade que seus princípios iam muito além dos seusatos; porque era inglês sem imaginação que conservou os pés em terrafirme, cuidando muito de coisas concretas e nada de abstratas; muito deeficiência prática e pouco de lógica. Na Inglaterra como na América, ele,esticou, quase a ponto de rompimento, a lealdade de seu povo por seudesejo de conservar a amizade da Igreja Anglicana. Por exemplo, naAmérica, em 1779, as Igrejas Metodistas nos Estados do Suldeliberadamente romperam e resolveram começar a existência comouma Igreja independente (autônoma), visto não haver outra maneira deconseguirem a administração dos sacramentos entre si. A cisão foiunicamente fechada pelas orações e lágrimas e pelo jeito especial deAsbury.

É divertido notar, na própria ordenação de Coke, a ternuracaracterística de Wesley para com a teoria ritualista que havia muitorenunciara e que agora ele está a repudiar publicamente. Não querchamá-lo de “bispo”, está o constituindo tal, mas o denomina“superintendente”. Foi a singeleza e o bom senso americano que maistarde pôs de lado a palavra pesada de “superintendente”, fazendo o

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nome e o fato se harmonizarem no termo bispo.

Wesley era, também, pouco lógico em outro ponto. Ele declaraque Lorde King havia-lhe convencido que presbíteros e bispos são damesma ordem. Porque, então o julgou necessário ordenar a Coke comobispo sob o nome de “superintendente”? A crítica de Southey sobre esteponto é perfeitamente sã. Sob o princípio de Wesley a consagração erainútil, pois Dr. Coke, havendo sido regularmente ordenado, era já tãobom bispo como o próprio Wesley.

Coke era uma dádiva quase tão boa para a América como foi oAsbury. O seu jeito, o seu zelo e a sua sobrepujante personalidade fê-lode vez um poder; e se pode acrescentar que era cavalheiro pornascimento e posição, e douto por educação. Possuía uma posiçãosocial que os outros auxiliares de Wesley não podiam pretender.Asbury estava fazendo uma viagem pelo país na ocasião dachegada de Coke; mas logo que Coke acabou de pregar numacapela em Delaware, “um homem singelo e robusto lhe veio aopúlpito e o beijou, pronunciando ao mesmo tempo uma saudaçãoprimitiva”. Era Francis Asbury. E os dois homens destinados aimpressionarem tão profundamente aos Estados Unidos tornaram -seimediatamente em amigos íntimos.

Não está à alçada deste livro descrever mais minuciosamenteo progresso da obra na América. O Metodismo ali era simplesmenteuma muda do avivamento inglês plantada sob outros céus, e emcondições difíceis. Entretanto tem crescido e tem se tornado o ramomais vigoroso do protestantismo, entre povos que falam a línguainglesa que se conhece na história! As condições geográficas epolíticas lhe deram a forma de Igreja independente mais cedo doque o movimento materno na Inglaterra; e é hoje o mais poderosocorpo religioso numa nação de oitenta milhões de habitantes. Se otrabalho de Wesley fosse julgado por este, em certo sentido umresultado secundário, mesmo assim quão grande é a sua escala!

CAPÍTULO XXV

O Segredo do Grande Avivamento

Até este ponto o escopo e a escala do avivamento têm sidoexplicados; mas vale a pena indagar agora qual é a explicação domovimento que tão profundamente afetou a nação inteira; e onde sedeve procurar o segredo de sua energia estranha.

É certo que o segredo pertence ao domínio espiritual. É fútilbuscá-lo nas qualidades pessoais dos homens que eram os seusagentes, na oratória sobrepujante de Whitefield, nos hinos de CarlosWesley, ou no gênio pela organização de João Wesley. Nem se acha aexplicação no domínio de doutrina. A Inglaterra do século XVIII não foirevolucionada pela descoberta de uma nova teologia, nem ainda pelaforça de uma velha teologia posta em nova perspectiva e proclamadaem novos acentos.

O avivamento do século XVIII, costuma-se dizer, foi o supremorenascimento histórico do evangelismo entre o povo que fala o inglês. Eé verdade, mas não tudo, pois, a mera pregação evangélica da teologiaé, em si, coisa impotente. Não salvará nem o indivíduo, e muito menosainda abalará uma nação.

Em última análise, o segredo do grande movimento aqui descritoacha-se no copioso (abundante) derramamento do Espírito do Deusvivo sobre a nação; e na circunstância que, neste momento crucial, oEspírito Divino achou, num certo grupo de homens e mulheres,instrumentos idôneos, com o devido quinhão de devoção e fé, para umtrabalho tão grande. Correndo pelo canal da doutrina verdadeira, eservindo-se da instrumentalidade de homens idôneos, foi a graça doEspírito Santo que operou esta grande obra.

Mas permanece a pergunta: qual foi a interpretação particular doCristianismo representada pelo avivamento, e que serve em explicar asua escala e a sua energia perdurável? Quais são as doutrinasevangélicas?

A religião cristã, como se vê em toda a história, está exposta,perpetuamente, ao perigo de dois extremos opostos. Um extremo o

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resolve num deismo (onde se acredita na existência de Deus, mas nãohá necessidade de um relacionamento pessoal com ele; Deus éimpessoal, uma “força” do universo) falido e extenuado, uma teoria queextrai o significado de todas as grandes palavras do Cristianismo, e arealidade de todos os ofícios de Cristo. Ignora – trata como nãoexistente ou insignificante – aquele intervalo temível e imensurável, umabismo moral, que nenhuma perícia nem trabalho humano podetranspor, entre o pecado e a justiça. O pecado, segundo estainterpretação, é meramente um grau no desenvolvimento humano. Nãopossui nenhum elemento perdurável de culpa, nem é perseguido porqualquer penalidade eterna. O perdão, se é que haja necessidade deum perdão qualquer, não vem por meio de qualquer mistério desofrimentos temíveis que alcançam a própria personalidade e trono deDeus. É coisa barata e fácil, a mera dádiva da bondade de Deus. Aconversão é uma simples frase. O sacerdócio de Cristo, se não é coisaimpertinente, ao menos, é irrelevante; pois o homem não necessita desacerdote algum. Uma redenção divina efetuada pelo sofrimento é coisaque não se entende. Cristo não tem qualquer oficio redentor; ésimplesmente um mestre, talvez, um pouco mais sábio do que Epítetoou Marco Aurélio; ou talvez, nem tão sábio! A religião é um pequenoplano de reforma moral, facilmente conseguido pelas energias davontade humana sem auxílio de fora (sem a ajuda de Deus, inclusive).

Tal teoria evapora a Bíblia em cerração; esgota-lhe todo osignificado das passagens supremas. É credo que não inspira mártiralgum, nem cria santos, nem envia missionários, nem escreve hinos, etem muito pouco a fazer com a oração. Jesus Cristo, segundo estaescala de valores, é meramente um “Confúcio judeu”.

A negação ou o esquecimento dos ofícios de Cristo – do Cristoque busca, do Cristo Redentor – é a reprovação desta teoria e osegredo de sua fraqueza. E como já vimos, tal era a versão doCristianismo que, na época em que começou o grande avivamento,havia se apossado de todos os púlpitos e de quase todas asinteligências da Inglaterra.

A contrária interpretação (no outro extremo!) do Cristianismo é aversão sacerdotal em todas as suas fases e formas. Não nega osacerdócio de Cristo, mas entre a alma pessoal do homem e o GrandeSumo Sacerdote da raça humana levanta a barreira de um sacerdóciohumano. A redenção, nesta interpretação do sistema cristão, é roubadada sua liberdade, da sua simplicidade, e da sua graça admirável. Areligião torna-se num sistema de deveres medidos e mecânicos; de

esforços piedosos que são regulados pelo relógio e empreendidos emum “espírito da escravidão”. O sacerdotalista (clericalista), quandoanalisado, é um que nunca ouviu a grande mensagem do Cristianismo acada alma aceita e perdoada – “Não és mais escravo, mas filho”.Segundo a teoria sacerdotal, a graça divina corre exclusivamente pelofraco e delgado cano que é constituído de uma sucessão de homensordenados. É uma teologia que serve para uns poucos, mas não é amensagem para a multidão comum. Ela inspira grande zelo, mas nãoresplandece a luz. Às vezes produz mártires, mas nunca cria santos(pessoas com vida santificada) alegres.

Estas duas interpretações opostas e errôneas do Cristianismoformam um contraste sombrio com aquele grande sistema de crençaevangélica que, destituído das falsidades, acha-se entre esses doisextremos. Quais são as doutrinas evangélicas? Uma serra demontanhas cujas sumidades furam os céus e que se banhamperpetuamente na luz do sol. Constituem uma concatenada sucessãode verdades que rompem da eternidade e que têm a sua escala.Verdades que tratam do pecado, e que proclamam a sua culpaimensurável; a sua condenação iminente e inevitável; mas que tambémrevelam um livramento do pecado que é imediato e pessoal – livramentoeste que vem como ato da graça divina, e sob os termos mais simplesde aceitação por arrependimento. Mas não é um livramento leve e fácilque nada custou ao Libertador. É o supremo milagre do Universo, quese fez possível unicamente em virtude do mistério da redenção porCristo. É nos trazido ao alcance pelo mistério da graça do EspíritoSanto. Coloca a alma perdoada em relação pessoal e alegre com o Pai,reconciliado e amado.

Uma redenção divina; um perdão realizado; relaçõesrestabelecidas com Deus mediante a fé; a entrada de forçassobrenaturais na vida pela graça do Espírito Divino; o alcance de umpresente e perfeito ideal de Deus no caráter. Tudo isto se tornainteligível e crível mediante a obra e os ofícios redentores de JesusCristo – e pelas energias salvadoras do Espírito Santo na alma humana.Eis a versão evangélica do Cristianismo!

Nestas doutrinas genuinamente cristãs (que se apóiam realmentesobre a vida e o ensino de Jesus e a mensagem da Palavra de Deus deGênesis a Apocalipse) não há nada de novo. Elas não representamquaisquer descobertas teológicas; mas são as doutrinas efetivas doCristianismo. São elas que o distinguem de um mero sistema de moral.Fazem-no algo mais do que uma teologia. Elas afetam diretamente o

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caráter. Todas as energias dinâmicas do Cristianismo originam-sedelas. São as doutrinas que enviam missionários, que inspiram mártires,que regeneram os becos! Despertam vibrações mais profundas na almahumana do que todas as outras verdades juntas. São as doutrinas nasquais os homens moribundos acham conforto. Todos os grandes hinosdo culto cristão as refletem; todas as grandes orações que originam dasprecisões humanas lhes dão a fala. Constituem exatamente amensagem que o Cristianismo moribundo da Inglaterra desse tempoprecisava. A mensagem asseverou que os homens estão em iminente egrande perigo; não necessitam de alguma cadeia de deveres novos epesados, mas precisam da salvação divina operada pela graçaredentora. E esta salvação é possível. O Salvador anda entre oshomens, lhes tocando com mãos beneficentes. Nasce a esperança!Todos se podem salvar aqui e agora.

Não havia outros pregadores que pintassem o pecado tão escuro,e, entretanto tão convincente à consciência, como faziam os homensincumbidos desta mensagem. Não havia outros que pintassem o amorde Deus mediante a Cristo em cores tão radiantes, ou queproclamassem Cristo como Salvador em tons tão confiados (confiáveis).Estas doutrinas eram também pregadas por homens que as haviamverificado (experimentado). Haviam os sujeitado àquela prova final detodas as teorias religiosas, ao tribunal da experiência comum. Não eramadvogados, eram testemunhas. Toda a sílaba em seus lábios retiniacom os acentos da realidade que arte alguma sabe fingir. Desafiavamos seus ouvintes a uma verificação (uma experiência pessoal) imediatae perfeita das verdades que proclamavam.

Na fala desses homens ressoa o poder estranho que se serve delógica e da emoção humana como instrumentos, entretanto, é algodiferente e maior do que elas todas – “o poder do Espírito Santo”; opoder que primeiramente fez veículo da fala humana no Pentecostes, eque nunca faltou, desde então naqueles que têm aprendido o segredode Pentecostes.

É de se admirar que o Evangelho – pregado por tais homens emtal espírito e em tal momento crítico – conseguisse nada menos do queuma revolução moral? Mudou permanentemente a própria correntezada história religiosa.

Mas pode-se perguntar: Wesley não pregou certas doutrinasestranhas e surpreendentes dos quais o Cristianismo sóbrio nada sabe,ou pelo menos as conhece mui pouco? Mais adiante trataremos de todo

o assunto da teologia do avivamento, mas pode-se perguntar aqui: Deque consistiam as duas grandes doutrinas da “certeza e da perfeição”com que são associados os nomes de Wesley e Whitefield, e que naopinião de multidões ainda desacreditam o seu trabalho e lhes manchaa fama?

Que estas doutrinas ainda sejam olhadas com suspeitas somenteprova quão imperfeitamente, mesmo depois de dezenove séculos dehistória Cristã, se entende a religião de Cristo em terras que se gabamde serem cristãs.

A doutrina da perfeição como ensinada por João Wesley, ésomente a crença que os ideais de Deus, na redenção da almahumana, são susceptíveis de cumprimento, e que são realizáveis aqui eagora: ensina que as mais altas possibilidades da religião não sãomeramente lutas, mas vitórias; que o que Deus exige ao homem, pelagraça divina, este pode render.

O primeiro e grande mandamento, que encerra em suas sílabastodo o dever humano – “Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teucoração, de toda a tua força e de todo o teu entendimento” – tem depermanecer sempre, para as almas que Cristo remiu e nas quais oEspírito Santo habita, sem cumprimento; um desafio para a consciênciahumana que não tem resposta; a sua dor e condenação? Afirmar talcoisa é dizer que a religião Cristã, quando traduzida para os termos davida e experiência humana é um fracasso. É dizer que o ideal de Deus eo caráter do homem têm de permanecer sempre em desacordo. Istoseria uma teologia de desespero; uma doutrina que seria mais nada queo ateísmo disfarçado.

Sem dúvida havia muitas interpretações estranhas e disparatadasda doutrina no tempo de Wesley; mas como ele a ensinou, é um trechomui são e escritural da teologia, e a sua rejeição importa na negação,não somente da esperança humana, mas da graça divina.

Mas em que consistia a doutrina da “Certeza” que, para osouvidos maravilhados das multidões daquele tempo, parecia uma novae perigosa heresia, e que ainda é uma coisa suspeita – ou pelo menospouco compreendida – pelas multidões nas Igrejas Cristãs de hoje?Pelos lábios de Wesley era, certamente, só a reafirmação de um dosofícios do Espírito Santo. Era trazer, de novo, um dos dons essenciaisda religião Cristã à luz do sol desde algum esconderijo de esquecimentomofado e bolorento.

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João Wesley ensinou que o perdão achava a sua verificação eselo na consciência da alma perdoada. O perdão de Deus não havia depermanecer sempre no domínio do duvidoso, como uma incertezaescura e perplexa; somente uma esperança tremente; e para a maioriados homens, um problema assombrado que só acharia a solução namorte. Segundo a mensagem do grande avivamento: “O Espíritomesmo dá testemunho com o nosso espírito de que somos filhos deDeus”. Aquilo que constitui a alegria da consciência Cristã do primeiroséculo havia de ser o desespero da consciência Cristã do século XVIII?

E a doutrina da “Certeza”, como ensinada por Wesley; era umapelo à consciência humana. Ele insistiu que o perdão efetuava na almahumana uma paz divina que constituía o seu testemunho e selo. É tristeque esta grande doutrina hoje, como sempre, ache um reflexo tão fracona experiência pessoal das multidões que ainda se esforçam em seguira Cristo. Desta forma as limitações humanas têm negado à graça deDeus alguns de seus ofícios mais preciosos!

É digno de nota quão firmemente, desde o momento de suaconversão até a sua morte, Wesley conservou a própria experiência edoutrina dentro dos limites radiantes da fé evangélica. Nesses limites,ele mesmo, um sacerdote cansado, achou a liberdade. Ele faz anarração do longo desespero que havia pairado sobre a sua vidaanterior; do cansaço espiritual dos treze anos tristes entre a sua entradano ministério e a sua conversão. Ficou convencido, diz eIe em 1738,que a causa de sua inquietação espiritual era a incredulidade, e que“alcançar a verdadeira fé era a única coisa para ele”. Deveras possuía,em certo sentido, a fé, mas, diz ele, “não tenho fixado a fé no objetivoidôneo. Tenho fé unicamente em Deus, mas não a fé em ou medianteCristo”. Estas palavras tocam no próprio miolo desta teoria evangélica!

Como já vimos, Wesley achou a salvação quando chegou emcontacto pessoal (quando teve seu encontro pessoal) com Cristo comoSalvador pessoal. A fé justificadora, na luz daquela grande experiência,ele definiu como sendo “a plena confiança no sangue de Cristoderramado por mim; confiança nele como sendo o meu Salvador, comoa minha única justificação, santificação e redenção”. A ênfase salvadoraestá nos pronomes! Foi então que Wesley provou o gozo daquelaabençoada experiência que ele chamou a “certeza”.

“Foi me dado uma certeza que havia perdoado todos osmeus pecados, mesmo meus, e havia me livrado a mim da lei dopecado e da morte”.

Wesley, durante o resto de seus dias, repetimos, continuou nasalturas de uma crença e experiência evangélicas. Achou nas doutrinasevangélicas a nota principal de todos os seus sermões. O texto de seuprimeiro sermão ao ar livre foi a passagem: “O Espírito do Senhor estásobre mim, pelo que me ungiu para anunciar boas novas aos pobres”.Mais de cinqüenta anos depois ele pregou o seu último discurso emLeatherhead do texto: “Buscai ao Senhor enquanto se pode achar,invocai-o enquanto está perto”. O texto sobre o qual ele pregou commais freqüência foi a passagem que declara como Deus em Cristo “éfeito para nós sabedoria, justificação, santificação e redenção”. Umadas últimas palavras que proferiu antes de morrer era: ”Não há outrocaminho para o Santo lugar, senão pelo sangue de Jesus”. Quemaprende o significado destas palavras entenderá a doutrina evangélicaque constituiu a mensagem especial de Wesley a sua geração, e érealmente a grande proclamação do Cristianismo a todas as gerações.

O próprio Wesley é quase mais notável como testemunha destasverdades do que como obreiro e líder. Paley tem construído sobre aconversão de São. Paulo uma demonstração quase inigualável daverdade do Cristianismo. A transformação moral repentina epermanente de uma natureza forte, orgulhosa e apaixonada, é um dosfatos mais notáveis na história humana. Transformar um fanático, comum sopro, em santo, um perseguidor do Cristianismo em mártir poramor das verdades do Cristianismo – eis um milagre! Umacontecimento tão surpreendente devia ter tido uma causa não menosmaravilhosa. E tal é o problema na história de Wesley.

Qual é a explicação da diferença nos dois graus de sua própriaexperiência – o sacerdote atormentado pelas dúvidas de seus primeirosanos, e o santo radiante de seus anos mais maduros? Até 24 de maio1738, Wesley trazia a sua religião qual o monge do século XIII trajava asua camisa de pelo de camelo. Era um fardo, uma angústia e umatarefa. Mas a partir daquele 24 de maio de João Wesley de repentepassou para o domínio da certeza, liberdade e alegria.

Aquela grande hora na reunião humilde na rua Aldersgate foicertamente o ponto onde a carreira de Wesley mudou-se. Marcou alinha divisória de sua vida. De um lado se acham as lutas, dúvidas,trabalhos e fracassos; de outro lado acham-se certeza, alegria poder eêxito. Algo aconteceu nesse momento supremo que explica a mudança.Foi a conversão de Wesley. Ele recebeu o Cristo vivo pela fé pessoalcomo Salvador vivo e pessoal; e cumpriram-se nele os ideais sublimes

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da redenção como existem na mente e no propósito de Deus.

Talvez alguém diga que foi esta uma experiência puramentesubjetiva; válida, talvez, para ele, mas de nenhuma autoridade paraoutro qualquer. Que conclusão, de autoridade para a humanidade emgeral, pode-se tirar da experiência subjetiva de uma alma humanasolitária. E talvez não fortaleça o caso por argüir que as experiências deWesley foram repetidas em milhares de outros. Multiplicando-se umzero quantas vezes quiserem, fica sempre zero.

Mas a mudança em Wesley não foi meramente subjetiva.Concretizou-se na sua vida. Registrou-se na história, tem a escala e apermanência da história. Como foi que o mesmo homem, que no ano de1727 não era capaz de mover uma vila, depois de 1739 abalou trêsreinos? Como aconteceu que o mestre, que fora tocado de umapequena colônia (ele foi desonrado e praticamente expulso da colôniaamericana na Geórgia!), por ser um mero irritante humano, se tornoumestre, consolador e líder apreciado de gerações inteiras?

Certamente a explicação não se acha em qualquer dom pessoal,quer corporal quer intelectual que Wesley possuísse. Esses dons eramexatamente os mesmos, em ambas as fases de sua carreira. Wesleyem Wroote tinha vinte e cinco anos de idade. Ele possuía nesse tempoo cérebro do douto, o fogo do fanático, a língua do orador; mas faliu – eele sabia que havia fracassado por completo. Ele mesmo escreve:“Preguei muito, mas vi pouco resultado dos meus; trabalhos”. EmCharleston, também, Wesley tinha trinta e três anos; e em tempo algumde sua vida mostrou mais zelo ou mais dedicação metódica e resoluta,ou uma abnegação que mais avizinhasse o heroísmo, mas fracassou.

Mas algo lhe entrou na vida pela porta de sua conversão, algo quenunca perdeu, algo que transfigurou a sua carreira. Era um dom estranhode poder – poder que utilizava os dons naturais de Wesley – do seu corpoentesado, da sua viva inteligência, da sua vontade resoluta – comoinstrumentos, mas que era mais do que todos estes. Aquele quecontempla a vida de Wesley como um todo, e vê, de um lado de certadata, dúvida, fraqueza e derrota; e de outro lado certeza, alegria e poderinigualáveis, não pode duvidar que o segredo da carreira de Wesley estáno domínio espiritual. A história de Wesley é uma demonstração simplese sobrepujante da verdade daquele que se chama a interpretaçãoevangélica do Cristianismo.

CAPITULO XXVI

Como Wesley influiu na Inglaterra

Parece coisa ousada e descomedida medir a obra de uma só vidapela mudança que essa vida tem efetuado no caráter de uma nação. Afigura humana, mais notável que seja, quando colocada no palco de umreino, bem pode parecer reduzida a dimensões microscópicas. Emcertos casos raros, como no de Pedro Magno na Rússia, Cavour naItália, ou Bismarck na Alemanha, pode-se aplicar uma prova tão elevadasem qualquer senso de desproporção surpreendente. Mas na históriaInglesa, tal prova, ainda quando aplicada a Pitt ou a Gladstone parecedemasiado cruel.

No caso de João Wesley faltavam visivelmente muitos doselementos ordinários de poder. Era até o dia de sua morte homempobre ainda que fosse porque dava tudo que possuía. No momento quea sua carreira tomou escala histórica ele era clérigo (anglicano) semparóquia, líder sem partido, pregador ao qual se fecharam todos ospúlpitos (anglicanos) dos três reinos (Inglaterra, Escócia e Irlanda).Entretanto, admitido tudo isto, permanece o fato que Wesley desafia oconsenso da humanidade à prova do caráter que a sua obra deixou nahistória dos povos que falam o Inglês.

E a sua contribuição àquela história pode ser comprimida numasó sentença: Ele restaurou o Cristianismo ao seu lugar como força vitalno credo individual dos homens e na vida da nação.

Uma mudança profunda e maravilhosa, levando em si o penhor eo segredo de mil mudanças mais! Durante mais de cinqüenta anos –desde o momento que rompeu com todas as convenções eclesiásticase pregou na várzea aberta de Kingswood aos mineiros incultos até omomento quando lhe faltou a fala no seu leito de morte em City Road –Wesley era a maior força individual na Inglaterra. E era uma força emtudo que o Cristianismo significa.

Possuía a uma visão espiritual tão acurada como a de ThomasKempis; uma percepção da eternidade tão profunda como a deGuilherme Law; convicções espirituais tão sobrepujantes como aquelaspossuídas por João Henrique Newman, e em harmonia infinitamente

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mais íntima com o gênio essencial do Cristianismo. E não foi, qual oautor do Irnitatio Tomaz Kempis), recluso numa cela. Não foi, qualGuilherme Law, acondicionado em algodão por um grupo de ricasadmiradoras femininas. Não foi, qual Newman, enterrado em reclusãosemi-monástica (como se vivesse recluso num mosteiro) em Littlemore.

João Wesley viveu ao ar livre; converteu os morros e as ruasurbanas em púlpito. Pregou diariamente a vastas multidões; tocou emmilhares de vidas por sua influência pessoal; e fez isto durante mais decinqüenta anos! Rodeou-se de uma grande ordem de pregadores detipo inteiramente novo. Edificou uma extensa organização espiritual queincorporava os seus próprios ideais, e estava acesa de seu próprioespírito. Como resultado ele vivificou a consciência, não meramente deseus próprios seguidores, mas da Igreja que o enjeitou (rejeitou) e danação inteira a qual pertencia. O Cristianismo, não meramente comocredo, mas como consciência, deste modo, renasceu sob os céusbritânicos.

O escopo e caráter do trabalho de Wesley podem ser julgadospelos padrões da história. E quando essas provas elevadas sãoaplicadas, pode-se dizer com razão que Wesley não fez tanto em avivara tradição evangélica do Cristianismo, como em criá-la. Todos osgrandes movimentos evangélicos, desde o seu tempo até o presente,têm encerrado algo do espírito de Wesley. E pode-se asseverar que atradição evangélica que data de Wesley é o tipo mais prático e são.

Presentemente se ouve dizer com freqüência que o próximoavivamento tem de ser ético. Se for assim, será uma volta a Wesley,pois o avivamento que leva o seu nome foi ético no sentido mais intensoe prático. A religião, segundo a definição e o ensino dele, subsistia numtemperamento e numa conduta piedosos. O próprio Leslie Stephen, queem coisa de crença teológica, acha-se separado de Wesley por largoshorizontes, e que julga a obra de Wesley por padrões puramenteliterários, dá testemunho enfático das qualidades práticas dessa obra.Ele diz que o propósito de Wesley foi “extirpar o vício, suprimir abebedice e a prodigalidade (desperdício, dissipação, esbanjamento), emostrar aos homens o caminho direito ao céu”. Em outras palavras,queria estabelecer na vida humana aquela Civitas Dei da qual todos ossantos têm sonhado, um vero e imperecível Reino de Deus, reino dejustiça, paz e gozo no Espírito Santo.

Lecky numas quantas passagens, nota, com certo acento deadmiração, a influência que o avivamento Metodista exerceu fora do

Metodismo. Era uma das forças que produziu a Escola Dominical. Influiuno exército, nas universidades, na literatura, e isto, não obstante osliteratos de então terem para com Wesley e o metodismo senão oescárnio. Não é fácil mencionar as inúmeras formas práticas que a obrade Wesley tomou. Ele estabeleceu um dispensário com sortimento demedicamentos gratuitos para os pobres; lutou contra a corrupçãopolítica; estabeleceu empregos para socorrer os desprotegidos. Leckydiz:

“Não é exagero algum dizer que Wesley possuía umainfluência mais largamente construtiva na esfera da religiãoprática do que qualquer outro homem que tem aparecido desde oséculo XVI.”

Em suma, todas as grandes contribuições características da vidacristã, em tempos modernos, vem por descendência direta de Wesley. Ea influência indireta de sua obra – o seu reflexo em corporaçõesestranhas a dele próprio é, talvez, maior e mais maravilhosa do que osresultados diretos. Por exemplo, a Igreja Anglicana o enjeitou. Rejeitoua sua obra. Entretanto a Igreja Anglicana de hoje está profundamentesob a influência de Wesley. Ele criou naquela Igreja uma novaconsciência; despertou um espírito que silenciosa e absolutamentematou, qual um bafo de oxigênio puro a certos micróbios, o clero vadioe falto de espiritualidade do seu tempo, que havia reduzido oCristianismo a uma espécie de moralidade chinesa, um meroconfucionismo com rótulo Cristão, e que ficava mais alarmado com aidéia de ser crente demais do que de não crer coisa alguma. Wesley,pregando desde o túmulo de seu pai fora da Igreja de Epworth, tornouimpossível o pároco bêbado dentro. O espetáculo das vastas multidõesque ao ar livre esperavam as palavras de Wesley fez que as igrejasvazias tornassem para sempre intoleráveis.

A influência de Wesley fora de sua própria igreja corre às vezespor canais estranhos e desconhecidos. Sem dúvida chamou àexistência o grande partido evangélico na Igreja Anglicana; mastambém ajudou em formar o partido oposto. O movimento de Oxford,senão por outra coisa, simplesmente porque foi servido por talentosliterários mais luminosos para uma grande parte da humanidade,sobrepuja em escala e importância o avivamento Wesleyano. Aindaninguém tem feito um traçado adequado da relação que existe entre osdois movimentos; entretanto tal relação é inegável, e constitui umnotável – se bem que quase desconhecido – exemplo da influênciareflexa do grande avivamento. Wesley, em certo sentido explica aNewmam e fê-lo possível.

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Há notáveis semelhanças e contrastes entre os dois. Newmannasceu dez anos depois da morte de Wesley, e assim respirava a novaatmosfera religiosa que Wesley criou. E realmente Newman reconheceufrancamente a sua dívida ao grande avivamento. Ele diz: “O escritor quemais profundamente me impressionou a inteligência, do que qualqueroutro, e a quem, humanamente falando, eu quase devo a alma, é oThomaz Scott.” Mas Scott era discípulo de Newton, e Newton seconverteu sob o Whitefield, e sobre este ponto torna-se clara a linha deconexão entre Newman e o avivamento. Contrario a Wesley, Newmanfoi primeiramente evangélico, e depois sacerdotalista (clericalista). Eleveio sob a influência de Law quando ainda menino; converteu-se nosentido evangélico com quinze anos, e dessa conversão íntima, ele dizem sua Apologia, quase sessenta anos depois: “Ainda estou mais certodela do que sou das mãos e pés”.

Mas ainda que seja invertida a ordem de acontecimentos na vidados dois homens, a correspondência é maravilhosa. É verdade queNewman era evangélico da escola de Whitefield e não de Wesley. Eraevangélico calvinista; e quando, como Wesley, descobriu, segundo dizele, que o "calvinismo não é a chave dos fenômenos da naturezahumana que ocorrem no mundo”, ele não somente abandonou ocalvinismo, mas juntamente toda a teoria evangélica.

Newman talvez fosse mais crédulo do que o próprio Wesley.Wesley acreditava no "Velho Jeffrey” (um suposto fantasma queassombrava a casa onde moravam com os pais quando meninos); masNewman, na sua juventude, julgou-se a si mesmo como anjo e a terrasólida ao redor como sendo um sonho. Recorda na sua Apologia: “Eujulguei que a vida fosse um sonho ou eu um anjo, e todo este mundouma ilusão, os meus companheiros-anjos se escondiam de mim pordivertimento, enganando-me com as ilusões de um mundo material”. Anatureza foi para ele uma parábola, e as Escrituras uma alegoria.

Ambos eram lentes em Oxford; ambos eram figuras familiares nohistórico púlpito de S. Maria, e ambos passaram, por uma ordeminvertida, pelas mesmas fases teológicas. Ambos foram, em sucessão,místicos, ascetas e sacerdotalistas (clericalistas).

Mas Wesley teve um encontro com Pedro Bohler e atravessou aporta radiante da fé para a terra de liberdade espiritual; Newman teveum encontro com Pusey e passou pelas portas estreitas dosacerdotalismo para o domínio assombrado de uma teologia falsa.

Wesley tinha trinta e dois anos quando partiu para a América, e antesde ser tocado pelas influências Moravianas. Newman tinha trinta e doisanos quando partiu de Froude em Roma, em demanda da Sicília, eenquanto sulcava as águas estreitas da Sicília ele escreveu seu hino“Benigna Luz”.

Se os dois homens tivessem se encontrado (antes daquele 24 demaio de 1738 na vida de Wesley), quão perfeitamente eles se teriamcompreendido mutuamente! E com que complacência o Arcebispo Laudteria aprovado a ambos! Ambos eram seus filhos eclesiásticos.

Wesley teria lutado pela sucessão apostólica e pela integridadedo Livro de Oração tão ardentemente como Keble ou Newman. Ele teriaexpulsado a todos os dissidentes, tanto do domínio de sua própriacaridade como do Reino de Deus, com um escárnio tão completo comoo deles. Com os seus companheiros de Oxford era capaz, em vez doClube Santo, de ter fundado uma casa semi-mosnástica em Littlemore,exatamente como fez Newman um século depois. Sacerdote, místico easceta, repetimos, se acha em ambos. Mas Newman é um Wesleyimpedido. Teria sido possível que Wesley, à semelhança de Newmanabandonasse o Anglicanismo pela Igreja de Roma? A sua lógicainexorável, a sua coragem em suspender a vida, a morte e a eternidadesobre um silogismo (dedução a partir de premissas)., o faz possível.Realmente o sacerdotalista que não acaba por fazer-se CatólicoRomano é um exemplo de lógica impedida, um silogismo incompleto dácarne e sangue. O argumento de Newman é inexpugnável: “Crer naIgreja” - no sentido sacerdotalista – “é crer no Papa”. Wesley, em 1745,sem dúvida, teria achado mais difícil unir-se à Igreja Romana do queNewman achou em 1815. O Romanismo de meados do século XVIIIestava, para o Inglês, ligado a um odiado sistema de política.Representava a Carlos I contra Hampden; aos Stuart contra a casa deHanover; a Star Chamber contra o Projeto de Direitos, a Jayme II contraGuilherme de Orange. E estas coisas eram de importância mesmo aosolhos do sacerdotalista. Se o próprio Newman vivesse cem anos maispróximo ao julgamento dos Sete Bispos teria feito mais difícil a suaentrega ao Papado.

A diferença na religião dos dois homens acha a sua expressão nadiferença de atmosfera. A atmosfera de Wesley estava radiante com aluz do sol; a de Newman é uma espécie de cerração sem sol.Comparando-se a lógica super-sutil, a nota indefinível de cansaço quepercorre a “Gramática de Assentimento” de Newman, com a energiaexultante e alegre, o acento de certeza triunfante, em que Wesley faz “o

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ApeIo aos Homens de Razão e Religião” e achar-se-á expresso emtermos literários o intervalo espiritual entre os dois homens.

Newman nunca escapou da roda sacerdotal naqual Wesley girarapor treze anos; só mudou de direção. Diz Newman na sua “Gramáticade Assentimento”: “A religião é um sistema, é um rito, um credo, umafilosofia, uma regra do dever”. Mas não acrescentou, como Wesley, queela é uma vida; sim é uma sociedade na mais alta forma e energia devida, a vida do próprio Deus! A religião para Newman quer em Christ-Church quer em Littlemore era coisa de “ritos prescritos incorporadosem instituições”. Para Wesley a religião era a recepção de forçassobrenaturais que vinham do domínio espiritua l, inundando a todos oscanais da natureza humana.

Mas é curioso notar quão profundamente Newman e Wesleyconcordaram quanto ao valor da consciência espiritual. Wesley, desde oprincípio até o fim, julgava a religião no foro de sua consciência.Newman, seguindo a Kant, baseou a sua crença em Deus sobre otestemunho da própria consciência. Ele asseverou: “Temos oconhecimento direto e consciente do nosso Criador”. Ele achou nosfatos indestrutíveis da consciência a única força capaz de resistir oceticismo dissolvente da inteligência no domínio religioso. Na filosofiade Newman, a personalidade constitui a chave da verdade. O Dr. Barry,o seu melhor biógrafo, diz: “Os metafísicos geralmente começavam como universal para chegar ao particular; mas aquele que não é de suaseita inverte o processo”. “Venha primeiro o concreto” , diz Newman, “eos assim chamados universais em segundo lugar”. Ele voltou para osdias de sua meninice quando se achava a sós com o Único, e sobreesta base adamantina (íntegra) da realidade ergueu a sua religião.

Ver-se-á que em princípio – no valor dado à personalidade –Newman e Wesley são semelhantes; mas Wesley não “voltou à suameninice” em busca de Deus. Ele achava constantemente umatestemunha viva da existência de Deus no seu íntimo. A sua doutrina dotestemunho do Espírito é simplesmente uma forma desta grandefilosofia.

Wesley foi salvo de sacerdotalismo (clericalismo) pelo toque dasmãos maternas; pela influência da doutrina Moraviana; e ainda alémdessas forças, pela graça do Espírito Santo. Entretanto escapou porpouco. Ele poderia ter sido um Newman do século XVIII! É ainda quepareça paradoxo, contudo é a simples verdade que Wesley em Oxford,em 1730 fez possível, Newman em Oxford, em 1830. Wesley deixara o

acampamento sacerdotalista (o clericalismo), mas o hálito do seu zelofazia que esses ossos secos sobrevivessem. Criara uma novaconsciência no sacerdotalismo, e dessa nova consciência, fermentandoqual vinho em odres velhos, saiu todo o Movimento Tractariano dosTrinta (movimento que visava reformar a Igreja Anglicana e quedefendia que a Igreja da Inglaterra deveria encontrar sua legitimidadeno cristianismo antigo, no cristianismo dos Padres da Igreja) lideradopor Newman.

O Anglicanismo High Church acha-se hoje naquela via media àqual Newman o guiou e no ponto onde o abandonou. Talvez esseAnglicanismo zombar-se-ia da sugestão que ele devesse coisa algumaa Wesley; certamente não demonstra qualquer senso de obrigação àIgreja que Wesley fundou. E também à Igreja Católica Romana sorririacom a idéia que ela devesse algo a Wesley pelo dom de Newman.Entretanto se as influências indiretas de Wesley forem traçadas, ver-se-á que a dívida é incontestável. Se Wesley chamou à existência umanova Igreja, ele também avivou a consciência da Igreja que deixou.

Se descermos até os tempos recentes, ninguém negará que otoque da mão de Wesley e o sopro do seu espírito estejam na Igrejamoderna. O Exército da Salvação é um aspecto do trabalho de Wesley– o seu trabalho entre os decaídos e desprotegidos – avivado sobcondições modernas e em formas pitorescas. As Sociedades de EsforçoCristão vieram da grande instituição de Wesley na reunião de Classes,traduzida em termos modernos e adaptada a novos serviços. Todas asgrandes missões urbanas que nascem sob todos os céus encerram emsi o próprio espírito de Wesley. Se a religião moderna está aprendendoa tomar formas sociais, se está se manifestando em beneficênciaspráticas, isto também, em parte é devido a tradição que vem de Wesley.Porque ele era o primeiro entre os mestres religiosos da Inglaterra quedotou a religião com feições sociais. Quase não há forma debeneficência prática hoje conhecida ao mundo que Wesley não pusesseem operação.

É um historiador secular como Lecky que diz:“Não somente os germens de quase todo o zelo existente

na Inglaterra, em abono da verdade e da vida cristãs são devidosao Metodismo, mas a atividade despertada em outras partes daEuropa Protestante, temos de traçar, indiretamente, pelo menos,à Wesley”. (Lecky, voI. II, pág. 521).

E foi um escritor da escola de Newman, Palmer, que declara que

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“o movimento agressivo e ousado que Wesley simbolizava, uma vezmais fez do Cristianismo o mestre do mundo”.

Mas estamos agora considerando o efeito que o trabalho deWesley produziu sobre a vida e o caráter nacionais, mais do quequalquer mudança eclesiástica que ele efetuou; e é difícil escreversobre este ponto sem exagero. O que foi que salvou a Inglaterra “dalouca e sangrenta fúria do Sena” (da revolução francesa; na expressãoo rio Sena representa a França), e a conservou indestrutível enquantoas forças indomadas da Revolução estavam derrocando o trono e aIgreja na França? Maurício nos conta como seu pai costumava dizerque “a Inglaterra escapou de uma revolução política, porque já haviapassado por uma revolução espiritual” – aquela efetuada por Wesley eWhitefield.

E o testemunho de Lecky ao mesmo fato é enfático. Ele diz:“Muitas coisas conspiraram para salvar a Inglaterra do

contagio do espírito revolucionário da França, mas entre elasdeve·se dar o lugar proeminente ao entusiasmo novo e veementeque estava neste mesmo tempo lavrando nas classes medianas ebaixas do povo”. (Lecky, voI. II, pág. 636).

É fato histórico que o deísmo inglês ajudou em produzir aRevolução Francesa. Os deistas ingleses forneceram a Voltaire e a suaescola de argumentos, e na França esses argumentos acharam solo emque se enraizaram profundamente; ou para variar a figura, eles serviramde faíscas em gás inflamável. Mas como foi que o mesmo ensino,embora uma importação do estrangeiro, produzisse tais efeitos naFrança, ao passo que falhasse completamente na Inglaterra, o seu solonativo? A resposta se acha em Wesley e o avivamento que leva o seunome. Se Wesley fosse um “Voltaire inglês”, corroendo toda a crençacom o ácido do seu espírito, e destilando o fel do seu amarguradoespírito no sangue da nação, poderia ter havido um Reinado deTerrores em Londres bem como em Paris.

Lembremo-nos que nesse tempo um novo movimento social – onascimento das grandes indústrias manufatureiras da Grã-Bretanhaestava mudando o centro de toda a vida nacional. Era movimento queproduziu resultados esplêndidos, mas o seu nascimento foiacompanhado dos mais graves perigos sociais. Era o movimento dedissolução, pondo em desordem todas as relações sociais de classesinteiras. Ele modificou o tipo da própria vida nacional; aumentou a somatotal da riqueza, mas alterou completamente a sua distribuição; por

algum tempo, pelo menos, fez os ricos ainda mais ricos e os pobresainda mais pobres. Fomentou uma guerra entre o trabalho e o capitalque ainda não achou tréguas; congregou todos os elementosinflamáveis da nação; conduziu ao enfraquecimento – senão oaniquilamento – das forças morais, substituindo-as com forças nãomorais e anti-sociais – a avareza, a prevenção de classe e o egoísmo.Lecky diz que foi “peculiarmente afortunado” que o aparecimento destegrande fenômeno social na Inglaterra fosse precedido por “umavivamento religioso que abriu uma nova fonte de energia moral ereligiosa entre os pobres, e ao mesmo tempo deu um impulso poderosoà filantropia dos ricos“. ´

Mas foi apenas um golpe da ”boa fortuna“ que explica oaparecimento, nesse momento supremo e crítico na história nacional,do grande avivamento Metodista? Foi a Providência de Deus, aoperação da Vontade Divina, que conformou a história humana aomodelo dos propósitos divinos.

Às vezes, em nações como em indivíduos, o credo não temrelação alguma com a consciência. Mas o grande avivamento fez docristianismo autoridade no senso moral da nação, e naquela augustamudança está o segredo de mi! mudanças mais. Aquele que espreita oaparecimento daquela nova força na história Inglesa, e nota a suaoperação na vida nacional, tem a chave para quase tudo que é nobre nalegislação Britânica em tempos modernos.

Naturalmente havia, no momento, muitas forças que obstaram ouobscureceram – embora não destruíssem – o desenvolvimento dasemente de justiça e bondade que o avivamento plantou no solo docaráter Inglês. Por exemplo, a grande guerra com a França tinhalavrado por dez anos quando Wesley morreu, e durou ainda dez anosdepois. Quão profundamente essa guerra, tanto durante o seu cursocomo depois de sua terminação, desviou a vida nacional, não é fácilcalcular. Como um dos resultados o Parlamento continuou sem reforma,e falhou por completo em refletir a consciência nacional. É difícil hojeavaliar os males do velho sistema eleitoral. Dois terços da Câmara dosComuns foram simplesmente nomeados pelos ricos. O Duque deNorfolk era dono de onze membros; o Lorde Lonsdale tinha nove.Sarum Velho tinha dois membros, mas nenhum habitante. Setentamembros foram dados por trinta e cinco eleitorados que dificilmentecontassem igual número de eleitores. Calcula-se que 300 membrosforam enviados por 160 pessoas, ao passo que grandes cidades nãopossuíram nenhum.

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Em tais condições, os melhores ideais que a obra de Wesleycriara não acharam expressão nas leis públicas. A legislação eraparcial, e a justiça ainda brutal. Ainda havia 253 ofensas capitais nocódigo. Seria enforcado quem fizesse dano à ponte de Westminster;quem matasse uma lebre, cortasse uma árvore nova ou furtasse coisaque valesse cinco shillings. Em data tão recente como 1816 havia deuma vez em Newgate cinqüenta e oito pessoas sob sentença de morte,e uma delas era uma criança de dez anos. Romney conta de doishomens, associados no mesmo crime de roubo, foram levados ajulgamento. Um deles moveu a compaixão dos jurados, e o julgaramculpado do roubo de 4 shillings e 10 pence (conforme nota destaedição eletrônica, valor correspondente a 58 pence); o outro foi achadoculpado do furto de 5 shillings (60 pence), quantia essa cuja leideterminava como penalidade a morte. Dois míseros pence dediferença resultaram na sua condenação à morte. Esta quantia mediu adiferença entre a vida e a morte! Em suma, a crueldade percorria todasas avenidas da vida social. Mulheres trabalhavam em mina carvão,arrastando-se sobre as mãos e os pés, como amimais, na escuridãodas minas. Crianças de seis anos eram habitualmente empregadas(também nas minas). Até o ano 1804 o direito dos operários para seorganizarem foi regulado por uma lei promulgada no dia da batalha deBannockburn. Mais da metade de todas as crianças da Inglaterra foramcriadas sem instrução.

OBS: NOTA DA EDIÇÃO ELETRÔNICA DO SITE DAIGREJA METODISTA DE VILA ISABEL - O dinheiro inglêsera muito complicado. Antes de 1971, além de um montede moedas que tinham nomes baseados na tradição e, nocaso de algumas, nem existiam na prática como moedas.É o caso do guinéo (guinea), que correspondia a 21shillings, ou seja, uma libra mais um shilling. Aconversão era a seguinte antes de 1971 (quando tudo foidecimalizado) era: 1 Libra = 20 shillings; 1 shilling =12 pence; 1 penny (que no plural é pence) = 4 farthings.Assim no caso descrito no parágrafo acima um doscriminosos roubou 4 shillings e 10 pence, ou seja, 58pence. O segundo roubou 5 shillings = 60 pence. A letra“d”, que era símbolo do penny, vem da palavra latinadenarium.

Impostos eram inevitáveis; mas o sistema tributário era cruel eestúpido em grau quase incrível. Tributava-se o sal em quarenta vezeso seu preço original, e na costa litorânea os pobres se serviam da águado mar para substituí-lo na cozinha. O papel pagava três pence porlibra, jornais pagavam quatro pence o exemplar, anúncios três shillingse seis pence por edição. A lei foi empregada para matar asoportunidades do saber. Também a Inglaterra dos últimos anos doséculo dezoito foi afligida por um rei lunático e uma regênciadesregrada; e mais tarde por um monarca, George IV, que menosescândalo teria dado à nação se fosse também lunático.

Tudo isto se deu depois que Wesley avivara a consciência danação e lhe derramara as veias o vinho de uma nova humanidade.Porque tardou tanto em tornar-se efetiva essa nova consciência? Emresposta, consideremos as forças perturbadoras que já mencionamos,as agitações da Grande Guerra, os prejuízos de um viciado sistema depolítica, a influência de uma corte corrupta, a persistência de formasantigas e cruéis na legislação, entender-se-á como foi que aconsciência nova que Wesley criara na nação achou expressão tãoimperfeita e tardia nos negócios públicos.

A oposição convicta e apaixonada que Wesley fez à escravidão éhistórica, e é ainda mais notável por ter-se adiantado tanto sobre ossentimentos e políticas do seu século. O Parlamento Britânico durante oséculo XVIII – devemos nos lembrar – promulgou não menos de vinte etrês projetos, benevolamente “regulando” o trafico de escravos(humanos). Pelo tratado de Utrecht (1713) a Grã-Bretanha empreendeuo fornecimento de 4800 negros à América do Sul anualmente durantetrinta anos; e foi renovado o contrato em 1748. A Grã-Bretanhaignobilmente (vergonhosamente) virou-se, nesta escala gigantesca,provedora de escravos para os espanhóis! Não foi meramente esomente a consciência política que se achava completamente semsensibilidade para aquilo que Wesley descreve como “a maior de todasas vilanias”, a consciência clerical e a teologia foram igualmenteinsensíveis e omissas. Um grande dignitário eclesiástico, o Bispo deLondres, numa pastoral publicada em 1727, declarou que “oCristianismo e a aceitação do Evangelho não fazem a menor alteraçãoem propriedade civil”; mesmo que esta “propriedade” fosse carne esangue humanos; outro ser humano.

Quando finalmente a reforma eleitoral fez com que o Parlamentoinglês fosse a verdadeira expressão da consciência nacional, então veio

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uma grande procissão (fila, desfile, processo) de atos humanitários. Arevolta contra o tráfico de escravos, e a reforma Howardiana (queganhou esse nome de John Howard que iniciou um movimentorevolucionário para humanizar o sistema prisional) das prisões foram asprimeiras e as mais felizes expressões da nova consc iência assimcriada. O novo sentimento de justiça, e da igualdade humana, dadignidade e do valor da natureza humana que acompanhou o grandeavivamento achou expressão na reforma dos tribunais, na purificaçãodo código criminal, no grande Projeto de Reforma de 1836, e nalegislação humanitária ligada ao nome de Shaftesbury. Wesley e osevangélicos, em geral, eram contra o desimpedimento dos Católicos, econtra a ab-rogação da Lei de Prova – fato este que mostra que eramimperfeitamente emancipados das más condições de seus tempos, eque a inteligência neles não marcava passo com a consciência. Mas osprincípios, que eles ensaiaram, e o novo espírito que introduziram nogoverno, na sociedade e nos negócios nacionais eram poderososdissolventes, nos quais a legislação cruel de anos anteriores –legislação que tentou fazer-se a guarda da injustiça e da crueldade, oservo da religião – desapareceu.

Pode-se acrescentar que um século é apenas a largura de umpalmo na vida de uma nação. Estenda-se a visão e ver-se-á que entre aInglaterra de 1703 e a Inglaterra de 1903 existem diferenças notáveis. Opequeno grupo de ilhas com escassa franja de colônias inquietas têm-se tornado em império, cuja bandeira tremula sobre a quinta parte dasuperfície do planeta, e quase a quarta parte da raça humana. Mas adiferença na escala e no poder que distingue o império é ainda menosimpressionante do que o adiantamento de seus ideais e temperamento.Tem-se criado uma nova consciência; uma nova humanidade respira nasua vida social; novos ideais de legislação registram-se nos códigos. AGrãBretanha ainda tem muitos problemas a resolver, e muitos malescaracterísticos para vencer ainda, mas coloquemo-la na perspectiva dahistória; meçamo-Ia pelos grandes impérios de outros tempos; e é certoque com todas as suas imperfeições ela mais avizinha-se aos ideais doCristianismo do que qualquer outra comunidade em que os homensjamais viveram juntos.

Na criação desta Inglaterra mais livre e mais nobre mil forças têmcooperado. Mas se fosse desenleada (desenrolada, identificado os fios)a teia das forças contribuintes, as mais ricas e as mais fortes seriam asque pertencem a religião. E quem negaria que, as de maior influência eefetividade são as que rodeiam a Wesley e o avivamento religioso doséculo XVIII experimentado e promovido pelo povo chamado metodista!

E o segredo não está tanto no homem como na mensagem; não nolíder, mas no ensino; não no agente humano, mas nas forças espirituais(a graça e a ação de Deus) das quais João Wesley e os metodistas e oavivamento metodista serviram de canal.