9Maria Danielle e Sonia Aparecida

21
Gláuks v. 10 n. 1 (2010) 177-197 Análise do Discurso Imagético: a Representação da Família Obama no Jornal Folha de S. Paulo Discourse Analysis of Image: a Representation of Obama’s Family in the Folha de S. Paulo Newspaper Maria Danielle Mendes * Sonia Aparecida Lopes Benites ** RESUMO: As imagens divulgadas pela mídia, atreladas às relações de saber e poder, podem construir identidades, reforçar mitos e estereótipos presentes no inconsciente da sociedade. Nesse sentido, este artigo faz uma leitura do papel da imagem na constituição identitária da família de Barack Obama, o presidente eleito nos Estados Unidos em novembro de 2008. A partir de um diálogo entre os pressupostos teóricos da Análise do Discurso de linha francesa, voltados ao estudo da imagem fixa, e os conceitos oriundos dos Estudos Culturais, a pesquisa procura compreender as condições de produção e os efeitos de sentido que circulam no discurso imagético e possibilitam os saberes sobre a família. Para tanto, constitui-se como objeto de estudo a fotografia publicada na capa do jornal Folha de S. Paulo, em 21 de janeiro de 2009, que retrata Obama e sua família no dia da posse. * Mestranda. Programa de Pós-Graduação em Letras – Universidade Estadual de Maringá – UEM – E-mail: <[email protected]>. ** Pós-Doutora e Profª. de Pós-Graduação em Letras – Universidade Estadual de Maringá – UEM – E-mail: <[email protected]>.

description

maria

Transcript of 9Maria Danielle e Sonia Aparecida

  • Gluks v. 10 n. 1 (2010) 177-197

    Anlise do Discurso Imagtico: a Representao da Famlia Obama no Jornal Folha de S. Paulo

    Discourse Analysis of Image: a Representation of Obamas Family in the Folha de S. Paulo Newspaper

    Maria Danielle Mendes* Sonia Aparecida Lopes Benites**

    RESUMO: As imagens divulgadas pela mdia, atreladas s relaes de saber e poder, podem construir identidades, reforar mitos e esteretipos presentes no inconsciente da sociedade. Nesse sentido, este artigo faz uma leitura do papel da imagem na constituio identitria da famlia de Barack Obama, o presidente eleito nos Estados Unidos em novembro de 2008. A partir de um dilogo entre os pressupostos tericos da Anlise do Discurso de linha francesa, voltados ao estudo da imagem fixa, e os conceitos oriundos dos Estudos Culturais, a pesquisa procura compreender as condies de produo e os efeitos de sentido que circulam no discurso imagtico e possibilitam os saberes sobre a famlia. Para tanto, constitui-se como objeto de estudo a fotografia publicada na capa do jornal Folha de S. Paulo, em 21 de janeiro de 2009, que retrata Obama e sua famlia no dia da posse.

    * Mestranda. Programa de Ps-Graduao em Letras Universidade Estadual de Maring UEM E-mail: .

    ** Ps-Doutora e Prof. de Ps-Graduao em Letras Universidade Estadual de

    Maring UEM E-mail: .

  • Gluks 178

    PALAVRAS-CHAVE: mdia; anlise do discurso imagtico; representao da famlia; Folha de S. Paulo; presidente dos EUA Barack Obama.

    ABSTRACT: The images published by the media, in connection with power and knowledge, can build identities and strengthen myths and stereotypes that are present on the society's unconsciousness. In this sense, this article analyzes the role of the image in building the identity of Barack Obama's family, the elected president of the United States in November, 2008. By considering the discussions of the French strand of discourse analysis, which focuses on the image and on the concepts from Cultural Studies, this research seeks for an understanding of the production conditions and the effects of meaning that circulate on the imagery discourse and allow the knowledge about the family. To achieve this aim, the object of study is the photograph that has been published on the front cover of the newspaper Folha de S. Paulo, on January 21, 2009, which shows Obama and his family on the Inauguration day, when he has been sworn in as the 44th President of the United States.

    KEY WORDS: media; Imagery discourse analysis; family representation; Folha de S. Paulo; president of the United States; Barack Obama.

    1 Introduo

    s imagens sempre estiveram presentes no pensamento e no cotidiano da sociedade. Na

    antiguidade, os animais, as cenas de caa e outras atividades j eram reproduzidas atravs do no-verbal. Mas na

    A

  • Anlise do Discurso Imagtico: a Representao da Famlia Obama no Jornal ... 179

    contemporaneidade que as imagens tm um papel ainda maior de representar o real, compartilhar informaes e comunicar valores. Elas adquiriram o poder de mobilizar, despertar necessidades, desejos, angstia, paixes e at temores. Uma velha lenda chinesa conta que um imperador pediu um dia ao primeiro pintor de sua corte que eliminasse a gigantesca cascata que tinha pintado numa parede do palcio, porque o rudo da gua o impedia de dormir (FERRS, 1998, p. 40-1). Essa parbola refora o potencial das imagens em criar realidades, provocar aes e reaes, produzir comportamentos e mais; possibilita trat-las como discursos carregados de sentidos e constitudos a partir de um contexto scio-histrico determinado.

    Nessa perspectiva, este artigo faz uma leitura dos discursos no-verbais como parte de um processo cultural presente na formao de idias e na figurao de sentimentos que, juntos, estabelecem identidades individuais e coletivas. De acordo com Woodward (2007, p. 16), h um vnculo estreito entre a produo de significados e a produo das identidades posicionadas nos (e pelos) sistemas de representao. A representao inclui as prticas de significao e os sistemas simblicos por meio dos quais os significados so produzidos, posicionando-nos como sujeito. por meio dos significados produzidos pelas representaes que damos sentido nossa experincia e quilo que somos (WOOWARD, 2007, p. 16). Assim, consideramos que, da mesma forma que os enunciados textuais, os imagticos configuram-se como lugares a partir dos quais podemos nos posicionar, falar e dar sentido nossa experincia e nossa identidade.

    Abordar os discursos imagticos sob essa tica admitir que os sentidos no so fixos e homogneos. Eles so dependentes da vivncia, da experincia, da cultura e do ponto de vista dos sujeitos enunciadores. Como argumenta Fernandes

  • Gluks 180

    (2007, p. 21), os sentidos so produzidos face aos lugares ocupados pelos sujeitos em interlocuo. Aqui tratamos da relao entre a representao da realidade, a produo de identidades e o posicionamento de quem est envolvido nesse processo. No caso do fotojornalismo, o profissional demonstra suas interpretaes do real, seus conceitos e impresses acerca dos fatos em conformidade com o lugar ocupado por ele na sociedade e na mdia. Para Gaskell (1992, p. 266), o fotgrafo sempre um participante. A idia de olho inocente no mais defensvel e a cmera sempre uma presena intrusa.

    justamente sob esses dois vieses, o das condies de produo e o dos efeitos de sentido das imagens, que a presente anlise contempla o movimento de descrio e interpretao do discurso imagtico. O corpus de anlise constitudo por fotografias, divulgadas em quatro jornais impressos brasileiros, que retratam o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, e sua famlia, durante a cerimnia de posse. O recorte efetuado no exemplar do dia seguinte posse, 21 de janeiro de 2009, no jornal Folha de S. Paulo, um dos veculos de comunicao de maior circulao nacional e grande reconhecimento junto aos leitores.

    O exame da imagem, nos planos da visibilidade e da invisibilidade, empreendido neste artigo, objetiva compreender o papel das fotografias na constituio identitria da famlia do presidente Obama, questionando: qual a representao dessa famlia na mdia? quais discursos atravessam essas imagens e se articulam para surtir os efeitos de sentido? O referencial terico para essa discusso um dilogo entre os conceitos de interdiscurso e intradiscurso, pertencentes Anlise do Discurso de linha francesa, e a perspectiva terica dos Estudos Culturais que tratam da questo da identidade.

  • Anlise do Discurso Imagtico: a Representao da Famlia Obama no Jornal ... 181

    2 Discurso imagtico, representao e identidade

    Embora o poder de nossa viso seja imenso, nem sempre percebemos o quanto nossa vida est dominada pelas imagens, sejam elas naturais ou artificiais. uma relao silenciosa, estabelecida entre o olhar e os objetos, cuja forma de representao e simbologia mexem com nossos sentimentos, moldam nossa forma de pensar e reforam mitos e esteretipos presentes em nosso inconsciente. Como argumenta Zucolotto,

    atravs do olhar, comunicamos, julgamos, classificamos, nos vemos refletidos na paisagem urbana, nas imagens que se apresentam, que nos representam, comemos com os olhos, acreditamos s no que vemos e nosso desempenho social depende de sermos homens de viso. Olhamos de vis para o que nos estranho e com bons olhos para o que nos familiar, inspirados pelo olhar elucidamos as questes, clareamos as idias, nos iludimos e desiludimos, o que quer dizer a mesma coisa (Zucolotto, 2002, p. 2).

    Segundo Manguel (2001), qualquer pintura, imagem, fotografia um palco, um local para representao. Assim, primeiramente o visual informa, mas tambm possibilita que os espectadores se reconheam e se comportem conforme o discurso imagtico. Conforme o autor, ns nos refletimos, de alguma forma, nas imagens que nos cercam, uma vez que elas so parte de ns: As imagens que formam nosso mundo so smbolos, sinais, mensagens e alegorias. Qualquer que seja o caso, as imagens, assim como as palavras, so a matria de que somos feitos (MANGUEL 2001, p. 20-1).

    Na viso de Aumont (1993), o papel da imagem o de representar o mundo e, assim, produzir um efeito de realidade organizado no que j est posto. As representaes esto, nesse sentido, sempre modeladas e vinculadas a uma organizao simblica, a uma cultura, a uma sociedade. assim que o

  • Gluks 182

    espectador passa pelo efeito do real, que faz com que ele acredite no que o que v o real propriamente, mas, que o que v existiu, ou pode existir, no real (AUMONT, 1993, p. 111).

    Na perspectiva da Anlise do Discurso de linha francesa, essa discusso em torno da leitura das imagens fixas tem a possibilidade de se direcionar para o cruzamento de dois eixos: o interdiscurso, que est voltado para o nvel da constituio do dizer, e o intradiscurso, que trabalha com o nvel da formulao do dizer. Assim, pode-se concluir que existe uma relao entre o j-dito e o que se est dizendo, entre o interdiscurso e o intradiscurso ou, nas palavras de Orlandi (2005, p. 32), entre a constituio do sentido e sua formulao.

    Torna-se ainda interessante nessa reflexo destacar, mesmo que rapidamente, a reflexo do semioticista Davallon (1999), para quem a imagem funciona como um operador de memria e de simbolizao de uma sociedade, por retratar as foras das relaes sociais e culturais. Ou seja, a fim de poder dar sentido ao que o espectador tem sob os olhos, o visual resgata e materializa discursos e saberes sustentados em outras pocas. Segundo o autor, [r]estaria, ento e enfim, considerar como a imagem intervm concretamente no estabelecimento de uma forma de memria societal prpria nossa poca e nossa sociedade (DAVALLON, 1999, p. 32).

    Ao promover um dilogo com os pressupostos dos Estudos Culturais, possvel afirmar que os discursos imagticos se constituem, portanto, em fontes de sentido. Em outros termos, a mediao da realidade por meio da narrativa no-verbal possibilita sociedade adquirir informaes, transformar seu comportamento e, assim, legitimar um determinado modo de ser e de pensar. nesse sentido que podemos considerar o poder de representao das imagens na constituio dos sujeitos, visto que elas se estabelecem como

  • Anlise do Discurso Imagtico: a Representao da Famlia Obama no Jornal ... 183

    verdadeiras experincias coletivas, que atuam na formao das pessoas e criam, dessa forma, referncias de identificao.

    Em nosso estudo, compreendemos essa formao de identidades como um processo sempre incompleto, formado ao longo do tempo. Hall (2006 e 2007) considera a identidade como algo que est sendo preenchido constantemente pelo nosso exterior, por meio dos sistemas simblicos, num processo que se inicia na infncia, quando a criana participa de vrios sistemas de representao, incluindo a lngua, a cultura e a diferena sexual. Conforme o autor (2007, p. 109), as identidades no tm tanto a ver com questes como quem ns somos? ou de onde ns viemos?, mas se referem mais a questionamentos como quem ns podemos nos tornar?, como ns temos sido representados? e como essa representao afeta a forma como ns podemos representar a ns prprios?.

    Na perspectiva de Silva (2007), a identidade e a diferena fazem parte de um processo de produo, no qual devemos tratar as diferentes culturas no como uma questo de consenso, de dilogo ou comunicao, mas como uma questo que envolve, fundamentalmente, relaes de poder. De acordo com o autor:

    Afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, significa fazer distines entre o que fica dentro e o que fica fora. A identidade est sempre ligada a uma forte separao entre ns e eles. Essa demarcao de fronteiras, essa separao e distino, supem e, ao mesmo tempo, afirmam e reafirmao relaes de poder. Ns e eles no so, neste caso, simples distines gramaticais. Os pronomes ns e eles no so, aqui, simples categorias gramaticais, mas evidentes indicadores de posies-de-sujeito fortemente marcadas pelas relaes de poder (SILVA, 2007, p. 82).

    Essas colocaes nos remetem noo foucaultiana de que todo campo de saber um campo de poder. Para Foucault

  • Gluks 184

    (1998), a verdade no existe fora do poder ou sem poder. Isso pressupe dizer que todos os sujeitos e as instituies esto ligados a sistemas de poder responsveis pela produo de verdades, prticas e subjetividades. A verdade deste mundo; ela produzida nele graas a mltiplas coeres e nele produz efeitos regulamentados de poder (FOUCAULT, 1998, p. 12).

    Fazendo uma conexo com o corpus em anlise, pode-se dizer que a partir do jogo entre as relaes de saber e poder, presentes nos discursos imagticos que circulam na mdia impressa, que se formula o processo de constituio identitria da famlia Obama.

    3 Metodologia e Descrio do Corpus

    notvel que o 44 presidente dos EUA, Barack Obama, soube explorar muito bem todos os gneros discursivos da mdia, desde a campanha eleitoral at o dia da posse. Apenas nessa data, foram 35 mil reportagens nos principais jornais, rdios e televises do mundo; cerca de 35 vezes mais do que na posse presidencial anterior. Esse o balano divulgado por um grupo de monitoramento da mdia nos Estados Unidos, no dia 21 de janeiro de 2009 (http://www.estadao.com.br/geral/not_ger310871,0.htm).

    So nmeros inditos que dizem muito sobre o fascnio global em relao ao novo presidente e mostram que as representaes, atravs de imagens fixas ou em movimento, foram fundamentais dentro de um processo que exigia a assimilao global sobre quem era a famlia Obama. As fotografias e os vdeos publicados permitiram que o mundo conhecesse a forma de pensar e de agir dessa famlia e como era o relacionamento entre marido e esposa, pais e filhos.

  • Anlise do Discurso Imagtico: a Representao da Famlia Obama no Jornal ... 185

    Todas as publicaes selecionadas para este estudo trouxeram na capa imagens referentes posse do Presidente Obama. So discursos diferentes, mas que apresentam regularidades em relao aos enunciados imagticos.

    Para esta discusso, optou-se por um recorte especfico da fotografia publicada na capa do jornal Folha de S. Paulo. O movimento de descrio-interpretao dessa imagem fixa considera os conceitos de intradiscurso e interdiscurso da Anlise do discurso de linha francesa, discutidos por Eni Orlandi (2005).

    A escolha em se apropriar dos fundamentos da AD para a leitura das fotografias se justifica pelo fato de considerar a imagem como uma forma de texto visual e interpretativo. O jogo de formas, cores, luz, sombra, o ngulo da cmara, os contrastes, os espaos e os elementos da paisagem tm um papel semelhante s vozes explcitas e implcitas no texto, o que implica dizer que so dispositivos que interferem na atribuio de sentidos s fotografias. Conforme esclarece Pcheux (1999, p. 55), [a] questo da imagem encontra assim a anlise de discurso por um outro vis: no mais a imagem legvel na transparncia, porque um discurso a atravessa e a constitui, mas a imagem opaca e muda, quer dizer, aquela da qual a memria perdeu o trajeto de leitura (PCHEUX, 1999, p. 55).

    4 Anlise do discurso imagtico: a Famlia Obama no jornal Folha de S. Paulo

    Ao iniciar a anlise da fotografia publicada na capa do jornal Folha de S. Paulo, consideramos os dois planos da imagem, o da visibilidade e o da invisibilidade. Dubois (1993) explica que o propsito da foto no apenas o de reproduzir o visvel que o mundo nos oferece, mas tambm o que no salta

  • Gluks 186

    aos olhos. Na obra Isto no um cachimbo, Foucault (2002), essa questo abordada a partir de duas perspectivas: a semelhana e a similitude. A semelhana faz reconhecer o que est muito visvel e a similitude faz ver aquilo que os objetos reconhecveis, as silhuetas familiares escondem, impedem de ver, tornam invisveis (FOUCAULT, 2002, p. 63).

    Nosso objeto de estudo apresenta no plano visvel a imagem sobre a posse do novo presidente dos EUA em um dia histrico para o pas. O que vemos o casal Obama, Barack e Michelle, ao lado das duas filhas, Malia e Sasha, no momento do juramento. Ao fundo, aparece o ex-presidente George W. Bush e milhares de eleitores que acompanharam a cerimnia frente sede legislativa. a nica fotografia da capa disposta no canto superior esquerdo, com um espao maior que o destinado ao texto verbal, que trata do mesmo assunto. Esse posicionamento da imagem esquerda e o texto direita um recurso editorial que tem como objetivo chamar ainda mais a ateno do leitor, visto que nosso sistema de leitura segue a direo do movimento da esquerda direita. Como afirma Zanirato (2005, p. 24), [a]o olharmos um peridico percebemos que [...] que h zonas privilegiadas para a disposio da foto na pgina, e que a distribuio destas segue o movimento da esquerda para direita, ou o sentido da trajetria dos olhos no nosso sistema de leitura.

  • Anlise do Discurso Imagtico: a Representao da Famlia Obama no Jornal ... 187

    Figura 1: Capa do jornal Folha de S. Paulo (21/1/09).

    Figura 2: Foto retirada da Folha de S. Paulo (21/1/09).

  • Gluks 188

    No plano da invisibilidade, relevante o fato de o fotojornalismo ser uma representao dos valores de uma determinada poca. Dessa forma, as imagens fotogrficas devem ser vistas como documentos que informam sobre a cultura material de um determinado perodo histrico e de uma determinada cultura, e tambm como uma forma simblica que atribui significados s representaes e ao imaginrio social (BORGES, 2003, p. 73). E quais seriam os sentidos da poca atual? A partir de quais condies de produo emerge a representao da famlia Obama na ps-modernidade, especificamente, na imagem publicada no jornal Folha de S. Paulo?

    O segundo semestre de 2008 e o incio de 2009 foram marcados pela grave crise econmica que atingiu todo o mundo, em especial os EUA. evidente que qualquer poltico que assumisse a presidncia da nao nesse momento teria desafios. Nesse contexto, ao retratar a famlia Obama feliz e unida, com um semblante de despreocupao, o papel da imagem pode ser visto como o de silenciar, acomodar na invisibilidade, mesmo que por um nico dia, a idia da crise, da poca crtica em que viviam os americanos. o que Orlandi (2005) aborda como o no-dito, o silncio que d lugar a um caminho aberto significao, interpretao. Trata-se, portanto, de um discurso imagtico que apaga a preocupao e a presso sobre essa famlia e gera novos sentidos de uma famlia imbatvel, vitoriosa, que venceu muitos obstculos para chegar quele momento. No contexto atual, a famlia que traz esperana. Para os eleitores, representa a famlia ideal, a que trar mudanas significativas para a vida deles.

    Esse silenciamento do discurso imagtico ainda mais notvel quando fazemos uma leitura dos enunciados verbais, como o ttulo: Obama toma posse com promessa de reconstruir os EUA e liderar o mundo; os subttulos: Primeiro presidente

  • Anlise do Discurso Imagtico: a Representao da Famlia Obama no Jornal ... 189

    negro da histria do pas defende uma nova era de responsabilidade e paz e Cerimnia em Washington rene 1,8 milho; Bolsa tem queda recorde em incio de mandato; e a chamada j no fim da pagina: em meio ao entusiasmo, multido refletia crise. Todos retratam as condies de um cenrio poltico e econmico estremecido, distante do que se v no texto imagtico. De outra forma, podemos dizer que, no caso especfico desse jornal, o dilogo entre texto e imagem d margem a um leque de significaes possveis, que no est explicitamente retratado.

    J a legenda Ao lado das filhas Malia e Sasha, Michelle Obama segura uma Bblia para que seu marido, Barack, preste juramento como 44 presidente dos EUA pode ser compreendida como um enunciado que trabalha em paralelo com a imagem, isto , que complementa o sentido da fotografia. Trata-se de um discurso de ordem poltica, mas atrelado a um discurso de ordem cultural, no qual a famlia tem papel fundamental para o desenvolvimento da sociedade.

    Ainda em termos descritivos da imagem, pode-se formular a seguinte indagao: Por que essa imagem de famlia e no outra? Ou como coloca Foucault (2007, p. 30), como apareceu um determinado enunciado e no outro em seu lugar?. Essa resposta ancorada pelas posies assumidas pelo sujeito-produtor e sujeito-editor da fotografia. O sujeito produtor um fotgrafo americano inserido no presente, mas que carrega as marcas do passado, os desejos da sociedade, e o sujeito-editor o jornalista que pertence ao veculo de comunicao brasileiro e selecionou, entre inmeras fotos, uma que representasse a realidade de Obama ao lado da famlia. Segundo Kossoy (1979, p. 48), [a] fotografia ser sempre produzida conforme a viso de mundo de seu autor, uma vez que toda fotografia um testemunho segundo um filtro cultural, ao mesmo tempo em que uma criao a partir de um

  • Gluks 190

    visvel fotgrafo. Toda fotografia representa o testemunho de uma criao (KOSSOY, 1979, p. 43).

    sob esse olhar dos sujeitos enunciadores e as condies de produo legitimadas pelas relaes de saberes e poderes que o acontecimento histrico da posse foi recortado. A instituio familiar foi eleita nessa fragmentao do real como o melhor refgio, como uma proteo numa poca de crise. Isso implica dizer que a produo e a seleo imagtica se apoiaram no modelo tradicional de famlia, no qual a convivncia harmoniosa e o apoio entre pai, me e filhos considerado o ideal para a sociedade, para transformar o presente e ter um bom futuro. uma forma de os leitores se reconhecerem na imagem. De fato, o fotgrafo e o editor tiveram um papel decisivo na materializao do discurso imagtico. Trata-se, segundo Foucault (2007, p. 136), do conjunto de regras annimas, histricas, sempre determinadas no tempo e no espao, que definem as condies de exerccio da funo enunciativa.

    Outro componente que atribui significao imagem a perspectiva adotada pelo fotgrafo. Como explica Zanirato (2005, p. 26), [s]e a foto foi tirada de cima para baixo, os sujeitos ou objetos focalizados parecero tendencialmente diminudos; ao contrrio, se a foto for feita de baixo para cima, a sua importncia tender a parecer maior. A foto em anlise foi tirada de baixo para cima, o que estabeleceu uma significao ainda maior para a famlia Obama, possibilitando um efeito de superioridade, de soberania, de representao do novo poder que agora assume os EUA.

    A distncia e a disposio dos integrantes da fotografia tambm so elementos que interferem nesse movimento de descrio-interpretao. Para atrair ainda mais o olhar do espectador, os personagens principais, Obama, Michelle e as duas filhas, foram retratados de forma que ficassem em primeiro plano, bem prximos dos leitores. J o posicionamento do ex-

  • Anlise do Discurso Imagtico: a Representao da Famlia Obama no Jornal ... 191

    presidente George W. Bush, em ltimo lugar, representa o fim de uma era. Agora ele ficou para trs, j no mais o centro do poder. De acordo com Souza (1998, p. 8), [o] conjunto de elementos visuais possveis de recorte - entendidos como operadores discursivos - favorece uma rede de associaes de imagens, o que d lugar tessitura do texto no-verbal. A apreenso dessas relaes, por sua vez, revela o discurso que se instaura pelas imagens, independente da sua relao com qualquer palavra.

    A simbologia das cores tambm se faz presente e favorece associaes.

    Sobre o indivduo que recebe a comunicao visual, a cor exerce uma ao trplice: a de impressionar, a de expressar e a de construir. A cor vista: impressiona a retina. sentida: provoca uma emoo. E construtiva, pois, tendo um significado prprio, tem valor de smbolo e capacidade, portanto, de construir uma linguagem que comunique uma idia (FARINA, 1986, p. 27).

    O azul do cu sem nuvens uma cor presente naturalmente no ambiente, mas que ganhou destaque pelas lentes da cmara e leva o leitor a ver o acontecimento como um momento de realizao do impossvel, j que o azul d a sensao do movimento para o sagrado, para o infinito. a retomada do mito famlia, na qual a to distante vitria de um negro como presidente dos EUA foi conquistada tambm graas ao apoio familiar. Eles finalmente chegaram ao ponto mais alto. J o amarelo da roupa de Michelle Obama uma cor fcil de memorizar, num sentido que representa o sol, a luz que irradia em todas as direes e gera um efeito de esperana, expectativa de dias melhores. A advogada formada em Harvad a segurana por trs do presidente e serviu de pra-raios para essa guinada poltica do pas, tornando-se um cone. Uma mulher que brilhou durante toda a campanha eleitoral, por conseguir manter o

  • Gluks 192

    equilbrio entre o papel da primeira-dama e o papel de esposa e me de duas filhas e brilha tambm nesse dia da posse, com o destaque do amarelo.

    Outros smbolos que acentuam esse poder de representao das cores o Capitlio em branco ao fundo da imagem. A sede legislativa dos EUA representa a maior potncia do planeta e reconhecida mundialmente. Um pouco abaixo, esto as coloridas bandeiras que reforam o sentimento de nacionalismo, a paixo pelo pas, e reafirmam o imperialismo americano. So interdiscursos que rememoram a fora dos Estados Unidos em todo o mundo.

    Considerando o ltimo nvel da leitura imagtica, merece destaque o juramento de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos, uma tradio que simboliza a democracia do pas. Para cumprir o que est previsto na Constituio americana, ele escolheu a mesma Bblia usada por Abraham Lincoln, em 1861. Desde ento, essa a primeira vez que ela levada a pblico durante uma posse, o que mostra a admirao e o respeito pelo ex-presidente americano que libertou os escravos nos EUA. Independente de essas informaes serem ou no conhecidas mundialmente, tem-se nesse contexto o papel de representao da mo erguida, numa simbolizao do comprometimento e fidelidade com o que est se discursando.

    O apoio da esposa segurando a bblia tambm um smbolo de poder de influncia da mulher na vida poltica. Essa imagem rememora o papel de Michelle, que o de dar fora ao marido, em qualquer circunstncia. O interessante que ela segura a bblia com as duas mos e ele apoia a dele em cima, ou seja, fica evidente o peso da esposa na vida de Barack Obama. Quando ele apresentava Michelle em comcios, chamava-a de minha rocha. A partir dos dispositivos tericos da Anlise do Discurso, compreende-se que essa constituio de sentidos tem base no interdiscurso. Segundo Orlandi (2005, p. 31):

  • Anlise do Discurso Imagtico: a Representao da Famlia Obama no Jornal ... 193

    Aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente. Ou seja, o que chamamos de memria discursiva: o saber discursivo que torna possvel todo dizer e que retoma sob a forma do pr-construdo, o j-dito que est na base do dizvel, sustentando cada tomada de palavra. O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situao discursiva dada.

    Ainda nesse campo da percepo, deve-se atentar para o olhar das filhas Malia e Sasha. Elas sorriem satisfeitas e tm no rosto a expresso de admirao pelo pai. Sabe-se que conquistar o respeito dos filhos um sonho de muitos pais. Obama o conseguiu e isso representado nessa foto. A imagem das meninas funciona tambm como uma memria do apoio dos jovens, tanto durante a campanha eleitoral quanto nas urnas.

    A bblia tambm faz parte da memria do povo e remete ideia da f. Durante a posse, a simbologia da bblia confirmou a identidade de uma famlia religiosa, construda ao longo dos ltimos meses. O novo presidente mostrou que pretende exercer um papel de liderana ligado viso religiosa. A famlia Obama representa, nesse caso, a mudana no relacionamento entre a f e a poltica e simboliza uma nova gerao que est clamando pela paz e tambm por uma harmonia racial. Dentro disso, torna-se possvel estabelecer uma relao entre o visual, a histria e a memria.

    nesse sentido que segundo Foucault (2007, p. 112): no h enunciado em geral, livre, neutro e independente; mas sempre um enunciado fazendo parte de uma srie ou de um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros, neles se apoiando e deles se distinguindo: ele se integra sempre em um jogo enunciativo, onde tem sua participao, por ligeira e nfima que seja. [...] No h enunciado que no suponha outros; no h nenhum que no tenha, em torno de si, um campo de coexistncias, efeitos de srie e de sucesso, uma distribuio de funes e de papis.

  • Gluks 194

    Com um pouco menos de destaque na fotografia, mas sem deixar de gerar efeitos de sentido, os eleitores so retratados, ao fundo da imagem. No dia da posse, o pas parou. As expectativas eram e continuam sendo enormes em torno das mudanas. Com base na mesma fidelidade, respeito, fora e dedicao existente entre Obama e Michelle, os eleitores esperam que a nao seja reconstruda.

    nesse contexto que as representaes presentes na imagem da Folha de S. Paulo contribuem para a legitimao de um determinado modo de ser famlia. As verdades veiculadas a partir de todos esses enunciados imagticos mostram uma famlia unida e disposta a uma nova fase, que a verdade que a sociedade procura. Como coloca Foucault (2007), falar do interior desses campos significa inserir-se em uma formao discursiva que determina os modos de dizer e aquilo que se pode e se deve dizer em certa poca.

    5 Consideraes Finais

    A discusso realizada neste artigo refora o poder do discurso imagtico no processo de constituio das identidades, visto que a fotografia analisada se apresenta como um texto visualmente relevante e carregado de sentidos. Mesmo se no houvesse a presena dos textos verbais - ttulo, subttulos, legendas e a reportagem propriamente dita -, o mundo todo reconheceria, atravs da imagem publicada na capa do jornal Folha de S. Paulo, o novo presidente Barack Obama ao lado de sua famlia. O visual funciona, nesse caso, como um mediador para a construo de uma realidade especfica e de uma identidade da famlia Obama.

    A anlise mostrou que os sujeitos enunciadores se apoiaram nas relaes de saber e poder da contemporaneidade,

  • Anlise do Discurso Imagtico: a Representao da Famlia Obama no Jornal ... 195

    sem esquecer de enunciados de outras pocas. A disposio da imagem, as cores, os smbolos e os valores da famlia hegemnica, unida, religiosa e cheia de esperana, apresentaram-se como suporte essencial para a produo, a seleo e a edio da foto jornalstica. E foi a partir dessa materializao discursiva, que os sentidos se constituram e representaram uma verdade de famlia que tanto se busca na atualidade.

    Dessa forma, o estudo feito a partir dos planos da visibilidade e da invisibilidade da fotografia apontou as condies de produo e os efeitos de sentido gerados no e pelo discurso imagtico. Reconheceu-se que a constituio identitria da famlia Obama, a partir do visual, faz parte de um processo construdo ao longo dos meses, desde a campanha eleitoral, passando pela vitria da eleio, at chegar o dia da posse. Em um momento em que os EUA vivem uma grande crise, a mdia se utilizou da imagem da famlia ideal para acionar e construir novos valores.

    Diante de todas essas reflexes, conclui-se que a fotografia de Obama ao lado da famlia no estava ali por acaso. O entrelaamento dos discursos poltico, histrico e social possibilitou que a sociedade se identificasse com essa famlia negra que, pela primeira vez, conquista o poder. Marido, esposa e filhas que lutaram para chegar aonde chegaram; venceram barreiras, preconceitos e, acima de tudo, ganharam a simpatia dos norte-americanos para assumir uma nao. O novo no est no que dito, mas no acontecimento a sua volta (FOUCAULT, 2007, p. 26).

    Portanto, alm de firmar saberes, essa fotografia contribuiu para um novo modo de olhar a vida poltica dos EUA e se apresenta, definitivamente, como um elemento essencial para compreender o processo de constituio da identidade familiar na atualidade.

  • Gluks 196

    Nesse contexto, esta pesquisa apenas um dos caminhos de anlise que podem ser percorridos por estudiosos interessados na temtica identidade familiar constituda na e pela mdia. Novos olhares podem certamente ajudar a desvendar outros aspectos pertinentes nesse processo.

    Referncias Bibliogrficas

    AUMONT, J. A imagem. Trad. Estela dos Santos Abreu. Campinas, So Paulo: Papirus, 1993. p. 77- 134. BORGES, Maria Eliza Linhares. Histria & Fotografia. Belo Horizonte: Autntica, 2003. DAVALLON, J. A imagem, uma arte de memria? In: ACHARD, P. (Org.) Papel da memria. Campinas: Pontes, 1999. p. 23-34. DUBOIS, P. O ato fotogrfico e outros ensaios. Trad. Marian Appenzeller. Campinas, So Paulo: Papirus, 1993. FARINA, M. Psicodinmica das cores em comunicao. So Paulo: Edar Blcher Ltda, 1986. FERNANDES, C. A. Anlise do discurso: reflexes introdutrias. 2. ed. So Carlos: Claraluz, 2007. FERRS, J. Televiso subliminar: socializando atravs de comunicaes despercebidas. Porto Alegre: Artmed, 1998. FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2007. ______. Isto no um cachimbo. Trad. De Jorge Coli. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. ______. Microfsica do poder. 13. ed. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1998. GASKELL, I. Histria das imagens. In: BURKE, P. (Org.). A Escrita da Histria: novas perspectivas. Trad. Magda Lopes. So Paulo: Editora UNESP, 1992. HALL, S. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferena: a perspectiva dos estudos culturais. 7. ed. Petrpolis: RJ, Vozes, 2007 ______. A identidade cultural na ps-modernidade. Traduo Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

  • Anlise do Discurso Imagtico: a Representao da Famlia Obama no Jornal ... 197

    JORNAL Folha de S. Paulo, So Paulo: ano 88, n. 29.148, 21 de janeiro de 2009. KOSSOY, B. Histria e fotografia. So Paulo: tica, 1979. MANGUEL, A. Lendo imagens: uma histria de amor e dio. Trad. Rubens Figueiredo. Rosaura Eichemberg, Cludia Strauch. So Paulo: Companhia das Letras, 2001. ORLANDI, Eni P. Anlise de discurso: princpios e procedimentos. 6. ed. Campinas: Pontes, 2005. PCHEUX, M. Papel da memria. In: ACHARD, P. (Org.) Papel da memria. Campinas: Pontes, 1999. p. 49-56. SILVA, T. T. da (Org.). Identidade e diferena: a perspectiva dos estudos culturais. 7. ed. Petrpolis: Vozes, 2007. SOUZA, T. C. C. Discurso e imagem: perspectivas de anlise do no verbal. Conferncia no 2 Colquio de Analistas Del Discurso, Universidad Del Plata, Instituto de Linguistica da Universidad de Buenos Aires, Comunicao, imagem e informao, Niteri, UFF, 1998. WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferena: uma introduo terica e conceitual. In SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferena: a perspectiva dos estudos culturais. 7. ed. Petrpolis: Vozes, 2007. ZANIRATO, Silvia Helena. A fotografia de imprensa: modos de ler. In: PELEGRINI, Sandra de Cssia Arajo; ZANIRATO, Silvia Helena (Org.). As dimenses da imagem: abordagens tericas e metodolgicas. Maring: Eduem, 2005. ZUCOLLOTO, Juliana. O paradigma da imagem. Semiosfera, n. 3, Rio de Janeiro: ECO, UFRJ, 2002.

    Site consultado: WWW.ESTADAO.COM.BR/GERAL/NOT_GER310871,0.HTM

    Data de recebimento: 29/10/2009 Data de aprovao: 10/03/2010