A ABORDAGEM DE NIETZSCHE SOBRE A GÊNESE DA TRAGÉDIA …

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3 Revista Filosofia Capital Vol. 4 (2009) - Edição Especial ISSN 1982 6613 A Vida é Mesmo Agora! A ABORDAGEM DE NIETZSCHE SOBRE A GÊNESE DA TRAGÉDIA ÁTICA Renato Nunes Bittencourt [email protected] Rio de Janeiro - RJ 2009

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3 Revista Filosofia Capital Vol. 4 (2009) - Edição Especial ISSN 1982 6613 A Vida é Mesmo Agora!

A ABORDAGEM DE NIETZSCHE SOBRE A GÊNESE DA TRAGÉDIA ÁTICA

Renato Nunes Bittencourt [email protected]

Rio de Janeiro - RJ

2009

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4 Revista Filosofia Capital Vol. 4 (2009) - Edição Especial ISSN 1982 6613 A Vida é Mesmo Agora!

A ABORDAGEM DE NIETZSCHE SOBRE A GÊNESE DA TRAGÉDIA ÁTICA

Renato Nunes Bittencourt1 [email protected]

RESUMO: Este artigo analisa as reflexões de Nietzsche sobre a criação da Tragédia Grega

na Antiguidade, comentando os seus elementos estéticos e religiosos, e de que maneira ambos

se relacionaram no contexto dessa arte social e sagrada, realização extraordinária da cultura

grega. Sempre que conveniente, a tradição de pesquisadores helenistas é aproveitada, de modo

a enriquecer o debate intelectual acerca desse tema.

Palavras-Chave: Tragédia Grega – Apolinismo – Dionisismo – Máscara – Nietzsche. ABSTRACT: This paper analyzes the reflections of Nietzsche on the creation of the Greek

Tragedy in the Antiquity, commenting its aesthetic and religious elements, and how both had

become related in the context of this social and sacred art, extraordinary accomplishment of

the Greek culture. Whenever convenient, the tradition of hellenistic researchers is used to

advantage, in order to enrich the intellectual debate concerning this subject.

Keywords: Greek Tragedy – Apolinism – Dionisism Mask – Nietzsche.

A cultura grega da era pré-platônica alcançou possivelmente o seu maior esplendor

ao realizar a interação entre a pulsão apolínea e a pulsão dionisíaca, dois princípios naturais

intrinsecamente antagônicos que, manifestados no âmbito cultural grego, motivaram a

elaboração de duas perspectivas axiologicamente distintas acerca da realidade. A pulsão

apolínea preconiza a instauração de uma ética pautada no rigoroso cumprimento da justa-

medida e da manutenção da harmonia individual, disposição que conduzirá ao

desenvolvimento de um padrão estético pautado na afirmação incondicional da beleza,

qualidade que promove ao contemplador a obtenção do apaziguamento individual. A pulsão

dionisíaca, por sua vez, vislumbra uma ruptura com essa ordenação rigorosa da existência,

considerada artificial e incapaz de promover uma capacidade genuína do homem grego

enfrentar o lado obscuro da realidade, encarnada na morte e na dissolução da vida individual.

1 Doutorando em Filosofia do PPGF-UFRJ/Bolsista do CNPq.

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Os gregos apolíneos elaboraram mecanismos satisfatórios para o desenvolvimento de uma

qualidade de vida excelente, seja através da legitimação da contemplação estética das formas

belas e de uma rigorosa ética de moderação da conduta tal como já destacado, seja a partir do

estímulo para o desenvolvimento da coragem e da virilidade no ânimo da coletividade grega

mediante a exaltação dos feitos gloriosos dos grandes heróis, que se tornavam parâmetro

avaliativo de conduta para os jovens gregos.2 Todavia, essa visão de mundo heróica, apesar de

seu êxito cultural, não conseguiria perdurar perpetuamente na Hélade, e novos valores vitais

brotaram no mundo grego, justamente o dionisismo e seus espantosos rituais, caracterizados

pela subversão aos princípios normativos do apolinismo, pela inversão dos papéis sociais,

pela afirmação das pulsões femininas da natureza e pela negação instintiva da civilização e

das suas instituições.

Após um longo período de embates que convulsionava a estabilidade vital do mundo

grego, encontrou-se uma solução para o problema que assolava a ordem olímpica: o pacto de

amizade entre o apolíneo e o dionisíaco, no qual cada um propunha realizar determinadas

modificações nas suas estruturas axiológicas, em favor da possibilidade de se estabelecer uma

nova era cultural na Hélade, marcada por um momento de criatividade ímpar na história dessa

sociedade. Para Nietzsche,

Essa reconciliação é o momento mais importante na história do culto grego: para onde que se olhe, são visíveis as revoluções causadas por este acontecimento. Era a reconciliação de dois adversários, com a rigorosa determinação de respeitar doravante as respectivas linhas fronteiriças que, de futuro, nenhum poderia transgredir e com o periódico envio mútuo de presentes honoríficos: no fundo, o abismo não fora transposto por ponte nenhuma (NIETZSCHE, O nascimento da Tragédia, § 2).

Apolo se uniu a Dionísio, de quem outrora se distinguia como o dia da noite.3

Hölderlin, imerso na consciência trágica da vida, dissera que “as dissonâncias do mundo são

como a discórdia dos amantes. a reconciliação está latente na disputa e tudo o que se separou

volta a se encontrar”.4 A aliança divina entre Dionísio e Apolo faz com que a religiosidade

grega alcance a sua máxima culminação.5

2 Tal projeto se concretiza na formulação da “aristia”, o momento especial no qual é celebrado o destaque do

grande herói em relação aos demais homens. Homero realiza tal procedimento com maestria na Ilíada, imortalizando os feitos extraordinários de Agamenon, Diomedes, Pátroclo etc.

3 Cf. OTTO, Walter Friedrich. Teofania, p. 161. 4 Cf. HÖLDERLIN. Hipérion, Livro II, Parte 2, p. 166 5 Cf. OTTO, Walter Friedrich. Teofania, p. 165.

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6 Revista Filosofia Capital Vol. 4 (2009) - Edição Especial ISSN 1982 6613 A Vida é Mesmo Agora!

O princípio dionisíaco exclui de sua prática justamente os excessos e as ações

violentas que conduziam nalgumas vezes os seus adeptos ao perecimento, tornando-se então

um ritual tolerável pela justa medida dos gregos olímpicos, pois permitia o florescimento

contínuo da cultura humana.6 O ritual dionisíaco perdeu as suas características mais

destrutivas, imputadas como “bárbaras” para se tornar um fenômeno religioso de traços

estéticos, gerando assim as celebrações proto-trágicas, nas quais se louvava através dos

ditirambos os maravilhosos encantos de Dionísio.7 Nietzsche destaca que

No ditirambo dionisíaco (...) o entusiasta dionisíaco é excitado até a máxima intensificação de todas as suas capacidades simbólicas: algo nunca sentido impele-se à expressão, a aniquilação da individuação, o ser-um no gênio da espécie e mesmo da natureza (NIETZSCHE. A visão dionisíaca de mundo, § 4).

Assim como nos cruentos ritos omofágicos de outrora, a expressão musical do

ditirambo dionisíaco assustava a urbanidade do homem apolíneo, pois se tratava de uma

cantoria sagrada que promovia a perda da condição individual tanto para aquele que cantava

como para aquele que tinha a oportunidade de ouvir esses sons mágicos.8 O apolinismo corria

o risco de sucumbir diante da potência dionisíaca pelo fato de pretender negar a força sombria

da vida, aspecto do desconhecido que é inseparável da luminosidade e da clareza. Sem as

sombras, a luz perde o sentido original de ser, pois que ambos são intimamente

complementares. O avanço das misteriosas forças noturnas da natureza sobre as luminosas

forças diurnas era justamente o as celebrações dionisíacas afirmavam triunfalmente.

Entretanto, a partir do momento que a perspectiva apolínea aceita a musicalidade dionisíaca,

esse medo profundo diante do lado misterioso da vida se esvanece, circunstância que resulta

na capacidade apolínea de adquirir uma flexibilidade mais envolvente nas suas instituições,

pois que a sua tão preconizada rigidez se assemelhava a um “egipcismo” que negava a

transformação dos caracteres da realidade em favor da petrificação da condição individual.9 A

disposição hierática de Apolo, sustentado duramente pela ordem normativa do Estado Grego,

poderia se tornar em breve a causa imediata de sua própria ruína cultural, pois essa disciplina

da conduta alcançara tal nível de rigor que ameaçava talvez prejudicar a continuidade da 6 Para enriquecimento teórico do tema tratado é pertinente uma inserção historiográfica sobre a incipiente

aceitação do elemento dionisíaco na cultura apolínea: “Solvente da religião tradicional pela sua violência, o dionisismo é promovido e ao mesmo tempo limitado, canalizado politicamente” (Cf. TRABULSI. Dionisismo, poder e sociedade, p. 83).

7 NIETZSCHE. O nascimento da Tragédia, § 4. 8 NIETZSCHE. O nascimento da Tragédia, § 4. 9 NIETZSCHE. O nascimento da Tragédia, § 9.

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7 Revista Filosofia Capital Vol. 4 (2009) - Edição Especial ISSN 1982 6613 A Vida é Mesmo Agora!

saúde vital da Hélade. Era então necessário que ocorresse um radical na estrutura ética do

apolinismo e nas suas demais expressões axiológicas.10 Essas mútuas modificações

axiológicas possibilitaram, conforme delineado por Nietzsche, o desenvolvimento da

“Tragédia Ática”, gênero artístico que comportava na sua estrutura estética características de

ambos os princípios sagrados, atribuindo-se a Téspis a sua criação.11

A genealogia da expressão poética na vivência dionisíaca, contudo, se encontra na

obra de Arquíloco, cujo poetar representa a necessidade do homem grego dar vazão a um

novo tipo de avaliação acerca da sua vida e do papel social exercido na sua comunidade e na

Hélade como um todo. A poesia de Arquíloco representa um incipiente processo de superação

do ideal apolíneo de exaltação das grandes disposições heróicas dos homens ilustres. Os

grandes heróis do passado receberam a excelsa idealização dos seus feitos graças aos aedos e

rapsodos de inspiração épica, cuja maior preocupação não era a de fazer despontar os traços

minuciosos da personalidade de cada grande homem, mas de fazer deste um modelo de

conduta para as gerações futuras, de modo que a glória se perpetuasse nas disposições dos

jovens nobres. Se a épica homérica evidenciava aquilo que havia de belo e extraordinário nos

valorosos heróis, Arquíloco aponta para a necessidade de instauração de uma nova

perspectiva avaliativa acerca do posicionamento do homem no mundo grego, desembocando

na emancipação do ideário de glorificação das ações extraordinárias.

A arte trágica dos gregos surge a partir do coro dos celebrantes dos prodígios de

Dionísio, que entoavam os ditirambos em sua homenagem.12 Entretanto, convém ressaltar que

neste primeiro momento da experiência trágica dos gregos não havia ainda qualquer

expressão dramática convencional, pois a cerimônia dionisíaca era constituída apenas pelo

coro, o verdadeiro ator; não havia outro herói.13 Por conseguinte, é através do espírito da

música sagrada dedicada a Dionísio que se desenvolve inicialmente a Tragédia Ática,

10 Conforme comenta Carlos Alberto Ribeiro de MOURA, em Nietzsche: Civilização e Cultura, p. 230:

“Civilização, enquanto estratégia exclusivamente apolínea, é impedir uma verdadeira criação. Ao contrário, a cultura, enquanto disciplina dos instintos que os mantém na perpétua disputa e superação de si, é a fórmula da criação. Era isso o ‘querer helênico’: a multiplicidade anárquica dos instintos era sempre disciplina. Dionísio era inseparável de Apolo”

11 Para mais detalhes sobre a vida e a obra de Téspis, ver GASSNER, Mestres do Teatro I, p.12-16, GRIMAL, O Teatro Antigo, p. 29, e LESKY, A Tragédia Grega, p. 86-87.

12 “A tragédia teve início com aqueles que iniciaram o ditirambo” (Cf. ARISTÓTELES. Poética, 1449a). Para uma compreensão historiográfica da formação do local onde se representaram as primeiras encenações trágicas, bem como o contexto político que favoreceu a ocorrência das mesmas, é pertinente a leitura de Jacqueline de ROMILLY, A Tragédia Grega, p. 18, e Pierre GRIMAL, O Teatro Antigo, p. 14. Além disso, MALHADAS apresenta em Tragédia Grega – O Mito em Cena, um apêndice sobre “As Dionisíacas Urbanas e as representações teatrais em Atenas”, p. 81-93.

13 Werner JAEGER, na Paidéia, p. 312, corrobora abertamente a tese nietzschiana acerca da gênese da tragédia grega a partir do coro, e de que modo ele preponderava na encenação trágica.

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primeiramente como um coro extático de seres transformados, pois todo o passado civil é

esquecido; esse coro se converte em servidor intemporal do deus, vivendo fora de todas as

esferas sociais.14 Todavia, essa celebração somente se tornaria uma representação dramática

propriamente dita mediante a interação entre o princípio dionisíaco e o princípio apolíneo, e

este é quem concedia efetivamente ao rito sagrado dos celebrantes báquicos as suas

configurações dramáticas, originando finalmente a Tragédia Ática, cujos elementos

representativos seriam já sinal da poderosa influência do apolinismo na vivência dionisíaca.

Dessa maneira, o princípio apolíneo se expressa na Tragédia Ática através da discursividade

retórica do ator e da representação cênica; o princípio dionisíaco, por sua vez, se expressa

através da música, do coro e do espírito trágico manifestado pela figura do herói, uma vez que

este, na verdade, seria apenas uma espécie de “máscara” de Dionísio.15 Aliás, podemos

afirmar que a própria máscara ornamental utilizada pelo ator que representava os valorosos

personagens trágicos tinha como finalidade estética a possibilidade de se dissimular o rosto do

ator, para que este pudesse assumir de forma mais intensa a personalidade do personagem,

revela uma profunda conexão entre a tragédia incipiente e o rito dionisíaco, que justamente

favorecia o esquecimento pessoal da identidade socialmente estabelecida.16 A máscara

utilizada pelo ator se caracterizava por proporcionar a amplificação do cântico por ele

enunciado, pois a abertura bucal do ornamento motivava esse poderoso efeito acústico. Não

deixa de surpreender o fato de que uma multidão estimada em milhares de pessoas conseguia

ouvir nitidamente a voz do ator. Contudo, a máscara trágica deve ser analisada não apenas por

esse importante aspecto extensivo, mas também pela sua significação ontológica para a

criação de uma filosofia trágica, mediante a assimilação da vivência dionisíaca como uma

instância radicalmente afirmativa.

Na cena trágica, Apolo atrai a verdade dionisíaca da dor cósmica para o mundo da

bela aparência.17 Esse processo de pluralização da unidade primordial expressava o instante

mágico da individuação, no qual Dionísio, caracterizado como o ímpeto intensivo que é

incapaz de ser representado através da figuração do espaço e do tempo, depende da

manifestação extensiva apolínea dos seus avatares, tais como Prometeu ou Édipo, que

14 NIETZSCHE. O nascimento da Tragédia, § 8. 15 NIETZSCHE. O nascimento da Tragédia, § 9. 16 Para a compreensão deste tema, cito as palavras de Anna HARTMANN CAVALCANTI em “Arte como

experiência: a tragédia antiga segundo a interpretação de Nietzsche”, p. 57: “A arte do ator, de entrar em outro personagem e a partir dele falar e agir, encontra sua gênese na transformação de si próprio que os seguidores dos cultos dionisíacos sentiam acontecer no estado de metamorfose”.

17 NIETZSCHE. A visão dionisíaca de mundo, § 2.

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9 Revista Filosofia Capital Vol. 4 (2009) - Edição Especial ISSN 1982 6613 A Vida é Mesmo Agora!

apresentam dramaticamente ao público trágico, fragmentados individualmente pela divisão

espaço-temporal os tormentos inimagináveis da essência dionisíaca mediante a sua

dilaceração cósmica.18 No drama grego originário, transmitia-se ao público a idéia de que era

o próprio deus que se manifestava no palco sagrado.19 Todavia, ao mesmo tempo Dionísio

também se velava através das figurações extensivas dos heróis representados, pois sua

potência criativa jamais poderia permanecer estática de forma demasiado duradoura. Se

porventura era Dionísio que se manifestava no espaço da tragédia, essa manifestação não

correspondia ao seu caráter puramente vital, mas sim a uma encarnação simbólica que lhe

possibilitava obter uma representação carnal visível ao olhar humano.20

No confronto com o seu destino inexorável, o herói refaz simbolicamente os

suplícios divinos de Dionísio. Édipo, adquirindo um conhecimento imenso acerca da vida, cai

em infortúnio por causa de sua própria sabedoria, sendo assim o herói sofocliano por

excelência, pois ultrapassa os limites humanos sem saber que caminha para a sua dissolução.21

Em Sófocles, o homem cai em desgraça seguindo o caminho que os deuses lhe traçaram.

Assim a infelicidade não é um castigo, mas alguma coisa por meio da qual o homem é

consagrado, é levado a tornar-se um personagem sagrado.22 O destino que lhe está reservado

não é claramente delimitado. Ele tem necessidade de saber o que é o ser humano, onde

encontra o limite entre a humanidade do homem e a divindade do deus, e este limite é o objeto

próprio de sua visão trágica. Édipo simboliza toda a realização humana: sua magnificência

conquistada às duras penas, ao contrário da magnificência eterna do divino, não pode

perdurar, e enquanto vive, reluz cada vez mais brilhante contra o pano de fundo sombrio, de

18 NIETZSCHE, O nascimento da Tragédia, § 10. 19 NIETZSCHE, O serviço divino dos gregos, Introdução, § 3. Há que se nesse ponto Nietzsche apresenta uma

grande divergência em relação ao seu mentor Richard WAGNER, que n’ A Arte e a Revolução, § 2, p. 40-41, faz de Apolo o elemento motriz da tragédia grega, e não Dionísio: “O dia da representação trágica era dia de celebração festiva do deus, porque nela era o próprio deus que se exprimia e se dava a apreensão clara dos homens, o poeta era o sumo sacerdote do deus. E o deus estava real e corporalmente presente na obra de arte, conduzia o círculo de dançarinos, elevava a voz perante o coro e revelava na sonoridade das palavras as verdades da sabedoria divina. Era assim a obra de arte grega, Apolo transformado em arte real e viva, era assim o povo grego no aspecto mais elevado da sua verdade e da sua beleza”

20 Essa questão é analisada de maneira esclarecedora por Michel HENRY em A Morte dos Deuses – Vida e afetividade em Nietzsche, p. 56-57: “Sem dúvida, Dionísio é o deus oculto que não aparece em cena e não descobre aí seu rosto. E, no entanto, ele aí está, não tanto quanto avança mascarado à testa do cortejo exaltado de seus servos, mas como o princípio interior da exaltação, a embriaguez e a emoção deles – ou melhor, como a sua própria realidade, na medida em que a alegria deles é identicamente a do deus e repousa nele, na medida em que ela é uma alegria original no próprio seio do Uno Originário”.

21 Karl REINHARDT apresenta valiosas considerações sobre Édipo em seu livro Sófocles, mais especificamente no capítulo “Édipo Tirano”, p. 115-156.

22 Cf. DIAS, Rosa Maria. “Dioniso na Grécia Apolínea” In: Nietzsche e Deleuze, Bárbaros e Civilizados, p. 221.

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10 Revista Filosofia Capital Vol. 4 (2009) - Edição Especial ISSN 1982 6613 A Vida é Mesmo Agora!

sua impermanência.23

Prometeu, por sua vez, comete a grande desmedida ao roubar o fogo dos deuses para

concedê-los aos miseráveis humanos privados desse bem.24 Prometeu, assim como os demais

heróis de Ésquilo figuram possuídos pela hybris, transgredindo conscientemente os limites

que separam o humano do divino. A despeito da advertência dos deuses, seus heróis a eles se

opõem espontaneamente e devem, por conseguinte, expiar as suas faltas a fim de se restituir a

ordem no mundo. Prometeu, no seu afã dionisíaco de se elevar ao conhecimento sagrado do

mundo, gera a fusão entre a esfera humana e a divina, motivando assim a reação normativa de

Zeus, que pretende manter as duas dimensões devidamente distanciadas.25 Tanto no caso de

Édipo e Prometeu percebemos a presença de uma sincronia apolínea que destaca esses

grandes homens da individualidade comum, e a aspiração a uma elevação cósmica

caracteristicamente dionisíaca, que é a causa da dilaceração de ambos. Entretanto, não

podemos esquecer que é a partir do declínio do herói enquanto glorioso ser apolíneo que

encarna a potência dionisíaca que ocorre a reconciliação entre o humano e o divino. Édipo,

com os olhos cerrados ao mundo externo, adquire a intuitiva sabedoria divina que lhe torna

como que uma espécie de gênio protetor do povo de Colono, que o acolhera de forma tão

respeitosa no seu tormentoso exílio. Édipo conquista paulatinamente o acesso a uma

dimensão invisível da realidade, à qual estivera cego até então. A morte da realidade

extensiva, manifestada pelo âmbito sensorial e pela luminosidade da visão, assim como a sua

dolorosa peregrinação, deu-lhe acesso a uma dimensão fundamental: a das forças cósmicas,

que, na ausência de qualquer figuração extensiva, regem intrinsecamente o universo.26 A

maldição que recai sobre Édipo se lhe converte em benção, e tal estigma o distinguia dos

demais homens. Abrigar piedosamente uma pessoa amaldiçoada no solo pátrio, ao invés de

motivar a multiplicação dos males entre a coletividade social, na verdade se reverte em

dádivas para a cidade, de maneira que é uma honra assimilar um indivíduo de tamanha

distinção, pois aquele que recebe um estigma espiritual é um ser sagrado por excelência.

Aquele que foi degradado a ponto de ser expulso deu lar pelos próprios filhos é agora erguido

tão alto que Atenas é santificada por sua presença.27 Já o nobre Prometeu, após sofrer as mais

duras penas por ter se contraposto aos desígnios intransigentes de Zeus, recebe finalmente um

23 Cf. KNOX, Bernard. Édipo em Tebas, p. 173. 24 Cf. ÉSQUILO. Prometeu Agrilhoado, vs. 30-31. 25 NIETZSCHE. O nascimento da Tragédia, § 7. 26 Ressalto que Yara Borges CAZNÓK e Alfredo NAFFAH NETO elaboram uma reflexão similar em Ouvir

Wagner - Ecos Nietzschianos, p. 141. 27 Cf. GASSNER. Mestres do Teatro I, p. 62.

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indulto do Olimpo.28

Na prática extensiva do rito dionisíaco, ocorria o esquartejamento de animais

silvestres como forma de se repetir o cruento dilaceramento do menino Dionísio, mas na

Tragédia Ática esse dilaceramento divino, tornado uma representação metafórica, ocorre a

partir do sofrimento do herói e, por conseguinte, do próprio ser humano, que se fragmenta

infinitamente na individuação. O sofrimento trágico demonstra a resistência da

individualidade transfigurada através de sua imersão na natureza primordial, favorecendo

assim, ao invés do aprisionamento da condição singular da vida, a sua mais poderosa

libertação. Representando a luta e a vitória de Dionísio sobre o princípio extensivo da

individuação, a tal ponto que todo herói deve ser compreendido como seu substituto ou sua

máscara, a alegria que é proporcionada pela tragédia é o sentimento de que o limite da

individualidade será abolido e a unidade originária restaurada.29 O canto sagrado emitido na

encenação trágica revelava o valor supremo da vida, mesmo quando esta era violentamente

suprimida na sua condição individualizada. A partir do espírito da música trágica, que

transfigura a frágil condição subjetiva do ser humano, o aniquilamento do próprio indivíduo

se tornava uma fonte de obtenção de um nível de alegria que brotava do íntimo de cada ser

humano, jorrando intensamente para o mundo circundante. Penetrar nessa esfera sagrada na

qual havia o entrelaçamento entre a dor divina e a fragmentação da vida na pluralidade

individual representa para o grego trágico o desvelamento da realidade cósmica, livre de todas

as ilusões da consciência fiada exclusivamente no âmbito da fria racionalidade. Imergir nessa

dimensão arrebatadora da natureza era uma experiência que justificava toda a banalidade da

vida corriqueira, pois que no momento da fusão entre o divino e o humano na experiência

trágica, o homem grego se libertava de toda condição pessoal estabelecida. O seio da natureza

soluça pelo seu despedaçamento em milhões de seres individualizados, aguardando ao retorno

da unidade primordial.30

A separação entre o humano e a natureza, expressão sagrada do divino, não é eterna,

pois na própria extinção da configuração individual ocorria novamente essa fusão entre o ser

humano e a força inexorável da natureza. A individuação, portanto, proclamada pela esfera

apolínea como a dádiva mais valorosa da condição humana, se torna apenas um elemento

secundário na consciência trágica dos gregos. Porém, simultaneamente ao estado de dor

28 HESÍODO sintetiza a dor de Prometeu, assim como a sua posterior libertação pelas mãos de Herácles, na

Teogonia, vs. 521-531. 29 Cf. MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade, p. 26. 30 NIETZSCHE, O nascimento da Tragédia, § 2.

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gerado por essa individuação, ao mesmo tempo o espírito dionisíaco obtinha a grande alegria

trágica, pois que as suas inúmeras representações personalizadas afirmavam o caráter glorioso

da existência, mesmo sendo esta marcada pela dor crucial decorrente dessa ruptura com a

fonte originária da vida. A alegria consiste numa aprovação da existência tida por

irremediavelmente trágica: neste caso a alegria é paradoxal, mas de modo algum ela é

ilusória. 31 A dor produtiva, o sofrimento transfigurado, a vida gerando mais vida e a vida

eterna, eis o que representa o drama musical grego.32 Mais uma vez podemos perceber a

confluência entre prazer e dor na esfera trágica da existência, pois que ao mesmo tempo em

que a destruição da individuação representava ao ser humano uma experiência dolorosa, ele

obtinha também o regozijo pela sua reabsorção na plenitude maravilhosa da natureza. Ao

comentar a confluência trágica enunciada por Nietzsche entre o prazer e a dor, Deleuze

salienta que “Dionísio afirma tudo aquilo que aparece, mesmo o mais amargo sofrimento, e

aparece em tudo aquilo que é afirmado”.33 O espírito dionisíaco traga em sua força divina a

grande totalidade da existência, mesmo aquilo que a condição humana comum não quer

aceitar, justamente a dor, que também é um signo de prazer e de alegria para aquele que

compreende a sagrada esfera da vida, que se torna plena afirmação cósmica. A Tragédia

Ática, nessas condições, além de exprimir nas suas origens uma visão de mundo teofânica, na

qual o segredo sagrado da vida era metaforicamente revelado aos participantes da celebração

trágica, era também um acontecimento social que envolvia a totalidade da comunidade grega,

uma afortunada atividade artística que se sustentava sobre bases religiosas, um autêntico culto

sagrado do mais puro caráter solene.34

A unidade coletiva proporcionada pela fusão de arte e religião no espetáculo trágico

era então a força que direcionava os ímpetos criativos dos gregos para a valorização de uma

instância social que diluía todas as diferenças particulares entre os indivíduos. O benefício da

multidão grega e das suas instituições era a aspiração maior dessa cultura. Mediante tais

circunstâncias, o espetáculo trágico revestia-se de um caráter de manifestação nacional entre

os gregos.35 Um dos motivos que tornava ainda mais envolvente a celebração desses

aguardados ritos trágicos era que eles somente ocorriam nas festas oficiais em honra a

31 Cf. ROSSET, Clément. Alegria – A Força Maior, p. 24-25. 32 Cf. DIAS, Rosa Maria. Nietzsche e a Música, p. 63. 33 Cf. DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia, p. 28. 34 NIETZSCHE. Introdução à Tragédia de Sófocles, § 3, p. 57. 35 Cf. ROMILLY, Jacqueline de. A Tragédia Grega, p. 11

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Dionísio.36 De fato, tal efeméride tornava especial na consciência religiosa dos antigos gregos

a identificação do indivíduo particular para com a divindade tão ardorosamente amada.

A Tragédia Ática, expressão derivada originalmente do culto a Dionísio, estava

intimamente associada ao espírito mítico dos antigos gregos. Assim sendo, a encenação

trágica sempre brotou de um acontecimento religioso, cultual, o que podia ser evidenciado

inclusive pela posição do altar de Dionísio, que sempre ocupava o centro da representação

trágica, de modo que o deus recebia, mediante os cânticos dos atores em cena, a sua jubilosa

glorificação. O “espetáculo” que se apresenta na fase do surgimento da tragédia grega, tanto

aos oficiantes quanto aos participantes, tinha realidade “visional”, mas não material, isto é,

conduzia aqueles que se encontram reunidos em torno da cena uma compreensão existencial

que estabelecia a revelação da unicidade cósmica perpassando, a despeito das aparências e

convenções instituídas.

Após nos determos brevemente nos aspectos sociais inerentes ao surgimento do

drama trágico, cabe que investiguemos o propósito axiológico dos mesmos: esses dramas

representados ao público grego demonstravam para estes os padecimentos de Dionísio,

mediante as suas expressões singularizadas nas figuras dos grandes heróis trágicos. Diz

Nietzsche: “É uma tradição incontestável que a tragédia grega, em sua mais vetusta

configuração, tinha por objeto apenas os sofrimentos de Dionísio, e que por longo tempo o

único herói cênico aí existente foi exatamente Dionísio”.37

Conforme destaca Jacó Guinsburg na sua interpretação do trágico nietzschiano,

Dionísio não está no palco, mas no espaço real de sua metamorfose.38 Mediante essas

considerações, fica claro que essas encenações não compactuavam em hipótese alguma com

ideais moralizantes, na qual se propagaria a idéia de que o sofrimento decorre de uma

necessidade de punição divina mediante um erro cometido contra a ordem cósmica; pelo

36 Cf. ROMILLY, Jacqueline de. A Tragédia Grega, p. 15. 37 NIETZSCHE, O nascimento da Tragédia, § 10. Talvez seja de utilidade destacar que essa perspectiva

nietzschiana é descartada por Kerenyi em seu Dioniso, p. 278-279, pois o helenista considerava que o primórdio da encenação trágica consistia na verdade em representar a destruição dos adversários de Dionísio, como Penteu, por exemplo, aquele que se esforçou para impedir a entrada dos cultos báquicos na cidade de Tebas. Kerenyi julga se fiar na documentação textual para considerar a visão nietzschiana historicamente distorcida. Todavia, mesmo que Nietzsche porventura esteja filologicamente equivocado, o fato de considerar que o cerne da encenação trágica consiste em apresentar dramaticamente o sofrimento de Dionísio não retira a força da sua argumentação, sobretudo se nos determos na evidência de que o primórdio da tragédia grega representava um culto divino dedicado ao espírito dionisíaco; mais ainda, se pensarmos na idéia de que a vida individualizada decorre da fragmentação cósmica de Dionísio, mesmo os seus ditos adversários são centelhas de sua potência divina, de maneira que, ao padecerem das dores cruciais, na verdade é o próprio Dionísio que sofre.

38 Cf. GUINSBURG, J. “Nietzsche no teatro”, In: Da Cena em Cena, p. 58.

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contrário, a dor na perspectiva trágica dos gregos era o símbolo que ressaltava o valor

imanente da vida, mesmo diante das mais atrozes adversidades vivenciadas pela

individualidade no seu processo constitutivo. A tragédia grega era tal como um tônico que

reforçava o ânimo do espectador para a ação, para a criatividade contínua, para um novo

recomeço da existência, mediante a alegria despertada diante da compreensão da eternidade

da vida.39 Por conseguinte, o propósito principal ético-estético da Tragédia Ática consistia em,

mediante o arrebatamento do espectador diante da exibição dos terríveis sofrimentos do herói,

motivar naquele o desabrochar de estados de grande exaltação jubilosa. De um modo geral, o

tema tratado pela cena trágica era de origem épica, ressaltando a sua filiação ao modelo

apolíneo, mas esse elemento individual se transforma numa relação de comunhão sagrada

entre as pessoas imersas na vivência trágica, de maneira que a potência épica se transfigurava

esteticamente na experiência mística da revelação da dor cósmica dionisíaca. O coro trágico

de maneira alguma levava a um distanciamento do espectador em relação ao mundo divino

manifestado no decorrer da celebração trágica, sendo na verdade um meio de se gerar a fusão

entre todos os que estavam envolvidos nesse acontecimento.

A experiência sagrada da Tragédia Ática pode ser compreendida em sua forma mais

nítida quando levamos em consideração a unificação entre o público “espectador” e o coro

trágico, circunstância que gera uma ruptura com os papéis sociais estaticamente pré-

determinados pela legislação apolínea. Nietzsche enuncia até mesmo a idéia de que o drama

grego era encenado sem espectadores, pois todos participavam dele.40 Essa circunstância

justifica a tese de que a Tragédia Ática não se caracterizava apenas como um acontecimento

social de cunho estético, mas também uma vivência religiosa que fortalecia a unidade do

espírito grego diante das contínuas ameaças de dissolução. O consolo metafísico exercia um

poder unificador entre a coletividade grega, pois que esta se compreendia como uma

expressão coesa, abundante de força criadora capaz de proporcionar a perpetuação da cultura

grega. Vendo-se como membro de uma grande unidade que supera a sua condição individual,

aquele que imergia na consciência trágica se identificava dionisiacamente não apenas com o

herói representado na cena, mas também com as pessoas ao seu redor, de modo que o

indivíduo, encantado pela musicalidade sagrada do drama trágico, compreendia a alteridade

mística proporcionada para toda pessoa que se encontrasse no seio da multidão. A alegria

39 BACHOFEN, no Matriarcado, p. 155-156, faz um comentário do qual o pensamento nietzschiano

certamente se nutriu: “Somente na eterna geração e na morte igualmente eterna reside a imortalidade, que não pode ser concedida ao indivíduo, mas só à estirpe enquanto tal.”

40 NIETZSCHE. Introdução à Tragédia de Sófocles, § 1, p. 48.

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“metafísica” pelo trágico é uma transposição da sabedoria dionisíaca instintivamente

inconsciente à linguagem da imagem; o herói, aparência suprema da vontade, é negado, para

prazer nosso, porque é só aparência, e a vida eterna da vontade não é afetada por sua

aniquilação.41 Nietzsche destaca que

O sátiro, enquanto coreuta dionisíaco, vive numa realidade reconhecida em termos religiosos e sob a sanção do mito e do culto. Que com ele comece a tragédia, que de sua boca fale a sabedoria dionisíaca da tragédia, é para nós um fenômeno tão desconcertante como, em geral, o é a formação da tragédia a partir do coro. Talvez conquistemos um ponto de partida para a nossa indagação, se eu introduzir a afirmação de que o sátiro, esse ser natural fictício, está para o homem civilizado na mesma relação que a música dionisíaca está para a civilização [...] Da mesma maneira, creio eu, o homem civilizado grego sente-se suspenso em presença do coro satírico; e o efeito mais imediato da tragédia dionisíaca é que o estado e a sociedade, sobretudo o abismo entre um homem e outro, dão lugar a um superpotente sentimento de unidade que reconduz ao coração da natureza (NIETZSCHE, O nascimento da Tragédia, § 7).

Podemos considerar o culto apolíneo-dionisíaco, que encontrou a sua expressão

valorativa mais poderosa na Tragédia Ática, como um culto divino que preconizava acima de

tudo o despertar da força intrínseca contida no âmago de cada um dos seus adeptos, epifania

que possibilitava o contínuo reflorescimento da criação cultural dos antigos gregos, pois a

matriz da natureza fora alçada ao patamar da grande formadora de novos mundos, a medida

que os antigos sucumbiram ao irresistível poder do tempo. Exemplo extraordinário do poder

afirmativo da vida, a interação apolíneo-dionisíaca, manifestada nos diversos modos de

expressão da era trágica dos gregos, evidenciou uma possibilidade de compreendermos uma

vivência religiosa através de uma perspectiva imanente, destituída de traços apologéticos de

sanções a ser aplicadas numa esfera espiritual àqueles que porventura não se enquadrassem

nos parâmetros estabelecidos. Dessa maneira, se evitou que o princípio apolíneo, de natureza

essencialmente prescritiva, abusasse do controle social acerca das ações individuais, e que os

ritos dionisíacos, que em estado bruto eram excessivamente desmedidos, conduzissem o

indivíduo ao seu aniquilamento gratuito e ao decorrente processo de dissolução da cultura.

Finalmente unificados pela cultura trágica dos gregos, tanto o pólo dionisíaco como o pólo

apolíneo42 passam a exercer uma ação mútua de fiscalização das suas ações, onde cada um

41 NIETZSCHE. O nascimento da Tragédia, § 16. 42 De maneira esclarecedora, Scarlett Marton define o que vem a ser o dionisíaco e o apolíneo na filosofia de

Nietzsche: “Dionisíaco é o princípio que quebra barreiras, rompe limites, dissolve e integra; apolíneo, o que delineia, distingue, dá forma” (Cf. MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos, p. 71).

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exercia as suas características naturais de ruptura e ordenamento.

Tanto Apolo como Dionísio saíram vencedores na grande disputa sagrada pela

supremacia da visão de mundo a ser instaurada na Hélade, ocorrendo assim uma inegável

reconciliação no “campo de batalha”.43 A partir do armistício divino entre a lei do equilíbrio

harmônico e a força natural desmedida, ocorre o magnífico momento no qual Apolo acolhe

amistosamente o “deus estrangeiro”, permitindo a plácida entrada desse elemento puramente

instintivo no coração de sua iluminada terra. Entretanto, o Estado apolíneo transformou o

“dionisismo bárbaro” originário, que era uma vivência perigosa e potencialmente destrutiva

para a organização social olímpica, em uma qualidade de fruição estética convenientemente

suportável para a manutenção saudável da vida, de forma que a ação apaziguadora do

luminoso deus de Delfos tirou das mãos de seu arrebatador oponente as suas armas

mortíferas.44

A formulação da Tragédia Ática representa a capacidade instintiva do povo grego em

equilibrar salutarmente as duas pulsões vitais perpetuamente conflitantes, gerando assim um

evento sagrado representado a partir de instâncias estéticas. Nessas condições, a Tragédia

Ática era uma celebração religiosa revestida por um belo aparato artístico, e o público que

assistia essas encenações recebia bênçãos divinas através da beleza do canto, que

transfigurava a individualidade do espectador, ao unificá-lo imediatamente ao âmbito divino,

representado pela figura dionisíaca mascarada por seus representantes fenomênicos. Dionísio

é como o fundo sobre o qual Apolo borda bela aparência; mas sob Apolo é Dionísio que

brame. 45 Conforme as palavras de Nietzsche,

A difícil relação entre o apolíneo e o dionisíaco na tragédia poderia realmente ser simbolizada através de uma aliança fraterna entre as duas divindades. Dionísio fala a linguagem de Apolo, mas Apolo, ao fim, fala a linguagem de Dionísio... (NIETZSCHE. O nascimento da Tragédia, § 21).

O estabelecimento desse sagrado acordo de paz entre os deuses antagonistas seria,

sem dúvida, o momento mais intenso da vida cultural dos antigos gregos, pois todas as

expressões vitais da Hélade (religião, arte, leis sociais), se encontravam em plena harmonia.

Ainda que o espírito apolíneo manifestasse um modelo de conduta e diametralmente oposto

ao traçado pelo culto dionisíaco, apesar das significativas diferenças entre as suas respectivas

compreensões da realidade e dos mais profundos contrastes entre essas energias naturais, 43 NIETZSCHE, A visão dionisíaca de mundo, § 1, p.11. 44 NIETZSCHE, O nascimento da Tragédia, § 2. 45 Cf. DELEUZE. Nietzsche e a Filosofia, p. 21.

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ambos estavam ligados, no fundo, por um vínculo eterno.46 Dionísio, que concentra em si

mesmo todas as contradições, é a mesma coisa que Apolo, que é o seu contrário. O indivíduo

grego, renascido apoteoticamente pela experiência trágica, celebrava amorosamente no altar

sagrado a sua devoção para Apolo e Dionísio.47 Eis o momento da grande festa cósmica do

Olimpo, na qual os dois deuses outrora intrinsecamente antagônicos se uniram, em prol do

nascimento do seu mais belo rebento, o homem grego da era trágica. Inclusive, a própria

cidade sagrada de Delfos, que tradicionalmente acolhera o culto apolíneo, recebera

fraternalmente também o culto dionisíaco, representando assim a unificação entre os dois

grandes pólos da religiosidade grega, aparentemente tão díspares entre si.48A celebração

sagrada da Tragédia Ática estabelece na cultura grega uma experiência divina de saúde,

afirmação da existência e sentimento de unidade da coletividade social em torno de grande

causa comum que era a perpetuação da glória da Hélade.

46 Cf. OTTO, Walter Friedrich. Teofania, p.165. 47 NIETZSCHE. O nascimento da Tragédia, § 25. 48 Certamente é de grande validade destacar que havia a crença mítica de que durante o inverno, enquanto

Apolo se retiraria para a bem-aventurada terra dos Hiperbóreos, Dionísio reinaria soberano em Delfos, de modo que ambos os deuses dividiriam harmoniosamente as épocas do ano para que pudessem exercer sobre os humanos a sua influência sagrada. Aliás, o Templo de Delfos possuía, no seu frontão leste, as imagens esculpidas de Apolo, Leto, Ártemis, as Musas e a imagem figurativa do crepúsculo de Hélios (o Sol), enquanto no frontão leste estavam situadas as imagens de Dionísio e as Thíades. Para mais detalhes históricos dessa associação entre Apolo e Dionísio em Delfos, ver Claude MOSSÉ. A Grécia Arcaica de Homero a Ésquilo, p.206-207, assim como OTTO, W. F, Dioniso, p. 147, ou ainda Walter BURKERT em Religião grega na época clássica e arcaica, p. 435-436. Ressaltemos ainda que ERWIN ROHDE, em Psique, p. 238, também se refere a essa conciliação entre as esferas apolíneas e dionisíacas.

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