A Advocacia Do Direito Internacional Dos Direitos Humanos Casos Contra o Estado Brasileiro

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CAPÍTULO IX – A ADVOCACIA DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS: CASOS CONTRA O ESTADO BRASILEIRO PERANTE A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS A) Introdução. Neste capítulo se buscará investigar o modo que a advocacia do Direito Internacional dos Direitos Humanos é exercido no Brasil, quais os atores sociais envolvidos e quais os direitos humanos violados. Para tanto, serão apresentados os casos submetidos à apreciação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Essa opção deveu-se ao fato de que, para o Brasil, a Comissão é relevante instância internacional competente para examinar petições individuais que denunciem violações aos direitos assegurados pela Convenção Americana de Direitos Humanos ou outro tratado do sistema interamericano. Atente-se que o Brasil, em 1998, reconheceu a competência jurisdicional da Corte Interamericana, o que ampliou e fortaleceu as instâncias de proteção dos direitos humanos internacionalmente assegurados. Tendo em vista que o reconhecimento da instância jurisdicional ainda é muito recente, bem como que a Corte Interamericana aceita apenas que a Comissão Interamericana e os Estados-partes podem submeter casos à ela, verifica-se, até o presente momento, um número reduzido de casos sob a apreciação da Corte Interamericana. Como já mencionado anteriormente, o Brasil não reconhece a competência do Comitê de Direitos Humanos para receber petições individuais, pois não ratificou o Protocolo Facultativo dos Direitos Civis e Políticos, nem acolheu os procedimentos facultativos constantes da Convenção contra Tortura, de modo a reconhecer a competência do respectivo Comitê para examinar petições individuais. Embora o Brasil, desde junho de 2002, tenha ratificado o Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Discriminação contra a Mulher e acolhido o procedimento facultativo da Convenção sobre a

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CAPTULO IX A ADVOCACIA DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS: CASOS CONTRA O ESTADO BRASILEIRO PERANTE A COMISSO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

A) Introduo.

Neste captulo se buscar investigar o modo que a advocacia do Direito Internacional dos Direitos Humanos exercido no Brasil, quais os atores sociais envolvidos e quais os direitos humanos violados. Para tanto, sero apresentados os casos submetidos apreciao da Comisso Interamericana de Direitos Humanos. Essa opo deveu-se ao fato de que, para o Brasil, a Comisso relevante instncia internacional competente para examinar peties individuais que denunciem violaes aos direitos assegurados pela Conveno Americana de Direitos Humanos ou outro tratado do sistema interamericano. Atente-se que o Brasil, em 1998, reconheceu a competncia jurisdicional da Corte Interamericana, o que ampliou e fortaleceu as instncias de proteo dos direitos humanos internacionalmente assegurados. Tendo em vista que o reconhecimento da instncia jurisdicional ainda muito recente, bem como que a Corte Interamericana aceita apenas que a Comisso Interamericana e os Estados-partes podem submeter casos ela, verifica-se, at o presente momento, um nmero reduzido de casos sob a apreciao da Corte Interamericana.

Como j mencionado anteriormente, o Brasil no reconhece a competncia do Comit de Direitos Humanos para receber peties individuais, pois no ratificou o Protocolo Facultativo dos Direitos Civis e Polticos, nem acolheu os procedimentos facultativos constantes da Conveno contra Tortura, de modo a reconhecer a competncia do respectivo Comit para examinar peties individuais. Embora o Brasil, desde junho de 2002, tenha ratificado o Protocolo Facultativo Conveno sobre a Eliminao de Discriminao contra a Mulher e acolhido o procedimento facultativo da Conveno sobre a Eliminao de todas as formas de Preconceito Racial, at a presente data no consta qualquer caso contra o Brasil pendente de apreciao. Por esses motivos que o estudo se concentrar nas aes internacionais perpetradas contra o Brasil perante a Comisso Interamericana de Direitos Humanos, at porque, como j abordado, o Estado membro ao ratificar a Conveno Americana aceita automaticamente a competncia da Comisso Interamericana para examinar denncia de violao de preceito constante na Conveno, dispensando-se qualquer declarao expressa por parte do Estado-parte.

As aes internacionais concretizam e refletem a dinmicaintegrada do sistema de proteo dos direitos humanos, por meio da qual os atos internos dos Estados esto sujeitos superviso e ao controle dos rgos internacionais de proteo, quando os a atuao do Estado se mostra omissa ou falha na tarefa de garantir esse mesmo direito. De acordo com o direito internacional, a responsabilidade pelas violaes so da Unio, que dispe de personalidade jurdica na ordem internacional. Nesse sentido os princpio federativo e a separao dos poderes no podem ser invocados para afastar a responsabilidade da Unio em relao violao das obrigaes assumidas no mbito internacional. Segundo Louis Henkin, excees a esta regra podem ser feitas pelo prprio tratado em determinadas circunstncias.

H 68 casos contra o Brasil pendentes de apreciao, sendo certo que desse universo, apenas dois casos apontam responsabilidade direita da Unio, sendo um deles sobre trabalho escravo (que j foi objeto de soluo amistosa) e o outro refere-se morte de indgena Macuxi em uma delegacia em Roraima, que na poca era territrio federal. Nos demais casos a responsabilidade direta so dos Estados. Todavia, paradoxamente, em face da sistemtica at ento vigente, a Unio, ao mesmo tempo que detm a responsabilidade internacional, no responsvel em mbito nacional, j que no dispe da competncia de investigar, processa e punir violao pela qual estar internacionalmente convocada a responder. Diante desse quadro que se infere a federalizao dos crimes de direitos humanos.

A federalizao dos crimes contra os direitos humanos, introduzida pela EC 45/2004, j era vista como meta do Programa Nacional de Direitos Humanos desde 1996. O novo mecanismo permite ao Procurador-Geral da Repblica, nas hipteses de grave violao a direitos humanos e com a finalidade de assegurar o cumprimento de tratados internacionais de direito humanos ratificados pelo Brasil, requerer ao Superior Tribunal de Justia o deslocamento da competncia do caso para as instncias federais, em qualquer fase do inqurito ou do processo. Com a federalizao dos crimes de direitos humanos cria-se um sistema mais eficaz de combate impunidade desses crimes.

Primeiramente, a federalizao encoraja firme atuao dos Estados, sob o risco de deslocamento de competncia, alm do que, aumenta a responsabilidade da Unio para o efetivo combate impunidade das graves violaes aos direitos humanos. A federalizao, entretanto, exigir a elucidao de seus prprios requisitos de admissibilidade (grave violao dos direitos humanos, assegurar o devido cumprimento de obrigaes decorrentes dos tratados de direitos humanos, entre outros). A prtica permitir que tais lacunas sejam gradativamente preenchidas. Importa salientar, uma vez mais, que o sistema de proteo internacional dos direitos humanos adicional e subsidirio e, nesse sentido, pressupe o esgotamento dos recursos internos para o seu acionamento.

b) Casos contra o Estado brasileiro perante a Comisso Interamericana de Direitos Humanos

Neste tpico sero analisados 78 casos contra o Estado brasileiro que foram admitidos pela Comisso Interamericana no perodo de 1970 a 2004. Desse total, h casos que j foram apreciados pela Comisso, sendo os respectivos relatrios publicados no relatrio anual da Comisso, h aqueles a maioria que esto pendentes perante a comisso Interamericana. Os 78 casos foram classificados de acordo com o direito que foi violado: 1) deteno arbitrria, tortura e assassinato cometidos durante o regime autoritrio militar; 2) violao dos direitos indgenas; 3) violncia rural; 4) violncia policial; 5) violao dos direitos da criana e do adolescente; 6) violncia contra a mulher; 7) discriminao racial; e 8) violncia contra defensores de direitos humanos.

1) Casos de deteno arbitrria, tortura e assassinato cometidos durante o regime autoritrio militar

Do total dos 78 casos, 10 envolvem denncias de deteno arbitrria e tortura cometidas durante o regime autoritrio militar, sendo submetidas Comisso Interamericana no perodo de 1970 a 1974, com exceo do caso guerrilha do Araguaia, que foi submetido no ano de 1997. Considerando que na poca o Brasil no era signatrio da Conveno Americana, todas essas aes foram fundamentadas na Declarao Americana dos Direitos e Deveres do Homem. A prtica de deteno arbitrria e de tortura foi denunciada mediante peties encaminhadas por indivduo ou grupos de indivduos, no se verificando qualquer caso no qual a petio foi submetida por organizao no governamental. Constata-se que nesses nove casos, as vtimas eram professores universitrios, lideranas da Igreja Catlica, lderes de trabalhadores, entre outros, que de alguma forma apresentaram resistncia ao regime repressivo que perdurou de 1964 a 1985.

Dentre os casos, merece destaque o caso 1684, acerca do qual trs comunicaes foram enviadas Comisso, em 1970, denunciando a prtica da deteno ilegal e de tortura nos anos de 1969 e 1970. Os fatos denunciados foram trs: o primeiro denunciou o assassinato de um padre em Recife em 1970; o segundo tratava da deteno arbitrria e tortura de sete pessoas em Belo Horizonte; e o terceiro comunicava a existncia de pelo menos 12.000 presos polticos. A comunicao solicitava Comisso uma investigao cautelosa dos fatos por ela denunciados, que apontavam prtica autoritria do regime militar. Por maioria de votos a Comisso aprovou a Resoluo na qual afirmava: as provas coletadas nestes casos levam forte presuno de que o no Brasil h srios casos de tortura, abuso e tratamento cruel de pessoas de ambos os sexos, que foram privadas de sua liberdade. A Comisso recomendou que o Brasil procedesse com uma investigao para que na prxima sesso pudessem avaliar se os atos de tortura e abusos foram efetivamente cometidos, solicitando ainda informaes sobre o resultado das investigaes.

Em sua resposta o governo brasileiro se limitou a considerar que as bases da presuno de violao dos direitos humanos no pas eram demasiadamente frgeis. A partir dessa resposta a Comisso decidiu publicar em seu relatrio anual recomendaes endereadas ao Governo brasileiro, reiterando que as provas coletadas no Caso 1684 levam forte presuno de que no Brasil h srios casos de tortura, abuso e tratamento cruel de pessoas de ambos os sexos, que foram privadas de sua liberdade. Adicionou, ainda, que o Brasil se recusa a adotar as medidas recomendadas pela Comisso no sentido de esclarecer se os atos de tortura e abuso foram perpetrados por militares ou autoridades policiais. Alm do Caso 1684, os outros oito casos foram submetidos Comisso entre o perodo de 1973 a 1974. Todos denunciaram a prtica de detenes arbitrrias e tortura cometidos pelo regime militar, sendo os mais contundentes o caso 1788, referente ao assassinato de 104 pessoas em 1973, e o caso 1835, que denuncia a deteno arbitrria de 53 pessoas pela polcia em 1974. Contudo, ainda que a Comisso tenha admitido todos os oito casos, optou por no publicar em seu relatrio anual as respectivas concluses e recomendaes. Adicione-se o caso da guerrilha do Araguaia, ocorrida na dcada de 70 e que desde 1982 familiares tentam, sem sucessos, obter informaes sobre o desaparecimento de mais 20 vtimas.

2) Casos de Violao dos direitos dos povos indgenas

Tambm de grande impacto foi o caso 7615, relativo violao dos direitos dos povos indgenas no Brasil, particularmente, da comunidade Yanomami, em 1980. Este caso se distingue dos demais por ser o primeiro caso submetido por organizaes no governamentais de mbito internacional contra o Brasil. Nesta denncia, afirmaram que os direitos dessas populaes vida, liberdade, segurana, sade e bem-estar, educao, ao reconhecimento da personalidade jurdica e propriedade havia sido afrontados pelo Governo do Brasil.

O povo Yanomami, com uma populao de 10.000 a 12.000, viviam em terras que ocupavam o territrio do Estado do Amazonas e de Roraima. Devido ao plano do Governo de explorar economicamente a regio, os indgenas estavam sendo impelidos a abandonarem suas terras. Diante desse quadro, no perodo entre 1979 e 1984 esforos foram empenhados para demarcar as terras dos Yanomamis. Em 1982, sob presso internacional, o Governo brasileiro declarou interdio de uma rea de Roraima e do Amazonas para os povos Yanomamis. Em 1984, expediu-se um decreto prevendo a definio do chamado Parque dos ndios Yanomais, que corresponderia ao territrio desses ndios. Esses fatos, no entendimento dos peticionrios implicaram a violao dos direitos fundamentais dos Yanomamis, pois a devastao deixou seqelas fsicas e psicolgicas, doenas e mortes com a destruio de centenas de ndios, o que estava a levar a extino daquela comunidade.

A comunicao dos peticionrios resultou no pedido de informaes ao governo brasileiro que respondeu tecendo comentrios sobre o estatuto legal dos ndios no Brasil, seus direitos civis e polticos e projetos do Governo para estender a proteo aos ndios e suas terras. luz dessas consideraes, a Comisso Interamericana resolveu declarar que h provas suficientes para declarar que, em face do fracasso do Governo do Brasil em adotar medidas tempestivas e efetivas concernentes aos ndios Yanomamis, caracteriza-se a violao dos seguintes direitos reconhecidos pela Declarao Americana dos Direitos e Deveres do Homem: o direito vida, liberdade, segurana, do direito residncia e ao movimento, e do direito preservao da sade e bem-estar. A Comisso resolveu ainda recomendar ao governo brasileiro que adotasse medidas de proteo vida dos Yanomamis, procedesse a demarcao do Parque dos Yanomamis, conduzisse programas de educao, proteo mdica e integrao social dos Yanomamis e informasse a Comisso sobre as medidas adotadas em cumprimento s recomendaes. Alm do caso 7615, foi submetido Comisso Interamericana o caso 11745, que denunciou a chacina de dezesseis ndios Yanomamis em junho de 1993 em razo da negligncia e da omisso do governo brasileiro.

3) Casos de violncia rural

Dos 78 casos, 13 envolvem situaes de violncia rural, sendo que a maioria se encontra pendente de apreciao perante a Comisso. Como os casos pendentes so processados em regime de confidncia, o estudo se limitar a um breve relato destes casos. Primeiramente, cabe observar que os casos foram encaminhados Comisso Interamericana por organizaes no governamentais de mbito nacional e internacional.

O primeiro caso foi o do assassinato de Joo Canuto, presidente dos Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria, no Estado do Par. Pelos denunciantes, em razo da insuficincia da resposta governamental no sentido de punir os culpados a investigao criminal durou oito anos e at o momento no houve culpados caracterizando-se, assim, o esgotamento dos recursos internos, cabendo Comisso a declarao da violao pelo Estado brasileiro de suas obrigaes internacionais. Em maro de 1998 a Comisso Interamericana aprovou o relatrio final sobre o caso, condenando o Brasil pela violao dos direitos vida, liberdade, segurana, integridade e justia, com a recomendao de que o Brasil confira maior celeridade ao processo criminal relativo ao caso, a fim de que os responsveis sejam devidamente processados. Recomendou, ainda, que seja efetuado o pagamento de penso especial em favor dos familiares da vtima, o que foi efetuado pelo Estado do Par.

J o caso 11289 denuncia a tentativa de assassinato de um jovem trabalhador rural por ocasio de tentativa de fuga o regime de trabalho escravo a que estava sendo submetido em uma fazendo no Estado do Par, em 1989. Considerando que at 1994 no houve punio dos responsveis, levaram o caso Comisso, onde foi solucionado o caso de em acordo amistoso. Houve o pagamento de indenizao vtima e compromisso de serem adotadas medidas para a preveno e combate do trabalho escravo no Brasil. O caso 12066 tambm revela denncia de trabalho escravo em fazendas no Estado do Par. O caso 11405 envolve situao de conflito no campo. Sob a acusao de ocupao de terras e defesa dos direitos dos demais trabalhadores rurais, cinco trabalhadores foram assassinados e dois sofreram leses corporais, um foi seqestrado e pelo menos quatro famlias foram compelidas a fugir. Com a ineficincia do governo em apurar e responsabilizar os violadores, foi levado o caso Comisso interamericana.

4) Casos de violncia policial

Do universo de 78 casos, 34 so relativos a violncia policial, todos ocorridos a partir de 1982. Como os casos ainda encontram-se pendentes, e por isso sob o regime de confidencialidade, na h como tecer comentrios mais aprofundados. Cabe notar que os casos foram submetidos Comisso Interamericana por organizaes no governamentais de direitos humanos. Todos os casos so fundamentados na Conveno Americana de Direitos Humanos, ratificanda pelo Brasil em 1992. Em todos os 34 casos, os peticionrios denunciaram o abuso e a violncia policial, que implica o assassinato, sem justificativa, de vtimas inocentes. Denunciam, ainda, a insuficincia de resposta por parte do governo brasileiro, ou mesmo a inexistncia de qualquer resposta, em face de punio dos responsveis pelas violaes cometidas. Em todos os casos que denunciam a violncia cometida pela polcia militar o pedido o mesmo: a condenao do Estado brasileiro a processar e punir os agentes responsveis pelas violaes cometidas, bem como indenizar as vtimas das violaes nos casos em que isso ainda no tenha ocorrido.

A impunidade viola o dever de garantir, por completo, o livre exerccio do direito afetado. A respeito, decidiu a Corte Interamericana: se o aparato do Estado atua de modo a que uma violao permanea impune, no restaurando vtima, a plenitude de seus direitos, pode-se afirmar que o Estado est a descumprir o dever de garantir o livre e pleno exerccio de direito s pessoas sujeitas jurisdio. Com respeito obrigao de investigar, deve ser assumida pelo Estado como um dever jurdico prprio e no como uma simples gesto de interesses particulares, que depende da iniciativa processual da vtima ou de seus familiares, sem que a autoridade pblica busque efetivamente a verdade.

Com relao ao direito justia e sistemtica impunidade nos casos de violncia da polcia militar, assegurada pelo fato de os agentes militares serem julgados por seus pares, no mbito da Justia Militar, cabe ressaltar que as presses internacionais contriburam para a adoo de Lei 9.299/96 que transferiu para a Justia Comum a competncia para julgar os crimes dolosos contra a vida cometidos por policiais militares. Enfatize-se que a maioria dos casos admitidos pela Comisso Interamericana envolve o assassinato de pessoas inocentes, por vezes adolescentes, em virtude do abuso e violncia da polcia militar. Nessas situaes se reitera a denncia de inexistncia ou insuficincia de medidas adotadas pelo Brasil no sentido de processar e punir as autoridades policiais responsveis. Os peticionrios querem a condenao do Brasil em razo da afronta ao direito vida, integridade pessoal, s garantias judiciais, assegurados pela Conveno Americana, com o fim da impunidade, para que os responsveis sejam investigados, processados e punidos.

5) Casos de violao dos direitos de crianas e adolescente No que tange aos casos de violao dos direitos de crianas e adolescente, os que merecem relevncia cinco casos. O primeiro o da Candelria, no qual oito crianas e adolescente foram encontrados mortos nos arredores da Igreja em julho de 1993. A petio alega que os responsveis so policiais militares. O segundo refere-se a solicitao de medidas de proteo integridade fsica e vida de adolescente internados em trs estabelecimentos do Estado do Rio de Janeiro. Apontam como irregularidades a separao dos adolescentes por critrio de idade, compleio fsica e gravidade da infrao, superlotao e s condies subumanas a que so submetidos, vtimas de espancamentos, maus tratos e violncia sexual. Na mesma direo aponta o terceiro caso, diferindo apenas que o estabelecimento situado em Taubat, em So Paulo. Nesses casos a Comisso Interamericana solicitou a adoo de medidas cautelares para proteger a vida e a integridade fsica dos adolescentes.

Por fim, os dois ltimos so referentes ao caso dos meninos emasculados no Maraho, em que crianas e adolescentes tm sido vtimas de asassinato, marcado pela violncia e abuso sexual, culminando na extrao dos rgos genitais das vtimas, no Estado do Maranho. No perodo de 1991 a 2001, dezenove meninos, entre nove e catorze anos, foram vtimas dessa grave violao.

6) Casos de Violncia contra a Mulher

Dos 78 casos, 3 denunciam a violncia contra a mulher, apresentando como fundamento central a violao Conveno Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violncia contra a Mulher. Desses trs casos, dois denunciam a violncia por parte de companheiros contra a mulher, sendo certo que em um culminou com a morte da vtima e o outro teve como conseqncia a paraplegia da vtima. Em ambos os casos os autores encontram-se em liberdade, sem terem cumprido qualquer pena. J o terceiro caso denuncia o assassinato de uma estudante em que seu algoz, em razo de ser deputado estadual e encontrar-se resguardado pela imunidade parlamentar, s poderia ser processado com a prvia licena da Assemblia Legislativa do Estado. Contudo, por duas vezes a licena foi indeferida, o que resultou no envio do caso Comisso.

Esses casos distinguem-se dos demais por denunciarem um padro especfico de violncia que alcana as mulheres. Trata-se da violncia baseada no gnero, capaz de causar morte, dano ou sofrimento fsico, sexual ou psicolgico mulher, seja na esfera pblica seja na esfera privada. Recomenda-se, assim, que o domnio do privado no mais indevassvel quando ocorre violao a direitos humanos. Embora esse padro especfico de violncia seja distinto dos demais padres at o momento estudados (em que os agentes estatais atuam como agentes perpetradores na esfera pblica), os casos se assemelham aos demais casos na medida em que, do mesmo modo, requerem o combate impunidade, acentuado o dever do Estado investigar, processar e punir os agentes responsveis.

Alm desses trs casos, merece meno a denncia de discriminao contra me adotiva e seus respectivos filhos, em face da deciso definitiva proferida pelo Supremo Tribunal Federal que negou direito licena gestante me adotiva.

7) Casos de Discriminao Racial

S h um nico caso de denncia de discriminao racial contra o Brasil. Refere-se discriminao racial sofrida por vtima cujo ingresso em emprego foi recusado em virtude de ser negra. Os peticionrios requerem que o Brasil seja responsabilizado pela violao do dever de garantir o livre e pleno exerccio de direitos dispostos na Conveno Americana, sem qualquer discriminao, bem como pela afronta aos direitos igualdade perante a lei. Requere, ainda, que seja recomendado ao Brasil que proceda investigao na apurao dos fatos, bem como no pagamento de indenizao vtima pelos danos sofridos, tornando pblicas as providncias tomadas para prevenir futuras discriminaes.

8) Casos de violncia contra defensores dos direitos humanos

Para este trabalho, defensores de direitos humanos so todos os indivduos, grupos e rgos da sociedade que promovem e protegem os direitos humanos e as liberdades fundamentais universalmente reconhecidas. Destaca-se o assassinato de Gilson Nogueira Carvalho, advogado do Centro de Direitos Humanos e Memria Popular de Natal, por grupo de extermnio. Segunda a denncia, o advogado tinha destacada atuao em defesa das vtimas de violncia policial e atuava como assistente do Ministrio Pblico nos processos que examinavam possveis atuaes de grupos de extermnio no interior da Secretaria de Segurana Pblica do Rio Grande do Norte. Atente-se para o fato de que a Comisso Interamericana, em janeiro de 2005, entendeu por encaminhar o caso Corte.

c) Anlise dos casos limites e possibilidades da advocacia do Direito Internacional dos Direitos Humanos

Para a anlise do quadro de aes internacionais, adotar-se- como critrio a demarcao de dois perodos na histria poltica brasileira: o perodo concernente ao regime militar vigente no perodo de 1964 a 1985, e o outro concernente ao processo de transio democrtica, deflagrado a partir de 1985. As mudanas ocorridas nesta transio democrtica implicaram mudanas na prpria advocacia do Direito Internacional dos Direitos Humanos, tendo em vista que outros passaram a ser os direitos violados e outros passaram a ser os atores sociais envolvidos.

Se o objetivo avaliar o modo como a advocacia do Direito Internacional dos Direitos Humanos tem sido exercida no Brasil, primeiramente h que se perquirir quais os atores sociais nela envolvidos. De pronto, ser analisado quem so os proponentes das denncias. Considerando-se a demarcao dos dois distintos perodos, observa-se que durante o regime militar, de 1964 a 1985, 90% das comunicaes examinadas foram encaminhadas por indivduos ou grupos de indivduos. Em um nico caso a denncia foi encaminhada por entidades no governamentais. J no segundo perodo, relativo ao processo de democratizao, 100% dos casos foram encaminhados por entidades no governamentais de defesa dos direitos humanos, de mbito nacional ou internacional, e, por vezes, pela atuao conjunta dessas entidades.

Estes dados, por si ss, ilustram a dinmica da relao entre o processo de democratizao do pas e a maior articulao e organizao da sociedade civil. Tanto o processo de liberalizao do regime autoritrio permitiu o fortalecimento da sociedade civil, quanto as reinveno da sociedade civil contribuiu para o processo de democratizao e para a gradativa formao de um regime civil. Tambm notvel perceber, a partir da democratizao, o importante papel assumido pelas organizaes no governamentais no que tange defesa e proteo dos direitos humanos, mediante a advocacia dos instrumentos internacionais de proteo.

Aps a anlise de quais so os proponentes das denncias, passa-se a analisar, agora, quais os direitos que so violados segundo essas denncias. Considerando o primeiro perodo, dos dez casos apreciados, nove denunciam a deteno arbitrria e tortura ocorridas durante o regime autoritrio militar, enquanto um caso envolve a violao dos direitos dos povos indgenas. J no segundo perodo, dos 68 casos analisados, 34 envolvem violncia policial, 13 revelam violncia rural, 5 referem-se violao ao direitos da criana e adolescente, 3 so denncia contra a mulher, e um menciona violao aos direitos da populao indgena, um discriminao racial e mais seis violncia contra defensores de direitos humanos.

Dessa estatstica, pode-se extrair que no primeiro perodo, 90% dos casos denunciaram violncia policial, j no segundo a violncia policial foram 50% dos casos. Esses dados comprova que a democratizao ocorrida no Brasil foi incapaz de romper em absoluto com as prticas autoritrias do regime militar, apresentando como reminiscncia um padro de violncia sistemtica praticada pela polcia, que no consegue ser controlada pelo aparelhamento estatal. A diferena da violncia policial do primeiro perodo para a violncia policial do segundo, que no regime militar a violncia era perpetrada direita e explicitamente por ao do regime autoritrio. J no perodo de democratizao, a sistemtica violncia policial apresenta-se no mais como uma ao Estatal, mas sim como uma omisso do Estado, por no ser capaz de deter os abusos de seus agentes. Tal como no regime militar, no se verifica a punio dos responsveis. A insuficincia ou at mesmo a inexistncia de respostas por parte do Estado brasileiro fator que, a configurar o requisito do prvio esgotamento dos recursos internos, enseja a denncia dessas violaes de direitos perante a Comisso Interamericana.

Ao dos 34 casos de violncia policial no perodo de democratizao, observa-se que os demais 34 casos so violaes aos direitos e liberdades fundamentais em face de grupos socialmente vulnerveis, como os povos indgenas, a populao negra, as mulheres, as crianas e os adolescentes.

Importa destacar que todos os casos apresentados Comisso Interamericana, seja no primeiro ou no segundo perodo, referem-se violao de direitos civis e/ou polticos, sendo ainda incipiente a apresentao de denncias atinentes violao a direitos econmicos, sociais e culturais.

Alm de se analisar quem so os proponentes e quais os direitos violados, examinar quem so as vtimas dessas violncias. No perodo do regime autoritrio militar, em 90% dos casos as vtimas eram lderes da Igreja Catlica, estudantes, lderes de trabalhadores, professores universitrios, advogados, economistas e outros profissionais, todos, em geral, integrantes da classe mdia brasileira. No segundo perodo, relativo ao processo de democratizao, 87% dos casos examinados, as vtimas podem ser consideradas socialmente pobres, sem qualquer liderana destacada, o que inclui tanto aqueles que viviam como pedreiros, vendedores, ajudantes de obras ou em outras atividades pouco rentveis no Brasil. Exceo feita aos casos de violncia contra defensores de direitos humanos e de contra lideranas rurais. Se no perodo de autoritarismo militar, aqueles que eram acusados de oferecer resistncia ao regime eram torturados ou arbitrariamente detidos por razes de natureza poltica, no processo de democratizao o padro de conflituosidade se orienta por outro critrio. No mais pelo critrio poltico, mas sim pelo critrio econmico, com o qual se conjuga um componente scio-poltico. Nesse sentido as vtimas, as vtimas, via de regra, no so mais dos setores da classe mdia, mas pessoas pores, por vezes excludas socialmente e integrantes de grupos sociais vulnerveis.

Importante a observao feita por lvaro Ribeiro da Costa, para quem A chamada violncia especfica cujas formas mais visveis podem aparecer como homicdios, leses corporais, tortura, seqestros a que habitualmente pode chamar mais ateno. No entanto, a violncia estrutural a que reside na estrutura econmicas, polticas, sociais, culturais, jurdicas parecer ser a mais perversa e a de maiores efeitos em detrimento dos direitos humanos e da cidadania, por caracterizar-se pela permanncia, pela profundidade e extenso de seu alcance.

Pela anlise das datas das proposituras das denncias, verifica-se que a ratificao da Conveno Americana de Direitos Humanos pelo Brasil tenha estimulado a iniciativa de aes judiciais internacionais, haja vista que, no perodo de 1970 a 1992, apenas 11 casos foram impetrado contra o Brasil. J no perodo de 1992 a 2004, foram 67 as proposituras. Dessa anlise, constata-se que a ratificao da Conveno Americana foi um fator que, definitivamente, estimulou e propiciou a propositura de aes internacionais junto Comisso Interamericana.

Mister analisar, agora, o impacto da litigncia internacional na mudana no mbito interno. A ttulo ilustrativo, cabe a demonstrao de seis mudanas ocorridas por influncia direta das litigncias internacionais. I) os casos de violncia policial, especialmente as que denunciam a impunidade de crimes praticados por policiais militares, foram fundamentais para a adoo da Lei 9.299/96, que determinou a transferncia da competncia da Justia Militar para Justia Comum para julgamento de crimes dolosos contra vida praticados por policiais militares; II) O caso do assassinato da estudante por deputado estadual foi de relevante importncia para a adoo da Emenda Constitucional 35/2001m que restringe a imunidade parlamentar no Brasil; III) o caso envolvendo a denncia de discriminao de me adotiva e seus respectivos filhos, em face da deciso definitiva do STF que negou o direito da me adotiva de gozar de licena maternidade, foi essencial para a aprovao da Lei 10.421/2002, que estendeu o direito licena maternidade s mes de filhos adotivos; IV) o caso Maria Penha de Maia Fernandes, que culminou na condenao do Brasil por violncia domstica, motivou o encaminhamento, pelo Poder Executivo, ao Congresso Nacional de projeto de lei tipificando o crime de violncia domstica e sugerindo meios adequados de tramitao nas instncias judiciais; V) os casos de violncia contra defensores de direitos humanos contriburam para a adoo do Programa Nacional de Proteo aos Defensores de Direitos Humanos; e VI) os casos envolvendo violncia rural e trabalho escravo, contriburam para a adoo do Programa Nacional para a Erradicao do trabalho Escravo.

Pode-se concluir que o sistema interamericano de proteo dos direitos humanos oferece importantes estratgias de ao, potencialmente capazes de contribuir para o reforo da promoo dos direitos humanos no Brasil. Verificou-se, ainda, que os instrumentos internacionais constituem relevante estratgia de atuao para as organizaes no governamentais, nacionais e internacionais, ao adicionar linguagem jurdica ao discurso dos direitos humanos. A experincia revela que a ao internacional tem tambm auxiliado a publicidade das violaes de direitos humanos, o que oferece o risco do constrangimento poltico e moral ao estado violador, e, nesse sentido, surge como significado fator para a proteo dos direitos humanos. Ademais, ao enfrentar a publicidade e a presso internacional, o Estado praticamente compelido a apresentar justificativas s suas prticas, vindo a contribuir para reformas internas.

Enfim, considerando a experincia brasileira, pode-se afirmar que, com o intenso desenvolvimento das organizaes no governamentais, a partir de articuladas e competentes estratgias de litigncia, os instrumentos internacionais constituem poderoso mecanismos para a promoo do efetivo fortalecimento da proteo dos direitos humanos no mbito nacional.