A África Que a Escola Não Me Ensinou

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Artigo : A África que a escola não me ensinou........ por Jerr y em 28 Mai 2009 A África é mais do que a mídia nos mostra. Nos filmes, nas histórias em quadrinhos, nos seriados de TV e nos romances, a África é sempre um continente misterioso e mágico, onde são possíveis todas as aventuras. A imagem que nos transmitem diariamente os jornais e os noticiários de rádio e televisão é outra: a de uma parte do mundo assolada por secas, fomes, epidemias, guerras e tiranias. Uma imagem não desmente a outra, e ambas são incompletas. Se uma região da África foi atacada por nuvens de gafanhotos que devoraram todas as plantações, e nela há fome, nas outras a colheita se fez normalmente, os celeiros estão repletos e há abundância de comida. Se em determinado lugar há uma feroz luta armada, noutros as crianças vão regularmente à escola, de roupa limpa e sapatos lustrados. E a vida familiar transcorre normalmente, sem faltar alegria. Todos trabalham e produzem. A África é um continente enorme, com uma grande diversidade geográfica. Nela há de tudo: altas montanhas – algumas, como Kilimanjaro, com os picos permanentemente cobertos de neve; grandes desertos, como o Saara; florestas que parecem sem fim, como a do Congo; grandes extensões de matas baixas e de estepes (nome que se dá a áreas cobertas por capim e outras plantas rasteiras); e zonas que estão sempre alagadas. Cerca de metade do continente é formada, porém, por savanas, uma paisagem na qual o relvado é interrompido por árvores baixas afastadas umas das outras. Numa região, faz frio na maior parte do ano. Noutra, predomina o calor úmido. E noutras, ainda, o calor seco ou a absoluta falta de umidade característica do deserto. Nas regiões costeiras do norte do continente e na parte meridional da África do Sul, o clima é temperado, com as quatro estações bem definidas, como na Europa. Por quase todo lado, a ação do homem, durante séculos, alterou a paisagem, com roças e plantações, o pastoreio do gado, caminhos, aldeias e cidades. E também com vegetais trazidos de outros continentes. Da Ásia vieram o limão, a berinjela, a manga, a

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Artigo : A frica que a escola no me ensinou........

porJerr y em 28 Mai 2009

A frica mais do que a mdia nos mostra.

Nos filmes, nas histrias em quadrinhos, nos seriados de TV e nos romances, a frica sempre um continente misterioso e mgico, onde so possveis todas as aventuras. A imagem que nos transmitem diariamente os jornais e os noticirios de rdio e televiso outra: a de uma parte do mundo assolada por secas, fomes, epidemias, guerras e tiranias.

Uma imagem no desmente a outra, e ambas so incompletas. Se uma regio da frica foi atacada por nuvens de gafanhotos que devoraram todas as plantaes, e nela h fome, nas outras a colheita se fez normalmente, os celeiros esto repletos e h abundncia de comida. Se em determinado lugar h uma feroz luta armada, noutros as crianas vo regularmente escola, de roupa limpa e sapatos lustrados. E a vida familiar transcorre normalmente, sem faltar alegria. Todos trabalham e produzem.

A frica um continente enorme, com uma grande diversidade geogrfica. Nela h de tudo: altas montanhas algumas, como Kilimanjaro, com os picos permanentemente cobertos de neve; grandes desertos, como o Saara; florestas que parecem sem fim, como a do Congo; grandes extenses de matas baixas e de estepes (nome que se d a reas cobertas por capim e outras plantas rasteiras); e zonas que esto sempre alagadas. Cerca de metade do continente formada, porm, por savanas, uma paisagem na qual o relvado interrompido por rvores baixas afastadas umas das outras. Numa regio, faz frio na maior parte do ano. Noutra, predomina o calor mido. E noutras, ainda, o calor seco ou a absoluta falta de umidade caracterstica do deserto. Nas regies costeiras do norte do continente e na parte meridional da frica do Sul, o clima temperado, com as quatro estaes bem definidas, como na Europa.Por quase todo lado, a ao do homem, durante sculos, alterou a paisagem, com roas e plantaes, o pastoreio do gado, caminhos, aldeias e cidades. E tambm com vegetais trazidos de outros continentes. Da sia vieram o limo, a berinjela, a manga, a cana-de-acar e a cebola. Das Amricas, sobretudo do Brasil, a mandioca, o milho, a batata-doce, o amendoim, o caju e o anans. O milho e a mandioca difundiram-se de tal modo que competem, em muitos lugares, com os alimentos bsicos tradicionais, como o arroz nas duas Guins, o sorgo e os diferentes tipos de paino ou milhete nas regies da savana, o inhame na Nigria, ou a banana em Uganda.

2. A frica sempre lembrou riqueza, e no pobreza.

Quando existiu o reino de Gana?

Gana aparece pela primeira vez num texto rabe do sculo VIII, como o pas do ouro. E a abundncia desse metal que fica na nossa memria quando lemos a descrio do rei e de sua corte, feita no sculo XI por Al-Bakri, outro rabe, natural de Crdoba, na Andaluzia. O soberano vestia uma ampla tnica e tinha na cabea um turbante encimado por um gorro bordado em ouro. Trazia colares e pulseiras tambm de ouro. Atrs dele ficavam dez escravos, com espadas e escudos ornamentados de ouro. De ouro eram os arreios dos cavalos do rei. E as coleiras dos cachorros. Conta mais Al-Bakri: que o rei amarrava um de seus corcis a uma pedra de ouro que pesava 14 quilos.

A mesma pedra de ouro vai reaparecer mais ao sul, no alto rio Nger, na corte do rei do Mali. O grande viajante Ibn Batuta, que andou por aquelas terras entre 1352 e 1353, viu esse rei, que tinha o ttulo de mansa, dar audincia a seus sditos, de manto vermelho e gorro bordado de ouro, sentado em almofadas, sob um grande guarda-sol encimado por um grande pssaro de ouro. Estava cercado por seus chefes militares, com espadas e lanas de ouro.O relato de Ibn Batuta apenas confirmava o que j corria o mundo rabe e at a Europa crist: que o Mali era um reino riqussimo em ouro. Isso ficara claro para os egpcios durante a passagem pelo Cairo do mansa de nome Musa, em 1324. Ele entrou na cidade a cavalo, precedido por 500 escravos, cada um deles com um basto de ouro. E gastou tanto, durante sua estada, sempre pagando em ouro, que este perdeu valor. Num mapa-mndi desenhado na ilha Maiorca, em 1375, por Abrao Cresques, o rei negro aparece vestido europia, com cetro e coroa, a oferecer com a mo direita uma grande pepita de ouro a um berbere a camelo.No havia um pouco de exagero nesses relatos?

Talvez. Talvez os reis de Gana e do Mali no amarrassem o cavalo numa grande pedra de ouro. Mas o fato que a regio da frica onde ficavam aqueles pases foi, durante vrios sculos, at a descoberta do metal nas Amricas, a grande fornecedora de ouro ao mundo rabe e Europa. Era para adquirir ouro que as cfilas, ou caravanas de camelos, atravessavam o Saara. E era com ouro africano que se cunhavam moedas na Europa e no Oriente Mdio.3. Os africanos no so povos atrasados. H muito dominam vrias tcnicas e construam cidades em muitos aspectos melhores que as da Europa.

Pelo que nos disse, os africanos dominavam as tcnicas de minerao do ouro.

E muitas outras tcnicas. Como as agrcolas, por exemplo. Num continente de solos em geral pobres e com chuvas escassas e mal distribudas, os africanos foram obrigados a desenvolver prticas agrcolas complexas. Muitos povos conheciam as tcnicas da irrigao, da rotao de plantios, da adubagem com esterco animal e restos de cozinha, da construo de socalcos ou plataformas nas encostas das montanhas, a fim de impedir a eroso do solo e ali plantar. Misturavam tambm, na mesma gleba, diferentes tipos de plantas, para assegurar a colheita de pelo menos uma delas. Assim, se o ano fosse mal para o paino, podia ser bom ou razovel para o sorgo ou o milho.

Nada disso combina, porm, com as idias predominantes sobre os africanos do passado, e at mesmo do presente. A imagem que nos passam deles de selvageria e atraso.Mas, vejam. Quando os portugueses e outros europeus comearam, no sculo XV, a descer a costa africana, no predominava neles a impresso de que entravam em contato com povos primitivos e atrasados. Estranhavam os costumes dos negros, mas no os olhavam com desprezo. Lastimavam que desconhecessem a verdadeira f, mas s se consideravam superiores por serem cristos.

Um visitante holands do sculo XVII no escondeu a sua admirao por Benim, uma cidade enorme, cortada por uma longa avenida, que lhe parecia mais larga do que a principal rua de Amsterd. Bem antes dele, os portugueses espantaram-se com o tamanho de Ijebu-Ode e, mais ainda, com a sua muralha, que em alguns pontos alcanava os sete metros de altura e tinha quase 130 quilmetros de comprimento. Vasco da Gama, ao chegar costa oriental da frica, encontrou portos cheios de navios e de comerciantes de todas as partes do oceano ndico, bem como cidades com casas parecidssimas com as dos Algarves, em Portugal: com terraos, de pedra e cal, e pintadas inteiramente de branco. Para muitos marinheiros ingleses, j no sculo XVIII, as habitaes de barro socado e cobertura de palha que encontravam em Serra Leoa no eram piores do que as que conheciam nas reas rurais de sua terra.Ao chegarem frica, os portugueses logo reconheceram, por exemplo a excelncia do ferro que ali se produzia. Tanto que o adquiriam para revend-lo na ndia.

Desde pelo menos 600 a.C., a frica conhecia a metalurgia do ferro. Os nativos adotavam uma tcnica de pr-aquecimento dos fornos (que s seria desenvolvida na Europa no sculo XIX), que lhes permitia obter um ferro, e tambm um ao, de alta qualidade, comparvel, e at superior, em alguns casos, ao que saa das usinas europias. O produto africano apresentava, contudo, uma desvantagem, que derivava da dimenso dos seus fornos: suas barras eram pequenas. Por isso, na forja, os africanos faziam enxadas e facas, mas no grandes espadas. Nem capacetes. Nem couraas.

Eles sabiam fundir outros metais?

Claro. De ligas de cobre, como o bronze e o lato, os seus escultores faziam peas de grande tamanho, criaram obras de arte que figuram entre as mais belas j sadas das mos dos homens. E isto desde possivelmente o sculo XI, em If e em Igbo Ukwu, e desde o sculo XV no reino do Benim. At hoje se fundem placas de bronze e esculturas no reino do Benim (que fica na Nigria e no deve ser confundido com a atual Repblica do Benim). Em vrias regies da frica, fabricam-se requintadas jias de ouro e prata, entre as quais merecem destaque as produzidas pelos axantes.

4. A frica no um ambiente isolado do resto do mundo. Sempre manteve contatos com povos de diversos lugares.

Voc disse, em nossa conversa anterior, que os portugueses se espantavam, ao chegar a essas cidades-estados [do leste africano], com o nmero de navios e o volume de comrcio que nelas encontravam.Encontraram de fato cidades ricas de tudo o que mais desejavam: ouro, prata, prolas, marfim, mbar, sedas, damascos, cravo, pimenta, canela, gengibre, noz-moscada, lacas, faianas e porcelanas. Como est em Os lusadas, de Cames, e em Dcadas, do cronista Joo de Barros. Nesses portos entravam e saam todas as semanas vrios barcos, alguns muito grandes, em mos de marinheiros hbeis, que conheciam a bssola, quadrantes e cartas de marear. Para os portugueses tudo era motivo de surpresa e pasmo. J para um comerciante muulmano experiente, aquelas cidades eram parceiras menores da grande rede comercial do ndico e formavam o limite ocidental daquele que era ento o mais rico de todos os oceanos.5. Tcnicas militares africanas eram superiores s dos europeus durante a maior parte da histria do contato desses povos.E os europeus no reagiam? No tinham eles, nesses fortes, armas mais poderosas como canhes e espingardas?Tinham. Mas, no incio, os canhes no dispunham de rodas ficavam imveis no alto dos muros e atirando numa s direo e o nmero de soldados era sempre pequeno. No havia condies de tentar romper um cerco. E os africanos acabariam por submeter os estrangeiros pela fome. preciso lembrar que as armas de fogo eram, at o sculo XIX, carregadas pela boca. Primeiro, punha-se a bucha, depois a plvora e, finalmente, a bala. Entre um tiro e outro podia passar tempo suficiente para um bom arqueiro disparar meia dzia de flechas, que em muitos lugares eram envenenadas e s precisavam atingir de raspo a vtima para mat-la. Se os europeus fossem muitos o que quase nunca era o caso , eles poderiam fazer uma barreira de fogo uns alimentando as armas, enquanto outros atiravam e um terceiro grupo se preparava para atirar , mas, mesmo assim, era difcil fazer frente a muitas centenas, quando no milhares de guerreiros africanos. Na realidade, os europeus s conseguiram, militarmente, uma superioridade ntida sobre os africanos com o rifle de ferrolho e o rifle de repetio e se fizeram imbatveis com a metralhadora.Voc disse que os europeus eram sempre poucos nesses fortes e feitorias. Por qu?Porque no tinham resistncia s enfermidades tropicais. J se calculou que, de cada dez europeus que se instalavam na frica entre os sculos XVI e XIX, seis morriam no primeiro ano quando no nos primeiros meses e mais dois faleciam nos anos seguintes, atacados por malria, febre amarela, parasitas intestinais, varola, doena do sono, esquitossomose,verme-da-guin e cegueira dos rios. O que no falta nos relatos dos responsveis por esses entrepostos, e tambm nos dos viajantes e dos capites de navios, so referncias a mortes por diarria e febres. Os que viviam nesses estabelecimentos passavam boa parte do tempo cuidando dos enfermos e enterrando os mortos. Pode-se dizer que o mosquito, responsvel pela transmisso da malria e da febre amarela, foi o grande aliado do africano contra as ambies de conquista europias.6. Famlia: mulheres, crianas e idosos so respeitados e reverenciados pelos povos africanos.Os homens, ento, compravam as suas futuras esposas. No teriam elas, por isso, posio subalterna no casamento?No se entendia que o homem estivesse comprando a noiva. Estava, isso sim, compensando a famlia pela falta que ela faria. Estava indenizando a famlia pela perda. O preo da noiva no , portanto, um costume que desmerea a mulher; ao contrrio, a valoriza. Se o matrimnio malograsse e se seguisse o divrcio, a moa retornava para a sua famlia, que devolvia ao ex-marido os bens que dele recebera, ou parte deles.O que desejo deixar claro que, na frica, a mulher tem um alto valor. E ela no v sua importncia diminuda numa famlia polgama. bem verdade que, nas regies de islamismo de islamismo mais estrito, as mulheres ficam encerradas em casa e s raramente saem rua, cobertas por um vu e na companhia do marido. Em quase todo o resto da frica, porm, guardam uma grande independncia em relao aos homens.Num conjunto habitacional familiar tradicional, h casas diferentes para o marido e cada uma de suas mulheres. Estas so senhoras de suas casas, nas quais o marido entra quase como visitante. Elas podem ter a iniciativa do divrcio e participar da escolha das outras esposas que tome o marido. Geralmente, guardam para si os produtos de suas hortas e os ganhos de seu comrcio e convm no esquecer que as mulheres, sobretudo na frica voltada para o Atlntico, dominam o comrcio a varejo e conservam, separados do patrimnio do marido, os seus bens. Antigamente, entre os iorubas, as mulheres possuam suas prprias escravas, que no se confundiam com as do marido.Se entendi bem, as mulheres podiam ser, em certas sociedades da frica tradicional, muito mais independentes do que as europias, at bem avanado o sculo XX.E talvez tambm, em muitas sociedades africanas, mais poderosas politicamente. Podiam, no s, como na Europa, exercer posies de autoridade rainha, regente, sacerdotisa ou alta funcionria do palcio mas tambm ser um contrapeso forte ao predomnio poltico masculino. No imprio da Lunda, por exemplo, nada se decidia em conselho sem a presena e a aprovao de uma chefa, a luconquexa, que representava as mulheres. E no reino do Daom, cada ministro homem tinha sua equivalente, dentro do palcio, numa esposa do soberano, que o vigiava e lhe controlava as aes.A mulher podia ser tudo isso, mas, como ocorre em todas as sociedades, era, antes de mais nada, me. E a africana me to devotada que, em muitos povos, ao ter uma criana, se afasta temporariamente do marido para se dedicar inteiramente ao filho, at que deixe de amamentar, aos dois ou trs anos de idade. E no era nem incomum que a mulher, aps o parto, ou mesmo antes dele, procurasse para o marido uma nova esposa.Vejo que as crianas gozam, na frica, de uma situao privilegiada.As crianas e os velhos. A velhice venerada. Os que tm cabelos brancos possuem a sabedoria da experincia e esto mais prximos dos deuses. Entre os iorubas, por exemplo, um jovem no fala a um velho sem se ajoelhar, agachar ou curvar-se, sempre com a cabea mais baixa do que a dele. Em alguns povos, pode at ter de deitar-se, de bruos, no cho.7. A frica tem diversidade religiosa.Espere a! A religio tradicional da frica no o culto aos orixs?Quase todos os africanos acreditam num Ente Supremo, que criou e governa o universo. Para aqueles, porm, que no so cristos nem muulmanos, esse Deus est fora do alcance dos homens e no interfere em suas vidas. Quando aflitas, as criaturas humanas recorrem a outras entidades, como os ancestrais e os espritos da natureza, que, no universo invisvel, permanentemente ligado ao mundo dos homens, por estes zelam e deles cuidam.So numerosas as religies tradicionais africanas. Cada povo tem a sua, com seus deuses, crenas e rituais prprios. Em certas reas, sobretudo naquelas onde predominam os grupos sociais sem chefias, comum que cada aldeia possua divindades prprias, e at cada famlia possa ter as suas, que s a ela protegem e s ela venera. Em todas as religies africanas, no entanto, ou em quase todas, tm relevo os ancestrais, entre eles se destacando aqueles que foram reis. O culto do mortos , por isso, generalizado, cabendo aos vivos, com seus sacrifcios, fortalecer o poder dos que os precederam. bastante difundida a crena na reencarnao. E cr-se na possesso, isto , que as divindades e os antepassados divinizados podem vir at os vivos, descendo no corpo dos fiis.Os orixs eram venerados na frica somente pelos iorubas ou nags, um povo que vive no sudoeste da Nigria e no sudeste da atual Repblica do Benim. Como outras religies africanas, a dos orixs era um conjunto de cultos locais, ligados a santurios prprios. Quando o seus fiis foram tirados fora de suas terras e atravessaram o Atlntico, tiveram de se ajustar a uma situao inteiramente nova, na qual os seus deuses viajaram com eles e, inicialmente, s tinham altares em seus coraes.No caso da religio dos orixs, vrios deuses locais j se haviam tornado, no chamado Iorubo, ou terra dos iorubas, deuses nacionais. Xang, por exemplo, um rei ancestral divinizado de Oi, e Ogum, um rei ancestral divinizado da cidade-estado de Ir, j eram venerados por outros iorubas. Mas a religio dos orixs no se expandiu na frica. No conta com adeptos entre sereres, banhuns, ibos, andongos, iacas, angicos, xonas, macuas, zulus ou outros povos africanos, que a desconhecem. E se retraiu no prprio Iorubo, sob o impacto do cristianismo e do islamismo. Foi nas Amricas, a partir sobretudo do Brasil e de Cuba, que ela se tornou uma religio universal, com deuses que no pertencem exclusivamente a um povo, mas a toda a humanidade. No Brasil, a religio dos orixs fez adeptos no s entre originrios de outras naes africanas, mas tambm entre descendentes de guaranis, cariris, pataxs, fulnis, portugueses, espanhis, italianos e muitos outros povos.Sua histria no , assim, diferente da histria do cristianismo e do islamismo, que comearam como religies locais de um punhado de judeus, num caso, e de um grupo de rabes, no outro e se expandiram pelo mundo.Esses avanos do cristianismo e do islamismo devem ter-se dado custa das religies africanas.Assim foi, de fato. Mas as religies africanas resistiram tenazmente e continuam a resistir. E no s ao proselitismo das vrias formas de cristianismo e islamismo, mas tambm ao tratamento discriminatrio e at mesmo s perseguies a que foram submetidas pelas administraes coloniais e, em vrios pases, pelos governos que se seguiram s independncias e que as identificavam como fatores de atraso. Se perderam fora nas grandes cidades, elas continuam, porm, vigorosas nas aldeias. E h aquelas pessoas que, freqentando a igreja, no deixam de fazer sacrifcios nos altares tradicionais. Alm disso, tanto o cristianismo quanto o islamismo apresentam-se muitas vezes africanizados e a conviver tolerantemente com as demais crenas.8. A frica produziu e produz arte, influenciando o resto do mundo.Os escultores africanos faziam tambm peas para o puro prazer esttico. Como uma bela colher, a ter por cabo uma figura feminina. Alm disso, nos grandes reinos, podiam estar a servio do Estado e do soberano e esculpir para a glria destes. Como, porm, os reis eram seres sagrados, encarnaes de deuses ou intermedirios entre as divindades e os homens, difcil, muitas vezes, considerar uma escultura de corte como inteiramente despida de funo religiosa.No caso dos chamados bronzes do Benim, por exemplo, tudo indicaria estarmos diante de uma arte de corte, destinada a celebrar o poder e a grandeza do soberano. As grandes placas que cobriam os pilares das varandas do palcio do ob nos mostram, em alto-relevo e com uma profuso de pormenores, no s o rei em seu esplendor, cercado por nobres e serviais, mas tambm guerreiros em plena batalha ou cenas da vida diria, como um caador a espreitar um passarinho no alto de uma rvore. Boa parte da escultura do Benim, tanto em ligas de cobre quanto em marfim e estas so igualmente belas destinava-se, porm, aos tmulos dos reis mortos.O mundo, porm, s tomou conhecimento da arte do Benim depois que os britnicos, em 1897, conquistaram e pilharam a cidade, e boa parte das esculturas foi parar nos museus europeus.Qual foi a reao dos europeus a essas esculturas?De surpresa com a alta qualidade tcnica da fundio das peas e do trabalho quase em renda da superfcie do metal. Mas poucos, pouqussimos, foram, num primeiro momento, capazes de perceber a extraordinria beleza de suas formas, pois era distinta daquela a que estavam acostumados. J quando, poucos anos depois, eles tomaram conhecimento da escultura de If, a reao foi de assombro, misturada descrena de que uma arte que se assemelhava, em sua pureza de formas, da antiga Grcia pudesse ter sido produzida por povos que eram tidos por primitivos ou brbaros.O prprio Lo Frobenius, o arquelogo alemo que primeiro revelou ao resto do mundo a arte de If, chegou a acreditar que estava diante do que sobrara da lendria Atlntida, ao encontrar, em 1910, no bosque sagrado dedicado ao orix do oceano, Olocum, vrias terracotas e uma cabea em bronze que pareciam ter sado das mos dos gregos da Antiguidade.Mas no foram as esculturas de feies puras e serenas de If, nem as sadas das oficinas do Benim, tampouco as esttuas em madeira de ancestrais feitas pelos hembas do Congo, que no se afastavam do que consideramos realismo isto , da reproduo do que os olhos vem, ainda que a seguir certo padres fixos de beleza , as que viriam a causar um impacto avassalador sobre a arte de nosso tempo. Foram outras. O que deslumbrou alguns jovens artistas europeus, no incio do sculo XX rapazes como Derain, Picasso, Matisse, Braque, Kirchner, Bracusi e Modigliani , foram sobretudo as esculturas de ancestrais e as mscaras de danas rituais daqueles povos africanos sem estados poderosos, de formas to distantes e at contrrias ao que se fazia na Europa. Esses jovens pintores e escultores deslumbraram-se com o que vinha da frica e tomaram como exemplo as suas lies.Foi com admirao e humildade que eles se aproximaram daquelas mscaras de fatura delicadssima feitas pelos dans da Costa do Marfim e da Libria, nas quais as feies se simplificam numa testa abaulada, num nariz fino e ligeiramente arrebitado, num queixo pontudo e numa boca entreaberta, tendo, no lugar dos olhos, dois buracos redondos, se a representao for de homem, e duas fendas estreitas, se de mulher. Foi, porm, com espanto e entusiasmo que eles pararam diante de outras mscaras dans, nas quais a delicadeza era substituda pela brutalidade das formas. Pois aqueles mesmos artistas dans faziam outros tipos de mscaras, que nos parecem ferozes e sadas de pesadelos. Numa delas, por exemplo, o rosto alongado termina, sem queixo, numa boca aberta enorme que, do mesmo modo que a testa abaulada, se projeta para a frente. O nariz quase no se nota, de to pequenino, e, em vez de olhos, temos dois cilindros grossos, ocos e salientes.(Texto adaptado de SILVA, Alberto da Costa e.A frica explicada aos meus filhos. Rio de Janeiro: Agir, 2008.)