A ALMA DO BOI PRETO
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A ALMA DO BOI PRETO
Apesar de muito tempo já ter passado, ainda
lembro com muita clareza que, quando morava na
roça, em uma fazenda no bairro da Cachoeirinha no
município de Cristina, sul de Minas Gerais, apareceu
inesperadamente e inexplicavelmente bem lá no alto
da serra, no finalzinho mesmo da propriedade do Sr.
Joaquim Alves, um pequeno bezerro preto da cor do
carvão, muito feio, mal encarado, diferente de tudo
que se tinha visto até então em matéria de bezerro. E
por isso ele se contrastava com o rebanho da
propriedade de maneira tão óbvia, tão espantosa,
que todos que passavam por ali notavam logo a sua
presença. E chegavam a dar uma paradinha para
observá-lo: de longe é claro. Ele nunca conseguia
agradar ninguém, ficava sempre isolado, olhando
torto para as pessoas, encarando-as de maneira
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intimidatória, e nunca chegava perto do curral. E
quando alguém ameaçava aproximar-se, ele
ameaçava partir pra cima. As únicas pessoas a quem
ele demostrava não ter nenhuma aversão, era o Sr.
Joaquim Alves, que, por alguma razão “quase
inexplicável”, parecia saber que era o dono da
propriedade. E também uma senhora idosa de cor
negra cujo nome era Cula. Mas as pessoas da época,
na sua simplicidade, tinham o costume de tratar as
outras de: Sá Maria, Sá dita, Sá Ana, Seu Zé, Seu
Antônio, e a chamavam de “Sacula” ao invés de
Senhora ou Dona Cula. A Sra. Cula, ou Sacula, era
uma pessoa muito humilde, prestativa, caridosa e
muito querida por todos. Ela era a parteira,
benzedeira, rezadeira, torradora de café, fazedora de
sabão e lavadora de defuntos na região. Sem falar
que era muito religiosa e encarava o sobre natural
com muita naturalidade, tinha muita familiaridade
com o mundo dos mortos e muito respeito pelos
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espíritos com os quais tinha muita intimidade. E isto
dava a ela o direito de falar a respeito de tudo sobre
eles. E ela falava para as pessoas:
Olha gente, este bezerro não é exatamente o que
parece ser. E vocês, ao invés de odiá-lo, respeitem-no
e fiquem longe, ignore-o e tenham pena. Ele é com
certeza a alma de alguém que sofreu muito nesta
região, possivelmente um negro ou até mesmo um
branco que tenha sido muito humilhado, maltratado
e privado dos mínimos prazeres da vida, e agora
voltou, não para se vingar ou fizer mal a alguém,
desde que não mexam com ele. Ele só quer fazer o
que nunca pôde fazer antes: ter liberdade, andar de
cabeça erguida sem medo e sem dar satisfações a
ninguém. Portanto é um animal comum que está
sendo usado por uma infeliz alma penada. E mesmo
que ele morra, esta alma vai permanecer por aí por
muito tempo.” É claro que ela não usou exatamente
estes termos, pois era uma senhora muito simples,
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possivelmente descendente direto de escravos,
provavelmente analfabeta, dada as suas condições e
as dificuldades da época. Mas, no seu linguajar
simples, era bastante enfática e convincente e por
isso todos a ouviam, acreditavam e respeitavam, pois
era muito experiente, sábia e verdadeira. Dessa
forma então, o bezerro permanecia inabalável e
intocável. E, apesar do seu pequeno porte, todos o
temiam e preferiam manter-se afastados e bem
longe para não correr risco. O Sr. Joaquim Alves
sempre o observou com reserva e esperou que
alguém o reclamasse e o levasse embora para alivio
de todos, mas isso nunca aconteceu. Apesar do
esforço do Sr. Joaquim em conversar com todos os
fazendeiros vizinhos pra saber se o tal animalzinho
pertencia a algum deles, só ouvia:
— Não! Não é meu! Nunca vi.
A impressão que dava, era que, mesmo que
fosse de algum deles, eles não admitiam ou não o
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queriam. O bezerro era realmente um rejeitado. Todo
rebanho o ignorava. Nenhuma vaca ou bezerro se
juntava a ele. Mas ele também não se interessava e
reinava absoluto e acompanhava à distância o
rebanho, sempre de cabeça erguida, majestoso e
observava tudo.
Mesmo quando estava de cabeça baixa,
pastando, ele não baixava nem fechava os olhos: ele
baixava a cabeça, com os olhos virados para cima e
para os lados o tempo todo. Era desconfiado ao
estremo.
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E dessa forma ele foi crescendo e crescendo
sem nunca mudar suas características físicas, sua cara
feia e sem fazer amizade com ninguém. Certo dia,
porém, quando já havia se transformado em um
novilho, para surpresa de todos, ele simplesmente
desapareceu como num passe de mágica, deixando
todo mundo intrigado, perplexo, e perguntando:
— Onde ele está? Como Pode sumir assim?
— Credo gente, este animal só pode ser
mesmo coisa do outro mundo, ele é estranho demais.
E isso aumentava ainda mais o medo nas pessoas que
não entravam em suas casas sem antes alguém fazer
uma vistoria geral. E na tentativa de descobrir alguma
pista, o Sr. Joaquim Alves reuniu todos os campeiros
da vizinhança e começaram a percorrer as cercas da
propriedade e tentar descobrir por onde ele havia
saído. E esta foi, então, mais uma grande e
desagradável surpresa para todos: não havia um só
fio de arame rompido em toda extensão das cercas
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da propriedade, que indicasse a sua fuga por ali. E
alguém comentou enfaticamente:
— Bem, sair do pasto ele não pode ter saído!
Nenhum animal consegue sair sem deixar vestígio.
Sou campeiro a minha vida toda e nunca vi isto.
Vamos revirar cada canto, cada grota, cada caverna,
cada casa velha abandonada e esmiuçar a mata de
ponta a ponta. Ele tem que estar por aí. Só se ele for
invisível. E assim foi feito. Porém, depois de seguirem
todos os procedimentos de busca, constatou-se
enfim, para a desagradável surpresa de todos, que
realmente o animal havia evaporado deixando todo
mundo encafifado e sem entender nada. Nisso, muito
assustado, um campeiro mais jovem comentou:
— Olha gente, quando estava lá dentro da
mata, senti um arrepio, e mesmo não vendo nada de
lado algum, tive a impressão que ele me observava.
Fiquei de cabelos em pé, e saí depressa da mata.
— Credo gente! Que horror!...Que coisa mais
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estranha!
— Éh, Eu é que não entro mais sozinho
naquela mata nem que me paguem.
E assim o tempo passou! Mas ninguém
conseguiu esquecer aquele animal. Aquela expressão
horripilante ainda estava viva na memória de todos.
Depois de muito tempo porém, quando as pessoas já
pareciam ter conseguido esquecer, eis que numa
noite de grande escuridão e profundo silêncio,
quando todos pareciam dormir o sono dos justos, um
mugido forte, mais tão forte que se podia ouvir a
quilômetros de distância, quebrou o silêncio ecoando
por todo vale, entrando nos ouvidos, chegando até a
alma das pessoas que estremeceram e ficaram sem
entender nada, nem ter como saber o que estava
acontecendo porque ninguém ousava abrir a porta e
nem mesmo um pouquinho da janela.
As crianças levantaram correndo de suas
camas e foram para a cama dos pais em busca de
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segurança. E ali ficaram todos juntinhos um do outro
e não mais conseguiam dormir, e, se dormiam, o
sono era intermitente, agitado, e só torciam para que
o dia amanhecesse logo pondo fim naquela noite
tenebrosa que jamais seria esquecida. Algum tempo
depois, após tanta agonia, medo, e curiosidade,
finalmente o alívio: os galos começaram a cantar, e
alguns passarinhos a gorjear. Era começo de inverno,
a manhã estava fria, a brisa soprava suavemente, e
no horizonte já se dava sinal de despontar os
primeiros raios de sol ainda verticais e pouco
perpendiculares. Do chão, dissipava uma leve neblina
como se fosse um delicado e quase imperceptível
cândido véu.
A relva verde amarelada, característica típica
da época, exibia o prateado e gelado rocio da noite.
Entre o curral e as casas, corria um belo riacho com
suas águas cristalinas que murmurante desciam da
serra, serpenteando por entre as pedras formando
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lindas e longas cascatas que se pareciam véus de
noivas, e se arrastavam até chegar à planície
desembocando no rio que, da mesma forma,
serpenteava ao longo de sua extensão onde se podia
ver a suave neblina que dele evaporava subindo
lentamente para o espaço num movimento quase
imperceptível. Era uma paisagem dígna de uma cena
de romance se não houvesse nela um contraste tão
obvio e tão negativo para desviar a atenção das
pessoas que, assim que perceberem que o dia já
estava amanhecendo, pularam quase que
simultaneamente de suas camas, ansiosas e curiosas
para ver e saber o que havia ocorrido durante a noite
e que causou-lhes tamanho susto. Pena que, de tão
assustadas que ainda estavam, não conseguiam
prestar atenção em tanta beleza. Ao depararem com
o lado negativo do lindo cenário, ficaram
boquiabertos e mais assustados ainda. Pois ali, em
pleno cenário, como se fosse o ator protagonista da
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cena de terror, estava o boi preto em pé, encima do
barranco, sozinho, isolado do rebanho, como sempre,
todo majestoso como se fosse o dono daquele
império, olhando para o rebanho lá embaixo próximo
do curral e para as pessoas que o olhavam com muito
espanto.
Foi aí que as pessoas entenderam que aquele
aterrador mugido que ecoou por todo vale no meio
da noite, assustando e despertando todo mundo, era
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para anunciar a sua triunfante volta, sua chegada, e
ninguém ousaria enfrentá-lo. A sua expressão era
ainda muito mais assustadora que antes porque
agora ele não era mais um bezerrinho. E com o seu
súbito e inexplicável reaparecimento, mais uma vez
todos percorreram as cercas da propriedade e
constataram que da mesma forma que ele
desapareceu, ele apareceu: do nada, sem romper um
só fio de arame.
Ele se transformou em um boi preto (é
logico) bastante grande e ainda mais feio que antes:
era o cão quando está com o cão. Sua expressão era
tão assustadora que causava medo em todo mundo.
Diante do seu gigantismo e da
sua postura, o rebanho de gado ficava parecendo um
rebanho de cabras. Normalmente nos pastos onde
ele estava, as pessoas passavam por longe e bem
depressa, principalmente as crianças que tinham
pavor quando ele ficava olhando direto para elas.
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Ainda me lembro, como se fosse ontem, de que só a
expressão desse animal já era mais que suficiente
para provocar arrepios e gelar o sangue de qualquer
um. Infelizmente, somente o proprietário da fazenda,
o Sr. Joaquim Alves, e seu filho Lourenço, tinham o
poder de decidir sobre o destino do tal animal de
forma viável e decente. Então Lourenço apresentou
ao pai uma ideia que para ele parecia viável, dizendo:
— Papai, porque não procuramos uma
pessoa que tenha bastante experiência e coragem o
suficiente para tentar domesticá-lo? Ele é grande e
forte. Se domado e domesticado poderá ser muito
util. Nisso, o pai olhou para ele, sorriu e acatou a
idéia:
— Sabe que você pode ter razão? Já sei de
alguém que é exatamente como você falou: lida com
bois desde criança, é experiente, tranquilo e ara
terras para todos os agricultores da região.
— Ah, já sei até quem é!... É o Sr. Joãozinho
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Mira não é?
— Exatamente! Acertou na mosca. Dê uma
corrida até a fazenda dele e traga-o aqui, quero
conversar com ele. Algum tempo depois, Joãozinho
Mira chegou. Cumprimentaram-se alegremente
como eram sempre e foram ao que realmente
interessava: o boi. Após conversarem bastante sobre
o que poderia ou não ser feito, Joãozinho Mira, para
fazer um teste preliminar, tentou dissimuladamente
aproximar-se do animal para vê-lo mais de perto e
sentir sua reação, mas foi em vão. Aos primeiros
passos que deu, o boi levantou ainda mais a cabeça
exibindo seus longos chifres, encarou-o de maneira
intimidatória, jogou o rabo nas costas e ameaçou
partir pra cima.
Não foi preciso! Joãozinho Mira era
experiente demais e entendeu logo a mensagem
retirando-se rapidamente dali, e depois argumentou:
— É, meu amigo Joaquim, o senhor sabe
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muito bem que eu lido com bois desde criança, e já
peguei animais bem difíceis de lidar, mas não me
atreveria a lidar com este. Não por medo. É porque
ele não é apenas grande e bravo, ele é tinhoso,
valente, misterioso, independente e o que é pior: tem
instinto assassino. Portanto, o melhor a fazer é
ficarmos longe dele e sempre precavidos como
estamos fazendo agora. Se eu tentar domá-lo, ele vai
me dar muito trabalho, vai estragar minha boiada,
pode machucar ou até matar alguém. E assim sendo,
o melhor a fazer é livrar-se dele. Porque o senhor não
o vende para o matadouro?
— Não! Não posso! Primeiro porque ele não
me pertence, apareceu em minha propriedade como
todo mundo sabe. E eu espero que alguém ainda
venha reclamar sua posse. E o que é pior: se ele for
para o matadouro, do jeito que ele é ruim, é bem
capaz das panelas explodirem quando tiver
cozinhando sua carne, hahahaha!
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E, com este comentário, todos gargalharam,
quebrando um pouquinho aquele clima tenso, e
porque não dizer... tenebroso? E depois se
despediram sem chegar a nenhum acordo. Mas para
o Sr. Joaquim, a conversa com o amigo Joãozinho
Mira foi bastante esclarecedora e proveitosa. E assim
o tempo foi passando sem que ninguém aparecesse
para reclamar a posse do animal. O povo cada dia
mais com medo e até sem liberdade para andar
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livremente por ali, e o Sr. Joaquim sem conseguir
nenhuma solução para o caso em si. E assim os dias
foram passando e passando, até que num belo dia,
porém, para a agradável surpresa de todos,
aconteceu o que ninguém poderia imaginar: não se
sabe ao certo se o animal foi picado por alguma
cobra venenosa (o que era muito comum na região)
ou talvez tenha comido a tal erva de rato, ou o feijão
bravo (vegetais muito venenosos dos quais nenhum
animal escapa com vida após ingeri-los). Ele
amanheceu estirado no chão, morto, muito estufado
quase duplicando o seu tamanho, os olhos bem
arregalados e uma expressão bastante macabra. Ele
morreu ali, bem próximo do curral, que também
ficava bem próximo da sede da fazenda e das demais
casas.
E assim, diante de tantas dúvidas, foi preciso
alguém se aproximar e ficar cutucando-o com uma
vara bem comprida sem chegar perto. E depois
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confirmou:
— Podem ficar tranquilos, ele está realmente
morto!
— Pois é! Como disse a Sacula, ele pode até
morrer, mas, o espírito dele vai continuar por aí.
— Então é bom a gente não facilitar, não é?
— É! Eu também acho!
E só depois de verificar com segurança e se
constatar que o animal estava realmente morto, o
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que seria um alívio para as crianças, (e também para
os adultos), as pessoas muito ressabiadas arriscaram
o que antes nunca foi possível: dar uma olhadinha
um pouco mais de perto. Outros preferiam continuar
olhando de longe. Alguns trepados nas cercas de
tábuas do curral, outros encima dos barrancos
próximos, outros trepados nas árvores em volta.
E assim todos, cada um do seu jeito, pôde fazer o que
antes era impossível. Só que agora aquele animal não
podia continuar ali, tinha que ser removido o mais
depressa possível para que as pessoas ficassem livres
daquele pesadelo. E para removê-lo, o Sr. Joaquim
Alves precisou da intervenção do amigo Joãozinho
Mira que prontamente atrelou um conjunto de
quatro juntas de bois, ou seja: oito bois bem fortes
acostumados a puxar arados e tirar carros dos
atoleiros, e deixou a disposição do amigo que
juntamente com seu inseparável filho Lourenço e
mais alguns companheiros, o levou arrastado para ser
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enterrado numa cova bem funda (como se isso
bastasse para desaparecer com ele) lá no bairro da
Mutuca.
Antes de enterrar o animal, Lourenço sugeriu
ao pai:
— Papai, este animal é bastante grande,
porque não tirarmos o couro dele? Vai dar para
cobrir cangalhas, fazer vários laços, cabrestos, buçais
e muitas outras coisas que nos seriam muito úteis, o
senhor não acha?
— Não! Melhor não! Do jeito que este boi já
nos surpreendeu e nos assustou a todos com suas
súbitas aparições e desaparições, eu não duvido nada
que mesmo depois de morto e enterrado bem fundo
ele ainda nos surpreenda mais uma vez aparecendo
vivo por aí! Vamos enterrá-lo inteiro, não quero que
fique nada dele para nos lembrar, exceto o que já
está na nossa mente, o que é impossível esquecer.
— Credo papai, assim o senhor está me
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assustando!
— Não! Estou apenas querendo ser realista. E
vamos logo enterra-lo e acabar com isso.
— Está bem papai! O Sr. Está certo! Vamos lá
gente, toquem a boiada.
E assim, com ele morto e enterrado numa
cova bem funda, as pessoas já podiam sentir-se
aliviadas. E mesmo assim não levou muito tempo
para que dele começasse a exalar o fortíssimo e
desagradável mau cheiro que impregnava o ar de tal
forma que chegava a arder às narinas das pessoas, e
com isso atraindo grande quantidade de urubus que
o desenterraram e começaram a se banquetearem,
demonstrando assim grande satisfação dando seus
vôos em círculos, mergulhando na corrente de ar
como se fossem jatos em acrobacias aéreas, e às
vezes planando e pairando por longos tempos.
Nunca se havia visto na região aparecer
tantos urubus e com tanta rapidez. Parecia que os
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urubus do mundo todo estavam ali para a festa, a
convite do próprio defunto (o boi). De longe as
crianças observavam aquele movimento de vai e vem
da imensa quantidade daquelas aves pretas e
comentavam entre si:
— Nossa! Os urubus estão comendo o boi
preto. Eles não têm medo né? Será que o boi tem
alma mesmo?
— Não sei não! Mas... deve ter sim!
— É, deve ter sim! E deve ser muito feia.
— Será que ela já foi embora pro outro
mundo? Ou ainda está por aqui?
— Credo, eu já tô é morrendo de medo só de
pensar.
— Ué, você é homem ou não é?
— Sou! Claro que sou! Mas não sou fanático
e sinto medo, você também não sente?
— Ah, desculpe, foi só uma brincadeira! Eu
também tô morrendo de medo!
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— Olha! Vocês já perceberam que o céu tá
ficando nuviado e muito escuro?
— Sim, tô! Mas não é nuviado que se fala, é
nublado.
— Ah, não importa se está nuviado ou
nublado, mas que tá ficando feio tá! E eu é que não
vou ficar nem mais um minuto aqui!
— Aaaaaaah! Vamos ficar só mais um minuto,
quem sabe se a gente ainda consegue até ver a alma
do boi subindo pro espaço!
— É, mas a gente não sabe se ela vai subir ou
descer não é?
— É! Nisso aí você tá certo! Mas vamos
esperar mais um pouquinho pra ver!
— Ver? Com toda aquela nuvem negra? Só se
a alma dele fosse branca, o que eu duvido muito!
— Hummm, tá um fedor aqui, não tá?
— Não fui eu, eu juro!
— Ah, não estou falando disso. Estou me
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referindo ao mau cheiro no ar!
— Hummm! É verdade, tá mesmo!
— Do que será que ele morreu, hein?
— Ah, vai ver que estava com a doença da
vaca louca.
— Uái, mas isso não pode ser! Ele é boi.
— É, mas a doença da vaca louca dá em boi
também! Não dá?
— Ah... Não sei! E vocês estão falando
bobagens demais, vamos ficar quietos um pouco e
ficar observando se a alma do boi vai subir ou não.
— Gente, ela não vai subir e nem descer!
— Ué, como é que você sabe disso?
— Uái, eu sei porque escutei a Sacula falando
que mesmo que ele morra, a alma dele vai continuar
por aí.
— Credo gente! Que arrepio que eu senti! Eu
não sabia disso.
— E nem eu! Vai ver até que ele está por aí
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bem pertinho observando a gente!
— Credo! Não quero nem pensar nisso!
E com isso, enquanto eles confabulavam a
respeito da existência ou não da alma do boi, uma
vaca recém-parida deu um longo, forte e rouco
mugido em um grande arbusto bem atrás deles, o
que foi mais que suficiente para que ficassem
arrepiados, de cabelos em pé e pernas bambas. E
saíram todos em disparada, tropeçando, caindo,
atropelando e acotovelando um ao outro até
entrarem em suas casas buscando abrigo e segurança
ao lado dos pais. E os pais ao perceberem que
estavam ofegantes e pálidos, procuraram logo
acalmá-los e até mesmo dar a eles um chazinho de
hortelã, erva cidreira e outros inofensivos, porém,
eficazes calmantes. Mas passaram a partir daí, a
pregarem a real existência da alma do boi preto para
chantageá-los e assim controlá-los em suas constates
e quase incombatíveis reinações. Seus argumentos
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eram:
— Cuidado! Vocês têm mania de ir sozinho
brincar lá naquele barranco que, além de ser muito
perigoso e vocês se machucarem, a alma do boi preto
pode aparecer a qualquer momento porque ele
costumava ficar muito lá. E do jeito que ele era ruim,
garanto pra vocês que ele vai permanecer por ai por
muito tempo, e nos mesmos lugares que costumava
ficar.
Ao ouvir esses argumentos dos pais, as
crianças paravam, refletiam, analisavam, olhavam um
para o outro como quem diz:
— É! ...acho que eles têm razão!
E assim as crianças, receosas, evitavam ir
sozinhas na cachoeira, na lagoa, e enfim, vários
lugares onde causava muita preocupação aos zelosos
pais. E a partir dai então, de tanto os pais pregarem a
real existência da alma do boi preto para as crianças,
as crianças também passaram a pregar a mesma
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coisa para todos que por ali passavam ou apareciam.
Dessa forma a estória começou a ganhar uma
repercussão tão grande, que hoje a lenda ou ficção
ficou tão impregnada na cabeça das pessoas que, na
região, todos já admitem e pregam com veemência a
real existência desse “espectro”.
Hoje, muitos adultos confirmam
veementemente ter visto algo muito estranho
rondando as cercas dos pastos e observando as
pessoas que passam:
— É realmente um animal muito grande que
vai de pasto em pasto atravessando todas as cercas
como se elas não existissem e sem deixar rasto!
De fato! Quando o Sr. Joaquim falou que o
boi aparecia e desaparecia, e podia continuar
surpreendendo todo mundo até mesmo depois de
morto! Ele tinha razão. E o que a Sacula falou,
também se confirmou. Algum tempo depois ele foi
com um grupo de companheiros, equipados com
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ferramentas para aterrar o imenso buraco onde o boi
foi enterrado, para evitar que algum animal caísse
dentro dele. Ao chegarem ficaram muito surpresos e
assustados com o que viram (ou não que viram): os
restos mortais daquele grande animal haviam
desaparecido totalmente. Não havia um só osso no
interior do buraco e nem nas imediações, e nem um
sinal que indicasse que algum animal os tivesse
tirados dali. Um dos homens olhou bem destro
daquele grande buraco vazio, arregalou os olhos, se
benzeu, balançou a cabeça e:
— É!... Que coisa mais coisada hein?
— É! É verdade! Eu nunca vi uma coisa tão
coisada assim!
Então o Sr. Joaquim comentou com os
companheiros:
— Em se tratando desse animal, nada mais
me surpreende! Nem mesmo se ele aparecer vivo,
intacto na minha frente.
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Então uma das pessoas que com ele ali estava
balbuciou para os companheiros:
— Cruz credo! Eu é que não vou ficar nem
mais um minuto aqui!
E os outros compartilharam:
— Nem eu!
— E nem eu!
E assim um após outro, jogaram as
ferramentas nas costas e saíram às pressas.
O Sr. Joaquim, muito tranquilo sorriu:
— Fazer o que, não é?... Jogou a ferramenta
nas costas e se foi também.
Portanto, meu amigo leitor, se um dia por
acaso você passar ali pelo bairro da Cachoeirinha, até
a Vargem Alegre, Barra Grande, bairro da Pedra
(Pedra Branca), mais precisamente ali pela “Ponte
Preta”, no cruzamento para quem vai para a cidade
de Olímpio Noronha, doze quilômetros à frente,
preste bem atenção e não se surpreenda. Esta
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encruzilhada já é um lugar por si só tenebroso e com
um aspecto realmente assustador: sempre sombrio,
úmido, silencioso, com matas em suas margens,
barranco dos dois lados, uma santa cruz muito antiga
(apesar de estar sempre bem cuidada), encima do
barranco na beira da estrada. Essa ponte sempre foi
muito famosa e considerada como um reduto de
espectros, onde sempre foi visto a noite, caminhões
leiteiros andando sozinho atravessando-a (sem
condutor) e batendo os latões de leite, fazendo muito
barulho e desaparecendo logo na saída.
E muitos cavaleiros experientes, domadores e
peões, já tiveram que descer de suas montarias e
puxá-los, porque eles refugavam, recusando-se a
atravessar a ponte, deixando claro que estavam
vendo algo realmente muito assustador que seus
donos não conseguiam ver. E com isso, esses tais
“marmanjões corajosos”, até voltavam para casa e
deixavam para atravessá-la no outro dia, durante o
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dia é claro!
Cortejos fúnebres, em plena meia noite, com
todos os seguidores vestidos de preto, que
apareciam, atravessavam a ponte e desapareciam do
outro lado, também foram vistos muitas e muitas
vezes, deixando as pessoas perplexas e até sem
forças para gritar ou sair do lugar. Certa vez um grupo
de pessoas do bairro das Furnas (pouco pra cima do
Sertãozinho) foi até a Barra Grande visitar um amigo
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muito querido que se encontrava muito doente. E lá
estando, aproveitaram o máximo possível do tempo
para ficar com o amigo.
Quando tomaram a iniciativa de retornarem
para casa já era um tanto tarde da noite. Como o
grupo era formado por várias pessoas, todos amigos,
o longo trajeto para casa acabaria sendo muito
divertido, com falatórios e risadas, se não fosse pelo
desagradável imprevisto ocorrido. Nesse trajeto eles
tinham que obrigatoriamente passar pelo
cruzamento da Ponte Preta, a uma distância de
aproximadamente cinquenta metros dela. A certa
distância desse ponto, eles já viram que algo estava
errado, muito errado. Havia um grande clarão bem
na cabeceira da ponte, mas eles tinham que passar
por ali, era o único caminho. Então ficaram em
silêncio absoluto, assustados, cabelos em pé, bem
pertinho um do outro e seguiram em frente.
Ao passarem lentamente pelo cruzamento
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puderam ver a cena macabra que ali estava
ocorrendo: bem na cabeceira da ponte, do outro
lado, uma imensa fogueira e, bem no meio dela, um
mastro em pé e nele uma mulher amarrada. Ela, em
plenas chamas, dava gargalhadas que chegava a gelar
o sangue das pessoas. Em volta da fogueira um grupo
de pessoas dançava e girava. E quanto mais eles
giravam e dançam, mais a fogueira aumentava. E
quanto mais a fogueira aumentava, mais a mulher
dava gargalhadas; as chamas pareciam aumentar o
seu prazer, ela se deliciava. As pessoas que dançavam
e giravam freneticamente em volta da fogueira
pareciam não ter rosto. Era apenas o forte reflexo das
chamas dando a impressão que seus rostos eram
incandescentes.
Ao verem aquele ritual macabro, aquela
tenebrosa cena, as pessoas muito assustadas, porém
muito controladas, mas com muito medo de serem
vistas por eles, pararam, e para observar melhor o
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que estava acontecendo sem serem vistos,
ocultaram-se atrás de um grande arbusto que os
ocultava sem impedir que pudessem ver claramente
a cena. E com isso puderam assistir com muito
espanto todo o desenrolar daquele inexplicável e
violento ritual. Enquanto observavam perceberam
que o ritual parou abruptamente e os dançarinos se
viraram num perfeito sincronismo como se tivessem
recebido telepaticamente uma mensagem ou ordem
do além e olharam simultaneamente num mesmo
ponto onde nesse exato momento surgiu na curva da
estrada, saindo de dentro da mata, um grupo de
cavaleiros todos montados em garndes mulas, todos
vestidos de preto, usando chapéus e muitas
correntes reluzentes no pescoço. O primeiro deles
que parecia ser o chefe, era um homem bastante
grande e se trajava igual aos demais, porém com
mais correntes no pescoço, pulseiras e muitos anéis.
Sua mula era bastante grande e preta assim como as
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dos companheiros, o arreamento todo trabalhado em
prata, inclusive o peitoral com muitas argolas
reluzentes e de tamanhos variados. Na ponta do
peitoral, pendurada, havia uma caveira. Não dava
para distinguir se era humana ou de um pequeno
animal, Mas, de qualquer forma, era muito estranha
porque tinha pequenos chifres. E no lugar dos olhos
havia dois grandes diamantes vermelhos muito
reluzentes. Na parte de cima havia esse par de
pequenos chifres como se o crânio fosse de uma
pequena cabra ou bode. A parte inferior era bem
semelhante a de um ser humano, inclusive a boca;
não era um focinho. Os dentes eram todos intactos,
perfeitos e todos de ouro. De acordo com o
movimento que a grande mula do chefe fazia,
sapateando o tempo todo, muito agitada e virando
pra lá e pra cá, dava a impressão que a caveira estava
olhando, vendo e zombando de tudo.
A caveira parecia ter vida própria,
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movimentando-se no peito daquele grande animal...
Do Chefe! Enfim, era uma espécie de mascote do
mal, bobo da corte, puxa saco! Ao aproximar-se da
grande fogueira, foram reverenciados por todos, que
se inclinavam sincronizadamente num sinal de
respeito e submissão, menos a mulher que estava
amarrada e que levantou mais ainda a cabeça num
gesto de desafio, rebeldia, autoconfiança e deu uma
gargalhada ainda muito mais forte como que
quisesse afrontar ou demonstrar desprezo pelo
grande poderoso. Parecia que ela queria dizer: você
não pode comigo. Nisso, o grande cavaleiro
mostrando seu poder e sua superioridade, levantou
mais ainda a cabeça e pronunciou, com sua voz
bastante grave e forte, uma palavra que somente
eles podiam entender. Sua voz era de gelar o sangue
de qualquer corajoso. A mulher não esboçou
nenhuma reação, não demonstrou medo, mas calou-
se na mesma hora como se alguém a tivesse
38
desligado a tomada. Quando ele abria a boca, parecia
que liberava, irradiava intensos e brilhantes raios. E à
medida que movimentava a cabeça e a boca, os raios
alternavam mudando de posição e de intensidade.
Isso acontecia porque seus dentes eram todos de
ouro e neles refletiam a intensa chama da fogueira,
assim como refletiam também na prataria dos
arreamentos das mulas, nas correntes que tinham no
pescoço, nas esporas dos cavaleiros e também nas
ferraduras das mulas. Era tudo um espetáculo digno
de admiração e muito aplauso se não fosse um caso
tão sério, tão macabro, tão fantasmagórico e tão
assustador. Enfim, se fosse uma encenação teatral.
Após proferir algumas poucas palavras com
sua voz grave e forte, o grande cavaleiro levantou um
dos braços, dando um sinal que foi logo entendido e
obedecido pelo cavaleiro que estava atrás de todos e
que veio imediatamente até ele e entregou-lhe uma
ave muito grande, bem parecida com uma águia, um
39
condor ou coisa assim. Porém, com a diferença de ser
bem maior. O chefe, então, de posse do animal,
levantou-o com seu braço forte e proferiu o que seria
uma ordem. Ao comando da voz, a grande ave
ergueu-se, abriu seu grande bico que mais parecia as
mandíbulas de uma serpente, onde havia duas
carreiras de dentes bem assimétricas e enormes
presas pontiagudas. Em seguida, esticou o pescoço
para frente, soltou um grito ensurdecedor e
mergulhou na fogueira. Ao sair do outro lado, ele saiu
com suas grandes asas abertas, intactas e em chamas
como se fosse um pássaro de fogo. E, seguido pelos
olhares atentos de todos, ele subiu em chamas. Ao
atingir certa altura, ela simplesmente fez: ploc! Como
se fosse uma grande bola de sabão que se desfez no
ar. Exatamente no momento em que a bolha se
desfez, a mulher também se calou e pendurou a
cabeça como que desfalecida, vencida finalmente. Foi
como se o grande pássaro, ao passar pela fogueira,
40
tivesse levado com ele toda energia, poder, força e
superioridade que ela tinha, deixando-a agora
totalmente fragilizada e vulnerável. Até então todo o
ritual não a abalava, não a atingia, e ela parecia se
divertir com tudo aquilo. Era poder demais e
autoconfiança. Porém o grande cavaleiro não se
abalou, não teve dificuldades e mostrou que seu
poder era muito superior. Depois de mostrar sua
força, poder e superioridade, ele simplesmente
colocou a ponta dos dedos na aba do chapéu,
inclinou levemente a cabeça para frente como que
dizendo: missão cumprida! Não tenho mais nada a
fazer aqui! E dessa forma ele despediu-se dos seus
leais súditos que o reverenciou novamente. Enquanto
era reverenciado, ele simplesmente virou a mula nos
pés e, seguido pelos companheiros, desapareceu na
curva da estrada da mesma forma que apareceu.
Felizmente, naquela noite, naquele horário, não
havia nenhum transeunte; ninguém estava indo ou
41
vindo de Olímpio Noronha, e assim sendo, ninguém
precisou atravessar aquela temida ponte naquele
momento tão inoportuno.
Assim que os cavaleiros desapareceram, o
ritual recomeçou. Agora, porém, eles dançavam e
giravam mais rápido. E a fogueira ganhou muito mais
intensidade e força e já envolvia totalmente o corpo
da mulher. Do outro lado da ponte, na total
escuridão, o grupo de pessoas viu tudo, quase com
detalhes, favorecido pela grande claridade da
fogueira que lhes proporcionava o privilégio de ver
sem serem vistos. Houve um momento que quase
entraram em pânico e tiveram que tampar a boca
para conter o súbito grito de susto quando, num
movimento em que os olhos da caveira atingiram o
seu brilho máximo e chegou a ultrapassar a ponte
como se fossem duas lanternas vermelhas
procurando alguma coisa, quase chegando até eles.
Depois de presenciar quase todo o ritual macabro e
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levar esse grande susto, o grupo de amigos não quis
ver mais nada, se benzeram novamente e saíram
furtivos, silenciosos e rapidamente de traz do
arbusto, temerosos de serem vistos. E juntinhos um
do outro, apertaram o passo para chegarem o mais
logo possível em casa.
No resto do trajeto não houve mais falatórios
nem risadas. O que quebrava o silêncio era o barulho
dos seus passos rápidos, onde ninguém queria ficar
para trás. No dia seguinte, após todos os vizinhos
ficarem sabendo do ocorrido, relatados pelas
testemunhas oculares, foram até o local na certeza
de que encontrariam lá um corpo totalmente
carbonizado, o que seria um caso de polícia, é claro.
Mas, para surpresa e espanto de todos não havia ali
um só fio de grama queimada. Não havia o menor
resíduo de cinzas, e nem um carvãozinho sequer,
tudo estava na mais perfeita ordem.
Por todos estes fatos ocorridos e
43
presenciados pelas pessoas da região, elas ficam
assustadas, é claro, mas não se deixam abater nunca.
E já passaram a considerar a presença desses
espectros como normal, corriqueiros.
Já sabem que ali é um reduto de fantasmas,
que assustam, mas não fazem mal a ninguém, exceto
aos animais que não entendem a coisa por este lado
e sempre se recusam a atravessar a ponte,
principalmente à noite.
Um dos fatos mais intrigantes e horripilantes
ocorrido ali foi relatado muitas vezes pelo Sr. José
Cristiano, antigo e querido morador do bairro
Sertãozinho, bem lá no alto da serra, depois da
Vargem Alegre, que não fica longe dessa tão
conhecida e assustadora ponte. Segundo o Sr. José
Cristiano, que pelo menos uma vez de cada quinze
dias conduzia sua tropa em direção à cidade de
Cristina para escoar (vender) sua grande produção de
bananas e rapaduras, produtos de altíssima
44
qualidade produzidos em sua propriedade e muito
aceito pelas pessoas da região. Ele relata que uma
vez, para auxiliar um agricultor vizinho e muito amigo
que precisava beneficiar sua produção de arroz, ele
foi com sua tropa de burros e mulas composta de
quinze animais, até a cidade de Olímpio Noronha,
cujo trajeto obrigatoriamente é feito por essa ponte.
Segundo ele e seus filhos, nesse dia eles voltavam já
bastante tarde da noite. A lua estava bastante clara.
Podia-se ver a estrada ao longo de sua extensão.
Tudo transcorria na maior tranquilidade, com os
animais experientes que seguiam em fila indiana na
mais perfeita ordem sem que fosse preciso ficar
chamando-lhes atenção. Os tropeiros, bastante
cansados por terem se levantado de madrugada,
muito raramente trocavam algumas palavras.
Cavalgavam em silêncio ouvindo o tropel dos
animais, o ranger dos jacás, das cangalhas, das celas,
e de vez em quando o gemido de cansaço de uma das
45
mulas. Ou o súbito e assustador grito de uma coruja
que aparecia inadvertidamente, fazia vôos rasantes
sobre eles fazendo alguns dos cavalos passarinhar. E
tudo que queriam era chegar logo em casa, livrar-se
das cargas, matar a fome que era grande e descansar.
O Sr. José Cristiano, homem de uma energia quase
inesgotável, tinha o habito de caminhar a pé na
frente. Era o prazer dele, enquanto que seus filhos
acompanhavam a tropa. Ao chegar à ponte, porém,
ele atravessou normalmente esperando que a tropa o
seguisse como de costume. Mas, para sua surpresa,
quando olhou para traz, viu que os animais se
recusavam a entrar nela, e seus filhos forçavam-os,
não batendo, apenas gritando e estalando seus
chicotes. Mas eles ficavam virando em círculo
tentando voltar. E quanto mais eles faziam voltas,
parecia que aumentava o número de animais. A tropa
parecia duplicar ou triplicar, era assustador demais.
Os burros davam urros, Enquanto ficavam dando
46
voltas encostando-se um no outro tentando se
proteger, chegando ao ponto de ninguém conseguir
mais vê-los porque onde estavam formou-se uma
escuridão total como se uma nuvem negra pairasse
sobre eles. Eles iam girando, girando como se
estivessem dentro de um grande redemoinho. Os
gritos dos tropeiros, cada um no seu tom, o
simultâneo estalar dos chicotes e os apavorantes
urros dos animais podia se ouvir ao longe. E parecia
excitar e divertir mais ainda os fantasmas. Depois de
algum tempo naquela luta ferrenha entre tropa,
tropeiros e espectros, os animais vendo finalmente
que não tinham mesmo saídas, resolveram entrar e
atravessar a ponte, um após outro dando um grande
salto como se estivessem saltando sobre alguma
coisa e saíram a grande galope dando a entender que
tinham finalmente se livrado de algo muito
assustador e só queriam mesmo sumir dali para bem
longe.
47
O desespero era tão grande que até
esqueceram que estavam transportando cargas
pesadas em suas costas. E naquela disparada sem
trégua, só foram parar no terreiro da casa onde
sabiam que estavam em segurança. A família dos
tropeiros que aguardavam ansiosamente pela
chegada deles ficou muito assustada ao ver a tropa
chegar sozinha, assustada, ofegante, tão banhada em
suor que chegava a espumar, e fazendo tanto
barulho, o que não era normal, principalmente
depois de uma viagem tão cansativa e com tanto
peso. A maioria deles estava tão exaurida que não
conseguiam ficar em pé, e deitavam–se com carga e
tudo. Depois de algum tempo então, os tropeiros
chegaram, tão assustados quanto os animais, e
também muito cansados e famintos. Mas antes de
entrarem, relataram para todos os presentes o que
havia ocorrido, deixando todos de cabelos em pé. E
nisso os animais também foram descarregados,
48
desarreados e receberam água, bastante água, ração,
uma lavagem no lombo para tirar o excesso de suor,
um carinho e foram soltos. Mas permaneceram ali
mesmo todos juntinhos no terreiro da casa e não
foram para o pasto, estavam assustados demais e se
sentiam mais seguros ali. Somente no dia seguinte
eles pareciam mais tranquilos e refeitos do susto. As
pessoas que ali estavam e ouviram tudo com grande
espanto, acabaram por amanhecer ali mesmo
reunidos e acordados. Um cochilando aqui, outro ali,
49
mas não foram para suas casas e nem para suas
camas. No dia seguinte então, toda região já ficou
sabendo de mais um horripilante fato ocorrido
naquele tão famoso reduto de fantasmas.
Os fatos presenciados e narrados pelo Sr.
José Cristiano, corria como um rastilho de pólvora e
ecoava em toda região porque ele era um homem
muito simples, humilde, verdadeiro, bom e de alma
muito pura. Sua característica? Um homem de
estatura mediana, pele clara, bastante cabelo, fala
mansa, voz suave pausada e muito educada.
Sempre usava roupas brancas de tecidos bem
simples, às vezes cheias de remendos, (coisa muito
comum na época), e bastante manchadas de nodoa
de bananeiras, (seiva), coisa muito normal e até
inevitável para quem trabalha nesse tipo de cultivo,
cujo produto, ele junto com a família, produziam em
grande quantidade e qualidade. Mas esta aparência
humilde e típica de homem do campo, nunca o fez
50
sentir-se inferior e nunca o inferiorizou perante as
pessoas que o amavam e respeitavam muito, do
jeitinho que ele era. Sua postura? Dificilmente ele se
sentava, sempre preferia ficar de cócoras. Não era
difícil vê-lo nesta posição, com calça arregaçada até o
meio das canelas, camisa de mangas compridas sem
punho, chapeuzinho de palha na cabeça, pés
descalços, pitando um cigarrão de palha preparado
por ele mesmo com muita tranquilidade, com fumo
de cordas, dando longas baforadas, as quais ele
nunca tragava.
Quando não estava pitando, ficava de cócoras
apoiando os cotovelos sobre os joelhos e com as
mãos no rosto. Uma imagem digna de ser retratada e
imortalizada por grandes mestres da pintura e da
escultura. Em volta dele muitas pessoas adultas
sentadas no chão, e as crianças em pé abraçadas aos
pais ouvindo atentamente a fantasmagórica
narração. Muitas vezes até apertando o pescoço do
51
pai quando a narração do Sr. José Cristiano ficava
mais intensa. Coisa que ele fazia pausadamente, com
voz suave e com muito detalhe. Talvez, por ele ser
esta pessoa de alma pura, ele tinha esta percepção
para ver os espectros com mais facilidade que os
outros, porque ele não os temia e respeitava.
E foi ele exatamente que mais viu e pregou a
existência do espectro do boi preto naquela
redondeza. E entre muitas outras coisas
assustadoras como: gemidos de dor, cantos agudos,
crianças chorando, e muitas vezes uma voz forte e
rouca pedindo socorro. Na região é raro encontrar
alguém, principalmente mais velha, que não tenha
visto ou ouvido algo estranho ao passar a noite por
ali, por esse reduto. Portanto, lembrando mais uma
vez: se um dia você, leitor, passar por lá à noite, e ver
um grande vulto muito mais escuro que a própria
escuridão, pode ter certeza: é sem dúvidas a alma do
lendário boi preto.
52
Então você benza o corpo, acelere o passo e
siga em frente sem olhar para traz. E você será então,
mais um a confirmar e a contar para os outros, essa
estória. Cruz Credo! Deus me defenda!
Mas, nem por isso você vai deixar de
conhecer e se encantar com a deslumbrante beleza e
a hospitalidade da região: Vargem Alegre,
Sertãozinho, Bairro da Pedra (Pedra Branca); que
vista fantástica! De perto e de longe é quase um
sonho! Olímpio Noronha com sua peculiaridade
53
pequenina, porém, muito charmosinha.
Jesuânia, com seu charme, uma cidade que se
destaca de longe, privilegiada pela sua bela
topografia. Cristina, com seus casarões, sua história e
sua famosa lenda do “corpo seco da mata da
prefeitura”, uma estória que é contada
incessantemente pelos moradores da cidade,
passando de pai pra filho. Lambari, com seu grande
lago, seu grande parque, suas águas e muito, muito
mais.
Ah!... E não se esqueça da Ponte Preta e
Cachoeirinha, ok? Você nunca mais vai esquecer.
Quem nunca foi conhecer essa região, não conhece
Minas Gerais.
FIM
54
FRAGMENTOS DE “POEMAS, POESIAS E
PENSAMETOS” - SABÁ.
A CRÍTICA
“A crítica sincera, honesta e verdadeira nos faz,
refletir, analisar e corrigir, levando-nos a perfeição e
ao progresso. O falso elogio nos ilude, nos acomoda e
nos leva ao falso estrelismo”.
O BRILHO DA FERRAMENTA
“Não mantemos o brilho da nossa ferramenta
polindo-a, mas sim usando-a no trabalho. O trabalho
dignifica o ser humano, faz bem à saúde e faz
progredir a nação”.
QUE INCOERÊNCIA
“Sempre se ouve dizer que a mulher é a melhor coisa
do mundo, (concordo!) e, no entanto, ela é na
55
maioria das vezes mal amada, maltratada e
discriminada. Imagine se ela não fosse a melhor coisa
do mundo? (que incoerência!)”.
COISAS PURAS E BELAS
“É quase impossível falar das coisas simples, puras e
belas, sem citar as músicas interpretadas pela dupla
sertaneja Tonico e Tinoco, e os lindos filmes de
Amácio Mazzaropi”.
A CRIANÇA
“Orientar, educar e alimentar bem a criança é
alicerçá-la para enfrentar as tempestades da vida; é
prepará-la para o futuro. O tempo da criança deve ser
dividido em três partes: estudo, lazer, e trabalho. A
criança precisa de cultura, precisa de lazer, mas
precisa também, desde pequena, aprender a
trabalhar, ter responsabilidades e valorizar os bens
conseguidos com seus próprios esforços. Deixar uma
56
criança na ociosidade é dar espaço para ela pensar e
fazer besteiras”.
AMIGOS SE PARECEM
“A minha maior felicidade são os meus amigos, os
quais selecionei cuidadosamente, para fazer parte do
meu mundo de amigos. Simples, sinceros, recíprocos,
confiáveis e verdadeiros. Que me respeitam e me
aceitam como sou. Falam-me, ouvem, orientam,
criticam, aconselham e torcem por mim. No meu
mundo de amigos, não há senhores nem escravos.
Não há hierarquia nem monarquia. Não há senhores
nem doutores. Não há excelência nem eminência;
somos todos iguais, apenas amigos, verdadeiros
amigos que se gostam, se respeitam, se preocupam e
desejam somente a felicidade do outro. Amizade não
se compra não se vende e não tem preço. Amizade...
É amizade”.
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O QUE É AMOR?
“O amor! O que é amor?
É você desprezar, agredir verbal e fisicamente a
pessoa amada,
E depois dizer repetidamente que a ama?
É maltratar e depois pedir desculpas e dar presentes?
É privá-la de sua liberdade básica? Tornando-a sua
escrava, sua propriedade?
Assim como muitas pessoas fazem covardemente
com os passarinhos, tirando-os de seus habitats
naturais, privando-os de suas companhias e da
liberdade de escolher seus próprios alimentos?
Colocando-os em cativeiros (gaiolas) só para
satisfazerem a sua vontade cantando só para elas?
Não, isso não é amor! E se isto é amor, não quero ser
amado jamais. E peço a Deus que nunca alguém me
ame assim... É muita covardia!
Pena que aqueles que são amados dessa forma,
58
normalmente são frágeis, sensíveis e delicados
demais para responder na mesma moeda”.
A MALDADE
“A maldade é como um bumerangue:
Você joga e ela volta pra você; é só esperar”.
OTIMISMO
“Quando plantamos uma árvore frutífera,
obviamente que, independente da nossa idade,
temos a esperança de acompanhar seu crescimento,
admirar sua beleza, sentir o aroma de suas flores,
colher dos seus frutos e desfrutar da sua sombra. Isto
se chama otimismo. Quem pensa o contrario é um
pessimista”.
BOM DESCANSO!
“... Um jovem burro de carga queixou-se de trabalhar
todo dia levando e trazendo cargas pra os mais
59
diversos lugares. O seu interlocutor, porém, um velho
burro de carga que já havia passado muitas e muitas
vezes pela mesma situação, queixou-se da
monotonia, solidão e a sensação de inutilidade. É
preferível trabalhar todo dia e ouvir um “bom
descanso!” no final de cada dia, do que ouvir um...
(ouvir?)... Descanse em paz! ... Credo! Eu hein?”.
MUNDO DE PAZ
“Quero ir pra minha terra para ver as corredeiras
As murmurantes cachoeiras que descem por entre as
pedras
Quero ver todas as quedas que tem no meio da mata
Quero ver a pedra chata onde a água se espalha,
Deixando no meio a falha onde um lindo pé de flor
Esbanja beleza e cor enfeitando a natureza,
Num lugar onde a tristeza não pode se habitar.
É só pureza e alegria, por isso eu quero um dia,
Pra minha terra voltar.
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Quero ir pra minha terra pra ouvir os galos cantando
A madrugada chegando e as flores se abrindo,
A natureza sorrindo quando o sol desponta em
chama,
Onde a natureza trama de maneira tão perfeita,
Que não existe receita pra fazer o que ela faz:
Harmonizar animais rios vales e montanhas
Cuja beleza é tamanha que nem dá pra descrever,
Por isso quero rever e matar esta saudade
Curtir a tranquilidade daquele mundo de paz”.
POEMA DE UM MORIBUNDO
“Num pedaço de papel que a família encontrou,
Embaixo do travesseiro, que um moribundo deixou,
Havia umas poucas letras, mal escritas e tremidas,
Mostrando o último esforço de quem estava ao fim
da vida.
Naquelas poucas palavras, mal escritas e rabiscadas,
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Só havia palavras doces, muito bem selecionadas,
Mostrando que ele queria de forma bem delicada,
Dizer tudo que podia e não falou no dia-a-dia pra sua
pessoa amada.
Analisando os dizeres pude ver por um momento,
Que apesar da sua dor, agonia e sofrimento, Ele
buscava as palavras, as mais lindas que havia, Como
se o seu pensamento captasse pelo vento o que ele
nem sabia.
Era uma pessoa simples, rude e quase analfabeta,
Pouco falava e não lia, mas o final dos seus dias fez
dele um grande poeta.
Observei em cada palavra, seu sentimento profundo,
E não acrescentei nada,
Simplesmente coloquei, em letras bem declaradas:
Poema de um moribundo”.
INCOERÊNCIA EXPLICITA
“Os políticos que roubam não merecem respeito e
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nem consideração de ninguém. E aqueles que os
defendem e protegem merecem muito menos.
Proteger e defender pessoas desonestas e se dizer
honesto é incoerência explicita.”
FIM.
63
Conheça outras obras do mesmo autor:
LITERATURA:
01— Um Coração Duas Paixões
02— Manezão E A Maldita Fortuna
03— Jothaiá, A Esperança De Um Mundo Melhor.
04— A Vaquinha Feia
05— A Vingança Silenciosa
06— As Ribombuchas Do Monsieur Paulin (Polan)
(Teatro)
07— Poemas, Poesias E Pensamentos - Vol. 01
08—Poemas, Poesias E Pensamentos - Vol. 02
MÚSICAS – CDs:
Volume 1: Coração Cowboy
Volume 2: Coração Sertanejo
Volume 3: O Mineiro Tem Segredo
Volume 4: Doida de Pedra
Volume 5: Soltando Faísca
64
HUMOR:
— SABÁ E SUAS HISTÓRIAS ENGRAÇADAS, (piadas)
VOL. 01 E 02.
NA INTERNET:
— GOOGLE “SABATAUBATE”
— SABÁ-google sites
— SABA on scribd|scribd
— Sabataubate scribd scribd
— “Sabataubate angelfire” — (0xx)12-3602-1917-—
(0xx)12-99771-6577
— E-MAIL: [email protected]
DESENHOS (ILUSTRAÇÃO) IDEALIZADOS POR “SABÁ”
EXECUTADO POR PAULO DE TARSO
(0XX) 12-3633-5640 TAUBATÉ S.P. – março/2015.