A ALQUIMIA CO M O M ETÁ F O RA P ARA REP E NSAR AS P RÁT ...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE PSICOLOGIA CURSO DE GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA ELLEN DIOGO PLATT A ALQUIMIA COMO METÁFORA PARA REPENSAR AS PRÁTICAS EM POLÍTICAS PÚBLICAS PORTO ALEGRE 2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE PSICOLOGIA

CURSO DE GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

ELLEN DIOGO PLATT

A ALQUIMIA COMO METÁFORA PARA REPENSAR AS PRÁTICAS

EM POLÍTICAS PÚBLICAS

PORTO ALEGRE

2016

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ELLEN DIOGO PLATT

A ALQUIMIA COMO METÁFORA PARA REPENSAR AS PRÁTICAS

EM POLÍTICAS PÚBLICAS

Orientadora: Prof. Dra. Rosemarie Gartner Tschiedel

PORTO ALEGRE

2016

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A ALQUIMIA COMO METÁFORA PARA REPENSAR AS PRÁTICAS EM

POLÍTICAS PÚBLICAS

Trabalho de conclusão de curso de graduação apresentado ao Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial para a obtenção do título

de Bacharel em Psicologia.

Aprovado em: ____ de _______ de _____.

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________

Debatedora - Cristina Maranzana da Silva

__________________________________________

Orientadora - Rosemarie Gartner Tschiedel

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Agradecimentos

Agradeço inicialmente a minha mãe, Dina, que tornou esse percurso possível ao me

conceder a oportunidade de estudar e não medir esforços para que eu pudesse me dedicar a

esse objetivo. À Nair, por me acolher desde o primeiro semestre, ser uma grande tutora pelos

percalços que a universidade apresenta e por me conceder a oportunidade de aprimorar minha

escrita e oratória ao longo da graduação. À Cristina, melhor supervisora que eu poderia ter,

por me inspirar com sua prática ética, afetuosa e permeada por diferentes referenciais teóricos.

À Rose, supervisora acadêmica de estágio e orientadora, por topar essa escrita que se

aventurou em um referencial teórico pouco estudado no Instituto de Psicologia, pela confiança

e acolhimento com os quais me presenteou ao longo deste ano. São quatro mulheres

inspiradoras e que me oportunizaram essa trajetória.

Aos colegas do PET Conexões Políticas Públicas de Juventude por enriquecerem

minha formação com debates e consciência política. Aos colegas e amigos do Instituto

Junguiano do Rio Grande do Sul por me possibilitarem um aprendizado e vivência que

transformaram minha experiência na graduação.

Às amigas, colegas e parceiras Ana e Helena que tornaram este percurso cheio de afeto

e afetações, compartilhando as desacomodações das aulas e da vida. À Paola, que manteve

acesa em mim a confiança que seguia no caminho certo, me amparando quando ameaçava

resvalar. À Fernanda, que dedicou sua escuta paciente e acolhedora, me fazendo perceber na

prática o potencial do nosso trabalho. Ao meu irmão Alexandre, que abdicou do nosso espaço

compartilhado em prol do meu crescente número de livros, cedendo espaço para meu estudo e

sua paciência para a irmã caçula.

Por último, agradeço aos movimentos sociais que pressionaram a universidade para a

efetivação da política de cotas, sem ela talvez eu ainda acreditasse que somente uma parcela

privilegiada da população poderia acessar o Ensino Superior Público - não que atualmente seja

muito diferente, ainda há avanços a serem feitos -, e aos movimentos atuais que lutam pelos

direitos sociais e para que a universidade se mantenha pública, acessível e de qualidade.

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RESUMO

As Políticas Públicas de Assistência Social apresentam desafios materiais e simbólicos em sua prática. São produzidas em um contexto neoliberal que a perpassa e pode estar presente nas intervenções dos profissionais. Neste estudo teórico e relato de experiência serão exploradas vias para inventar novas práticas neste contexto, na tentativa de não atuar a partir de uma conduta normatizadora. Para tanto, a alquimia servirá como metáfora para pôr em movimento o afeto e o pensamento que podem encontrar-se paralisados por essa conduta. A aposta é que a metáfora alquímica - com sua proposta de passar pelo que se vivencia, sentir, refletir sobre e agir a partir de uma nova perspectiva - possibilite uma re-valorização do trabalho no campo da assistência, indo além dos limites materiais e políticos que se colocam como impeditivos para sua execução.

Palavras-chave: psicologia social, políticas públicas, assistência social, psicologia analítica, psicologia alquímica.

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SUMÁRIO

1 JUSTIFICATIVA…………………………………………………………………….....6

2 INTRODUÇÃO………………………………………………………………………....7

3 CONTEXTO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE ASSISTÊNCIA SOCIAL………..8

4 A ALQUIMIA COMO METÁFORA PARA PENSAR A ATUAÇÃO E IMPLICAÇÃO DO PROFISSIONAL NO CAMPO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE ASSISTÊNCIA SOCIAL…………………………………………………………………….16

5 PRODUÇÃO DE EVENTOS CRIATIVOS NAS PRÁTICAS DA ASSISTÊNCIA……………………………………………………………………………….30

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS………………………………………………………….34

REFERÊNCIAS……………………………………………………………………….37

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1. Justificativa

O referencial da Psicologia Analítica (de Jung) e da Psicologia Arquetípica (de

Hillman) fez parte da minha formação, embasando dois anos de prática em conjunto com a

graduação. No espaço de formação composto pelos estágios de ênfase consegui pôr alma no

que faço, consegui sentir e não somente intelectualizar. Consegui me conectar com a esfera

ainda mais humanizadada psicologia.

Para Jung, alma não se refere a uma parte imortal do ser humano, como os autores

tradicionais usam o termo, mas sim ao lado interno oculto da personalidade (STEIN, 2006).

Alma, dentro desta linha teórica, aparece como uma perspectiva reflexiva, e não como uma

substância, é a reflexão que ocorre a partir de uma situação e torna possível a transformação

de um acontecimento em experiência. E é essa experiência que vai nos afetar e ser capaz de

nos transformar enquanto sujeitos.

Durante o estágio em um Serviço de Atendimento Familiar, vinculado à Fundação de

Assistência Social e Cidadania (FASC) e ao Programa de Atenção Integral à Família (PAIF),

me deparei com os impossíveis da assistência: com a falta de recursos materiais e simbólicos

para lidar com as situações inerentes ao trabalho. Percebi que além da técnica e dos

referenciais teóricos, capazes de nos dar uma saída, as paixões podem ser um guia, a conexão

com o afeto, com o toque/encontro de almas que juntos buscam soluções para o que é

vivenciado por uma, mas pode ser sentido por ambas.

Esse referencial me ajudou a reconhecer e expressar afetos e me apresentou a alquimia,

que se mostrou uma metáfora potente para encontrar saídas, para não esmorecer. É um retorno

à alma, ao humano, à matéria flexível, adaptável e inventiva da qual somos compostos e

convidados a exercitar na vida.

A vida é dura, crua, violenta e unilateral muitas vezes, principalmente no campo das

Políticas Públicas de Assistência Social. Valores monoteístas do capital, livre mercado e

obediência ao consumo cruzam essas políticas tornando-as ainda mais áridas. Ficam as

questões: como as Políticas Públicas (PP) se produzem nesse meio? Como e por onde

podemos trabalhar – fazer alma – nesse contexto?

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A pista a seguir é a de trabalhar a re-conexão com o humano, com o afeto – o afetar e

deixar ser afetado.

2. Introdução

No campo das Políticas Públicas (PP) encontramos muitos desafios, aqui serão

explorados aqueles relacionados ao contexto socioeconômico, ligados ao capital, ao mercado e

ao consumo. A tentativa de tentar responder a primeira pergunta colocada na justificativa –

como as Políticas Públicas se produzem no contexto social, econômico e político? – foi efeito

da vivência de estágio de um ano e meio acompanhando um Serviço de Atendimento Familiar

(SAF), da região leste II do município de Porto Alegre, que é um serviço que atende a

comunidade sob as diretrizes do Programa de Atenção Integral à Família (PAIF).

O PAIF é um mecanismo de operacionalização de informações e dados, portanto, um

modo de controle da população, e normatiza “um serviço de atendimento e acompanhamento

das famílias, de modo proativo, protetivo, preventivo e territorializado, assegurando o acesso a

direitos e a melhoria da qualidade de vida” (BRASIL, 2012, p. 5). Prevê em seu

funcionamento os dois eixos estruturantes do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), a

saber: a matricialidade socio familiar e a territorialização.

Após, serão exploradas vias para inventar novas práticas no contexto das Políticas

Públicas de Assistência Social, na tentativa de responder a segunda questão: “como e por onde

podemos trabalhar – fazer alma – nesse contexto?”. Para tanto, a alquimia, estudada no campo

da psicologia inicialmente por Carl Gustav Jung, servirá como metáfora para pôr em

movimento o afeto e o pensamento que parecem paralisados. Assim, serão exploradas as fases

alquímicas da nigredo , albedo e rubedo , fazendo um paralelo com os desafios materiais e

simbólicos produzidos no período do estágio da Ênfase de Psicologia Social Políticas

Públicas.

A aposta final é que a metáfora alquímica - com sua proposta de passar pelo que se

vivencia, sentir, refletir sobre (fazendo consciência sobre a experiência) e agir a partir de uma

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nova perspectiva - possibilite uma re-valorização do trabalho no campo da assistência, indo

além dos limites materiais e políticos que se colocam como impeditivos para sua execução. A

partir da leitura de referenciais da psicologia arquetípica acredita-se na possibilidade de criar

meios de fazer alma, humanizar, afetar-se, importar-se, implicar-se, desenvolver empatia e a

capacidade de tomar como minha a luta do outro, em um espírito de unidade, colocando, dessa

forma, uma nova via de trabalho e de potência no campo da Assistência Social e Políticas

Públicas.

3. Contexto das Políticas Públicas de Assistência Social

Propor-se a escrever e refletir sobre Políticas Públicas (PP) passa, necessariamente,

pela compreensão do contexto social, histórico e político no qual elas se produzem. Assim,

recorro ao referencial teórico foucaultiano para contextualizar as PP utilizando conceitos como

governamentalidade, biopoder, biopolítica e jogos de poder em meio ao neoliberalismo.

Com governamentalidade Foucault (1993) quer dizer três coisas:

1 – o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, por forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança. 2 – a tendência que em todo o Ocidente conduziu incessantemente, durante muito tempo, à preeminência deste tipo de poder, que se pode chamar de governo, sobre todos os outros – soberania, disciplina, etc. – e levou ao desenvolvimento de uma série de aparelhos específicos de governo e de um conjunto de saberes. 3 – o resultado do processo através do qual o Estado de justiça da Idade Média, que se tornou nos séculos XV e XVI Estado administrativo, foi pouco governamentalizado (p. 291- 292).

Assim, quando for feita a referência à governamentalidade entende-se uma forma de

execução de poder, que tem por alvo a população, a economia política como forma principal

de saber e os dispositivos de segurança como instrumentos técnicos. Essa forma de poder é

constituída ao longo do tempo como uma forma soberana de poder instrumentalizada por um

conjunto de saberes.

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Foucault ainda trabalha com a ideia de racionalidade que, segundo Avelino (2010,

p.22), corresponde aos “conjuntos de prescrições calculadas e razoáveis que organizam

instituições, distribuem espaços e regulamentam comportamentos; neste sentido

racionalidades induzem uma série de efeitos sobre o real”. Assim sendo, “a racionalidade do

governado não pode ser produto do acaso (...), mas ao contrário, é preciso que a racionalidade

do governado seja suficientemente suscitada, provocada e motivada (...)” (IDEM, 2010, p. 22).

Entende-se, portanto, que a partir dessa racionalidade do governo a população vive de acordo

com uma série de prescrições, ou seja, o seu modo de subjetivação é moldado pelo Estado.

O alvo do governo é a população, não sendo mais importante a extensão territorial que

está sob seu poder, mas sim a densidade populacional e suas características que são

governadas a partir de dispositivos de segurança (FOUCAULT, 1993). É neste contexto que as

políticas de assistência social passam a funcionar como estratégias da governamentalidade

neoliberal no Brasil, ou seja, “como estratégias de uma forma específica de racionalidade que

desenvolve determinadas práticas e ações na condução das condutas de todos e de cada um”

(LOCKMANN, 2013, p. 58).

Nas Políticas de Assistência Social há uma parceria entre público/privado que conta

com a prestação de bens e serviços. Tal prestação ocorre pelo fato das ações dessas Políticas

serem produzidas e reguladas por uma determinada forma de compreender a ação de governar,

por uma determinada racionalidade política – no caso das Políticas de Assistência Social, a

neoliberal (LASTA, 2015). Dessa forma, compreende-se que o neoliberalismo é um dos

embasamentos na construção das Políticas de Assistência Social, por ser componente da

racionalidade do governo das populações.

Segundo Foucault (2010, p. 172) a principal “permuta” do Estado com a população é a

segurança e não mais a garantia do território. Com segurança entende-se a proteção contra

riscos, prejuízo, acidente e incertezas: “o Estado que garante a segurança é um Estado que está

obrigado a intervir em todos os casos em que a trama da vida cotidiana é rompida por um

acontecimento singular, excepcional”.

Assim, os riscos “da velhice”, “da infância”, “da miséria”, “da pobreza”, “do incapaz

de prover seu sustento”, dentre outros que são o público alvo das Políticas de Assistência

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Social, não somente passam a ter a assistência de instituições vinculadas à igreja e a órgãos

não-governamentais, como tratam de “levar em conta a vida, os processos biológicos do

homem-espécie e de assegurar sobre eles (...) uma regulamentação” (FOUCAULT, 2000, p.

294).

Essa regulamentação desses grupos pelo Estado passa por uma ideia de governo que,

segundo Ruiz (2014, s/p), se interessa não mais por uma realidade externa (como no caso do

território), mas por uma realidade interna, “governando o conjunto de relações dos homens

com as coisas, governam-se as relações, os homens em suas relações com as coisas”. Assim, a

vida e o social passam a ser tomados como objeto e domínio de práticas de governo, tratando

da emergência de uma “vida política” e de um “governo dos vivos” (LASTA, 2015, p. 71-72).

Esse “governo dos vivos” se dá porque no neoliberalismo a liberdade de mercado é um

princípio organizador e regulador do próprio Estado (LOPES et al ., 2010) e o primordial não

está mais na troca, mas na concorrência (FOUCAULT, 2008a). Assim, não é mais preciso

regular diretamente o mercado, mas os comportamentos e fluxos dos sujeitos na sociedade e é

nisso que o Estado atua (LASTA, 2015).

No Brasil, é no governo de Itamar Franco que as ideias neoliberais aparecem mais

claramente na economia e política do país, no qual não somente estabilizar a economia era um

empreendimento do Governo, mas também a vida da população passa a novamente ser uma

preocupação importante, assim como a melhoria de suas condições de vida, afetadas pelo altos

níveis de miséria e abandono (LASTA, 2015). É nesse contexto que é promulgada a Lei

Orgânica da Assistência Social, com a qual as ações governamentais são reduzidas ao

assistencialismo e à caridade pública, com forte instabilidade institucional (PEREIRA, 2006).

O governo neoliberal passa a atuar de forma mais efetiva na vida da população no

governo FHC com a premissa de redistribuição de renda, por meio da rede de proteção social

que contempla um conjunto de medidas e programas sociopolíticos que visam o combate à

desigualdade social, a melhoria de acesso a bens e serviços e a minimização da precariedade

de vida (LASTA. 2015). O ponto alto desta política é seu caráter condicional e não mais de

caridade pública, ou seja, a família tem que dar alguma contrapartida ao benefício recebido

como, por exemplo, garantir a frequência das crianças na escola e manter a vacinação em dia.

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Assim, a partir do governo FHC a arte de governar passa a operar sobre a população

por meio de investimentos sociais (LASTA, 2015); dessa forma, o governo neoliberal passa a

“intervir sobre a própria sociedade em sua trama e em sua especificidade. No fundo, ele tem

que intervir nessa sociedade para que os mecanismos concorrenciais, a cada instante e em cada

ponto da espessura social, possam ter o papel de reguladores (...)” (FOUCAULT, 2008a, p.

199). Trata-se, portanto, de compor um cenário para um governo no qual a sociedade passa

também a ser objeto de intervenção governamental, configurando-se, então, “um governo de

sociedade” (FOUCAULT, 2008a).

Nesse contexto, a figura do homo oeconomicus trazida por Foucault se faz importante

por mostrar como entra em cena o homem da empresa e da produção – o homem

empreendedor de si (LASTA, 2015). Segundo Foucault (2008a, p.203), “trata-se de

generalizar, difundindo-se e multiplicando-as na medida do possível, as formas ‘empresa’”

(...), e é essa multiplicação da forma ‘empresa’ no interior do corpo social que constitui o

escopo da política neoliberal. O sujeito de direitos se torna “cidadão-cliente, consumidor de

serviços, de organização, cujo comportamento se pauta por uma perspectiva empresarial, com

a apresentação de resultados” (BHERING, 2003, p. 114).

O governo seguinte – governo Lula - deu seguimento às Políticas Públicas de

Assistência Social e à inclusão social, mantendo a lógica neoliberal de empreendedorismo de

si e a mesma racionalidade de Estado na implementação dessas políticas. Neste governo houve

uma grande proliferação de projetos e programas que envolveram a área social de uma

maneira mais ampla, tendo como metas a redução da pobreza, a diminuição da exclusão e o

aumento da participação social (LASTA, 2015). O governo Dilma deu continuidade aos

projetos que visam o combate à desigualdade social ampliando programas voltados a essa

área.

Entre o final do século XIX e início do séc. XX o mercado passa a regular

determinadas relações sociais e o Estado passa a ter um papel de responsável por assegurar a

propriedade e a ordem e, dessa forma, os indivíduos passaram a ter o seu papel na sociedade

definido pela posição que ocupam no mercado de trabalho (LASTA, 2015). A intervenção

estatal na sociedade e nas questões sociais, na elaboração das políticas, é direcionada para

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recolocar a população no “jogo neoliberal”: ao intervir no social de maneira permanente e

multiforme, não é para agir “contra a economia de mercado ou a contrapelo da economia de

mercado, mas é o contrário, a título de condição histórica e social de possibilidade para uma

economia de mercado, a título de condição para que o mercado formal da concorrência aja”

(FOUCAULT, 2008a, p.221-222).

O mandato de Dilma Rousseff prosseguiu uma operação iniciada no Governo anterior,

o que Foucault (2008) chamou de Sociedade de Seguridade, na qual “todos” estão sob o

conhecimento do Estado. A Sociedade de Seguridade é um tipo de sociedade que faz uso de

diferentes técnicas e práticas a fim de colocar em funcionamento o mecanismo da

normalização, tudo isso almejando o alcance da segurança, que, nas palavras de Foucault

(2008, p.14), é “certa maneira de acrescentar, de fazer funcionar, além dos mecanismos

propriamente de segurança, as velhas estruturas da lei e da disciplina”. Isso é visto no governo

por meio das políticas que visam garantir a segurança e minimizar os fatores de exclusão

social.

Nessa “Sociedade de Seguridade” diferentes políticas e programas socioassistenciais

assumem um caráter de política pública e passam a dar assistência para grupos específicos que

vivem sob determinadas condições sociais tidas como precárias e/ou como ameaça a si e ao

outro pelo risco que geram. Dessa forma, tais grupos passam a ser um risco mensurável e

controlado (LASTA, 2015).

No jogo neoliberal quem faz a regulação é o mercado, ou seja, “não se age sobre a

economia, mas em benefício dela, pois pretendem dar condições mínimas para que todos os

sujeitos – com graus de desigualdade – possam participar da dinâmica competitiva”. “Todas

essas políticas fazem parte, portanto, da racionalidade política neoliberal que engendra as

práticas de governamento atuais” (LOCKMANN, 2013, p. 85-86). A promessa de mudança de

status dentro de relações de consumo é a fonte que mantém o Estado em parceria com o

mercado e faz parte do jogo proposto pelo neoliberalismo, assim, quando falamos de grupos

específicos que vivem sob determinadas condições sociais tidas como precárias e/ou como

ameaça a si e ao outro, não se trata da “vida dos homens infames” ou da “tragédia da sua

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miséria”, nem de seus efeitos, mas sim de seu controle político, social e econômico por meio

da proteção e inclusão social (LASTA, 2015, p. 89-90).

O poder no jogo neoliberal é produtivo, pois “cria realidades, sujeições, sujeitos e

objetos” (LASTA, 2015, p. 90). A partir dessa premissa, para Foucault (1995), os homens

tornam-se sujeitos e passam a empreender certo modo de vida e de mundo. Há “técnicas,

mecanismos e aparelhos institucionais de controle e dominação sobre os corpos e os

indivíduos” e produtores de subjetividade, que garantem a legitimidade dessa configuração

social neoliberal (LASTA, 2015, p. 90).

Outros mecanismos de produção de subjetividade e de controle da população, para

além da disciplina, foram sendo inventados, tendo como objeto de aplicação de poder o

corpo-espécie (biopoder). Para Foucault (1993), a vida da população entra em cena devido à

problemática do governo. As instituições criadas com o intuito de controlar, conhecer e

melhorar as condições de vida da população visavam não só acompanhar a vida, mas também

investigar seus hábitos e comportamentos e regular os processos da vida da população

(biopolítica).

Uma das tecnologias utilizadas para exercer esse controle sobre os corpos constitui-se

pelas Políticas de Assistência Social, pois estas viabilizam uma vigilância e um controle

exaustivo da vida, ou seja, uma vigilância que não só normatiza os corpos, mas que

sistematiza, analisa e dissemina informações territorializadas sobre a vida da população

mediante o que se chama de vigilância socioassistencial (LASTA, 2015). Assim, essas

políticas “acabam por constituir-se na contemporaneidade enquanto maquinaria(s) que

opera(m) e faz(em) funcionar o governo da vida em meio aberto” (LASTA, 2015, p. 93).

De acordo com Filho e Lemos (2012, p.11), foi a vinculação do direito com a

economia política que viabilizou o controle das condutas, cujo objetivo era oferecer mais

liberdade com mais segurança ou tentar fazê-lo, nas últimas décadas, com a emergência do

neoliberalismo. Com isso, “a regulação de comportamentos por meio da diplomacia

militarizada e com a polícia da saúde permitiu acionar disciplina e biopolítica, no biopoder”.

Entende-se que também pode-se incluir nesses meios de regular o comportamento a Política

de Assistência Social, incluindo o caráter de integrantes do biopoder e, dessa forma, o poder

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passa a ser exercido não mais somente em instituições, pela via da disciplina, mas nos corpos,

pela via do controle, a partir de Políticas Públicas que atuam sobre “questões estratégicas e

vitais para a população, tais como alimentação, nutrição, higiene, saúde, nascimentos,

morbidade, etc” (LASTA, 2015, p.97).

Veiga-Neto e Lopes (2011, p. 7) destacam que: Basta examinarmos um pouco as políticas de inclusão para nos darmos conta de que elas atuam tanto como ações poderosas, quanto, e principalmente, como ações tutelares. Os mesmos já estão num plano comum, decidem trazer/rebater para esse seu plano os outros que se situam em quaisquer planos. De modo a facilitar os processos de rebatimento, inventam-se biopolíticas e principalmente noopolítica que, apelando para certos princípios universais – de que os direitos humanos e a cidadania são os melhores exemplos –, acabam por efetivar o rebatimento a custos mínimos, garantindo maiores níveis de segurança para população. Além de diminuírem os riscos sociais, as biopolíticas e noopolítica de inclusão colocam-se a serviço do neoliberalismo. Com isso, queremos dizer que elas tanto são produzidas pela racionalidade neoliberal quanto contribuem para o aprofundamento e a estabilidade do próprio neoliberalismo, na medida em que, no âmbito da economia, cultura e do imaginário, moldam o milieu social para um melhor “funcionamento” do neoliberalismo.

O governo da vida pela proteção e inclusão social passa a ter uma função estratégica: o

governo social das condutas. Assim, as políticas de proteção e inclusão social, tratam de

articular o social pelo mercado, alimentando o jogo neoliberal (LASTA, 2015). É possível

compreender essa atualizada configuração do social como sendo a sociedade de controle

(DELEUZE, 1992), que “(...) passa a determinar distintas formas de regulação e atuação social

e que conformará toda uma política do pensamento” (HUR, 2013, p.210). Lazzarato (2006,

p.100) chamará esse conjunto das técnicas de controle de noopolítica, a qual “se exerce sobre

o cérebro, implicando em princípio a atenção, para controlar a memória e sua potência

virtual”, com isso, “há a transição do foco sobre o corpo e a vida, para o controle direto da

memória e do pensamento (entendido como cérebro)” (HUR, 2013, p. 210).

Assim, as estratégias de governo da vida, atuantes por meio de Políticas Públicas, entre

elas a de Assistência Social, ocorre por diferentes técnicas de controle: dos corpos – biopoder

-, dos modos de vida – biopolítica – e também da memória e do pensamento – noopolítica.

Esse governo da vida pela proteção e inclusão social está a serviço da racionalidade neoliberal,

que objetiva colocar os corpos na roda da competitividade e do empreendedorismo de si,

veiculando e perpetuando, através do Estado, modos de subjetivação que o sustentem.

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As técnicas de controle, portanto, se desenvolveram de tal forma que ele não precisa

mais ser exercido de forma concreta, atuando no campo simbólico e moldando os modos de

subjetivação atuais: “os sujeitos passam a pensar e afetar-se de maneira neoliberal [em] todas

as esferas da vida (...) no processo de gestão das subjetividades, via noopolítica, não se

necessita mais confinar e vigiar os corpos para exercer a disciplina, pois o controle já é

eficazmente exercido em campo aberto, capilarizado, em que a própria constituição subjetiva

obedece e padece (...)” (HUR, 2013, p. 211).

A partir da atuação do controle no nível simbólico, agindo diretamente nos modos de

subjetivação, temos um exercício mais sutil e constante que captura rapidamente os corpos,

tornando politicamente mais difícil resistir. A operacionalização de informações, bens e

serviços socioassistenciais são mais uma das técnicas de normatização que, por terem como

pressupostos a inclusão e a proteção social, são técnicas de controle sutis, apesar de operarem

também no nível concreto. Há o objetivo de produzir “sujeitos autogovernáveis” que pensam e

atuam de forma a seguir produzindo o neoliberalismo por acreditarem que ele é parte do que

os compõem, ou seja, não discernem o exercício de um controle sobre seus corpos vindos de

fora, agem como se o natural do ser humano fosse esse impulso empreendedor de si e

competitivo.

Há a intenção do Estado de tornar participante do jogo econômico de mercado, mesmo

que minimamente, a população alvo de Políticas de inclusão e proteção social, como corrobora

o colocado por Lopes et al (2010): os programas sócio assistenciais fazem parte de uma

racionalidade política atual que opera com o intuito de conduzir as condutas dos sujeitos de

acordo com determinados princípios do neoliberalismo e, entre esses princípios, pode-se

destacar a necessidade social e política de participação de todos, ou seja, de inclusão de todos

na sociedade de consumo. Ou seja, o provimento de condições de consumo, por parte do

Estado, está a favor das políticas de mercado e, assim, a inclusão e proteção social de todos

passou a ser uma das estratégias do Estado para manter o controle e é o que coloca-o como

parceiro do mercado, mantendo a inclusão e a proteção como um imperativo do próprio

neoliberalismo (LOPES, 2009).

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Assim, o que se observa não é a efetiva consolidação das mínimas condições de

cidadania para todos, mas sim uma defesa do consumo pelo mercado, como aponta Lasta

(2015): a Assistência Social enquanto proteção social, seja esta integral ou proativa, não se

constitui em prol da autonomia e desenvolvimento humano e social, nem pela erradicação da

pobreza e diminuição das desigualdades sociais, no lugar disso percebeu-se, na administração

da miséria e do infortúnio, uma atividade potencialmente lucrativa e vantajosa para o mercado

neoliberal.

Os saberes que atuam nessas políticas (psicologia, serviço social e direito, equipe

mínima dos CRAS ou CREAS) acabam por normatizar e legitimar com suas práticas

determinados modos de ser sujeito e o fazem sob a prerrogativa da proteção e inclusão,

atuando no governo das condutas por meio do controle do risco e vigilância social. Como

descreve Lasta (2015, p.139): “o controle do risco e a vigilância social não incidem apenas

sobre o corpo dos sujeitos institucionalizados, mas, de modo circular, também operam sobre as

relações sociais, sobre os contatos entre as pessoas, sobre suas formas de comportamento na

sociedade”.

Há, portanto, uma forma capilarizada e naturalizada de ser e estar no mundo

viabilizada pelo Estado e a serviço do mercado. Com isso, opera-se uma normatização das

condutas sob a prerrogativa de garantia de direitos que interfere diretamente nos modos de

subjetivação atuais por meio de “linhas invisíveis”, pois na sociedade de controle utiliza-se de

outros meios, como estatística, cálculos e saberes, e não mais somente instituições de

encarceramento e exclusão para exercer os jogos de verdade e poder.

4. A alquimia como metáfora para pensar a atuação e implicação do profissional no

campo das Políticas Públicas de Assistência Social

A contextualização apresentada mostra a importância de se ter uma prática profissional

que abranja reflexões e esteja atenta a como se produzem os campos de atuação da psicologia.

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Sem esse suporte crítico e reflexivo, podemos atuar de forma a perpetuar jogos de verdade e

de poder que ameaçam a liberdade individual e a efetiva garantia de direitos.

Durante o estágio em um SAF (Serviço de Atendimento Familiar) essa busca por

alicerces teóricos ocorreu depois de sentir as dificuldades materiais e simbólicas encontradas

nos serviços da Assistência Social. Assim, encontrei na alquimia a metáfora para me referir a

processos psicológicos que pude identificar entre o início da minha prática e as possibilidades

criativas para permanecer atuando no campo das Políticas Públicas.

Integro a esse ensaio as aproximações entre psicologia e alquimia iniciadas por Jung e

continuadas por Hillman. Recorrendo à alquimia numa tentativa de retorno a processos

almados, no sentido de captar os impulsos humanos que fogem de uma racionalização e

controle da vida pela via do pensamento que é exercida pelo Estado a partir do governo da

vida, das relações entre os homens.

Para Jung, o que o alquimista “vê ou pensa ver na matéria são principalmente os dados

de seu próprio inconsciente nela projetados [...], ele encontra na matéria, como se

pertencessem a ela, certas qualidades e significados potenciais de cuja natureza psíquica ele é

inteiramente inconsciente” (JUNG, 2012,p.245). Assim, para Jung a alquimia tem um

simbolismo que se relaciona com os aspectos psicológicos:

Jung considerava a alquimia o paradigma e o suporte fundamental para sua psicologia. Um bom terço da obra escrita de Jung está direta ou tangencialmente relacionada com a alquimia, proporcionalmente muito mais do que aquilo que ele escreveu sobre tipologia, psiquiatria, experimentos de associação, sabedoria oriental ou parapsicologia (HILLMAN, 2011, p. 190).

O processo alquímico é composto por diferentes fases. Neste ensaio se passará pelo

sofrimento encontrado no campo de trabalho das políticas públicas da assistência social,

possivelmente oriundo da pobreza material e simbólica presentes, para refletir sobre o possível

percurso de vivência e reflexão experienciado pelos profissionais que trabalham nessa área.

Para tal, se partirá de impressões e reflexões decorrentes do já citado acompanhamento e

prática em um Serviço de Atendimento Familiar (SAF) do Município de Porto Alegre.

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O trabalho na assistência pode ser encarado como uma possibilidade de transformação

social. Os técnicos que ingressam nessa jornada podem ter esse ideal de promover alguma

mudança, achando brechas e impulsionando processos de transformação. Nesse ponto se inicia

a aproximação com o entendimento alquímico do processo psíquico que decorre da prática na

assistência, pois “a alquimia é a arte da transformação; almeja atingir o coração das coisas.

Trabalha fundamentalmente com a ideia da transmutação, como um processo de elevar a

matéria de uma dada circunstância a um nível superior de sua manifestação” (BARCELLOS

apud HILLMAN, 2011, p. 7), abrigando assim uma metáfora para o processo psicológico.

Em resumo,

a alquimia pensa por meio de imagens, mas imagina em termos de cores. Ou seja, por meio dos processos de coloração da alma, com os quais ela própria é tingida e com os quais ela tinge o mundo e suas experiências. Tingimento na alquimia significa mudança de estado; indica a transmutação. As cores na alquimia revelam processos na alma: do preto da decomposição (nigredo ) ao branco da clara reflexão (albedo ), passando pelas transições de azul e amarelo, para atingir aquele vermelho próprio da matéria almada e das condições pulsantes e vitais da existência (rubedo ) – a pedra filosofal. (BARCELLOS, apud HILLMAN, 2011, p.8-9)

Iniciando a opus (obra) alquímica temos o sal, comum a todos nós, “indica a base

estável da vida, sua terra, seu chão seu corpo” (HILLMAN, 2011, p.84). O sal é a base

mineral, impessoal e objetiva da experiência pessoal que torna a experiência possível. Sem sal,

não há nenhum experimentar – meramente um suceder e um rolar de acontecimentos sem

corpo psíquico (HILLMAN, 2011). Assim, o sal faz-nos sentir e experimentar os eventos,

dando a cada um de nós o sentido do pessoal e toda opus alquímica sustenta-se na habilidade

de experimentar subjetivamente, ou seja, o sal é a base da nossa subjetividade, tornando

possível a experiência sentida, da qual o extraímos.

O sal é tido como sustento da alma, pois as feridas dessa experiência vivida não

servem para serem curadas, mas sim como “minas de sal das quais ganhamos uma essência

preciosa e sem as quais a alma não pode viver” (HILLMAN, 2011, p.93). As pedras de sal,

quando reconhecidas e possuídas, “pertencem à história de minha alma, onde ela foi salgada

pelas fixações da experiência, dando certa cristalização à minha natureza e me poupando de

inflamações e volatizações” (HILLMAN, 2011, p.95).

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Localizo o sal nas políticas públicas no campo de trabalho, ou seja, na vida das pessoas

que conhecemos, nas questões com e do território em que circulamos. Essas vidas que

passamos a conhecer mais de perto são inundadas de sofrimento psíquico e material – fome,

doenças, brigas familiares, solidão, violência, negligência. São essas as asperezas que

encontramos e que fazem marca tanto na subjetividade das pessoas que acessam os serviços da

assistência social quanto dos profissionais que as acolhem.

O sal deixa uma marca, advém de um sofrimento e ganha corpo na nossa experiência

sentida, na nossa subjetividade. Vejo que dele decorre a possibilidade de entrar na fase da

nigredo , que carrega o peso de estar aberto e se deixar marcar por essa experiência sentida

decorrente do contato com formas diversas de violência presentes nos territórios que

trabalhamos.

Contudo, antes desse passo, acredito que pode estar presente, para os técnicos da

Assistência Social, um engajamento anterior ao trabalho, uma crença e aposta na possibilidade

de transformação social que se assemelha ao branco ingênuo da albedo , ou seja, uma crença

que não foi manchada pela experiência sentida, uma crença na possibilidade de transformação

quase que idealizada, pois ainda não se conhece as dificuldades e limites da prática nesse

campo. Esse ideal que pode ou não estar enviesado é um motor propulsor, porém, pode

resultar em adoecimento caso o profissional não consiga dar um passo em direção à

experiência sentida, passando pela nigredo , a fim de ressignificar a sua prática e as reais

possibilidades de intervenção no território, pensadas a partir das fases posteriores – albedo e

rubedo .

Passando para a nigredo é importante colocar a diferença no sofrimento presente nesta

fase, que tem o chumbo como metal, e no já colocado pelo sal: o sal pode ser distinguido do

chumbo, porque o primeiro é cortante, pungente, agudo – ele queima a si mesmo com

perspicácia e dor aguda, amargura corrosiva, ganhando sentido através da autoacusação e da

autopurificação; o chumbo é crônico e denso, um sofrimento pesado, obscuro, opressivo, sem

foco específico, sem sentido – é constipado (HILLMAN, 2011). E, ainda:

enquanto o sal diz, “machuca”, o chumbo diz, “não posso”. Enquanto o sal saboreia os detalhes de sua dor ao lembrar precisamente e com uma agonia penetrante, o chumbo não

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consegue enxergar, nada sabe, permanecendo paralisado e mergulhado numa obliteração geral e abstrata da memória empírica (HILLMAN, 2011, p.94).

As indicações de uma fase nigredo são um estado de exaustão, secura, paralisia,

depressão e confusão, e o estado encontrado nesta fase é obscuro e obstinado (HILLMAN,

2011). Essa escuridão, na alquimia, não é sinal de fracasso, mas sim a possibilidade do início

de um processo, é a condição de algo que está sendo trabalhado, que a alma – anima – já está

envolvida em sua opus (HILLMAN, 2011).

Relacionando a experiência psicológica da nigredo com o impacto subjetivo no

trabalho na assistência social encontro uma correspondência com os sentimentos bastante

presentes no início do estágio de impotência e aniquilamento, de que é muito sofrimento para

suportar. Esses sentimentos dão uma dimensão grandiosa para o campo, acompanhados da

sensação de paralisia, que é sentida também no corpo, juntamente com uma ideia de não haver

saída possível e, logo, um desespero. Essas impressões compõem o que chamarei de pobreza

simbólica: um esgotamento do trabalhador, decorrente também das poucas condições

materiais, que interferem negativamente no trabalho ao não tornar possível a criação de saídas

para as situações encontradas e dificultar a composição das “redes quentes”, ou seja, redes de

resistência, não homogeneizantes, mas sim sintonizadas com a vida, redes autopoiéticas e

comprometidas com a produção de subjetividades (PASSOS, 2004).

O preto presente é uma não cor, extingue o mundo colorido perceptivo. Ele “nega” a

luz do conhecimento, a ligação com uma consciência solar como um modo de previsão de

longo alcance, ou o sentimento de que os fenômenos podem ser entendidos. O preto dissolve o

significado, e a esperança pelo significado, nos cercando de trevas (HILLMAN, 2011).

As palavras colocadas por Hillman (2011) para descrever esse estado de escuridão da

alma traduz com precisão as sensações experimentadas na prática de estágio: Como um buraco negro, ela suga e faz desaparecer as estruturas fundamentais de segurança da consciência ocidental. Ao tornar a cor ausente, o preto impede os fenômenos de apresentarem suas virtudes. A desconstrução que o preto atua sobre qualquer positividade – experimentada como dúvida, pensamento negativo, suspeita, destruição, falta de valor – explica por que a nigredo é necessária para qualquer mudança de paradigma. O preto quebra o paradigma; ele dissolve o que quer que reconheçamos confiantemente como real e caro. Sua força negativa retira da consciência suas noções dependentes e confortantes de bondade. (p. 136)

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Essa retirada do que reconhecemos como real e de alguns valores que, de forma

confortante, nos dão algum balizamento sobre formas de vida, são colocados em cheque ao

nos depararmos com formas tão diversas de existência: questionam-se os encaminhamentos

possíveis para cada situação trazida pelas famílias, pois, em princípio, sem haver uma

reflexão, facilmente nos utilizamos dos valores e parâmetros presentes na nossa vivência para

fazê-los, caindo facilmente na normatização e governo das condutas atravessadas pelos ideais

neoliberais de consumo.

A vontade de transformar, presente nas intervenções pensadas e propostas nos serviços,

podem estar baseadas na crença de que o usuário talvez não seja capaz de reconhecer o que é

bom para si e que suas ideias de como se deve ser e agir não estão corretas. Assim, o

profissional atua a partir do seu próprio repertório padrão de socialização de forma

normatizadora e adaptativa.

Essa adaptação é colocada como a serviço da criação de pessoas saudáveis,

socialmente ajustadas e felizes em seus relacionamentos pessoais, e a interferência dos

técnicos nessas vidas é justificada pela luta contra a desigualdade social e pelos direitos sociais

(GUGGENBUHL-CRAIG, 2008). Porém, como colocado anteriormente, por trás dessa crença

e “boa vontade”, podemos facilmente agir em prol de uma normatização e governo das

condutas atravessadas pelos ideais de consumo neoliberais. O preto, então, serve para quebrar

os paradigmas que nos ampararam até então, questionando nossos padrões e ideais de ser e

agir, possibilitando transformações nos profissionais através do sofrimento causado pelo

impacto do trabalho.

Assim, cada momento de enegrecimento é um precursor da mudança, de descoberta

invisível de dissolução das ligações com tudo aquilo que foi tomado como verdade e

realidade, fato sólido ou virtude dogmática. Ele faz enxergar através, desconstrói aquilo que se

tornou uma identidade e ensina a entender como realizações os períodos de amargura,

melancolia e feridas, pois é dessa desconstrução e dissolução que é capaz de emergir uma

nova consciência.

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Para que esse movimento seja possível, Hillman (2011) traz que é necessária a

decapitação, é necessário separar mente e corpo (entendido aqui não só como a carne física e

seus sintomas, mas como as perspectivas imaginais que estão presas em concretismos

habituais), ou seja, cortar a identificação com esse afeto depressivo que habita o corpo. É um

movimento para fazer distinções e analisar. O abismo do não ser torna-se a base ilimitada das

possibilidades: enxergar o habitual como mistério, o aparente como ambíguo.

A conversão do preto, de uma não cor para uma cor, de negativo para a negação da

negação, além de uma questão de reforma social é também colocada como um modo para a

consciência ocidental poder decapitar o fundamentalismo ingênuo de suas ilusões

esperançosamente coloridas (HILLMAN, 2011). Uma dessas ilusões a serem decapitadas pode

ser não mais identificar nas Políticas Públicas de Assistência Social somente a luta contra a

desigualdade social, a garantia de direitos, a inclusão e proteção a que se propõem, mas

também questionar as bases ideológicas que as atravessam e produzem.

Ao sair do campo das frustrações em direção ao horizonte mais amplo da mente

estamos azulando o processo. A mudança para o azul permite a entrada de ar, de forma que a

nigredo possa meditar sobre si mesma,ver-se e imaginar-se. Os azuis trazem de volta o corpo

com um sentimento revisto, cabeça e corpo reunidos. Dessa forma, no azul inicia um processo

reflexivo que almeja fugir do instituído e provocar movimento em processos que parecem

estagnados.

A fase que se segue é a albedo , um branco que precisa estar carregado de experiência

subjetiva, de tonalidades de sombreamento e de azul, sem ingenuidade e com as marcas dos

acontecimentos. Assim, este branco é um “resfriamento que resulta de violentas torturas, da

paciência de um longo sofrimento, de um intenso calor” (HILLMAN, 2011, p.194). A prata

alquímica é um estado de consciência que provém do trabalho feito na alma, um estado de

reflexão que não se esgota, fica na imagem, tem foco e é móvel – ou seja, sem a estagnação

presente na fase anterior.

Após sentir no corpo os efeitos das violações do campo de trabalho e deixá-las

produzirem marcas subjetivas, inicia-se um processo de ampliação da análise e tentativa de

entender como se dá a produção da pobreza material e subjetiva: como a população que está à

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margem participa do sistema social e econômico? Como o sistema produz a marginalização e

a necessidade de Políticas Públicas para lidar com ela? Assim, retoma-se brevemente a

contextualização da criação das políticas públicas dentro do modelo neoliberal, que utiliza o

discurso dos direitos humanos e das lutas da sociedade civil para a sua garantia, como

elemento de sustentação das ações de intervenção do Estado em toda a sociedade, a fim de

imunizar a vida por meio de interesses mercantis (FOUCAULT, 2008 apud LARA, 2015), ou

seja, uma circulação de interesses econômicos na criação e manutenção dessas políticas, onde

a vida das pessoas e a forma como estabelecemos relações uns com os outros se tornaram

domínio econômico.

A política social é uma forma de investir no crescimento econômico, na medida em

que não se projeta uma transferência de receita de um setor a outro, mas sim uma capitalização

generalizada, e leva as populações em situação de miserabilidade a níveis que aumentem seu

potencial de consumo (FOUCAULT, 2008, apud LARA, 2015). O tipo de organização

presente no neoliberalismo opera uma racionalização da vida para se chegar a um fim

desejado, construindo e mantendo a ideia de um empreendedorismo de si e de relações sociais

que não são aleatórias, mas ligadas a uma finalidade que invista no capital humano e organiza

nosso cotidiano, como a forma como entendemos e agimos no matrimônio, na educação dos

filhos e criminalidade (GUARESCHI, LARA e AZAMBUJA, 2010).

Essa reflexão tecida de forma mais profunda inicialmente e retomada brevemente,

permite colocar movimento na prática ao ir além do sentimento de impotência e paralisia

produto do encontro com tamanha “falta” existente no público das políticas de assistência.

Uma reflexão sem ingenuidade, sem achar que se combate a pobreza material e subjetiva,

entendendo que cada movimento é micro, que qualquer pequeno movimento é uma vitória.

Porém, como coloca Hillman (2011, p. 328), a mente na albedo é mais como os sonhos,

“receptiva, impressionável, imagética, autorreflexiva, talvez confortavelmente mágica”.

Assim, “nesse estado da ‘brancura’ não se vive [...] é um tipo de estado abstrato, ideal”

(JUNG, 1992, apud HILLMAN, 2011, p. 328). Logo, na albedo podemos ver possibilidades

de sair do lodo, mas ainda não damos o passo para implementar intervenções. Essa reflexão

sobre neoliberalismo, captura e capitalização da vida é a saída do lodo, possível a partir das

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teorias estudadas na academia, mas ainda não configura a intervenção presente no estágio da

rubedo, que compreende o voltar-se à vida, ao mundo, passando pelo amarelecimento e

tornando possível dar um retorno às comunidades atendidas.

À fase reflexiva segue-se o amarelecimento, que não é a expansão continuada da

consciência branca, um aumento da capacidade reflexiva, mas sim um salto da prisão

espelhada da reflexão: durante a nigredo há dor e ignorância, sofremos sem a ajuda do

conhecimento; durante a albedo a dor cessa, tendo sido contemplada pela reflexão e pela

compreensão; o amarelo traz a dor do próprio conhecimento, a alma sofre sua própria

compreensão (HILLMAN, 2011).

O branco torna todas as coisas psicologizadas, ou seja, descontextualizadas, unificando

psique e mundo, voltando-se para dentro. O amarelecimento vem para marcar essa diferença e

essa inseparabilidade entre os dois, mas volta-se à vida, ao mundo. O amarelo é necessário,

porque caso se passe direto do branco para o vermelho, se “psicologiza” e “literaliza” os

insights, mantendo a uniomentalis – uma comunhão entre psique e mundo (HILLMAN, 2011):

a psique precisa se amarelar rumo ao cosmo. Nesse sentido, é necessário ter compreensão

intelectual da produção das Políticas Públicas, mas é preciso ir além, sob o risco de manter-se

“preso” nesse psicologizar, e atuar sobre a vida em si.

O amarelecimento traz consigo também uma ideia de estase, de incapacidade de ação.

Assim, o amarelecimento quebra a ideia de progresso ao longo do tempo e introduz a rotatio ,

que seria o Vir-a-Ser que permanece no ser, que se movimenta, mas que não progride nem

regride. Dessa forma, a rubedo pode se fazer presente, porque se rompe com a ideia de

progresso e de um eterno Vir-a-Ser e se abre espaço para a existência do ser liberto da

imobilidade estática (HILLMAN, 2011).Assim, a rotatio traz a ideia de que não existe

progresso, que esses estágios não estão em uma ordem hierárquica, mas sim em um constante

“vir-a-ser”. Entende-se que esses estágios estarão presentes e se repetirão ao longo da nossa

existência.

Sem a ideia de progresso e de desenvolvimento para fases superiores compreende-se

também que na alquimia não é importante ter uma meta, mas sim a ideia de uma meta que seja

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capaz de nos movimentar neste processo de fazer alma e conectar-se com o mundo. Como

refere Hillman (2011), o propósito da obra é a própria proposição, não este ou aquele propósito formulado que rapidamente degenera numa ideologia perdendo, também tão rapidamente, sua eficácia como poder de motivação. Não o alcançável, mas a ideia do inalcançável é o que movimenta o curso da ação [...], a beleza da meta idealizada trouxe-nos até aqui (p. 355).

A meta final da opus alquímica é ser trazida para fora, ser exposta, e não ficar como

um processo introvertido de autoconhecimento, pois ele só se dá quando é revelado. A opus

tem um aspecto social, político, ecológico e comunitário e, assim, uma meta não nomeada

chamada mundo. A alquimia prima pela imaginatio , em detrimento da literalização, e Hillman

(2011) coloca a imaginatio e suas metas como “imagens de condições psíquicas sempre

disponíveis ”, ou seja, não é a sequência de passos que importa, mas sim a ideia de sequência

que serve para lembrar de que há outros lugares para se estar e que todos se conectam com a

meta maior da opus .

A partir da solicitação de dirigentes de ONGs da região leste II foram pensadas

oficinas com educadores/as sociais a partir do tema ampliado cuidado com o cuidador. Havia

espaço para a criação dessas oficinas por parte dos oficineiros e, dessa forma, elas foram

preparadas na sequência dos seguintes temas: infância, proteção, violência e cuidado. Era

abordado um tema por encontro, totalizando quatro encontros, e todos de forma mais

participativa possível, convidandos os/as participantes a se colocarem e trabalharem juntos

para, a partir disso, podermos intervir.

Nos encontros não havia a meta de tirar todas as dúvidas sobre os temas elencados, ou

levar uma ideia fechada sobre cada um, mas sim, colocar que essas temáticas são amplas e a

realidade é complexa, que terão variáveis que não poderemos controlar nem modificar, e que

uma reflexão que busca a ampliação no entendimento do que nos desacomoda pode

possibilitar uma postura diferente perante as situações desafiadoras que se apresentam no

cotidiano.

Um exemplo de ampliação e consequente possibilidade de transformação prática, a

partir disso, é o explorado na segunda oficina. Nela são expostos todos os serviços que

compõem a Rede de Proteção Social Básica e Especial, com o intuito de, a partir de um

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processo reflexivo, chegar à compreensão de que o campo das Políticas Públicas de

Assistência Social é bastante complexo e que existem muitos serviços a fim de dar conta dessa

complexidade. Isso se mostrou importante no primeiro grupo das oficinas porque as

educadoras se mostravam bastante frustradas perante tantos desafios e não tinham

conhecimento da rede de atenção e de como ela opera, o que resultava em uma sensação de

ineficiência do projeto no qual trabalhavam.

Retornando a uma reflexão ancorada na alquimia, temos a pedra como imagem da

meta e o seu movimento não é de crescimento, desenvolvimento ou metamorfose, mas de

curiosidade intelectual, a busca e procura da mente desperta. Dessa forma, aprender é a chave:

estudar, experimentar, viajar, ler. Esses são os processos que trabalham a pedra (HILLMAN,

2011). Processos esses que são possibilitados na experiência de oficina relatada anteriormente,

pois se procura compreender o contexto no qual o trabalho das educadoras sociais está

inserido, despertando a curiosidade para as possibilidades de trabalho em rede, mostrando que

não estão “ilhadas” nessa tentativa de transformação social, porque há outros serviços que

atuam nesse sentido, mesmo que por outra via.

Hillman (2011) coloca, ainda, que a particularidade factual e confrontante da pedra

ensina a mente a estudar e apreciar mais de perto cada evento contrário, a tornar-se

voluntariosa ao buscar caminhos por entre e em torno de cada obstáculo. É com esse mesmo

intuito, de buscar caminho entre e em torno de cada obstáculo, que as redes, o conhecimento

sobre elas e a participação devem operar, por isso a importância de um espaço no qual seja

possível a ampliação da compreensão do trabalho de um SCFV dentro do cenário das Políticas

Públicas de Assistência Social.

A grande sabedoria da alquimia é tornar impossível qualquer posição fixa, contrapondo

uma propensão em fixar-se em verdades doutrinárias (HILLMAN, 2011). Dessa forma, a meta

e a pedra na perspectiva da atuação profissional nas políticas públicas traduzem os desafios

colocados no cotidiano do trabalho e o não engessamento para poder ampliar as possibilidades

de encaminhamentos. É compreender que não há um protocolo a seguir e que o caminho é

escolhido a partir do engajamento de cada um, já que muitas vezes os serviços não contam

com o suporte material ou técnico necessário. É essa capacidade colocada na pedra que se

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permite ser afetada e sentir o ambiente, moldando-se a sua variação e entendendo que o

ambiente sempre estará em constante mudança e apresentando novos desafios – neste caso,

com novas situações de violação de direitos que precisam de outras articulações entre os

serviços da rede.

Entrando na última fase alquímica, a rubedo , entende-se que o objetivo maior da obra

não é a melhora do ego, seu crescimento rumo a um inteiro (colocada por Hillman como

“ressurreição”), mas sim, a subversão disso, a circulação. “Quando podemos reconhecer que o

impulso subjetivo para o desenvolvimento é uma ideia de uma meta, e não uma meta enquanto

tal, então o próprio pensamento processual cessa e um outro tipo de movimento assume”

(HILLMAN, 2011,p.389): no lugar de movimentos lineares de uma “individualidade” da

psicologia do desenvolvimento, um movimento circular da alma – a iteratio , rotatio e

circulatio como as últimas operações da opus .

Assim, a psique não está indo a lugar algum, sua meta é justamente a circulação e as

suas imagens dão por encerrado o impulso subjetivo que impeliu a obra desde o começo. A

meta da obra não é nada mais que a objetificação do próprio impulso que a propulsiona

(HILLMAN, 2011). A realização da obra alquímica é, portanto, a objetificação da libido: o

sentido de que nossas vidas não são nossas. Uma libido voltada para o mundo, que o aprecia e

anseia por ele.

A rubedo passa a ser entendida então não como uma atividade psicológica enquanto

tal, mas, ao invés, uma atividade libidinal, um movimento no qual prevalece o instinto, onde

temos a mente como natureza e a imagem como instinto. O avermelhamento contém a ideia do

unusmundus : a meta do unusmundus não ocorre necessariamente ao final da opus , mas sempre

que uma imagem mental nos compelir com a força de um fenômeno natural e sempre que a

natureza aparecer inteiramente como imaginação. A finalidade da meta é, assim, um evento

criativo e espontâneo que ocorre sempre que a fantasia do adepto recebe o poder da certeza

(HILLMAN, 2011).

Por fim, o vermelho da rubedo pertence a este mundo e relaciona-se com a exaltação

da matéria. O avermelhamento não é a transformação do material, sua espiritualização ou

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transcendência, mas sim uma visão mais nobre sobre ele, na qual prevalece um olhar sobre o

prazer diário que fornece a nossa vida (HILLMAN, 2011).

Com este retorno ao material, ao mundo e à ação que a rubedo representa, fica a ideia

de que todos os processos são necessários, desde o estancamento presente na nigredo até a

reflexão acerca do contexto das políticas públicas, a fim de que ambas sejam de uma força

capaz de incitar eventos criativos e espontâneos que possam renovar nossa prática. Considero

importante manter sempre a perspectiva reflexiva e sem a ingenuidade possível na albedo ,

atenta à força normatizadora que a nossa atuação em políticas públicas pode ter, sem esperar

operar grandes revoluções, porque isso poderia implicar em um branco ingênuo, desconectado

da compreensão do sistema que produz esses modos de existência que ficam à margem da

sociedade de consumo.

Não há uma resposta de como fazer, não há protocolos a seguir, mas há uma ideia de

que é necessário engajamento, necessário para trabalhar em rede, para possibilitar o acesso a

diferentes políticas. É necessário se implicar, se incomodar e desacomodar. É necessário

querer articular, voltar-se para o mundo que, neste caso, é a rede possível entre assistência,

saúde, segurança e judiciário. Assim como o fortalecimento e impedimento do rompimento de

vínculos é o tema e objetivo de políticas de proteção básica para os usuários, deve ser a mesma

para os técnicos, porque o trabalho em rede depende, muitas vezes, fundamentalmente da

implicação destes em dar andamento e prosseguimento aos processos de vida que passam

pelos serviços.

Neste período de estágio na política de atenção básica da assistência social entendi que

o trabalho passa por tentar fazer o vínculo das pessoas com algum serviço ser mais forte do

que com o tráfico, mas que isso só é possível caso haja algum desejo neste sentido por parte da

pessoa/família. O tráfico claramente está ligado à questão da ascensão social e acesso a bens

de consumo, que são perpassados pela grande desigualdade social e concentração de renda da

nossa organização social atual. Na assistência vejo inicialmente dois poderes (serviços e

tráfico), cada um tensionando para um lado. Porém, os resultados do tráfico são mais rápidos e

visíveis, porque se dão por uma via material, que é altamente valorizada na nossa organização

social.

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A rede, que é tão valorizada e necessária, se dá entre os serviços da assistência, mas

quando é necessária com a saúde, justiça e segurança pública se complexifica, ficando mais

difícil de ser estabelecida. Além disso, percebe-se que ainda depende em grande parte da

implicação com o trabalho e iniciativa pessoal de cada profissional.

Na assistência se intervém em questões básicas da vida, como relacionamento,

vínculos afetivos, valores e rotina. Prevenindo relações de risco e/ou tomando medidas para

rompê-las quando estão a ponto de se estabelecerem ou já estão estabelecidas. Mas qual a

força do serviço frente ao desejo de estabelecer tais relações?

Prevenir ou impedir essas relações de risco não seria normatizar, mas sim impedir que

essas pessoas fiquem em situações de violência. Nesses casos em que não considero a ação da

assistência normatizadora, entendo que as pessoas envolvidas não compreendem as condições

de risco e violência das situações as quais estão se expondo, como se houvesse alguma

ingenuidade ou crença cega em uma promessa de afeto e ascensão social. Acredita-se em um

amor e em uma vida com condições materiais bem superiores – esta reflexão baseia-se no

risco de meninas entre 12 e 14 anos serem aliciadas para prostituição. Parece haver uma saída

do sofrimento áspero do sal e um ingresso no branco ingênuo e eufórico. Havendo a

possibilidade do preto vir somente depois, quando se perde essa inocência por passar por

situações de violência e desamparo que ainda me são inimagináveis.

A assistência muitas vezes parece estar sozinha na linha de frente com a pobreza, o

tráfico e a exploração. Parece ser a “prima pobre” das políticas públicas. Luta contra ou com

um sistema que é produzido, permitido ou financiado pelo seu próprio chefe – o Estado. É

interesse do Estado combater efetivamente situações de violência e vulnerabilidade? Enquanto

não for, pouco poderá ser feito pela assistência social e cada vez mais haverá técnicos

adoecendo por lutar contra um sistema que está montado para não ser combatido e sim para

continuar.

Entrar na assistência social é o branco ingênuo, acreditar em uma transformação social

que não tem o suporte da organização econômica e social para acontecer. Passar para o branco

reflexivo e lunático é perceber os impossíveis deste trabalho, a perversidade do sistema e

tentar delimitar linhas de fuga para não sucumbir à tamanha complexidade.

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Enquanto não houver uma mudança consistente na nossa estrutura econômica e social,

continuaremos com a sensação de fracasso no nosso trabalho, porque só nos é possível fazer

pequenos movimentos e fingir que o Estado presta alguma assistência à marginalização que

ajuda a produzir, como destacam Lasta (2015) e Lopes (2009). Não é só o tráfico que é

violento e perverso, mas também o Estado e a sociedade meritocrática, hedonista e

individualista que ignora e também alimenta, efetuando a manutenção da vida como ela está

dada.

5. Produção de eventos criativos nas práticas da assistência

Na contextualização desenvolveu-se um raciocínio de que o Estado opera governando

as coisas e as relações entre os homens. Essa compreensão, à primeira vista, me parece

fatalística por passar também a ideia de que toda forma de resistência é facilmente capturada

pelo sistema. Quer dizer que facilmente todos operamos na via da normatização nos serviços

de proteção social da assistência? Pensar por essa via parece que retira uma potência de vida,

uma potência de agir. Acredito que precisamos dessa potência e que é por meio dela que

podemos construir vias de trabalho que, por serem coletivas e terem na coletividade sua força,

não são tão facilmente capturadas pela racionalidade neoliberal que coloca o individualismo e

a competitividade como algumas de suas ferramentas.

A partir dessa escrita que recorre à alquimia pretendi possibilitar um processo criativo

numa tentativa de retorno a processos almados, no sentido de captar os impulsos humanos que

fogem de uma racionalização e controle da vida pela via do pensamento que são exercidos

pelo Estado. O processo alquímico, independente de onde inicia ou reinicia, convoca a uma

ação no mundo e coloca que é nele que podemos fazer alma, processo esse que consiste em

sentir os acontecimentos, não apenas vivenciando-os, mas tomando-os como experiências

capazes de se tornarem marcantes e significativas em nossas vidas. Esse processo está distante

de uma vida corrida, automática e não reflexiva, pois chama para uma real conexão com a

realidade e com o que está sendo experienciado, chama para reflexão de quais os sentidos do

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que está sendo vivido, convoca a estar presente na própria vida, evitando, assim, que

“compremos” um ideal de vida em geral produzidos e reproduzidos sem reflexão crítica por

nós, distante do que nos faz sentirmos vivos.

Dessa forma, acredito que o “fazer alma” e o que o “agir no mundo” conversam com

as Políticas Públicas no sentido de tentar continuar produzindo vida, mas atento a não agir de

forma normatizadora, e sim atento ao sentido que cada pessoa pode escolher dar para sua

existência, atento ao que nos faz sentir uma conexão conosco e uns com os outros. Parece-me

que um dos primeiros passos para não agir de forma normatizadora e a favor de uma

racionalidade neoliberal é aumentar o nosso repertório simbólico, conhecendo e respeitando

outras formas de vida. E o que nos fortalece perante tantos desafios é a coletividade, o não

estar só e não se sentir responsável por transformações, mas sim como facilitador de processos

de vida.

Anteriormente, cito brevemente a experiência de oficinas com educadoras e

educadores sociais de Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos de Porto Alegre.

Nestas oficinas trabalhamos em prol deste objetivo: aumentar o repertório simbólico dos

educadores, a fim de conceberem como possíveis as formas de vida das pessoas que acessam

os serviços da assistência, na tentativa de evitar uma conduta normatizadora. Dessa forma, é

possível entrar em conexão com o outro e operar transformações em ambas as subjetividades -

educador e educando, oficineiros e educadores.

Nesses encontros trabalhamos a partir das vivências dos educadores, de relatos do seu

cotidiano e dúvidas quanto a sua conduta, orientados no sentido de ampliar as possibilidades

de interpretação e de ação sobre as situações apresentadas. Neste sentido, constantemente

fomos guiados pelo intuito de fazer alma, pois confiávamos que a reflexão sobre as vivências

relatadas seriam capazes de, por meio do aumento do repertório simbólico, produzir diferenças

na forma de agir no mundo das pessoas que participavam dos encontros.

Trabalhamos com grupos bem distintos, no primeiro havia disponibilidade de escuta,

espaço de fala e inexistência de hierarquia entre as atividades de cada educador, no segundo,

essas características não estavam presentes. No primeiro grupo, participaram todos os

envolvidos no projeto (coordenação, trabalhadores da limpeza, da cozinha e educadoras),

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trabalhavam em conjunto nas atividades propostas (leitura, jogos e colagens), respeitando a

produção individual e fazendo relação com sua própria produção, conseguindo chegar a uma

produção comum no encerramento de cada atividade. Também mostraram reconhecer os

desafios do trabalho de cada colega e a importância de cada papel para o bom andamento do

trabalho na instituição. No segundo grupo, somente os educadores participaram e, mesmo

quando solicitado claramente, as tarefas não eram realizadas em conjunto e a separação entre o

que um e outro produzia ficava marcada não só no papel (as colagens de cada um ocupou

espaço bem demarcado, por exemplo), mas nas falas que personalizavam a produção, não

conversavam com as imagens dos colegas e não respeitavam o tempo e espaço de fala de cada

envolvido (o tempo era restrito, o que limitava o espaço de fala, e havia participantes que

monopolizavam a fala ou se ausentavam da roda durante as colocações de algum colega).

Notamos que, no primeiro grupo, a ampliação do repertório simbólico -

reconhecimento de outras formas possíveis de vida, de relação com a violência, de

configurações familiares, entre outros - foi possível a partir das atividades de cada oficina. No

segundo grupo, não havia uma disposição para o trabalho coletivo, mesmo quando solicitado

claramente que o fosse realizado, e consideramos que não foi possível um aumento do

repertório simbólico a partir de um processo de reflexão que viesse do grupo, sendo necessário

um último encontro com observações e ponderações sobre o que foi observado do grupo

durante os três primeiros encontros.

Nas oficinas a tentativa foi alcançar a alteridade, a capacidade de enxergar o outro, de

recolher nossas projeções, expectativas e julgamentos. Esse exercício é importante para que

não se exija do outro algo que só é possível a partir da minha realidade, algo que é necessário

ou indispensável para mim e não para ele ou ela. A relação com a assistência se dá porque, do

contrário, insistimos em enquadrar o outro em uma vida que não lhe pertence, que ele ou ela

não almeja ter.

Tendo essa perspectiva questiono: como exigir que uma criança se expresse sem gritos

ou violência se ela não conhece uma forma de se relacionar diferente dessa? Como trabalhar

na assistência sem questionar nossos próprios estilos de vida, tirando-os do pedestal?

Acredito ser necessária assumir nossa pequenez diante dos desafios pessoais e sociais

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existentes no trabalho na área social. Abrir mão de um desejo salvacionista que busca

erradicar a miséria, seja ela material ou subjetiva, e, antes disso, ter a humildade de nos

aproximarmos do outro e tentar compreender se ele acha que está nessa posição de miséria que

o localizamos, ou não.

Precisamos ver no outro o ser humano do qual também somos compostos. Com nossos

medos, defeitos, conhecimentos, formas de nos relacionar. No fundo, a assistência de um

modo geral trabalha com relações humanas. Relações essas que, às vezes, ficam tão

enfraquecidas que precisam ser rompidas ou tomadas como responsabilidade por um agente

externo, como no caso da justiça e do acolhimento institucional.

Nas oficinas tratamos temas relacionados com a assistência, mas que permeiam toda e

qualquer vida humana – infância, proteção, violência e cuidado -, pois todos vivenciamos cada

uma delas apesar das diferentes significações. Na experiência com dois grupos de educadores

de serviços distintos foi possível observar como esses grandes temas tocam de maneira diversa

cada um. O primeiro grupo era capaz de se organizar de forma a respeitar o tempo de fala de

cada um, respeitar as particularidades dos componentes, assim como suas dificuldades e

qualidades, a partir de um tratamento mais horizontal, sem fazer diferenças entre si em função

dos cargos. No outro grupo somente parte dos educadores participaram, houve bastante

dificuldade em fazer atividades conjuntas, respeitar o tempo de fala de cada um e entender o

que o trabalho em rede, em relação com o outro e com outros serviços tinha a ver com o seu

trabalho.

Enlaço essas experiências nas oficinas, sobre ampliação do repertório simbólico, com o

contexto neoliberal a partir da ideia de visão monoteísta, que só consegue enxergar uma

possibilidade de vida. Como ressalta Valente (2016), pensar nosso mundo sem as ideias

econômicas é como pensar a Idade Média sem as ideias cristãs. E esse novo monoteísmo, que

não cultua o deus transcendente, mas também tem crenças e dogmas, foi transformando tudo

em mercadoria, dando um preço a tudo, a toda terra deu um título de propriedade, a todo valor

criou um dono. Processo esse tão poderoso e excessivo que transformou em natural, o que era

histórico, criando um pensamento único (VALENTE, 2016).

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Tentar escapar de um pensamento único no trabalho da assistência é resistir a um

princípio semelhante ao que rege a racionalidade neoliberal: valores individualistas,

competitivos, hierarquizantes e visão unilateral sobre o que é a vida e como se deve vivê-la.

”A ideia narcísica de que tínhamos o verdadeiro e único Deus, foi acrescida pela ideia

narcísica de que temos os verdadeiros valores e estilo de vida” (VALENTE, 2016, s/p).

Contudo, como destacado por Hillman (2010), o leão ruge enfurecido para acordar

nosso coração anestesiado. Pela tradição, este é o animal que vive no deserto, pois é o animal

do sol e do calor, sendo também agente da ressurreição e guardião dos túmulos. “Seu rugido

acorda o coração para as paixões da alma, para que o deserto se torne habitável. Apenas o

desejo pelo consumo é pouco, apenas vivermos entre objetos que não têm alma é pobre”

(VALENTE, 2016, s/p). Assim, o sal presente na alquimia pode também ser percebido como esse

rugido do leão, como um desassossego, um desacomodar que deixa transparecer a doente alma do

mundo.

Como nos lembra Valente (2016, s/p), “o espírito que domina uma época nunca consegue

destruir por completo outras formas de se organizar valores e a vida cotidiana, outros estilos de

consciência. É aí que surge a esperança e a alma se faz”. Sendo assim, concluo este escrito com a

esperança de que, na nossa profissão, seja possível acordar corações para esse rugido do leão, para

as diferenças, para as diferentes formas de organização, de coletivo. Que o sal alquímico possa ser

o precedente de processos da alma que façam ressurgir outros valores que não os do monoteísmo

econômico, que a tão ouvida e experienciada desacomodação possa ser facilitada por nossas

pretensiosas intervenções, retornando, como sugere Hillman (2010), ao valor e qualidade das

coisas e não ao seu preço.

6. Considerações finais

Esta escrita buscou encontrar possibilidades de movimento, no campo das Políticas

Públicas de Assistência Social, inspirada em situações, questionamentos e reflexões suscitadas

pelo estágio na ênfase de Psicologia Social e Políticas Públicas. A metáfora alquímica serviu

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como facilitadora no processo de buscar saídas criativas, de dar vazão aos incômodos do

cotidiano.

A formação em Psicologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul tem por

característica desacomodar e provocar os estudantes desde o ingresso no curso. Com isso,

desenvolver consciência crítica e buscar analisar sócio historicamente os acontecimentos se

torna uma ferramenta de trabalho. Portanto, seria impensável tecer uma reflexão acerca de

Políticas Públicas sem a compreensão de como elas se produziram, de como se fizeram e

fazem necessárias, a serviço de que ou quem estão.

Analisou-se, então, um viés das PP ligado ao contexto neoliberal, às demandas do

mercado e à produção de modos de ser vinculados à manutenção do sistema econômico

vigente. Essa análise contribuiu para o passo seguinte, no qual as afetações produzidas no

campo de estágio foram significadas à luz da alquimia, onde as tensões do trabalho foram

compreendidas como forças que puxam para uma nigredo , mas, entendendo-se como se dá o

processo e tendo passado por ele, nota-se que o caminho é o de permitir-se afetar e buscar

seguir a linha de ação reflexiva fruto dessa afetação. Passando pelo processo, que não é finito,

quantas vezes a vida precisar fluir pelas diferentes fases e colorações.

Cabe destacar ainda, que os estágios na alquimia não trazem a ideia de progressão, pois

um estágio está contido no outro, todos são igualmente importantes de serem vivenciados e se

repetem ao longo de nossa existência. A alquimia traz um tipo de classificação da realidade,

utilizada aqui para tentar compreender afetos e ideias que se fizeram sentir no decorrer da

experiência de estágio, fazendo ponte com a minha compreensão do trabalho psi nas Políticas

Públicas.

Em resumo, as fases do trabalho para as quais tentei dar alguma materialidade foram: o

sal, situando o sofrimento da população e da realidade áspera que encontramos no campo das

políticas públicas e com as quais temos que lidar diariamente; o branco ingênuo com o qual

ingressamos no campo, apostando na possibilidade de transformação social; nigredo como um

estado fácil de ingressar ao se deparar com tamanhas violências e violações, ao não ver saídas

e/ou resultados do trabalho realizado diariamente; albedo como saída da nigredo , mas

marcada por ela, dando início a uma reflexão, acreditando que algo ainda pode ser feito, sem

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ingenuidade na aposta por uma transformação, entendendo o contexto no qual as políticas

públicas se constituem e como somos convocados a trabalhar nelas (contexto neoliberal e

normatizante); rubedo como capacidade de se afetar com toda essa produção da pobreza e

atuar nas políticas públicas a partir de uma postura crítica e autorreflexiva, capaz de fazer

movimentos, mesmo que micropolíticos que não visam um progresso ou melhora, mas sim

uma movimentação no que está estagnado, ou seja, sem um ideal a se chegar, sem uma meta

fixa, e sim colocando possibilidade de mobilidade em processos de vida.

O encerramento possível neste momento é deixar-se afetar por esse sofrimento áspero,

pungente e cortante. É dar corpo à experiência e estar disponível para a possibilidade de se

desacomodar e de ser agente de desacomodação constantemente, buscando brechas nas quais

seja imaginável despertar da anestesia desse espírito que domina nossa época, incitando o

vislumbre de outras formas de se organizar, de construir valores e vida cotidiana. Facilitar a

emergência de outros estilos de consciência, de ação e movimento no campo das Políticas

Públicas.

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