A Análise do Discurso na perspectiva Pós-colonial: uma via ... · colonialismo, o pensamento...
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A Análise do Discurso na perspectiva Pós-colonial: uma via para a
decolonização
Autorxs: Aleksander Aguilar Carolina Soccio
Universidade Federal Pernambuco (UFPE)
Recife, 2014
RESUMO
Para ser uma disciplina efetivamente internacional, a Teoria de Relações
Internacionais (TRI) deve incorporar outros modos de conhecimento que estão além
de suas atuais metodologias, que atualmente tem derivações, fundações e narrativas
paroquiais, de predominância norte-americana. As perspectivas pós-coloniais, por
exemplo, no ensino de Relações Internacionais (RI) no Brasil, fazem parte do grupo
“outros paradigmas” usados por apenas 15% dos acadêmicos da região (TICKNER et
al., 2013).
Longamente ignorado no âmbito da disciplina de RI, o Pós-colonialismo apresenta-se
como instrumento para teorizar sobre a ampla diversidade de atores e dinâmicas que
tem estado de fora das concepções hegemônicas da área e para evidenciar o
pensamento do chamado Sul Global.
A perspectiva do discurso é um fenômeno social e político essencial para a
construção e para a desconstrução das relações de poder em qualquer sociedade
(AMARAL, 2013). E por isso a Análise do Discurso (AD) preocupa-se em entender e
interpretar sentidos que estão socialmente construídos, ao invés de buscar
determinantes causais. Assim, um potencial interessante da AD é a possibilidade de
seu uso com investigações de teor pós-colonialista, tendo em vista que essas
abordagens teóricas e metodológicas têm como um de seus focos questões relativas à
desigualdade, diferença e identidade nas RI pelo prisma da construção do Outro
(TOLEDO, 2011).
Portanto, o presente trabalho propõe-se a evidenciar a relevância da abordagem pós-
colonial para as RI, fundamentando-se nas ideias do teórico argentino Walter Mignolo
sobre de-colonização, e na constatação de um presente ainda permeado por uma
série de discursos e relações sociais que confluem na perpetuação da assimetria da
distribuição do poder. Com base nesses pressupostos, e observando discursos
específicos no Sul Global, identifica-se o pensamento pós-colonial na interface com a
AD como uma abordagem teórica em RI que contribui proficuamente para a análise da
produção e reprodução da ordem mundial.
Palavras-chave: Teoria de Relações Internacionais, Pós-Colonialismo. Análise do
Discurso. Decolonização
A Análise do Discurso na perspectiva Pós-colonial: uma via para a
decolonização1 2
1. Introdução
Começamos pela pergunta: quais as possiblidades de relação da Análise do
Discurso com pesquisas de teor pós-colonialista em Relações Internacionais? A
exploração desse questionamento demanda aprioristicamente indicar e fixar pelo
menos duas noções conceituais: discurso e pós-colonial.
A noção de discurso é uma das mais complexas nas ciências humanas. Seu
conceito atravessa uma pluralidade de perspectivas teóricas e tem significados e
aplicações diversas, que dependem do sistema teórico no qual está incluído.
Grosso modo, o discurso existe como um elemento político e social, como o
resultado de uma trama semiótica. É um texto, latu sensu, produzido em um lugar
específico, que carrega em si as marcas das condições de sua produção. Cada grupo
social, por conta de sua prática cotidiana, carrega em si um conjunto particular de
signos, significados, expressões – um modo de pensar e agir. Discurso, assim, é uma
ligação entre a criação textual nesse sentido amplo e as condições sociais dessa
criação, e que são próprios a cada espaço social, e por isso interagem dialogicamente,
transformam-se e rearranjam-se a partir de uma constante interação (MARTINO,
2009).
Sobre o Pós-colonialismo, é preciso de entrada lembrar que o século XX foi
palco de profundas transformações multifacetadas ao redor do globo, de caráter
político, econômico e social, em que se destaca a importância da descolonização da
África e da Ásia, a partir do fim da 2ª Grande Guerra, como um momento marcante do
1 Agradecemos a cordial leitura do texto e fundamentais comentários do Prof. Me. Marchiori Quevedo (UCPel), da Profa. Ma. Flávia Farias (UFRPE) e do Prof. Dr. Aureo Toledo (UFU), com explicações e esclarecimentos sobre Análise do Discurso. Inspirador e animador. Também destacamos que uma primeira versão deste artigo foi apresentada no 2º Seminário de Graduação e Pós-Graduação da Associação Brasileira de Relações Internacionais, em agosto de 2014, onde contamos com os atenciosos comentários do Prof. Me. João Urt (UFGD), debatedor no painel “Subverter a subalternização da necessidade em transcender as fronteiras disciplinares impostas às Relações Internacionais”, tanto quanto os dos outros e outras painelistas Profa. Ma. Xaman Korai (UFPB), Profa. Dra. Ana Paula Maielo Silva (UEPB), Profa. Ma. Tchella Fernandes Maso (UFGD) e Me. Vico Denis Souza Melo. Equívocos ou omissões que persistam neste texto são de nossa exclusiva responsabilidade. 2 O autor e a coautora deste artigo, Aleksander Aguilar ([email protected])e Carolina Soccio ([email protected]), são doutorandxs em Ciência Política, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no ano de 2014.
ponto de vista geopolítico, pois assinala uma drástica mudança no cenário
internacional. Tal mudança demandou uma reflexão crescente dos regimes coloniais e
das consequências então desconhecidas dos fenômenos que viriam a emergir no
período que se chamou “pós-colonial”.
Em linhas gerais, portanto, os estudos voltados a este novo cenário mundial, em
diversas áreas, tomaram corpo até constituir-se como uma nova corrente teórica. A
acepção que constitui o Pós-colonialismo pressupõe a revisão crítica do passado
contado em termos de modernidade ocidental e a identificação de um presente ainda
permeado por uma série de discursos, práticas e relações políticas que confluem na
perpetuação da distribuição assimétrica do poder e riqueza em nível global. É
importante ressaltar que o“pós” em pós-colonial não significa, em absoluto, uma
superação do período anterior, colonial, uma vez que “o fim do colonialismo enquanto
relação política não acarretou o fim do colonialismo enquanto relação social, enquanto
mentalidade e forma de sociabilidade autoritária e discriminatória” (SANTOS, 2004).
As perspectivas pós-coloniais, contudo, no ensino de Relações Internacionais
(RI) no Brasil, fazem parte do grupo “outros paradigmas”, usados atualmente por
apenas 15% dos acadêmicos da região (TICKNER et al., 2013). Entendemos, não
obstante, que para ser uma disciplina efetivamente internacional, a Teoria de Relações
Internacionais (TRI) deve incorporar outros modos de conhecimento que estão além
de suas atuais metodologias, que atualmente tem derivações, fundações e narrativas
paroquiais, de predominância norte-americana.
Destarte, como um amplo repertório de perspectivas teóricas nas ciências
humanas surgido desse cenário geopolítico de escombros do colonialismo, vemos o
Pós-colonialismo, longamente ignorado no âmbito da disciplina de RI, apresentar-se
como um instrumento para teorizar sobre a grande quantidade de atores, dinâmicas e
urgências que tem estado de fora das concepções hegemônicas da área e para
evidenciar particularmente, de acordo com o arcabouço teórico com o qual informamos
este texto, o pensamento do chamado Sul Global3. E é mister, portanto, considerar
3 O termo Sul Global passou a ser adotado com frequência para se referir a países situados no hemisfério
sul do planeta quando o termo “terceiro mundo” caiu em desuso. Devemos, porém, atentar para o fato de
que o referido “sul” não diz respeito a uma entidade geográfica, tampouco a um tipo ideal (MORIN,
2011). Os “suis” são muitos e estão por toda parte: no sul global, no norte, em nós mesmos. De acordo
com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) o termo “Sul” faz referência ao
coletivo de países em desenvolvimento que compartilham uma série de desafios e vulnerabilidades em
nível internacional, sem que isto implique que todos pertençam a uma mesma categoria de
desenvolvimento econômico, político ou social.
neste quadro a perspectiva do discurso – como um fenômeno social e político
essencial para a construção e para a desconstrução das relações de poder em
qualquer sociedade (AMARAL, 2013).
É ai que situamos a importância da Análise do Discurso (AD), porque preocupa-
se em entender e interpretar sentidos que estão socialmente construídos, ao invés de
buscar determinantes causais. E sustentamos que um potencial interessante da AD é
a possibilidade de seu uso com investigações de teor pós-colonialista, tendo em vista
que, como lembra Toledo (2011), ambas abordagens teóricas e metodológicas têm
como um de seus focos questões relativas à desigualdade, diferença e identidade nas
RI pelo prisma da construção do Outro.
Entendendo que uma das principais questões levantadas pelo Pós-colonialismo,
que influi diretamente na prática das Relações Internacionais, é o giro epistemológico
na “geopolítica do conhecimento” (DUSSEL, 1977), a presente análise propõe-se,
assim, a trazer o Pós-colonialismo para o debate apontando algumas contribuições
dessa corrente teórica fundamentada nas ideias de Walter Mignolo sobre delinking, a
partir da chamada Teoria Decolonial, e da Análise do Discurso para a construção de
identidades políticas e o desvelamento da manutenção de status quo.
Considerando a pluriversidade dos trabalhos e pesquisas dentro do amplo
campo da Teoria Decolonial pensamos em contribuir para o avançar dessa teoria, com
foco no alargamento da substância da disciplina de TRI, trazendo ao debate a
perspectiva da AD. Esta pretensão se justifica porque a compreensão da
decolonialidade passa por um forte processo criativo, vivendo um momento de grande
ebulição teórica, inclusive de revisão autocrítica interna.
A Teoria Decolonial vem se desdobrando numa profusão de temas e questões
problematizantes e problematizadoras, bem como diversos e inovadores conceitos que
estão sob forte debate e em processo de construção e afirmação. Nesse bojo, além de
ocorrer uma profunda releitura de diversos autores identificados com o Pós-
colonialismo, o pensamento Decolonial provoca entrelaçamento com outras matrizes
de pensamento, que pensam e enfrentam a condição colonial como o ponto de
partida, como a Teologia da Libertação, Teoria da Dependência, Teoria dos Sistemas-
Mundo, Estudos de Gênero e Pedagogia da Libertação.
A ideia do artigo, nesse espirito, é apresentar um caminho inicial de inter-relação
AD-RI, fundamentadas no pensamento Decolonial, trazendo os aspectos discursivos a
nível protagonista nesse debate.
Apenas a título ilustrativo, buscaremos indicar essa associação AD-RI a partir da
observação e problematização, retratada em grossas tintas, do atual comportamento
do Brasil nos seus relacionamentos Sul-Sul, pontualmente com os países da América
Central. Mas destacamos que nos limitamos, como contribuição crítica à hegemonia
epistemológica “racionalista” das RI, à ilustração de argumentos e conceitos, cientes
de que um maior número empírico de estudos é necessário para que se facilite a
verificação dessas potencialidades.
2. Situando o discurso
Se pensarmos brevemente em Michel Foucault, como um dos grandes
inspiradores dos trabalhos ditos pós-modernos, para quem toda forma de dominação
depende de uma articulação entre conhecimento e poder; e por decorrência em
Richard Ashley, com a proposta de desconstruir o discurso tradicional das RI,
poderíamos inferir que pensar as teorias de RI como discursos de poder ou modos de
interpretação, são, na verdade, uma definição típica dos trabalhos dos pós-modernos.
A desconstrução é uma modalidade característica de trabalhos pós-modernos e,
de fato, ao se pensar no significado de discurso, as teorias de RI não deveriam ser
avaliadas como representações de um mundo real, externos a esses discursos. Mas,
usando essa desconstrução, o intuito central do pensamento pós-moderno é
questionar as dicotomias nas quais as teorias dominantes se baseiam para construir
sua representação de política mundial, como por exemplo anarquia/soberania;
guerra/paz; conflito/cooperação – essas que são apresentadas como lógicas e
naturais e conformam temáticas tidas como definidoras dos estudos internacionais.
(NOGUEIRA e MESSARI, 2005).
O Pós-modernismo - que rejeita a qualidade objetiva de verdade auto-evidente
dos discursos que constroem uma certa representação sobre política mundial - se
encontra com o Pós-colonialismo quando se entende que esses discursos são feitos a
partir de uma perspectiva particular, e não de uma posição racional universal.
Mas o Pós-colonialismo não está interessado na desconstrução per se, como
parece ser o que faz o Pós-modernismo, o que acaba dando-lhe afiliação a uma
aparente eterna dissidência, que não impulsiona mudanças e não apresenta propostas
de transformações. Após a constatação da colonialidade, a decolonialidade tenta ir
além da acusação: procura alternativas ao eurocentrismo e ao colonialismo no
pensamento. Além disso, a diferença também é apontada na aparente subjetividade
no Pós-modernismo, quando parece ser o Ocidente que é colocado na posição de
narrador, enquanto o resto do mundo apenas reage, como se não tivesse história
própria.
E tomando as discussões em Teoria de Relações Internacionais por referência
para essas reflexões, localizamos o discurso como balizador já mesmo a partir da
própria escolha lexical que se vê no conhecido e seminal artigo de Robert Keohane
(1988) – quem foi o iniciador do chamado Terceiro Debate4 na disciplina de Relações
Internacionais – onde o teórico propôs duas categorias contrastantes de abordagens
para o estudo das relações internacionais: a racionalista e a reflexivista. Seguindo a
distinção simplificada proposta por Resende (apud TOLEDO 2011), a primeira é a que
destaca a diferenciação entre fatos e valores, a busca por regularidades no mundo
social e o uso de metodologias inspiradas nas utilizadas nas ciências naturais. A
segunda focaria em como a subjetividade humana e as relações de poder, por
exemplo, impactam a produção do conhecimento sobre o mundo.
A crítica de Keohane aos reflexivistas fez-se sobretudo na suposta ausência de
um programa de pesquisa definido em termos de teoria e hipóteses, que tivessem
aplicação. Ele estava alinhado a uma visão positivista sobre a produção do
conhecimento científico. Mas esses autores chamados reflexivistas, sejam eles
teóricos críticos, pós-estruturalistas, feministas e, pós-colonialistas – que poderíamos
agrupar, não por semelhanças ontológicas ou epistemológicas, como pós-positivistas,
já que, independentemente dessas diferenças, estão unidas pelo rechaço a
metodologia positivista – queriam, portanto, questionar esta forma de se tentar
conhecer a realidade social.
A discussão é, destarte, ontológica e epistemológica. “Não se trata de uma
simples disputa sobre qual metodologia deve ser empregada para conhecermos o
mundo: objetiva-se debater qual a natureza das relações internacionais e como
podemos apreender essa realidade – se é que podemos” (TOLEDO, 2011, p.644).
Os debates de outros campos das Ciências Humanas influenciaram os esforços
4 A evolução teórica das Relações Internacionais tem sido marcada pelos grandes debates da disciplina
que ocorreram na sequência de eventos mundiais significativos e se caracterizam pelo embate entre as
teorias dominantes e as emergentes, que procuram oferecer novos elementos explicativos da ordem
vigente. O Primeiro Grande Debate ocorreu entre o Realismo e o Liberal-idealismo. O Segundo, entre o
Tradicionalismo e o Behaviorismo. O Terceiro Grande debate também é conhecido como o “debate de
paradigmas”, ocorrido ao longo da década de 70, período marcado por uma crescente transnacionalização
da economia e a emergência de novos atores internacionais. Destacam-se no Terceiro Grande debate a
Escola Inglesa e os paradigmas pós-positivistas.
desses autores para o desenvolvimento de uma crítica a tais pressupostos que
avalizavam as abordagens racionalistas. Essas contribuições “reflexivistas” cresceram
significativamente na área de Relações Internacionais, e levaram as discussões para
questões como a produção do conhecimento dito científico e a emancipação humana.
O final dos anos 80, portanto, que marcou o início desse Terceiro Debate em RI,
viu surgir pesquisadores de Relações Internacionais interessados naquilo que se
convencionou chamar de práticas pós-estruturais, pós-modernas ou pós-positivistas –
um momento de inserção sem precedentes dos estudos linguísticos na disciplina.
Contudo, “ainda não é possível afirmar que essas abordagens sejam predominantes
nos debates, os quais ainda se fazem majoritariamente segundo os termos e
preocupações clássicas” (MUSUMECI, 2011, p. 3261).
Nesse contexto, foi a partir da chamada Virada Linguística5 que a Análise do
Discurso ganhou destaque entre essas novas contribuições como estratégia para
estudo de diversos objetos de pesquisa nas Ciências Sociais em geral, e também nas
RI em particular.
De acordo com Eni Orlandi, uma das mais importantes estudiosas dessa
disciplina no Brasil, a AD se constitui como investigadora dos processos de
significação por meio do estudo do discurso que é, segundo essa autora, “efeito de
sentidos entre locutores” (2006, p. 14). Ancorada na compreensão de que é na
linguagem que se materializa o social e o inconsciente, Orlandi aponta a Análise do
Discurso, pecheuxtiana6, ocupando um lugar teórico e metodológico que atravessa o
estruturalismo linguístico, o marxismo e a psicanálise lacaniana.
5 Ainda que possa ser encontrada em outras áreas, a expressão “virada lingüística” é típica do campo filosófico. Designa o predomínio da linguagem sobre o pensamento como um dos objetos da investigação filosófica. A expressão já estava em uso quando, em 1966, o filósofo Richard Rorty reuniu em um volume um número significativo de textos importantes a respeito de “filosofia lingüística”, com o título de The linguistic turn. A partir dos anos 1970 o termo começou a fazer-se cada vez mais comum nas literaturas das ciências sociais, servindo para designar a mudança no papel atribuído à linguagem, que deixou de ser encarada como um simples meio para traduzir ou expressar o pensamento e passa a ser concebida como um instrumento para a própria constituição das ideias em si mesmas. O movimento pós-moderno, a emergência do pós-estruturalismo, as ideias provenientes da Teoria Crítica e da crítica social podem considerar-se quatro das maiores influências para a virada linguística nas ciências sociais. O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein também é comumente associado a um dos principais atores da virada linguística na filosofia do século XX. 6 Chamamos a atenção aqui para o fato de que as análises em Relações Internacionais costumam trabalhar com essas abordagens de AD de tradição francesa, e é a partir dessa que informamos este estudo. Há ainda, porém, a AD de origem anglo-saxã, cuja diferença pode ser simplificadamente explicitada no fato de que a última “considera a intenção dos sujeitos numa interação verbal como um dos pilares que a sustenta, enquanto a AD francesa não considera como determinante essa intenção do sujeito” (MUSSALIM 2001, p. 113).
Tomando de empréstimo ainda de Toledo (2011) a sistematização que esse
autor faz das ideias de Orlandi, o valor que conferimos a AD, nessa sua vertente
francesa, reside na relação entre (1) a ideia de que a língua tem sua ordem própria
mas só é relativamente autônoma; (2) a realidade da história é afetada pelo simbólico;
e (3) o sujeito da linguagem assujeitado, ou seja, é afetado tanto pelo “real da língua”
como também pela realidade histórica.
Para a Análise de Discurso a língua comporta uma ordem (o real), que é
condição para que o efeito de sentido entre locutores (a discursividade) dê-se como
tal. Onde o discursivo é definido como um processo social cuja especificidade está no
tipo de materialidade de sua base, a materialidade linguística. Segundo análise de
Blanca de Souza Viera Morales (2003) da obra Pêcheux e Gadet (1987) existe, para
esses autores:
um real da língua que tem a ver com a ordem da língua- ordem
significante em funcionamento, marcada pela falha. Existe também a
ordem da história, o lugar do equívoco, que impede o sucesso total
das identificações e obriga o sujeito a tomar uma posição, a
interpretar. (...) Assim, a questão do real da língua, para a AD,
inscreve-se na contradição entre uma ordem própria da língua,
imanente à estrutura, e uma ordem exterior, fala-se de “real da língua
e real da história”. O real, trazido por Pêcheux para a AD, o “real
sócio-histórico”, é da ordem dos processos e das práticas sociais.
(MORALES, s/d, p.3)
Logo, infere-se que a AD afirma que não se separa o funcionamento linguístico
das condições extralinguísticas de produção, ficando os efeitos de sentido direta e
necessariamente ligados à historicidade e ideologia que os constituem. A linguagem é
percebida como resultado das interações sociais e relações de poder que regem as
possibilidades interpretativas dos enunciados. O texto é a unidade de análise, mas a
AD preocupa-se não com a busca do sentido contido no texto, senão com os
mecanismos de atribuição de sentidos que se constroem em função das formações
discursivas constituídas em relação direta com a formação ideológica que as
demarcam.
Ou seja, para a AD o sentido atribuído a um enunciado ou conjunto de
enunciados, de palavras e expressões histórico e discursivamente marcados, é
sempre delimitado pelas posições ideológicas que atravessam os locutores/sujeitos.
Para posicionar a noção de ideologia, entre suas muitas possibilidades destacamos a
nota proposta por Quevedo (2012):
A ideologia, amiúde entendida no senso comum como ocultação da
realidade, foi ressignificada na AD. Orlandi (1995) considera-a
enquanto mecanismo de (re)produção e naturalização de sentidos.
Para Žižek (1990), a ideologia não é somente um mecanismo de
produção de evidências no discurso, mas também uma construção
fantasística a qual estrutura a própria realidade (social), e nesse viés
deve ser abordada. Tal estruturação age duplamente: elide/mascara
o antagonismo impossível do edifício social e impõe ao sujeito um
gozo estruturado na fantasia.
A Análise de Discurso fornece um importante repertório para se pensar relações
internacionais porque trabalha com tópicos essenciais às próprias teorias de RI em
geral; consideram o discurso e a sua relação constitutiva com a exterioridade –
aspectos de subjetividade que importam, por exemplo, na consideração do papel de
um governo, das forças armadas ou outros agentes.
A Análise do Discurso, visto geralmente nas RI apenas como método, entra aqui
então como um “pacote completo”, teórico-metodológico, especialmente pela sua
reflexão de sujeito. Implica uma perspectiva sobre a natureza da linguagem e da sua
relação com questões centrais das ciências sociais que acarreta não só práticas de
recolha de dados e de análise (questões metodológicas) mas também um conjunto de
assunções metateóricas e teóricas.
No dizer da pesquisadora Conceição Nogueira:
Assim, a AD não é simplesmente uma alternativa às metodologias
convencionais: é essencialmente uma alternativa às perspectivas nas
quais essas metodologias estão imbuídas, isto é, é uma alternativa ao
positivismo, ao póspositivismo e às suas perspectivas
epistemológicas no geral.(NOGUEIRA, 2008)
Vemos, portanto, que a disciplina não é textualismo, e que nunca pôde ou pode
arrogar-se de ser uma ciência interpretativa unicamente a partir de si mesma. Ela se
realiza multilateralmente com outras ciências humanas em resposta às exigências que
estas apresentaram, às quais a mera análise de conteúdo não é capaz de atender.
Contribuições de áreas como da Sociologia, da Antropologia, e das Relações
Internacionais, são necessárias para se entender os discursos analisados. Podemos
apontar como um ponto de diálogo entre a AD e outras áreas (como a RI) que a AD é
uma disciplina de interpretação formal (não conteudística). Essa é razão, por ser
formal, por ter como objeto os processos de produção de sentidos – em outras
palavras, os "comos" e não os "o-quês" – pela qual ela precisa se associar a
disciplinas de conteúdo.
Ilustremos pensando em uma consulta médica a um ortopedista: o médico
convida o paciente a interpretar a radiografia. A grosso modo, um analista pode
discutir o discurso médico, os processos sócio-históricos de
medicalização/patologização, a (re)produção e reconhecimento de evidências, o
atravessamento da ideologia no discurso científico, mas, sem o conhecimento da área,
jamais vai poder "interpretar" a radiografia.
Um trabalho de leitura em AD, deste modo, e conforme o que fica elucidado
pelos linguistas Aracy Ernst-Pereira e Marchiori Quevedo (2013), visa a disciplinar
como um texto deva ser interpretado, seja ele um texto escrito ou visual. É um trabalho
que se dá em nível discursivo (em que se agencia a posição-sujeito leitor) e
enunciativo (em que dos sentidos possíveis, um é atualizado). É o processo entendido
como “gestão dos sentidos”, ao qual Orlandi (1999) refere-se como o processo de
compreensão de como um objeto simbólico produz sentidos, como ele possui
significância para e por sujeitos.
A AD lida, então, com questões epistemológicas importantes que causam
impactos significativos para a compreensão do mundo social. Contudo, prevalece em
RI o seu entendimento meramente enquanto um método, e sua aplicação por vezes se
dá a determinados objetos sem o devido cuidado com as concepções de discurso e de
história que lhe são fundamentais – esta, uma noção muito cara ao debate pós-
colonial.
3. Delinking como proposta epistemológica
O autor argentino Walter Mignolo está inserido no projeto de
modernidade/colonialidade ao lado de outros autores latino-americanos das diversas
áreas das ciências sociais como Artur Escobar, Edgardo Lander, Fernando Coronil e
têm em Aníbal Quijano e Enrique Dussel as figuras que lideram esse projeto. O projeto
acusa a lógica da colonialidade existente nas relações sociais, políticas e econômicas
que tiveram início na colonização da América no século dezesseis e se perpetuam até
o momento e, mais importante: a colonialidade do conhecimento. Não só visando a
constatação da colonialidade, o projeto intenta ir além da acusação: procura
alternativas ao eurocentrismo e ao colonialismo no pensamento.
Desse modo, o pensamento de Quijano em particular é essencial na medida em
que seus pressupostos fundamentais são tomados como base para a elaboração da
proposta de Walter Mignolo (2007), que afirma que o autor peruano foi quem
introduziu o conceito de colonialidade como o lado invisível e constituinte da
modernidade, e conectou a colonialidade do poder nas esferas política e econômica
com a colonialidade do conhecimento.
A intenção de Quijano (1992) é demonstrar o regionalismo da noção de
Totalidade que foi formada e expandida pelos europeus, propagadas como se fossem
valores universais quando eram apenas resultado de um conjunto de fatores
particulares ao contexto socioeconômico da Europa. O projeto articulado em torno da
noção de colonialidade do poder aponta para duas direções simultâneas.
A primeira é analítica, pois pretende reconstruir histórias silenciadas,
subjetividades reprimidas, conhecimentos subalternizados pela Totalidade, em nome
da modernidade e racionalidade. Mignolo (2007) faz a ressalva de que alguns autores
pós-modernos já fizeram a crítica a essa ideia de Totalidade, mas o fizeram dentro da
história europeia e da história das ideias europeias, o que torna suas críticas internas
e limitadas ao mesmo conjunto de pensamento que pretendem criticar. Daí vem a
necessidade de que se reconheça a colonialidade, e que essa crítica venha a partir
dessa perspectiva.
Isso nos leva à segunda direção do projeto articulado em torno da colonialidade
do poder, a direção programática. Uma vez reconhecida a colonialidade, feita a crítica
a partir de sua perspectiva, o próximo passo inevitável é o que Quijano (1992) vai
chamar de “desprendimiento”, conceito que Mignolo (2007) atribuirá a seu projeto de
mudança epistemológica sob o nome de delinking.
Quijano define sua proposta de descolonização do pensamento como:
La crítica del paradigma europeo de la racionalidad/modernidad es
indispensable. Más aún, urgente. Pero es dudoso que el camino
consista en la negación simple de todas sus categorías; en la
disolución de la realidad en el discurso; en la pura negación de la idea
y de la perspectiva de totalidad en el conocimiento. Lejos de esto, es
necesario desprenderse de las vinculaciones de la
racionalidad/modernidad con la colonialidad, en primer término, y en
definitiva con todo poder no constituido en la decisión libre de gentes
libres. Es la instrumentalización de la razón por el poder colonial, en
primer lugar, lo que produjo paradigmas distorsionados de
conocimiento y malogró las promesas libertadoras de la modernidad
(QUIJANO apud Mignolo, 2007, pp.452-3).
Nesse sentido é que surge a proposta de Walter Mignolo: tendo sido constatada
a colonialidade no saber, é preciso buscar a sua decolonização, ou, dito numa
perspectiva discursiva, a ressignificação do dito, sua releitura, sua atualização. A
decolonização também se faz em discursos que atravessam um dito e o colocam em
outro lugar, diferente do supostamente evidente. Delinking refere-se ao termo
cunhado primeiramente por Samir Amim, cuja descolonização epistêmica corre em
paralelo com a proposta por Mignolo (2007). Espera-se dessa proposta que ela, além
de levar à descolonização epistêmica – ou melhor, por consequência disso – traga à
tona outras epistemologias, outros princípios de conhecimento e compreensão, que
evidenciem outra economia, outra política, outra ética.
Quando Dussel revela a retórica por trás do que ele chama de “conceito racional
de emancipação”, ao desvendar as limitações que tal conceito apresenta uma vez
retirado de seu contexto, isto é, ao recuperar-se suas condições de produção, fica à
mostra a experiência histórica particular europeia e a classe social burguesa
ascendente que desejava a liberdade do sujeito da monarquia e da coerção da Igreja
(MIGNOLO, 2007). A colonialidade, o outro lado da modernidade, não é levada em
consideração no conceito racional de emancipação, e essa é uma crítica basilar que
fazem os autores que participam do grupo de modernidade/colonialidade (MIGNOLO,
2007; QUIJANO, 1992; LANDER, 2005; DUSSEL, 2005).
Uma preocupação central desses autores, poder-se-ia então inferir, são as
categorias discursivas – às quais não se remetem diretamente – expressa aqui na
importância dada a “retórica”, neste caso a da modernidade, com seus abstratos
universais como a liberdade, a igualdade, universalidade, direitos dos Homens, entre
outros, que permitiu que a matriz colonial do poder, que era parte dessa mesma
modernidade, fosse mantida em segredo, e ainda divulgasse o mito da modernidade
como progresso. Por esse motivo Mignolo (2007) defende a descolonização
epistêmica “de-colonization (of the mind) must unveil the totalitarism complicity of the
rhetoric of modernity and the logic of coloniality in order to open up space for the
possibility […] of ‘another world’ in which many worlds will co-exist” (MIGNOLO, 2007,
p. 469).
Analogamente, em AD o gesto de ler/interpretar alude a que todo sujeito produz
sentido a partir de um dispositivo ideológico, que orienta esse processo em uma ou em
outra direção. A tarefa do analista, destarte, não se reduz a compreender como o texto
produz sentidos: ela abrange também investigar que gestos de interpretação estão
constituindo os sentidos e os sujeitos, em suas posições (ORLANDI, 1995). Os
sentidos, nessa perspectiva, adviriam de diferentes investimentos sociais em um
objeto simbólico, a partir dos quais os sujeitos viriam a se constituir historicamente, na
identificação com os discursos que produzem efeitos desses sentidos.
Considerando nesse interim a questão já mencionada do real da língua, que se
inscreve na contradição entre uma ordem própria da língua, imanente à estrutura, e
uma ordem exterior, temos outra noção importante trazido por Pêcheux (1990) para a
AD. O “real sócio-histórico”, da ordem dos processos e das práticas sociais, quando
projetadas à crítica discursiva da colonialidade como o lado invisível e constituinte da
modernidade, demonstra o regionalismo europeu da ideia de Totalidade, apontado por
Quijano.
A intenção de denunciar a pretensa universalidade de uma etnia particular – que
Mignolo classifica como body politics – localizada em uma localidade específica do
planeta – o que Dussel chama de geo-politics – pressupõe que o projeto de delinking
mover-se-á para além dos espaços das referidas políticas do conhecimento, o que
permite dizer que o projeto deve ser compreendido como um giro epistêmico
descolonial (MIGNOLO, 2005) que leve a uma outra universalidade, ou melhor
dizendo: uma pluri-versalidade como projeto universal (MIGNOLO, 2007).
A validade e o peso da noção de discurso, portanto, que a rigor não é tratada por
Mignolo, pode ser relacionada, inclusive, com sua proposta, dentro do projeto
delinking, numa gramática da descolonização epistêmica, compreendendo um
vocabulário, sintaxe e semântica específicos. Por um lado, é preciso demonstrar a
parcialidade e limitações do paradigma ocidental, o que vai permitir o crescimento e
expansão do conhecimento. Mas essa atitude sozinha não seria suficiente, pois “it will
not suffice to denounce its content while maintaining the logic of coloniality, and the
colonization of knowledge, intact. The target of epistemic de-colonization is the hidden
complicity between the rhetoric of modernity and the logic of coloniality” (MIGNOLO,
2007, p.485). Espera-se que gramática da descolonialidade, descolonização do
conhecimento e do ser levará conseqüentemente à descolonização da teoria política e
da economia política.
4. “Excesso” no discurso
Pensando nesses termos, cumpriria ótimo papel, então, aqui, a pista do
“excesso” da linguista Aracy Ernst-Pereira (2009), reconhecendo-o como uma mui
válida porta de acesso ao processo discursivo. De acordo com essa linguista, a
natureza da AD, que não segue critérios positivistas, gera o problema do recorte no
corpus empírico para que se estabeleça o corpus discursivo, e então se aplique os
procedimentos descritivos e interpretativos que conformam o modo de trabalho da AD.
“A preocupação fundamental é buscar um equilíbrio entre a demanda da reflexão
lingüística e a demanda da reflexão sobre a exterioridade teórica convocada” (ERNST-
PEREIRA, 2009).
E as operações requeridas para essa calibragem teórica-metodológica, segundo
Ernst-Pereira, é facilitada tendo presente três conceitos: a falta, o excesso e o
estranhamento. São para a autora conceitos operacionais que são a chave para o
analista criar o gesto de interpretação de sentidos diante dos seus objetivos.
Acreditamos que aquilo que é dito demais, aquilo que é dito de
menos e aquilo que parece não caber ser dito num dado discurso,
numa dada conjuntura histórica frente a um dado acontecimento,
pode ser uma boa via, embora preliminar e genérica, para a
identificação de elementos a partir dos quais poderá se desenvolver o
movimento de interpretação do analista (ERNST-PEREIRA, 2009,
p.1).
No nosso caso, cabe pensar o excesso tendo-o como, no dizer da autora, um
acréscimo necessário ao sujeito que visa garantir a estabilização de determinados
efeitos de sentido dada a iminência (e o perigo) de outros a estes se sobreporem.
Ilustrativamente, estaria cheio de excessos, nesse sentido dado por Ernst-
Pereira, o atual comportamento do Brasil nos seus relacionamentos Sul-Sul de forma a
podermos configurar um discurso apto ao gesto de interpretação?
Na última década, conforme apontam diversos autores brasileiros de RI que
tratam da Política Externa Brasileira (PEB), o Brasil ampliou sua participação no
cenário internacional (VELASCO, STUART, 2010; MIYAMOTO, 2011: AYRES PINTO,
MESQUITA, 2012; PECEQUILO, 2008). As explicações passam por avaliações das
mudanças nos polos de poder internacional, pelos atributos dos líderes da PEB e
mudanças do padrão normativo dentro do Itamaraty. Os exemplos incluem a
diversificação do comércio exterior brasileiro, o universalismo na formação das
parcerias internacionais, o exercício do multilateralismo, os posicionamentos por
reformas das instituições internacionais e o discurso de líder regional que, assim,
conformam os grandes traços do recente desempenho da diplomacia nacional.
É mister tomar em conta aqui o que postula Silva, Spéce e Vitale (2010) – de
que esse cenário impulsionou uma “horizontalização” dos processos decisórios da
PEB e gerou abertura para o relacionamento com novos atores, estatais ou não-
estatais – e que, consequentemente, um dos principais reflexos dessa
horizontalização é a utilização da cooperação internacional para o posicionamento do
Brasil como uma liderança regional, com aspirações de potência global, como sustenta
Ayres Pinto e Mesquita (2012).
Dando especificidade, apontamos, por exemplo, que a característica central das
relações atuais entre Brasil e os países do istmo centro-americano – região onde o
país também faz esse mesmo grande expediente que na África (embora bem menos
conhecido e pouco falado) – é a modalidade de cooperação internacional chamada
Sul-Sul (CSS). A posição que o Brasil ocupa no sistema global de cooperação está
caracterizado pela consciência de sua posição híbrida entre o Norte e o Sul, assim
como das percepções que o identificam como um país importante e crucial para a
estabilidade e o desenvolvimento da região em que está inserido.
Em rápida conceituação, CSS é um termo empregado para se referir a um amplo
conjunto de fenômenos relativos às relações entre países em desenvolvimento –
desde a formação temporária de coalizões no âmbito de negociações multilaterais até
o fluxo de investimentos privados. Para especialistas, a CSS diz respeito a um âmbito
geográfico específico da cooperação para o desenvolvimento. (LEITE, 2010).
Segundo o Ministério de Relações Exteriores brasileiro (MRE), “o Brasil
considera que a cooperação Sul-Sul não é uma ajuda, mas sim uma parceria na qual
as partes envolvidas se beneficiam, ou seja, adota o princípio da horizontalidade na
cooperação”7. E para a Agência Brasileira de Cooperação (ABC) “sem fins lucrativos e
desvinculada de interesses comerciais, a cooperação técnica pretende compartilhar
êxitos e melhores práticas nas áreas demandadas pelos países parceiros”8.
A relação brasileira com os centro-americanos é emblemática. As relações
econômicas, políticas e culturais entre o Brasil e os países da América Central –
Belize, Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Costa Rica e Panamá –
demonstram durante o século XX, de acordo com Carlos Federico Domínguez Avila,
um dos poucos pesquisadores do relacionamento brasileiro centro-americano, “uma
tendência orientada para uma gradual convergência de interesses, cordialidade e
fortalecimento dos diferentes vínculos”(2011 p.17), Ávila divide o histórico do
relacionamento brasileiro-centro-americano em três fases: a dos contatos iniciais
7 Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/temas/cooperacao-tecnica/ 8 idem
(1906-1950), a do fortalecimento das relações diplomáticas plenas (1950-1971), e a da
consolidação das relações econômicas e políticas (1971-1979).9
E partir da virada do século XXI, logo do fim das hostilidades bélicas nas guerras
civis nos países do istmo, o relacionamento entre o Brasil e os países centro-
americanos se altera e é marcado por uma grande expansão no plano econômico e
uma dinâmica muito mais ativa no plano político. A visita do então presidente brasileiro
Fernando Henrique Cardoso ao istmo, em abril de 2000, foi um ponto de inflexão
nesse relacionamento. A Declaração de São José, surgida a partir desses encontros,
traçou os tópicos que guiam a relação e entre seus 11 pontos que firma “o
compromisso dos nossos governos de estreitar os tradicionais laços de amizade e
cooperação existentes entre nossos países e nosso renovado empenho em intensificar
os mecanismos de integração econômica na América Latina e Caribe”, destacamos o
fortalecimento da cooperação – que ressalta a valorização da cooperação horizontal
e o diálogo Sul-Sul.
Mas é sabido que as ações de cooperação internacional não são apenas de
ordem solidária, nem de neutralidade. E foi assim, partir de 2003, com o início do
governo Lula, que as relações do Brasil com a América Central ganharam novo
impulso, precisamente nesse contexto mais amplo da política de cooperação Sul-Sul.
De forma geral, a partir dos governos PT, nova ênfase foi dada a região a partir do
processo de redefinição, por parte do Brasil, do seu próprio conceito de vizinhança.
(SIMÕES, 2012).
De enfoque inicialmente concentrado no Cone Sul (Mercosul) e ampliado para
englobar toda a América do Sul como espaço político (ideia que deu origem a Unasul)
passou-se a vislumbrar toda a América Latina e o Caribe como possuidores de
características e interesses comuns. Com base nesse conceito, a Celac (Comunidade
de Estados Latino-americanos e caribenhos), com sua criação em 2010, passa a ser o
foro privilegiado. No dizer de membros da diplomacia brasileira, tais esforços, que se
refletem englobando a América Central, representariam “a evolução qualitativa e
quantitativa dos esforços de integração do Brasil” (SIMÕES, 2012, p. 83).
Outro diplomata brasileiro, Sério Danesse, também opina nesse sentido:
No plano externo, temos de saber convencer os nossos parceiros de
que qualquer iniciativa que se assemelhe a um impulso de liderança
brasileiro consulta também os interesses desses parceiros, e que o
9 Detalhamento das características e significados de cada uma dessas fases proposta por Avila é encontrada na sua obra “As Relações Entre o Brasil e a América Central – Um século de afinidades eletivas, solidariedade e convergência (1906-2010)”
Brasil, por seu peso e amplitude dos seus interesses, tem capacidade
de impulsionar e sustentar processos de parceria com liderança sem
hegemonia (DANESSE, 2009, p. 173).
Essa conjuntura e esforços comportam uma dimensão solidária, mas também
pragmática da nossa política externa. Por isso, enquadrar o papel do Brasil, contudo,
nos processos de regionalização das relações internacionais na América Latina,
caracterizando criticamente, por exemplo, a existência de um sub-imperialismo
brasileiro devido à sua base econômica de expansão na região, dependeria de uma
estruturação discursiva, com gestos de interpretação de sentidos próprios, requereria,
isto é, um trabalho analítico de discurso.
Há uma profusão, um aparente excesso no discurso brasileiro quanto ao Sul-Sul.
Esse excesso seria de itens lexicais ou sintagmas atinentes a um campo semântico,
como, por exemplo, onde se vê: "liderança sem hegemonia”, "multipolaridade",
"respeito", "cooperação", "solidariedade”. Vê-se indícios de um discurso, expresso em
diversas peças textuais da nossa diplomacia, que demandaria análise específica e
cuidadosa para se verificar se a pista do excesso postulado por Ernst-Pereira (2009),
daquilo que parece estar dito demais, representa ao sujeito o Estado brasileiro a
intenção de garantir determinados efeitos de sentido, sob o receio de haver outros que
o sobreponham, ou como tática de manutenção de status quo.
Aqui a ideia de excesso é transformada em pista para aceder ao discurso
brasileiro sobre o Sul-Sul, neste caso na relação com a América Central, e
configurar/restaurar/interpretar as condições de produção desse discurso.
5. Considerações finais
Com base nisso, e observando discursos específicos no Sul Global, identifica-se
o pensamento pós-colonial, ancorado na Análise do Discurso, como uma abordagem
teórica em RI que contribui proficuamente para a análise da produção e reprodução da
ordem mundial. É uma combinação que permite a constatação de um presente ainda
permeado por uma série de discursos e relações sociais que confluem na perpetuação
da assimetria da distribuição do poder.
Possíveis agendas de pesquisa resultantes do encontro da AD com Relações
Internacionais: a construção de identidades políticas nas relações internacionais e
como determinados discursos atuam para a manutenção do status quo.
Nesse framework, a noção de discurso da AD estaria para a proposta decolonial
como a discussão sobre história decolonial estaria para a AD. De forma geral, em
aquiescência com Toledo (2011), o encontro da AD com as RI é rico para ambas as
partes: de um lado, a Análise do Discurso pode proporcionar maior rigor metodológico
para análises que versam sobre a construção discursiva de identidades; de outro lado,
as Relações Internacionais possibilitariam que a AD desenvolvesse ainda mais seus
potenciais ao lidar com temáticas relacionadas a conteúdos empíricos, analisadas pela
ótica do discurso.
Um dos grandes acertos da teoria da AD peuchextiana é produzir um dispositivo
teórico-analítico que dê conta não das intenções de um sujeito individual (das quais
nem mesmo ele poderia se dar ao luxo de arrogar qualquer certeza), mas de um
funcionamento de sentidos que constitui, e no/pelo qual se reconhece, um sujeito
histórico.
Em Análise de Discurso, do mesmo modo que a descrição e a interpretação
estão em um mesmo batimento também a metodologia e a análise estão em um
constante ir e vir. É a partir do corpus a ser definido que se definirá a metodologia, e
esta retroativamente configurá-lo-á. O trabalho do analista, de acordo com Quevedo
(2012) é atravessar o gesto de ver/olhar; é aceder ao gesto de reparar: verbo que
alude tanto ao olhar mais demorado, perceptivo, quanto ao procedimento de restaurar
o processo discursivo que preside a (in)visibilidade.
Esse instrumental é mister para, dentro da perspectiva decolonial, contribuir com
um mundo onde vários mundos podem coexistir. O mundo precisa ser decolonizado e
reformulado através da geopolítica do conhecimento, mas para que a decolonização
do conhecimento seja plenamente operante nós precisamos criar alternativas para a
modernidade e a civilização neoliberal. Mignolo (2007) afirma que alternativas a partir
das perspectivas e consciências epistêmicas vindas “de baixo”, sob os moldes que ele
está propondo não são mais utopias: já estão anunciadas na escrita, oralmente a
através de movimentos sociais e intelectuais. Embora não sejam amplamente
divulgadas, múltiplas fraturas estão criando largas quebras epistêmicas.
A conexão AD e RI, tendo como pano de fundo o pensamento pós-colonial, é
uma senda ainda por explorar-se.
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