A ANTROPOLOGIA E OS NOVOS DESAFIOS NOS ESTUDOS DE CULTURA E POLÍTICA

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Política e Trabalho 13 - Setembro / 1997 - pp. 165-177 A ANTROPOLOGIA E OS NOVOS DESAFIOS NOS ESTUDOS DE CULTURA E POLÍTICA (1) Guita Grin Debert (2) Falar de tendências atuais de uma disciplina como a antropologia - cujo fascín especialmente no fato de nunca ter se prendido a fronteiras geográficas, temát metodológicas - é correr o risco de privilegiar locais, métodos e temas para a antropológica. Por isso, dizer de onde se fala de novas tendências e dos nosso uma das formas de evitar dissolver o carme de indisciplina que caracteriza a antropológica. # área em que estou envolvida é a que, de maneira pioneira no $ camada de estudos da %ultura e Política. &sses estudos se institucionalizaram de tra'alo na #$# e na #(P)%* e constituíram-se em uma área de ensino e pesqu Programa de +outorado em %iências *ociais da ( %# P. Posso resumir o argumento que veno defendendo na maior parte dos de'ates que empreendido nessa área nos seguintes termos/ os estudos e pesquisas na área de Política no $rasil trou!eram frutos e!tremamente interessantes quando, analisa própria sociedade, constituímos os po'res, os desprivilegiados e as minorias é discriminadas em nosso o'jeto privilegiado de pesquisa, em nosso 0outro0. %om minuciosos mostramos como esses grupos desafiavam as formas de domina1"o de ma inusitada pelas teorias sociológicas, que enfatizavam a fun1"o omogeneizadora das tecnologia de poder. #tualmente, contudo, o desafio mais instigante da ant 'rasileira é a 'usca de acessos privilegiados para a compreens"o deste 0nós0 q prontamente opomos aos 0outros0, de forma a pro'lematizar a familiaridade com sido tratados pelos antropólogos e outros cientistas sociais. [i! "a #$%ina 1&' %onsidero que as discuss2es em torno da pós-modernidade fizeram deste desafio irrecusável para a antropologia, mesmo que ele já tivesse sido colocado para a muito antes do que o que se convencionou camar de antropologia pós-moderna ga visi'ilidade. 3uando penso em novas tendências da antropologia teno sempre como referência de 4aura (ader, pu'licado em 5676, numa colet8nea organizada por +ell 9:mes, i ;einventing #ntropolog: <=> . (esse artigo é feito um apelo aos antropólogos norte-amer para que se voltem ao estudo de sua própria sociedade, especialmente para a co como o poder e a responsa'ilidade s"o e!ercidos nos & #. ?rês raz2es s"o alega autora para justificar a import8ncia desse novo programa de pesquisas/ o progr 0efeito energizador0 da disciplina@ a antropologia estaria 0cientificamente ad empreendimento@ e tratar-se-ia de um empreendimento que tem 0relev8ncia democr a pena retomar cada uma dessas raz2es que considero centrais na avalia1"o de n tendências da disciplina, de novos programas de pesquisa ou de novos temas par investiga1"o. %om a e!press"o 0efeito energizador0, (ader procurava camar a aten1"o para a da indigna1"o como um motivo na definic"o dos temas da pesquisa antropológica,

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Guita Grin Debert

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Poltica e Trabalho 13 - Setembro / 1997- pp. 165-177

A ANTROPOLOGIA E OS NOVOS DESAFIOS NOS ESTUDOS DE CULTURA E POLTICA(1)Guita Grin Debert(2)

Falar de tendncias atuais de uma disciplina como a antropologia - cujo fascnio est especialmente no fato de nunca ter se prendido a fronteiras geogrficas, temticas e metodolgicas - correr o risco de privilegiar locais, mtodos e temas para a pesquisa antropolgica. Por isso, dizer de onde se fala de novas tendncias e dos nossos desafios uma das formas de evitar dissolver o charme de indisciplina que caracteriza a reflexo antropolgica. A rea em que estou envolvida a que, de maneira pioneira no Brasil, tem sido chamada de estudos da Cultura e Poltica. Esses estudos se institucionalizaram com os grupos de trabalho na ABA e na ANPOCS e constituram-se em uma rea de ensino e pesquisa no Programa de Doutorado em Cincias Sociais da UNICAMP.Posso resumir o argumento que venho defendendo na maior parte dos debates que tenho empreendido nessa rea nos seguintes termos: os estudos e pesquisas na rea de Cultura e Poltica no Brasil trouxeram frutos extremamente interessantes quando, analisando nossa prpria sociedade, constitumos os pobres, os desprivilegiados e as minorias tnicas discriminadas em nosso objeto privilegiado de pesquisa, em nosso "outro". Com estudos minuciosos mostramos como esses grupos desafiavam as formas de dominao de maneira inusitada pelas teorias sociolgicas, que enfatizavam a funo homogeneizadora e opressora das tecnologia de poder. Atualmente, contudo, o desafio mais instigante da antropologia brasileira a busca de acessos privilegiados para a compreenso deste "ns" que to prontamente opomos aos "outros", de forma a problematizar a familiaridade com que eles tm sido tratados pelos antroplogos e outros cientistas sociais.[fim da pgina 165]Considero que as discusses em torno da ps-modernidade fizeram deste desafio um convite irrecusvel para a antropologia, mesmo que ele j tivesse sido colocado para a nossa disciplina muito antes do que o que se convencionou chamar de antropologia ps-moderna ganhasse visibilidade.***Quando penso em novas tendncias da antropologia tenho sempre como referncia um artigo de Laura Nader, publicado em 1969, numa coletnea organizada por Dell Hymes, intitulada Reinventing Anthropology(3). Nesse artigo feito um apelo aos antroplogos norte-americanos para que se voltem ao estudo de sua prpria sociedade, especialmente para a compreenso de como o poder e a responsabilidade so exercidos nos EUA. Trs razes so alegadas pela autora para justificar a importncia desse novo programa de pesquisas: o programa teria um "efeito energizador" da disciplina; a antropologia estaria "cientificamente adequada" para tal empreendimento; e tratar-se-ia de um empreendimento que tem "relevncia democrtica". Vale a pena retomar cada uma dessas razes que considero centrais na avaliao de novas tendncias da disciplina, de novos programas de pesquisa ou de novos temas para a investigao.Com a expresso "efeito energizador", Nader procurava chamar a ateno para a importncia da indignao como um motivo na definico dos temas da pesquisa antropolgica, lembrando que desde os primeiros estudos dos sistemas de parentesco e organizao social - como em Morgan, por exemplo - no esteve ausente a indignao com a forma pela qual os ndios americanos eram tratados e expulsos de seus territrios. Entretanto, os jovens estudantes de antropologia norte-americanos no se voltam para pesquisas que provocam seus sentimentos de indignao. Os jovens antroplogos sabem que existem problemas fundamentais que afetam o futuro doHomo Sapiens, mas ainda esto presos a uma agenda de pesquisas que, depois dos anos 50, deixou de provocar esse tipo de emoo.A antropologia, de acordo com Nader, estaria especialmente qualificada para refletir sobre a forma como poder e responsabilidade so exercidos. Suas pesquisas sempre tiveram que ser eclticas nos[fim da pgina 166]mtodos utilizados, e sua abordagem do que est envolvido na compreenso da humanidade ampla, posto que os antroplogos se especializaram na compreenso de culturas em contextos transculturais. Os antroplogos aprenderam ainda a encontrar e analisar redes de poder, descrever costumes, valores e prticas sociais que no esto registrados em linguagem escrita. A leitura da quantidade avassaladora de material escrito, que instituies poderosas produzem, ajuda pouco na compreenso de como decises so tomadas no Congresso ou em uma empresa, de como determinadas polticas so implementadas ou temas para pesquisa so definidos como prioritrios, recebendo assim financiamentos especficos. Para entender essas questes preciso se debruar sobre redes de relaes, valores e prticas que dificilmente so identificadas no papel. Essa compreenso exige o treino e a familiaridade com que o antroplogo trabalha com o princpio de reciprocidade e com a dimenso cultural, quando analisa prticas que no podem ser explicadas como frutos de clculos racionais.A "relevncia democrtica" de tal programa de pesquisas, ainda de acordo com essa autora, estaria no fato de que o povo americano no conhece suas prprias leis e no sabe como funcionam as organizaes burocrticas que usa. No podemos deixar que o aprendizado de nossos direitos fique inteiramente a cargo da mdia. A antropologia pode e deve ampliar o escopo do seu pblico, e est bem equipada para descrever um sistema que se conhece vagamente e que tem um peso fundamental no direcionamento da nossa vida.Esse tipo de proposta, no contexto norte-americano, causa ainda uma srie de objees, relacionadas com a idia de que o trabalho de campo - de modo a garantir o estranhamento - deve ser feito em uma outra cultura, de preferncia no-ocidental. Nader considera, entretanto, que a pesquisa num banco, numa firma americana, num laboratrio ou no Congresso pode ser para o antroplogo uma experincia mais bizarra do que uma aldeia mexicana.Esse no um problema srio para o antroplogo brasileiro porque sempre por diferentes razes estudamos nossa prpria sociedade. No artigo "A pesquisa antropolgica com populaes urbanas: problemas e perspectivas", Eunice Durham, mostrou que, apesar de nossos "deslizes semnticos", fomos capazes de produzir uma nova e instigante antropologia de ns mesmos, especialmente quando os grupos pesquisados pelos antroplogos, e que eram vistos como marginais, ganharam centralidade na cena poltica emergindo como os[fim da pgina 167]novos atores polticos(4). Os estudos detalhados da vida nos bairros de periferia, dos novos movimentos sociais, da umbanda, das comunidades eclesiais de base, do pentecostalismo, feminismo e sexualidade ofereceram um novo panorama da vida poltica brasileira. O estilo quase desprovido de termos tcnicos, com o qual apresentamos nossos dados, favoreceu o acesso a um pblico que ultrapassa antroplogos ou cientistas sociais; nossas discusses se ampliaram para alm dos muros da universidade, com o consequente sucesso de uma disciplina que antes era vista como marginal ou menor nas Cincias Sociais.***Entretanto, o efeito energizador da antropologia norte-americana no veio do texto escrito por Laura Nader em 69, e sim do que mais tarde se convencionou chamar de antropologia ps-moderna. Efeito energizador, talvez no no sentido que Nader tinha proposto; mas no sentido de que revitalizou a disciplina, dando espao para que uma gerao mais nova de antroplogos colocasse suas idias, criasse novos contedos para as polmicas no interior da disciplina, elaborasse uma crtica forma tradicional de fazer antropologia. Mostrou-se assim como a autoridade do antroplogo construda, operou-se uma reviso definitiva da idia das culturas como totalidades autnomas e integradas e, sobretudo recolocou-se no corao da disciplina a importncia da crtica cultural. Mas houve uma desproporo entre a paixo vinda tona na crtica do fazer antropolgico tradicional e as alternativas encontradas(5). A alternativa foi basicamente textual: como criar uma nova maneira de escrever sobre culturas, incorporando no texto a conscincia de seus prprios procedimentos como, por exemplo, a polifonia e a relao dialgica entre observador e observado. A crtica cultural foi uma promessa no realizada; no foi alm de menes vagas ao colonialismo e s relaes de poder que se estabelecem entre observador e observado.Considero que a dificuldade de ir mais fundo na crtica cultural est relacionada com o tipo de conhecimento que o antroplogo tem da sua prpria sociedade. Os debates em torno da idia de ps-modernidade mostraram definitivamente o quanto esse conhecimento vago.[fim da pgina 168]Em outras palavras,todos ns sabemos que: o estranhamento um dos instrumentos fundamentais do conhecimento antropolgico; o antroplogo, por princpio, est sempre justapondo pelo menos duas culturas ou duas sociedades: a sociedade da qual ele nativo e a sociedade pesquisada; no preciso ser nativo para compreender o nativo. Compreender como um povo vive no ficar aprisionado a seus horizontes mentais. Como diz Geertz, o bom trabalho antropolgico sobre feitiaria no um trabalho sobre feitiaria escrito por uma feiticeira.Entretanto, o que talvez seja menos evidente o quanto somos nativos das nossos prprias culturas e sociedades, quanto os nossos conceitos sobre elas so o que Geertz chama de "experience near concepts"(6), principalmente nos contextos em que a antropologia se desenvolve de maneira distanciada da sociologia, da cincia poltica e da economia.***No caso brasileiro, como estudamos nossa prpria sociedade, as noes de totalidade e de crtica cultural se colocaram de maneira distinta. O nosso "outro" foram os grupos marginalizados, discriminados, explorados e por isso mesmo nunca perdemos de vista que eles eram parte de um sistema maior, o sistema capitalista, em um mundo globalizado e mundializado que perpetuava sua condio de dominados. Em certos momentos enfatizvamos os elementos que nas prticas cotidianas reproduziam a dominao, em outros privilegivamos as formas de resistncia dominao. Nossos dados permitiam no apenas o debate nas cincias sociais, mas exigiam uma sofisticaco dos grandes conceitos utilizados pelas teorias da Sociologia e da Cincia Poltica, encarregadas das vises totalizadoras, das teorias acabadas da vida social.Entretanto, meu argumento que preciso energizar a antropologia brasileira e que esse impulso energizador vem dos trabalhos que procuram, mais do que fazer uma antropologia ps-[fim da pgina 169]moderna, fazer uma antropologia da ps-modernidade(7). O prprio desta nova tendncia explorar o convite que a idia de ps-modernidade faz a um novo programa de pesquisas empricas, na medida em que chama nossa ateno para a fragilidade dos conceitos que usamos para dar conta das mudanas em curso, as quais caracterizam a vida social contempornea.Em outras palavras, o prprio da noo de ps-modernidade , por um lado, o questionamento da autoridade das meta-narrativas que orientavam a ao sobre o mundo e a proposta de novas formas de representao de realidades e de novas maneiras de escrever sobre as culturas. Entretanto, por outro lado, prprio tambm deste conceito o esforo de caracterizao das descontinuidades entre as instituies e os processos sociais que marcariam uma ruptura com a modernidade. Na caracterizao destas descontinuidades no h um acordo entre os autores: grande parte do debate est centrado na questo de se saber se vivemos uma nova etapa do capitalismo; se passamos do capitalismo industrial para o capitalismo de consumo; da sociedade industrial para a sociedade informacional; se correto falar de ps-modernidade ou se seria mais apropriado entendermos a fase atual como de alta modernidade. , no entanto, parte deste debate - em torno de saber se vivemos ou no uma fase suficientemente distintiva, merecedora de nova conceituao - o convite para um trabalho mais cuidadoso na caracterizao de processos de mudana, na identificao do que novo na experincia contempornea.Ou seja, o conceito de ps-modernidade tem exigido da parte dos cientistas sociais no apenas uma srie de reformulaes terico-metodolgicas, mas tambm tem dirigido nossa ateno e aguado nossa sensibilidade para um trabalho mais cuidadoso na caracterizao da experincia cotidiana.A antropologia, pelas razes mencionadas por Laura Nader, est especialmente bem colocada para fazer face a esse convite, que envolve um conhecimento mais elaborado do "ns" e das formas especficas que a dominao assume contemporaneamente. Contudo, atender a esse convite exige reformulaes na forma em que o trabalho antropolgico vem sendo tradicionalmente realizado; demanda tambm revises nos instrumentos metodolgicos e nos pressupostos ticos com os quais temos trabalhado.***[fim da pgina 170]Este convite requer, em primeiro lugar, uma refocalizao dos objetos tradicionalmente estudados pela antropologia urbana brasileira. Em um mundo em que globalizao e fragmentao se combinam de maneira inusitada, em que as fronteiras entre os grupos no so ntidas, mas exaltam-se as particularidades e o conhecimento local, fica cada vez mais claro que no podemos nos limitar ao estudo de grupos que se definem como estando mais ou menos isolados.O estudo de cada parte revela pouco sobre processos mais gerais que combinam integrao e fragmentao. preciso privilegiar as formas de interlocuo entre esses grupos. Um bom comeo para isso, como tem mostrado Featherstone, olhar com mais cuidado para o que ele chama de "intermedirios culturais". A massificao do ensino superior criou um sem-nmero de profissionais com alto nvel educacional, que tm se especializado na produco de bens e de servios, e cuja marca fundamental exigir a participao de agentes que gosto de chamar de "interpretativistas culturais". Entre esses agentes esto desde os assistentes sociais, passando pelos criadores na mdia e publicitrios, at os assessores do grande capital, cujos servios de consultoria implicam imaginar e definir qual ser o comportamento de indivduos do outro lado do mundo, na Coria ou no Japo, diante dos derivativos colocados no mercado financeiro. So especializados, portanto, na promoo de uma interlocuo entre os fragmentos, a qual, por sua vez, d uma dinmica especfica a cada um deles. Para Featherstone, os intermedirios culturais so por excelncia os produtores, disseminadores e consumidores do simulacro e do conjunto de bens identificados com a experincia ps-moderna. Meu interesse ressaltar essa caracterstica de "interpretativistas culturais", a qual marca a atuao destes profissionais nas empresas, em orgos do governo ou em associaes da sociedade civil como as ONG's(8). Entender a lgica pela qual eles estabelecem uma interlocuo entre fragmentos aparentemente desconexos um novo desafio para a antropologia.A pesquisa sobre meninos de rua, grupos de idosos, minorias tnicas ou moradores da periferia no pode se limitar a uma anlise de representaes ou a uma descrio de estilos de vida destes grupos. Exige tambm que se leve em conta a trama institucional envolvida nos[fim da pgina 171]espaos percorridos por esses grupos(9). Os diferentes rgos do poder pblico e as organizaes no-governamentais, que atuam em cada um destes espaos, competem por recursos materiais e polticos para fazer valer sua agenda. As ONGs e as diferentes instituies governamentais so compostas e tm sua dinmica prpria dada por funcionrios que no apenas vm dos mesmos estratos scio-econmicos, mas tambm fazem parte da mesma gerao; e operam com o mesmo corpo conceitual e ideolgico, prprio de um contexto em que houve uma massificao do ensino superior e a abertura de espaos para novos tipos de profissionais. A competio por recursos que estes profissionais mantm - na medida em que estes esto alocados em diferentes instituices (governamentais ou privadas), que disputam o monoplio sobre questes envolvendo as populaes-alvo de suas aes - fundamental para entendermos a dinmica das representaes e estilos de vida dos grupos tradicionalmente estudados pela antropologia.Em segundo lugar, preciso repensar na centralidade que a observao participante tem na definico dos projetos de pesquisa em antropologia; mais do que compreender o ponto de vista do nativo, importante ver a forma especfica em que se d a interlocuo entre grupos, em um contexto em que as fronteiras perdem nitidez, enquanto a afirmao das particularidades locais exacerbada.A definio dos temas de pesquisa no pode se prender possibilidade de delimitao de um lugar, em que a observao participante poder ser realizada de acordo com os cnones tradicionais do fazer etnogrfico.Os trabalhos antropolgicos sobre a mdia, ao elegerem os estudos da recepo, fazem observaes minuciosas sobre a reinterpretao das imagens televisivas por grupos sociais especficos; neste aspecto, estes trabalhos foram fundamentais para rever a idia de que a indstria cultural produz uma cultura de massa homognea que pe em risco a individualidade e a criatividade do receptor. O estudo da recepo mostrou o papel ativo dos receptores na criao de novos[fim da pgina 172]significados(10). No podemos supor, no entanto, que qualquer mensagem se presta a qualquer interpretao.Esther Hamburguer, no estudo que empreende sobre a produo da mensagem televisiva, aponta o processo de interlocuo entre emissores e receptores na produo da novela, atravs da anlise de cartas, dados do IBOPE e especialmente da dinmica dosfocus groups, criados para avaliar a recepo das mensagens televisivas. Conta que no incio de sua pesquisa achou que haveria grande resistncia, por parte dos produtores da novela, para que pudesse assistir gravao dos programas, mas logo percebeu que o acesso s gravaes era aberto ao pesquisador externo. O difcil era observar a realizao das pesquisas qualitativas de opinio e a consulta de seus resultados, que a forma em que se d a interlocuo entre os criadores da novela e seu pblico consumidor. O acesso a esse material tornou possvel uma compreenso mais completa de como o ponto de vista dos receptores da novela nela incorporada; e como valores prprios do iderio feminista, por exemplo, combinam-se com a propaganda de produtos que so apresentados como maneiras ideais de liberar a mulher de seus afazeres domsticos(11).Ou seja, quando o interesse a interlocuo entre os fragmentos preciso procurar novos acessos para a pesquisa, e nem sempre esses acessos so aqueles que possibilitam a realizao da observao participante nos moldes tradicionalmente propostos pela pesquisa antropolgica. Mais do que um lugar, precisamos de uma agilidade mais prxima daquela dos "intermedirios culturais" que tiveram em ns, antroplogos, os responsveis por boa parte de sua formao profissional.Em terceiro lugar, preciso abandonar a idia de que necessria uma identificao emptica com os nossos informantes, com a populao estudada, para apreender as categorias culturais atravs das quais ela articula sua experincia social e ordena prticas coletivas. necessrio explorar o potencial da pesquisa antropolgica para entender a lgica a partir da qual os grupos mais poderosos operam, mesmo quando eles provocam nossos sentimentos mais fortes de indignao. Pode-se dizer que nessa direo que Geertz aponta quando considera que uma etnografia do pensamento moderno um[fim da pgina 173]"projeto imperativo", mostrando o interesse do instrumental antropolgico no estudo dos cientistas e acadmicos(12).O potencial da pesquisa antropolgica no pode, entretanto, limitar-se a mostrar como os cientistas ou os acadmicos organizam seu mundo de significados ou simplemente descrever o mundo em que esses significados ganham sentido. especialmente importante analisar como esses significados afetam de maneiras distintas a nossa vida cotidiana e dos grupos tradicionalmente pesquisados pelos antroplogos, politizando o debate em domnios que reagem veementemente a qualquer tentativa de politizao.Minha pesquisa sobre a velhice teve incio com a descrio de como os idosos representavam sua experincia de envelhecimento, com a busca de locais como praas e jardins pblicos, asilos e programas para a terceira idade. Entretanto, em um segundo momento, era preciso: refletir sobre o que tenho chamado de "Formas de Gesto do Envelhecimento"; analisar como um saber, respaldado na autoridade da cincia se constitui e transforma a experincia da velhice em um assunto deexperts, encarregados de definir no apenas quais so as necessidades dos idosos, os problemas que eles enfrentam na atualidade, mas que tambm se incumbem da formao de outros especialistas para atender a essas necessidades e resolver esses problemas; reconhecer que existiam foras dinmicas situadas fora dos grupos de idosos pesquisados - como os gerontlogos, de um lado, e a mdia, de outro - em um processo dinmico de interlocuo que exige redefinies constantes em seus respectivos discursos, ao mesmo tempo que dispem de aparatos extremamente eficazes para divulg-los. Esses discursos impregnavam a reflexo de cada idoso sobre o que a velhice e a sua experincia pessoal(13).Falar da velhice como um problema social no apenas propor um combate aos preconceitos, ao isolamento e solido, nem apenas sugerir formas de melhorar as condies de vida do velho pobre. tambm fazer clculos dos custos financeiros que o crescimento da[fim da pgina 174]populao idosa traz para a sociedade, transformando o envelhecimento em um perigo, em uma ameaa para a perpetuao da vida social.O discurso gerontolgico um dos elementos fundamentais no trabalho de racionalizao e de justificao de decises poltico-administrativas e do carter das atividades voltadas para um contato direto com os idosos. Mesmo quando o poder de deciso no do gerontlogo, ele o agente que, em ltima instncia, tem a autoridade legtima de definir as categorias de classificao dos indivduos e de neles reconhecer os sintomas e os ndices correspondentes s categorias criadas.Instituies sociais como a aposentadoria, criadas para gerir riscos, so transformadas em fontes de produo de outros riscos, considerados inviabilizadores do sistema. Da a urgncia na compreenso da lgica que organiza suas concepes do que a boa vida e a dignidade humana, e na politizao desse campo que se apresenta como sendo de pura neutralidade contbil.Tratar do envelhecimento, num contexto em que ele se transforma em um novo mercado de consumo , tambm, perceber a criao de uma srie de etapas intermedirias que separam a vida adulta da velhice, como a menopausa, a terceira idade, a aposentadoria ativa. Neste contexto a juventude deixa de ser algo que se possui ou no, uma etapa no desenvolvimento de cada um, e se transforma em um bem, um valor que pode ser conquistado em qualquer momento da vida, independentemente da idade cronolgica, atravs da adoo de estilos de vida e formas de consumo adequadas.A velhice pode assim ser transformada em ameaa perpetuao da vida social ou em uma responsabilidade individual, um problema dos indivduos que no souberam permanecer jovens, consumindo as tecnologias capazes de adiar indefinidamente os problemas do envelhecimento.***No estudo dos grupos e instituies mais poderosas, o potencial da pesquisa antropolgica tem sido pouco explorado na anlise dos conflitos e das disputas entre grupos dominantes, com o intuito de monopolizar e estabilizar hierarquias, e de como esses conflitos afetam a nossa prpria vida e a dos grupos tradicionalmente estudados pela antropologia.[fim da pgina 175]Esse novo desafio coloca questes que exigem uma reviso dos pressupostos ticos com os quais os antroplogos tradicionalmente trabalharam. O problema no se reduz a tornar esse novo "outro" menos enigmtico, como quer Geertz, mas politizar os campos em que eles atuam. Alm disso, no se trata apenas de mostrar que os cientistas no tm a neutralidade cientfica pretendida, mas de analisar como os significados por eles produzidos afetam de maneiras distintas a nossa vida cotidiana e dos grupos tradicionalmente pesquisados pelos antroplogos, redefinindo vnculos sociais, projetos e expectativas.A antropologia, explorando sua competncia no desvendamento das lgicas atravs das quais o "outro" opera, tem sua relevncia democrtica na medida em que pode politizar o debate em domnios pouco constitudos politicamente, os quais tm servido de oportunidade para o exerccio de magistraturas que se pretendem meta-polticas.Boa parte da discusso empenhada em caracterizar a experincia contempornea se concentra na revoluco tecnolgica que, a partir dos anos, 70 d uma nova configurao produo de bens e s formas de comunicao: a massificao do acesso mdia eletrnica, as novas tecnologias de comunicao, a informatizao dos locais de trabalho e de outros espaos.Menos nfase tem sido dada s biotecnologias e s formas como elas redefinem nossa vida. No se trata de dizer que essas tecnologias que envolvem a vida, o corpo, a sexualidade sejam monoliticamente demonacas nem que tenham potencial como foras libertrias. Quando se fala em biotecnologias sempre prefervel ser o mais concreto possvel.Entretanto, quando olhamos para as novas tecnologias de informao, possvel pensar em uma ampliao e democratizao do acesso informao. possvel descrever um processo atravs do qual grupos excludos passam a ser ativamente incorporados e tm sua participao na poltica ampliada. As biotecnologias, entretanto, so um reino privilegiado para o exerccio de poderes que se pretendem politicamente neutros - da a urgncia na compreenso de como nesse campo o poder instaurado e monopolizado - e do tipo de lgica que organiza as concepes de seus produtores sobre o que a boa vida e a dignidade humana.H alguns anos era fcil, nas associaes de gerontologia, identificar a oposio entre mdicos geriatras e gerontlogos, cientistas sociais que, contra o determinismo biolgico dos primeiros,[fim da pgina 176]empenhavam-se em mostrar que a velhice uma construo scio-cultural e histrica. Hoje essa afirmao significa arrombar portas abertas, pois os mdicos geriatras, os que praticam a medicina ortomolecular e especialidades afins radicalizaram a idia da construo cultural. Para eles a juventude, h muito tempo, no mais uma etapa da vida, um momento de passagem em um contnuo que caracteriza o desenvolvimento biolgico universal e de cada um, como os cientistas sociais sempre se apressaram em mostrar. Na prtica, eles so hoje agentes ativos em propor uma parafernlia de receitas de consumo e estilos de vida, que indicam que a eterna juventude um bem, um valor que ningum pode pensar em desprezar.Politizar os campos de saber, especializados em prticas que reconfiguram o destino do Homo Sapiens, requer uma reviso dos pressupostos ticos da pesquisa antropolgica, os quais tiveram como base o estudo de grupos discriminados e desprivilegiados. O Cdigo de tica dos Antroplogos, elaborado pela Associao Brasileira de Antropologia, considera que as populaes pesquisadas tm direitos, tais como: "Direito de ser informado sobre a natureza da pesquisa"; "Garantia de que a colaborao prestada investigao no seja utilizada com o intuito de prejudicar o grupo investigado"(14).A relevncia democrtica da antropologia exige que possamos denunciar prticas que afetam e podem ser nefastas ao destino do Homo Sapiens. Para fazer a pesquisa com esses experts, no podemos dizer com clareza o que de fato estamos pesquisando, qual o objetivo e as hipteses que organizam o nosso trabalho. Politizar as questes por eles tratadas prejudicar a neutralidade pretendida dos domnios que eles controlam.Em suma, acredito que a contribuio da antropologia, no estudo dos processos de globalizao e mundializao, foi descrever as formas especficas em que se operam as rearticulaes locais. O desafio mais instigante para os estudos de Cultura e Poltica, na atualidade, procurar entender como se d a interlocuo entre os fragmentos em uma sociedade que tem, como condio de sua prpria reproduo e integraco, o acirramento das particularidades e a fragmentao do pblico de consumidores. Se esse novo desafio exige a reviso de alguns dos procedimentos clssicos que marcaram a disciplina, a antropologia encontra-se especialmente adequada para responder a ele.Notas1)Texto apresentado na Mesa-Redonda Tendncias Atuais da Antropologia IV Reunio de Antropologia - Norte e Nordeste -Universidade Federal da Paraba (Joo Pessoa - 28 a 31 de maio de 1995).2)Professora do Departamento de Antropologia - IFCH/UNICAMP.3)NADER, L. . (1969)."Up the Anthropologist - Perspectives Gained from Studying Up". In: HYMES, D. (ed.).Reinventing Anthropology. New York, Vintage Books.4)DURHAM, E. R. . (1986)."A pesquisa antropolgica com Populaes urbanas: Problemas e Perspectivas". In: CARDOSO, R. (org.).A Aventura Antropolgica. Rio de Janeiro Paz e Terra, 1986.5)Ver tambm, sobre as crticas antropologia ps-moderna, OLIVEIRA, R. Cardoso de (1988); PEIRANO, M. G. S. (1992); TRAJANO, W. (1988); CALDEIRA, T. (1988).6)GEERTZ, C. . (1983).Local Knowledge. Further essays in interpretative anthropology. New York, Basic Books.7)Ver a esse respeito FEATHERSTONE, M. (1995).A Cultura do Consumidor e o Ps-Modernismo. So Paulo, Studio Nobel.8)Sobre o tipo de controle emocional que caracteriza esses profissionais ver LASH, S. e URRY, J. . (1994).Economies of Signs and Spaces. London, Sage.9)Empresto a idia de "trama institucional" do trabalho de GREGORI Maria Filomena. (1994),"A Imprensa e os Meninos de rua", ANPOCS, em que mostrada a competio entre diferentes instituies pblicas e privadas, que atuam nesta rea, para fazer valer sua agenda, e como essa competio marca as representaes e modos de vida dos meninos de rua.10)Ver como exemplo LEAL, O. F. . (1986).A Leitura Social da Novela das Oito. Petrpolis, Vozes.11)HAMBURGUER, E. . (1994)."Telenovelas, Gnero e Poltica no Brasil", ANPOCS.12)GEERTZ, C. . (1983).Local Knowledge. Further essays in interpretative anthropology. New York, Basic Books. Ver, nessa linha de pesquisas, a tese de doutorado de PONTES, Heloisa Andr . (1996).Destinos Mistos: o grupo Clima no sistema cultural paulista (1940-1968). USP/FFLCH; e a de CARVALHO, Cintia Avila de. (1995).Os Psiconautas do Atlntico Sul: uma etnografia da psicanlise. IFCH/UNICAMP.13)Discuto essa questo em"O Discurso Gerontolgico e as Novas Imagens do Envelhecimento".So Paulo em Perspectiva, Revista da Fundao SEADE. So Paulo, outubro/dezembro de 1993, vol 7, n.4.14)Cf. o Cdigo de tica da ABA.

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Este site foi modificado pela ltima vez em 18 de Outubro de 1999, porCarla Mary S. Oliveira.

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