a “troca de...3 ensino de História (LAWAND, 2004). Mas tais vivências geraram no pesquisador o...

14
Entre conflitos armados: memórias de descendente de gregos provenientes da Ásia Menor DIÓGENES NICOLAU LAWAND * O interesse, por parte do pesquisador, pela população de etnia grega vinda ao Brasil, oriunda da perseguição dos turcos que originou a “troca de populações” entre Grécia e Turquia na década de 1920, é o que motivou a apresentação de parte da pesquisa. 1. O contexto histórico: a Troca de Populaçõesentre Grécia e Turquia A “Troca de Populações” entre Grécia e Turquia está no contexto do processo de estabelecimento do Estado Nação Turco, a Turquia, e, contraditoriamente, da queda do Império Otomano. Essa contradição pode ser entendida pois o período é posterior ao final da Primeira Guerra Mundial (que durou de 1914 até 1918), o que gerou o equacionamento geográfico pelos interesses dos países líderes “vencedores” da guerra. O Império Otomano foi derrotado na guerra, mas o discurso instituído foi que, com o fim da guerra, a Grécia foi impetuosa para a conquista de territórios dominados pelo Império Otomano. Territórios, estes, que estavam sob o domínio do Império Bizantino antes da dominação Otomana (século XV), com a presença grega muito forte. Outra perspectiva é que, como no genocídio Armênio, a população grega, nos territórios dominados pelos Otomanos, foi exposta a violência e perseguição, particularmente a partir de meados do século XIX. Para nossa pesquisa é importante considerar que: a Igreja (Católica) Ortodoxa Grega foi um elemento que possibilitou a unidade cultural da população de origem grega, durante o domínio Otomano (do final do século XV em diante); a independência do território grego que conhecemos atualmente se deu na década de 1820. Voltando para a década de 1920, dois tratados indicam aspectos da configuração dos territórios da Turquia e da Grécia, em relação às disputas internacionais e às disputas internas * Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO) - USP e Secretaria da Educação do Estado de São Paulo

Transcript of a “troca de...3 ensino de História (LAWAND, 2004). Mas tais vivências geraram no pesquisador o...

Page 1: a “troca de...3 ensino de História (LAWAND, 2004). Mas tais vivências geraram no pesquisador o interesse por Memória e História Oral. Como Professor de Ensino Fundamental e Médio,

Entre conflitos armados: memórias de descendente de gregos provenientes da Ásia

Menor

DIÓGENES NICOLAU LAWAND*

O interesse, por parte do pesquisador, pela população de etnia grega vinda ao Brasil, oriunda

da perseguição dos turcos que originou a “troca de populações” entre Grécia e Turquia na

década de 1920, é o que motivou a apresentação de parte da pesquisa.

1. O contexto histórico: a “Troca de Populações” entre Grécia e Turquia

A “Troca de Populações” entre Grécia e Turquia está no contexto do processo de

estabelecimento do Estado Nação Turco, a Turquia, e, contraditoriamente, da queda do

Império Otomano.

Essa contradição pode ser entendida pois o período é posterior ao final da Primeira Guerra

Mundial (que durou de 1914 até 1918), o que gerou o equacionamento geográfico pelos

interesses dos países líderes “vencedores” da guerra.

O Império Otomano foi derrotado na guerra, mas o discurso instituído foi que, com o fim da

guerra, a Grécia foi impetuosa para a conquista de territórios dominados pelo Império

Otomano. Territórios, estes, que estavam sob o domínio do Império Bizantino antes da

dominação Otomana (século XV), com a presença grega muito forte.

Outra perspectiva é que, como no genocídio Armênio, a população grega, nos territórios

dominados pelos Otomanos, foi exposta a violência e perseguição, particularmente a partir de

meados do século XIX.

Para nossa pesquisa é importante considerar que: a Igreja (Católica) Ortodoxa Grega foi um

elemento que possibilitou a unidade cultural da população de origem grega, durante o

domínio Otomano (do final do século XV em diante); a independência do território grego que

conhecemos atualmente se deu na década de 1820.

Voltando para a década de 1920, dois tratados indicam aspectos da configuração dos

territórios da Turquia e da Grécia, em relação às disputas internacionais e às disputas internas

* Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO) - USP e Secretaria da Educação do Estado de São Paulo

Page 2: a “troca de...3 ensino de História (LAWAND, 2004). Mas tais vivências geraram no pesquisador o interesse por Memória e História Oral. Como Professor de Ensino Fundamental e Médio,

2

de cada país (consolidando certos princípios dos ideais de Estado Nação). São eles: O Tratado

de Sèvres, assinado em 10 de agosto de 1920, entre os “vencedores” e o governo do que hoje

chamamos de Turquia, não ratificado e substituído pelo Tratado de Lausanne, assinado em 24

de julho de 1923. O primeiro possibilitava conquista de territórios por parte da Grécia. O

segundo, descaracterizando o primeiro, foi o que garantiu o estabelecimento do Estado

Nacional Turco, mantendo seu território herdado do Império Otomano. Em ALMEIDA

(2013) pode-se aprofundar tais questões.

Em 30 de janeiro de 1923, meses antes da assinatura do Tratado de Lausane, que estava em

preparação, há a assinatura da Convenção sobre a “troca de populações” gregas e turcas,

assinadas pelos governos da Grécia e da Turquia. Ela envolveu a troca de gregos cristãos, que

estavam em território do que conhecemos hoje como Turquia, por muçulmanos, que viviam

na Grécia.

Em maio de 1923 a “troca de populações” foi oficialmente iniciada. Mas, em relação à

população grega, o deslocamento já tinha iniciado na prática bem antes. Isto pelo estado de

violência e pânico levantado, até pelas condições vividas pelos Armênios.

2. O Pesquisador, sua Família e a Pesquisa

O interesse para tal temática tem base na vivência do pesquisador com sua família (Família

Perides), que tem sua origem em gregos que vieram ao Brasil no processo da “troca de

populações”. Em julho de 1923 a Família Perides, natural da cidade de Adana, chegou ao

Brasil, depois de passarem por outros países, estabelecendo-se na cidade de São Paulo. Cabe

destacar que, segundo CONSTANTINIDOU (2009), os gregos fazem parte da vida brasileira

há quase 180 anos.

A vivência do pesquisador foi ancorada em narrativas de sua mãe (Melpomene Perides

Lawand) que, com elas, enriquecia o pequeno cardápio tornando-os verdadeiros banquetes.

Não eram somente narrativas da “troca de populações”, envolviam as memórias de práticas

culturais. As vivências (escutas) influenciaram, mesmo que inconscientemente, o pesquisador

na escolha da carreira profissional: Graduação em História. O destaque é que a pesquisa sobre

a família não foi aberta, objetivamente, na graduação e nem no mestrado sobre Memória e

Page 3: a “troca de...3 ensino de História (LAWAND, 2004). Mas tais vivências geraram no pesquisador o interesse por Memória e História Oral. Como Professor de Ensino Fundamental e Médio,

3

ensino de História (LAWAND, 2004). Mas tais vivências geraram no pesquisador o interesse

por Memória e História Oral.

Como Professor de Ensino Fundamental e Médio, repercutiu a vivência e a formação

acadêmica, que possibilitaram o desenvolvimento da dissertação de mestrado (LAWAND,

2004).

Por fim, como o pesquisador está envolvido (sua mãe é a entrevista inicial, o ponto zero da

pesquisa; é descendente de gregos oriundos do processo de “troca de populações” e seu pai é

sírio), tomamos como referencial para esta questão os trabalhos de:

- NOVINSKY (2002):

“Do ponto de vista histórico há uma comunidade de destino da qual Míriam e eu

participamos. Sou descendente de imigrantes judeus. Por parte de pai, minha

família fugiu dos pogrons na Rússia e, por parte de mãe, do anti-semitismo na

Polônia. O pai de Míriam é judeu alemão que ficou preso, por algumas semanas em

Büchenwald, e depois fugiu para o Brasil. Sem dúvida essa “comunidade de

destino” foi uma circunstância que estimulou e facilitou nosso encontro e nossa

comunicação”.

- e de MACIEL (2013):

“Foi na convivência com as colaboradoras da minha pesquisa que, juntas,

construímos as narrativas que serão tomadas como corpus documental, a serem

interpretadas nesta pesquisa. A pesquisa em História Oral de Vida adotada foi

baseada na experiência de vidas de pessoas que vivenciaram seringais na

Amazônia, tendo sido concebida a partir da vivência estabelecida com minha avó

materna que, tendo habitado o espaço do seringal, me contava histórias que se

remetem a esse ambiente, como a história do seu avô que brigou com a onça, dentre

muitas outras. Embora a temática esteja ligada à minha afetividade, sua

representação envolve experiências de uma coletividade”.

3. História Oral e a Pesquisa

Page 4: a “troca de...3 ensino de História (LAWAND, 2004). Mas tais vivências geraram no pesquisador o interesse por Memória e História Oral. Como Professor de Ensino Fundamental e Médio,

4

O vínculo com o Núcleo de Estudos em História Oral da USP (NEHO), criado e dirigido pelo

Professor José Carlos Sebe Bom Meihy, levou o pesquisador ao aprofundamento dos

procedimentos em História Oral.

“Através dos séculos, o relato oral sempre constituiu na maior fonte humana de conservação

e difusão do saber, o que equivale a dizer sempre ter sido a maior fonte para as ciências em

geral”. (Maria Isaura Pereira de Queiroz apud MEIHY, 2002: 21)

A pesquisa é realizada a partir dos procedimentos de história oral desenvolvidos por MEIHY

(2002). Assim, estabelecemos que:

- A pesquisa tem o interesse de ouvir descendentes de gregos que vieram ao Brasil no

processo de “troca de populações” entre a Grécia e a Turquia.

- Queremos entender como tais imigrantes e seus descendentes construíram o cotidiano aqui

no Brasil.

- Situações de deslocamentos populacionais motivados por conflitos armados, que não

respeitam as crenças e as possibilidades de relacionamento humano com dignidade,

continuam a acontecer, e o caso atual na Síria é um exemplo comparativo para o caso da

“troca de populações” entre Grécia e Turquia.

Mas, tais populações, as que conseguem sobreviver, estabelecem cotidianos que podemos

analisar na perspectiva de análise de CERTEAU (1996 e 2001) e de CHARTIER (1991).

Cabe ressaltar que a pesquisa nasce pelo valor à memória compartilhada para a sociedade

contemporânea e para o conhecimento histórico. Neste sentido, conceitos que envolvem a

relação entre memória e história serão trabalhados.

- Obviamente é uma pesquisa com fins acadêmicos, entretanto a defesa que fazemos é que

toda pesquisa em história oral tenha um retorno para a comunidade. No nosso caso, temos

como foco “imigrantes” em geral, refugiados e sobretudo “imigrantes” e familiares que estão

no Brasil e tiveram que se submeter a “troca de populações” entre Grécia e Turquia.

Page 5: a “troca de...3 ensino de História (LAWAND, 2004). Mas tais vivências geraram no pesquisador o interesse por Memória e História Oral. Como Professor de Ensino Fundamental e Médio,

5

- As entrevistas construirão a tese de doutorado. Além disso, pretendemos a partir das

relações com as comunidades de imigrantes gregos desenvolver ações para a preservação de

suas memórias.

- Pretendemos a gravação em audiovisual, sem excluir a necessidade de pesquisa documental

a partir das necessidades que a pesquisa apresentar. Entretanto, será a partir das entrevistas

que a pesquisa será realizada.

Vamos trabalhar na perspectiva da História Oral de Vida: “trata-se de narrativa com aspiração

de longo curso (...) e versa sobre aspectos continuados da experiência de pessoas” (MEIHY,

2011: 82)

Estabelecida como ponto zero, entrevistada que estabelece relações para as entrevistas

posteriores, a entrevista inicial foi com Melpomene Perides Lawand, que é a mãe do

pesquisador. Os pais de Melpomene, originários de Adana (na Micrasia, como preferem

denominar a Ásia Menor), por força do acirramento de perseguições por parte dos turcos (eles

se consideravam gregos), se deslocaram para o Líbano, para Alexandria (Egito), passaram

pela Itália e de lá para o Brasil. Aqui no Brasil acolheram outros gregos, sobretudo familiares,

e a Igreja Católica Ortodoxa foi o local de desenvolvimento de relações entre estes

“imigrantes” e outros que viveram situações parecidas.

A partir da entrevista com Melpomene, solicitaremos que indique outro ou outros

entrevistados. Também, a comunidade da Igreja Católica Grega, da rua Bresser em São Paulo

(comunidade que a Família Perides esteve vinculada) será outra possibilidade de

relacionamento com possíveis entrevistados.

Assim, se dará a organização:

- da colônia: “o conceito colônia se liga exclusivamente ao fundamento da identidade cultural

do grupo” (MEIHY, 2002: 166);

- da formação da rede ou redes: “rede é uma subdivisão da colônia e visa a estabelecer

parâmetros para decidir sobre quem deve ser entrevistado e quem não se deve entrevistar”

Page 6: a “troca de...3 ensino de História (LAWAND, 2004). Mas tais vivências geraram no pesquisador o interesse por Memória e História Oral. Como Professor de Ensino Fundamental e Médio,

6

(MEIHY, 2002: 166). Opções como, entrevistar somente mulheres ou somente homens;

entrevistar mulheres e homens; entrevistar os mais velhos etc.

Sabemos que o trânsito será na comunidade grega ligada à Igreja Ortodoxa Grega de São

Pedro, na cidade de São Paulo. A procura é por descendentes de pessoas que viveram a “troca

de populações”. Assim, podemos ter um perfil para traçar a colônia. Mas, mesmo assim, o

estabelecimento de colônia e da rede (ou redes) se dará no processo da pesquisa.

A entrevista, tomando sempre como base MEIHY (2002) é uma etapa do projeto que possuí

três momentos: pré-entrevista, entrevista e pós-entrevista. Não estamos falando de entrevista

jornalística que o “furo” é o que importa. Não. Em história oral é a memória que importa.

O contato inicial com o possível entrevistado é importantíssimo para deixar claro o objetivo

da pesquisa. Não temos que esconder os objetivos. Não queremos pegar de surpresa o

entrevistado. Neste sentido, o conceito desenvolvido pelo Professor José Carlos Sebe Bom

Meihy é fundamental: o entrevistado é COLABORADOR. Ele deve estar presente em todos

os momentos da construção da narrativa. Não é objeto de pesquisa.

Não está em discussão a veracidade ou não da narrativa. É uma versão dos fatos. E daí a

importância de o Colaborador narrar do seu modo, com sua sequência. Os estímulos devem

produzir o efeito do Colaborador narrar.

Para isso o entrevistador deve desenvolver habilidades em saber ouvir o Colaborador. Com

atenção, respeito e respeitando as lágrimas e os silêncios, que são eloquentes. THOMPSON

diz: “Aprender a escutar é uma habilidade humana fundamental” (2006: 41 – 42). A história

oral não se faz sem a relação humana.

Em situação de entrevista, não podemos esperar a espontaneidade do Colaborador. Daí a

importância dos estímulos, de forma simples e sem atropelamento. Temos que ter abertura

para colocações do Colaborador, que não estão em nossos estímulos e não surgiu durante a

entrevista. Para isso, ao final da entrevista é necessário abrir a possibilidade para algo que o

Colaborador queira falar e não foi destacado durante a entrevista.

Page 7: a “troca de...3 ensino de História (LAWAND, 2004). Mas tais vivências geraram no pesquisador o interesse por Memória e História Oral. Como Professor de Ensino Fundamental e Médio,

7

Possibilitar, durante a entrevista, que o Colaborador em confiança compartilhe suas crenças e

suas verdades, seus sonhos e suas realizações. E muitas vezes, estes conceitos são

considerados outros pelo Colaborador. O que pensamos ser um sonho, por exemplo, para o

Colaborador foi ou é uma realização.

O pós-entrevista envolve uma série de ações em colaboração com quem concedeu a

entrevista, que denominamos de Colaborador:

- Transcrição; - Textualização; - Transcriação; - Conferência; - Autorização (Validação).

A transcrição é a ação de registrar por escrito o que foi gravado. Palavra por palavra, inclusive

as perguntas e interrupções. Com os erros gramaticais e as repetições. Na textualização,

elimina-se as perguntas e, sem descaracterizar o estilo do Colaborador, realizar uma correção

gramatical e o excesso de repetições. Por fim, a transcriação (baseada nos estudos de Augusto

e Haroldo de Campos) que expõe não a importância das palavras como elas foram ditas e sim

o significado no conjunto da mensagem. É do modo como é realizada a tradução.

Posteriormente, volta-se ao Colaborador e realiza-se a leitura do texto e, em processo de

negociação, altera-se o que o Colaborador considera inadequado. Assim, pode-se dar a

validação e a carta de cessão de autorização.

4. Memória e Temporalidades

A história oral potencializa trabalhos voltado à memória. Esta pesquisa estabelece diálogo

entre memória e história com diferentes autores.

Para GUARINELLO (1994), o historiador é um produtor de memória, e a produção

historiográfica faz parte da memória coletiva. A oposição entre memória e história oculta uma

outra oposição entre cultura erudita e cultura popular. É o mito de cultura erudita (ou

abastada) melhor que a cultura popular (ou corriqueira) - isto é cultura correta e cultura

incorreta.

Page 8: a “troca de...3 ensino de História (LAWAND, 2004). Mas tais vivências geraram no pesquisador o interesse por Memória e História Oral. Como Professor de Ensino Fundamental e Médio,

8

MENESES (1998) pensa que o historiador não tem a missão de produzir memória; no

entanto, ele trabalha com as memórias produzidas. A memória, segundo esse autor, não é

objetivo da história e sim objeto da história.

NORA (1993) apresenta diversas oposições entre memória e história, entre as quais a de que a

memória está em grupos vivos, enquanto a história é a reconstrução do que não existe mais. A

memória é um fenômeno atual. A história demanda análise e discurso crítico.

Na concepção do pesquisador, a memória é viva e a história pode ser o estudo científico do

passado, a partir das preocupações do presente. A memória vem à tona no presente e com

reflexões do presente. E a história estuda a memória. Não são opostas. Elas se integram.

Memória e história possuem a mesma matéria-prima, que é o passado. Portanto, a relação

entre tempo e memória fornece condições para entendermos os diversos conceitos de

memória.

Pierre LÉVY (2000) apresenta três temporalidades diferentes e coexistentes. Há a

temporalidade cíclica das sociedades de transmissão oral em que a palavra tem importante

função para a memória social. É o tempo do eterno retorno, o tempo circular em que a

preservação cultural é feita por meio da guarda de todas as aprendizagens na memória. É o

tempo da natureza. Há também o tempo linear e contínuo das sociedades da escrita, dos

calendários, das datas, dos anais e dos arquivos. É preciso estocar a memória. É o tempo do

relógio. Finalmente, o tempo pontual das sociedades informatizadas é o da memória curta,

que salta de um ponto a outro, organizado como rede.

Os vários tempos coexistem e isso pode ser notado com relação a diversos elementos que

apresentam marcas do tempo circular, do tempo linear e do tempo pontual. Vejamos um

exemplo:

Peter Pal Pealbart, em “Rizoma Temporal” (Educação, Subjetividade e Poder. Porto Alegre:

UFRGS, n. 5, vol. 5, p. 60-63, julho 1998),

“exemplifica a coexistência de tempos passados que se presentificam: um carro,

mesmo que contenha o futuro, na forma como é veiculado pela propaganda, contém

Page 9: a “troca de...3 ensino de História (LAWAND, 2004). Mas tais vivências geraram no pesquisador o interesse por Memória e História Oral. Como Professor de Ensino Fundamental e Médio,

9

tempos muito antigos, como a roda, a tecnologia do pneu, que foi descoberto há

mais de 10 mil anos. O tempo, portanto, que vai configurando uma Memória, com

as diferentes relações tecnológicas constituídas na História”.

As construções históricas se fazem em determinados tempos e lugares, assim como também

os conceitos de memória dependem do tempo e do lugar. Na contemporaneidade temos

sociedades em que a tradição oral não se subjugou frente à necessidade tecnológica do tempo

presente. As diversas culturas trazem em si diversas concepções de tempo e, portanto, de

memória. Na nossa pesquisa, a comunidade está em contexto de tempo da comunidade e

tempo exigido à comunidade.

5. Narrativas de Melpomene Perides Lawand

Vamos analisar algumas narrativas das memórias de Melpomene, nascida em 1928, sobre

situações da família nos conflitos armados, na cidade de São Paulo, em 1924 e 1932.

Considerando que o pesquisador realizou a entrevista com sua mãe, Melpomene Perides

Lawand refere-se às tias do pesquisador, que são irmãs dela, e tias dela, denominando-as

todas por Titia ou Titias; os avós do pesquisador, que são os pais dela, e as avós de

Melpomene, denominando-os como Vovó ou Vovô. Poderia esclarecer no próprio texto,

substituindo por “minha mãe”, “meu pai”, “minha avó”, “minha tia”, ou algo semelhante, que

a transcriação permite. A opção foi por não fazer para a demonstração da relação entre

Entrevistador/Filho e Colaboradora/Mãe. Vamos escutar uma parte da entrevista de

Melpomene Perides Lawand, em relação a Família Perides:

Eles vieram para o Brasil em 1923. Em 1924, a Titia Vitória já tinha nascido. Então,

moravam numa casa que o quintal... o... a cozinha ficava fora, num barracão. Então, a Vovó

Maria estava fazendo aquela comida, parece o didabur, que precisa mexer, com lentilha que

faz, mexendo enquanto cozinha para não queimar no fundo da panela. Se lembra daquela

sopa que eu fazia? Então a Vovó estava cozinhando lá. A Sogra dela, minha Avó, a Titia

Vitória, que era pequeninha, a Titia Athina estavam dentro de casa. Aí começou os aviões

desceram, fazer aquele barulho de avião, a Vovó Maria logo saiu da cozinha, largou, correu,

subindo para casa. Na hora que ela subiu caiu uma bomba que derrubou todo o barracão,

Page 10: a “troca de...3 ensino de História (LAWAND, 2004). Mas tais vivências geraram no pesquisador o interesse por Memória e História Oral. Como Professor de Ensino Fundamental e Médio,

10

panela de comida, tudo. A bomba. Ai! Quando o Vovô escutou, eles estavam na cidade, os

homens, logo que escutaram todos vieram. O Vovô Nicolau disse “Ah, vamos sair de São

Paulo, vamos sair de São Paulo”. Sabe, vieram de uma guerra lá, vêm aqui outra bomba!

Então, eles tomaram um trem, na Estação da Luz, foram para Campinas, toda a Família. E

justo estavam as minhas Tias Natália, Efrô e Olímpia, Irmãs da minha Mãe, da Penha vieram

visitar a Vovó e aconteceu isso, e o Vovô as pegou também e levou todo mundo para

Campinas. E foram num amigo deles, que tinha uma casa bem novinha ainda, recém

construída e mandou “Fica aí enquanto vocês estão de passagem, podem ficar morando.”

Olha só! Uma casa nova. Aí eles falavam “Não mexe, não desarruma, não sei o quê”.

Ficaram não sei quanto tempo lá. Logo em São Paulo, logo acabou bomba, tudo, terminou.

São Paulo já ficou em calmaria. Aí o Vovô disse: “Já que estamos aqui vamos passar uns

dias aí”. Só rindo! Olha!

Melpomene refere-se ao que alguns autores consideram como “Revolta Paulista de 1924” e

outros como “Revolução Paulista de 1924”. O evento foi um conflito armado, dentro do

contexto do Movimento Tenentista e luta contra o regime oligárquico brasileiro, e teve

duração de 23 dias. Segundo ASSUNÇÃO (2015) o conflito aterrorizou a população civil e

cerca de 300 mil pessoas saíram da cidade de São Paulo, refugiando-se no interior do Estado.

Um ano antes a Família Perides fixava-se na cidade de São Paulo, “imigrantes” perseguidos

em sua terra natal, vítimas de conflito armado. São, em 1924, vítimas também de conflito

armado em terra de imigração/refúgio. Os dois conflitos são semelhantes em relação à

constituição de Estado Nacional. Na terra natal era o estabelecimento do Estado Nacional

Turco, com a interferência de outros países o que gerou a questionável “troca de populações”.

No Brasil, já estabelecido o Estado Nacional, a luta era para definição de valores

republicanos, buscando apoio da população a violência aos civis, pensavam, estava

justificada.

A Família Perides é sobrevivente de ambos conflitos e criaram condições para desenvolverem

seus cotidianos. No caso específico, estabelecendo redes de sociabilidade onde encontraram

moradia na cidade de Campinas, por exemplo. Melpomene, nascida em 1928, narra os

Page 11: a “troca de...3 ensino de História (LAWAND, 2004). Mas tais vivências geraram no pesquisador o interesse por Memória e História Oral. Como Professor de Ensino Fundamental e Médio,

11

acontecimentos que lhe foram transmitidos pela oralidade. Isto não a distância do olhar, sobre

o mesmo evento, da pesquisa de ASSUNÇÃO (2015). Pela luta de poder “Nacional”,

podemos descartar a população. Finalizando com Melpomene, “só rindo. Olha!”

Mas temos memórias e narrativas de Melpomene de evento ocorrido após o seu nascimento.

O caso é relativo a Revolução Constitucionalista de 1932. Vamos escutá-la:

Em 1932 eu tinha três ou quatro anos. Só que teve a revolução aqui em São Paulo e a escola

que morávamos perto, na Rua São Caetano, foi tomada pelo quartel, o Grupo Escolar

Prudente de Moraes, aí não podia mais estudar. A Titia Athina e a Titia Vitória, minhas duas

Irmãs, ficaram um ano em casa. Então minha mãe pôs no Colégio São José, na Rua da

Glória, fica na Liberdade, e elas fizeram o primário lá. Tomava o bonde, dava a volta pela

Liberdade, pela Rua Libero Badaró, descia até na Rua da Glória, perto da Praça João

Mendes. E elas iam e voltavam de bonde, pequenas. Até o Quarto Ano do Primário elas

fizeram lá, mas ali aprende muito bordado. Podiam ir para o Colégio Santa Inês, que era

mais perto para nós, mas tinha que passar no Jardim da Luz. A Vovó não gostou. Tinha que

passar pelo Jardim da Luz, era perto não precisava de bonde. Aí ela preferiu o São José.

Tomavam bonde em frente da loja do meu Pai, na rua Florêncio de Abreu, naquele tempo.

Ele colocava no bonde e elas desciam perto do Colégio.

O objetivo da Revolução de 1932 era para que o Governo Provisória não se “eternizasse” no

poder, convocando uma Assembleia Constituinte. Militarmente os Paulistas forma derrotados.

Mas nas ideias saíram vencedores. Em 1934 a Constituição foi promulgada. O evento ainda

está envolvido na luta pelos valores republicanos, a partir de diversas perspectivas. Influiu no

cotidiano da população. Conforme a narrativa de Melpomene vemos a relação da influência

na educação escolar: Grupo Escolar, modelo dos ideais republicanos na educação escolar,

transformado em quartel militar. Cabe ressaltar que o Grupo Escolar referido, Prudente de

Moraes, tinha como nome inicial Escola Modelo da Luz.

Podemos refletir sobre a relação entre os modelos propostos pelos Estados Nacionais e o

cotidiano da população. Para isso tomamos os pressupostos teóricos da história cultural, em

Certeau (táticas) e em Roger Chartier (representação e lutas de representações). CERTEAU

Page 12: a “troca de...3 ensino de História (LAWAND, 2004). Mas tais vivências geraram no pesquisador o interesse por Memória e História Oral. Como Professor de Ensino Fundamental e Médio,

12

(2001: 100-101) apresenta as possibilidades dos sujeitos históricos, que apesar de estarem em

posições de não poder, possuem seus poderes:

“A tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o terreno

que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha (...) Tem que

utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na

vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue estar

onde ninguém espera. É astúcia.”

O cotidiano da Família Perides, depois de 9 anos de estabelecimento no Brasil, passa pelo

segundo conflito armado na cidade de São Paulo. Com as redes de sociabilidade, constroem o

cotidiano para a sobrevivência e no processo de inserção na sociedade brasileira, conforme

podemos verificar nas palavras de Melpomene sobre a educação escolar, salientando que a

educação escolar era uma referência importante para os republicanos, que na escola queriam

formar o cidadão. Entretanto, por força das opções (táticas) vinculam-se a uma escola

católica, vinculação que o discurso republicano queria acabar.

Família Perides, de etnia grega, no Brasil, relacionando-se com vários grupos da Igreja

Ortodoxa, no centro espacial dos conflitos armados indicados por Melpomene (bairro da Luz

na cidade de São Paulo), apropriando-se de elementos da cultura brasileira, construindo

representações (veja abaixo CHARTIER, 1991: 183-184), no narrar de Melpomene “Ele

colocava no bonde e elas desciam perto do Colégio”, o trajeto, o impulso foi dado pelos

sobreviventes da “troca de populações”.

“Uma dupla via abre-se assim: uma que pensa a construção das identidades sociais

como resultando sempre de uma relação de força entre as representações impostas

pelos que detêm o poder de classificar e de nomear, e a definição, de aceitação ou

de resistência, que cada comunidade produz de si mesma; outra que considera o

recorte social objetivado como a tradução do crédito conferido à representação que

cada grupo dá de si mesmo, logo a sua capacidade de fazer reconhecer sua

existência a partir de uma demonstração de unidade. Ao trabalhar sobre as lutas de

representação, cuja questão é ordenamento, portanto a hierarquização da própria

estrutura social, a história cultural separa-se sem dúvida de uma dependência

demasiadamente estrita de uma história social dedicada exclusivamente ao estudo

Page 13: a “troca de...3 ensino de História (LAWAND, 2004). Mas tais vivências geraram no pesquisador o interesse por Memória e História Oral. Como Professor de Ensino Fundamental e Médio,

13

das lutas econômicas, porém opera um retorno hábil também sobre o recorte social,

pois centra a atenção sobre as estratégias simbólicas que determinam posições e

relações e que constroem, para cada classe, grupo ou meio, um ser-percebido

constitutivo de sua identidade.”

6. Referências bibliográficas

ALMEIDA, Ligia Cristina Sanchez de. Armênios e Gregos Otomanos: a polêmica de um

genocídio. Dissertação (Mestrado em História Social) – FFLCH, USP, Orientadora: Maria

Luiza Tucci Carneiro. São Paulo, 2013. 157f.: il.

ASSUNÇÃO, Moacir. São Paulo deve ser destruída: a história do bombardeio à capital

na Revolta de 1924. Rio de Janeiro: Editora Record, 2015.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2001.

v.1.

_________. A invenção do cotidiano. morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes, 1996. v. 2.

CHARTIER, R. O mundo como representação. Estudos Avançados, São Paulo, v. 5, n. 11, p.

173-191, jan./abr. 1991.

CONSTANTINIDOU, Vassiliki Thomas. Os Guardiões das Lembranças: memória e

histórias dos imigrantes gregos no Brasil. São Paulo: E. do Autor, 2009.

GUARINELLO, Norberto Luiz. Memória coletiva e história científica. Revista Brasileira de

História, São Paulo, v.14, n.28. p. 180-193, 1994.

LAWAND, Diógenes Nicolau. Memória e Ensino de História: uma experiência na

Educação de Jovens e Adultos. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de

Educação da USP, Orientadora: Zilma de Moraes Ramos de Oliveira. São Paulo, 2004. 290f:

il.: anexos.

LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da

informática. Rio de Janeiro: Editora 34, 2000.

Page 14: a “troca de...3 ensino de História (LAWAND, 2004). Mas tais vivências geraram no pesquisador o interesse por Memória e História Oral. Como Professor de Ensino Fundamental e Médio,

14

MACIEL, Márcia Nunes. O espaço lembrado: experiências de vida em seringais da

Amazônia. Manaus: EDUA (Editora da Universidade Federal do Amazonas), 2013.

MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. São Paulo: Edições Loyola,

2002.

________; RIBEIRO, Suzana L. Salgado. Guia prático de história oral: para empresas,

universidades, comunidades, famílias. São Paulo: Contexto, 2011.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Memória, história e arquivo: reflexões para um tempo de

transformações. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ARQUIVOLOGIA, 10., 1994. São

Paulo. Anais... São Paulo: Associação dos Arquivistas Brasileiros – Núcleo Regional de São

Paulo, 1998. 1 CD.

NOVINSKY, Sonia Waingort. As moedas errantes: narrativas de um clã germano judaico

centenário. Tese (Doutorado em História Social) - Universidade de São Paulo, Orientador:

Jose Carlos Sebe Bom Meihy. São Paulo, 2002. 2 v. + anexos.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São

Paulo, n. 10, p. 7-28, dez. 1993.

PEALBART, Peter Pal. Rizoma Temporal. In: Educação, Subjetividade e Poder. Porto

Alegre: UFRGS, n. 5, vol. 5, p. 60-63, julho 1998.

THOMPSON, Paul. Histórias de vida como patrimônio da humanidade, In: WORCMAN,

Karen; PEREIRA, Jesus Vasquez (coord). História falada: memória, rede e mudança social.

São Paulo: SESCSP: Museu da Pessoa: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.