A Aquisicao Da Lingua Escrita Como Processo Sociocultural (Cleiton,Edson,Jaiane)

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  • Prtica pedaggica alfabetizadora: a aquisio da lngua escrita como processo sociocultural

    ANTONIA EDNA BRITO

    Universidade Federal do Piau, Brasil

    Introduo

    Inicialmente, imprescindvel retomar o conceito de alfabetizao, levando-se em conta que essa conceituao tem sido pontuada por diferentes anlises e enfoques, privilegiando, em alguns casos, a abordagem mecnica do processo de aquisio da lngua escrita, fundamentada na racionalidade tcnica, cuja preocupao central o como fazer (que mtodos e tcnicas utilizar), ao invs de direcionar-se, tambm, para o aspecto de como o aluno aprende. E, em outros casos, destacando tanto o carter processual, complexo, quanto necessidade de articulao entre os diferentes enfoques sobre o tema (contribuio das diferentes reas: Lingstica, Sociolingstica, Psicolingstica, dentre outras).

    Na anlise de Soares (1999), observamos referncias s significativas mudanas em relao concepo do que a alfabetizao a partir da dcada de 80 (sculo XX), fundamentadas nas contribuies das Cincias Lingsticas e na influncia da teoria psicogentica da escrita (a partir das pesquisas de Emlia Ferreiro, dando conta que criana aprende a escrever num processo de interao/ao com a lngua escrita, construindo e testando hipteses sobre a relao fala/ escrita).

    Consideremos a interferncia desses dois fatores a influncia das cincias lingsticas e a concepo psicogentica da aprendizagem da escrita em duas faces do processo ensino e aprendizagem da lngua escrita, aqui destacadas para fins de melhor clareza da exposio, j que no representam momentos sucessivos, mas contemporneos, no so processos independentes, mas inseparveis: uma face a aquisio do sistema de escrita [...]; a outra face a utilizao do sistema de escrita para interao social, isto , o desenvolvimento de habilidades de produzir textos. (Soares, 1999, p. 52).

    Os aspectos destacados permitem caracterizar a alfabetizao como um processo histrico social de mltiplas dimenses, estando a exigir anlises e enfoques numa perspectiva ampla, sem, contudo, negar sua especificidade, abarcando as contribuies das cincias Lingsticas, da Psicologia, da Antropologia, da Sociologia, por exemplo. Esse tipo de abordagem contribui para o estudo da alfabetizao na totalidade de suas nuances dentro do processo ensino-aprendizagem.

    As reflexes neste estudo, sem desconsiderar as questes elencadas acima, privilegiam a especificidade da prtica docente alfabetizadora, analisando, ainda, o que se denominou de conceitos-

    Revista Iberoamericana de Educacin ISSN: 1681-5653

    n. 44/4 10 de noviembre de 2007 EDITA: Organizacin de Estados Iberoamericanos

    para la Educacin, la Ciencia y la Cultura (OEI)

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    chaves (alfabetizao, letramento, escrita), enfatizando as contribuies de Jobim e Sousa (1994), Vigotski (1998), entre tantos outros. Trata-se de procurar explicitar a concepo de alfabetizao que permeia nosso trabalho, considerando a especificidade dos sujeitos com os quais dialogamos na construo de nossas pesquisas.

    Os pressupostos tericos de Vigotski (1998), cuja contribuio tem sido valiosa no campo educacional, iluminam a discusso sobre o aprendizado da escrita (considerada como um sistema de signos socialmente construdos), descrevendo o processo de apropriao da escrita como processo cultural, de carter histrico, envolvendo prticas interativas. A aprendizagem da escrita refere-se, pois, aquisio de um sistema de signos que, assim como os instrumentos, foram produzidos pelo homem em resposta s suas necessidades socioculturais concretas.

    A escrita, ento, no deve ser considerada como mero instrumento de aprendizagem escolar, mas como produto cultural. Assim entendida, possibilita a explorao, no contexto da sala de aula, de diferentes portadores de textos, explicitando os variados usos e funes que lhes so inerentes numa sociedade letrada.

    Apesar dos avanos significativos dos estudos sobre o processo de alfabetizao, observa-se, em alguns casos, que a prtica da escola parece distanciada da funcionalidade da escrita no contexto da sociedade, limitando-se aos usos mecnicos e descontextualizados. Corroborando esse pensamento Vigotski afirma:

    At agora, a escrita ocupou um lugar muito estreito na prtica escolar, em relao ao papel fundamental que ela desempenha no desenvolvimento cultural da criana. Ensina-se as crianas a desenhar letras e a construir palavras com elas, mas no se ensina a linguagem escrita. Enfatiza-se de tal forma a mecnica de ler o que est escrito que acaba-se obscurecendo a linguagem como tal (1998, p. 139).

    Portanto, o que se entende que a alfabetizao transcende a mecnica do ler e do escrever (codificao/decodificao), ou seja, a alfabetizao um processo histrico-social multifacetado, envol-vendo a natureza da lngua escrita e as prticas culturais de seus usos. Alfabetizar no s ler, escrever, falar sem uma prtica cultural e comunicativa, uma poltica cultural determinada (Frago, 1993, p. 27). Observa-se, assim, que a concepo de alfabetizao tem se ampliado no cenrio scio-educacional, estimulando prticas escolares diferenciadas uma vez que tais questes, de uma forma ou de outra, chegam escola.

    importante registrar que a criana, no transcurso do dia-a-dia, vivencia usos de escrita, percebendo que se escreve para comunicar alguma coisa, para auxiliar a memria, para registrar informaes. E que da mesma forma recorremos escrita, atravs da leitura, para, tambm, obter-se informaes, e buscar entretenimento. hora, ento, de a escola parar de simplesmente ensinar a escrita, para dar espao a uma escrita dinmica, explorando as idias, as emoes, as inquietaes, escrevendo e deixando escrever. (Kramer, 2000).

    Conseqentemente, a escola precisa pensar a alfabetizao como processo dinmico, como construo social, fundada nos diferentes modos de participao das crianas nas prticas culturais de uso da escrita, transcendendo a viso linear, fragmentada e descontextualizante presente nas salas de aula onde se ensina/aprende a ler e a escrever. Oliveira, acerca desta questo, reconhece que:

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    Por isso, de fundamental importncia que, desde o incio, a alfabetizao se d num contexto de interao pela escrita. Por razes idnticas, deveria ser banido da prtica alfabetizadora todo e qualquer discurso (texto, frase, palavra, exerccio) que no esteja relacionado com a vida real ou o imaginrio das crianas, ou em outras palavras, que no esteja por elas carregado de sentido. (Oliveira, 1998, pp. 70-71).

    O processo de alfabetizao, ao longo do tempo, tem sido organizado e orientado por meto-dologias propostas nas cartilhas. Essas metodologias supem que os alfabetizandos detm os mesmos conhecimentos e as mesmas experincias com a escrita, melhor dizendo, presumem que as crianas chegam escola sem construes terico-prticas a respeito do ler e do escrever. Por essa razo, a proposta escolar de alfabetizao tem o mesmo ponto de partida sem considerar os diferentes nveis ou graus de insero da criana no mundo letrado.

    Percebemos, ainda, que o desenvolvimento da escrita na criana est relacionado s prticas cotidianas (socioculturais) de participao em eventos de leitura e escrita. Nesta direo, os estudos sobre letramento (Tfouni, 1997; Soares, 1999; Rojo, 1998; Kleiman, 1995) focalizam as dimenses scio-histricas na aquisio da lngua escrita, mostrando que indivduos no-alfabetizados, mas partcipes das sociedades letradas (da cultura, dos modos de produo e dos valores sociais) constroem concepes a respeito do sistema de escrita e identificam seus diferentes usos e funes.

    Por um lado, essa questo d conta de que as prticas de alfabetizao possuem uma dimenso histrica e um significado ideolgico, em que podem estar presentes as relaes de poder e de dominao. A lngua escrita, desde sua origem, est ligada aos processos de dominao/poder, participao/excluso inerentes s relaes sociais, no entanto, pode estar ligada, tambm, ao desenvolvimento sociocultural e cognitivo dos povos, provocando mudanas significativas nas prticas comunicativas (Tfouni, 1997).

    Por outro lado, vale lembrar que dentro do contexto social e do contexto familiar da criana ocorrem prticas e usos da escrita, de forma natural e espontnea, das quais ela participa direta ou indiretamente. O letramento decorre dessa participao, da vivncia de situaes em que o ler e o escrever possuem uma funcionalidade, uma significao. Os atos cotidianos, corriqueiros, de ler um jornal, redigir um bilhete, ler um livro, fazer anotaes, ou seja, usar textos escritos como fonte, seja de informao, seja de entretenimento, contribuem para que as crianas percebam as diferentes formas de apresentao do texto escrito, bem como para que identifiquem seus diferentes sentidos e funes.

    Assim, nesse contexto, o letramento desenvolvido mediante a participao da criana em eventos que pressupem o conhecimento da escrita e o valor do livro como fonte fidedigna de informao e transmisso de valores, aspectos estes que subjazem ao processo de escolarizao com vistas ao letramento acadmico. Note-se que para a criana cujo letramento se inicia no lar, no processo de socializao primria, no procede a preocupao sobre se ela aprender ou no, muito presente, entretanto, nos pais de grupos marginalizados. (Kleiman, 1998, p. 183).

    A famlia , contudo, apenas um dos espaos de letramento, fora dela esto os inmeros escritos urbanos, carregados de sentido e de funcionalidade. Esto, tambm, os escritos escolares cujo uso institucionalizado e burocratizado bloqueia as idias da criana, propondo-lhe como formas de ler e escrever atividades mecnicas e repetitivas. Sabe-se que dentro da sala de aula, as atividades de escrita so constantes, todavia, no do conta da gama de usos e funes desse objeto cultural no contexto da sociedade mais ampla. Neste ponto, indagamos: como tornar letrada a criana, destituindo a escrita escolar das marcas socioculturais?

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    A prtica alfabetizadora deve levar a criana ao mundo letrado atravs do acesso a diferentes formas de leitura e de escrita, ampliando seus saberes lingsticos a partir do uso reflexivo da lngua nas variadas situaes de seu funcionamento. Uma outra considerao a ser feita que h diferentes tipos e nveis de letramento, dependendo das necessidades, das demandas do indivduo e do seu meio, do contexto cultural (Soares, 1998, p. 49). Portanto, o grau de letramento pode variar em decorrncia da variao das oportunidades de participao em prticas sociais de usos efetivos da leitura e da escrita.

    A aprendizagem da escrita , portanto, processual e se constri em ritmo diferente em cada indivduo. Assim, natural que, numa situao de alfabetizao, as crianas estejam em nveis diferentes de alfabetismo, considerando que:

    O ponto de partida dessa discusso o fato de que o aprendizado das crianas comea muito antes de elas freqentarem a escola. Qualquer situao de aprendizagem com a qual a criana se defronta na escola tem sempre uma histria prvia. Por exemplo, as crianas comeam a estudar aritmtica na escola, mas muito antes tiveram alguma experincia com quantidades tiveram que lidar com operaes de diviso, adio, subtrao e determinao de tamanho. Conseqentemente, as crianas tm sua prpria aritmtica pr-escolar, que somente os psiclogos mopes podem ignorar. (Vigotski, 1998, p. 110).

    O pensamento vigotskiano, nessa perspectiva, dando conta de que a criana chega escola com conhecimentos socialmente construdos, corrobora as idias sobre letramento segundo as quais, na aprendizagem da escrita, a criana no parte do zero. Num processo essencialmente social e interativo, ela se apropria da lngua escrita em virtude de sua imerso no mundo letrado.

    luz dessas reflexes, convm lembrar que o aprendizado da escrita, na escola, coloca a criana diante de alguns dilemas referentes natureza desse objeto cultural (a prpria escrita). Como exemplo, citamos a arbitrariedade presente na representao grfica de palavras, a segmentao da escrita e, ainda, a organizao espacial da grafia. Quanto representao grfica das palavras, a criana, a partir de hipteses construdas na escola sobre a relao fala/ escrita, principalmente no incio da escolarizao, tende a escrever como fala, fazendo uma transcrio fontica. A esse respeito Cagliari comenta:

    Desde os primeiros contatos com a escrita, o aluno ouve o professor dizer que o nosso sistema alfabtico e que isso significa que escrevemos uma letra para cada som falado nas palavras. Nosso sistema usa letras, s quais so atribudos valores fonticos. Mas o uso prtico desse sistema no se reduz a uma transcrio fontica. Portanto, o professor no pode dizer simplesmente para o aluno observar os sons da fala, as vogais, as consoantes, e represent-las na escrita por letras. Esse o primeiro passo, mas no tudo. Feito isso, o aluno precisa aprender que, se cada um escrevesse do jeito que fala, seria um caos. (1998, p. 354).

    Desse modo, preciso lembrar a existncia da ortografia, orientando e padronizando a forma de escrever. As regras ortogrficas, a natureza da ortografia, devem ser socializadas com os alunos, a fim de permitir a compreenso da natureza das relaes entre fala e escrita. Algumas orientaes iniciais, no processo de alfabetizao, podero ajudar o aluno a perceber regras que orientam a grafia das palavras. Essas orientaes, aliadas a usos funcionais da escrita, constituem-se mais eficazes que os tradicionais ditados e tarefas de cpias interminveis.

    A aquisio da escrita ortogrfica, no entanto, constitui-se campo frtil em dificuldades para a criana. Comumente, no processo de alfabetizao, as normas da conveno ortogrfica no so socializadas, prevalecendo como mecanismo importante na aprendizagem da ortografia as atividades de

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    cpias e de ditados. fundamental, ento, a compreenso de que a aquisio da escrita ortogrfica no ocorre passivamente, no se constitui em armazenamento/memorizao de formas corretas de grafar palavras, mas pressupe e requer um processo ativo de aprendizagem. (Morais, 1997, 2000).

    Tratando, agora, da segmentao da escrita, bom lembrar que as crianas, notadamente no processo de aquisio, encontram-se em constante conflito quanto s relaes entre as pausas na fala e as pausas na escrita: As pausas da fala nem sempre tm correspondncia fixa com as pausas ou sinais de pausas (vrgulas, pontos) da escrita. A segmentao das palavras na escrita, indicada pelo espao em branco, corresponde menos ainda a pausas ou segmentaes na fala. (Cagliari, 1998, p. 127).

    Ou seja, no se escreve como se fala, considerando que existe uma normalizao ortogrfica. Escreve-se da esquerda para a direita, e de cima para baixo. Parece bvio. Mas no , tendo em vista que a descoberta da escrita pelas crianas no ocorre homogeneamente, elas no aprendem no mesmo ritmo e, como foi afirmado anteriormente nesse estudo, possuem diferentes nveis e graus de letramento. Esses aspectos, portanto, devem ser enfatizados na alfabetizao de forma que os alunos possam construir concepes de escrita, coerentes com a natureza desse objeto cultural.

    No que concerne atitude do professor perante as dificuldades das crianas na aquisio da escrita, via de regra, essas dificuldades relacionam-se escrita ortogrfica (trocas de letras, supresso de letras, hipercorreo) e costumam deixar o alfabetizador em estado de ansiedade por no saber como agir e, em determinados casos, lanando mo daquilo que a intuio lhe diz.

    Na medida em que a turma vai se tornando mais heterognea, muitas so as indagaes que o professor se suscita. Indagaes que vo ao encontro da necessidade de um trabalho de alfabetizao que se configure homogneo e mecnico. Numa alfabetizao dessa natureza (mecnica) todos os alunos so submetidos ao mesmo processo linear de alfabetizao, apesar de se encontrarem em nveis diferentes de letramento e de alfabetizao.

    Essa prtica contribui para a perpetuao da desigualdade na escola, considerando que os alunos que encontram dificuldades permanecem no mesmo ponto, sem muitas chances de avanar, para angstia de quem alfabetiza. Entretanto, as supostas dificuldades representam, na verdade, o nvel de compreenso da criana em relao escrita, constituindo-se, na vertente vigotskiana, o conhecimento potencial do aluno, perspectivando um conhecimento real a ser construdo.

    Assim, as interpretaes da criana na apropriao da leitura e da escrita representam, de fato, o prenncio de um conhecimento futuro. Decorrendo, da, a importncia de se considerar as experincias que os alunos possuem, melhor dizendo, imprescindvel que a escola perceba e aproveite os saberes que o educando construiu fora da escola, nos campos da cultura, do social e do lingstico.

    Na sua idealizao o professor espera um aluno atento, interessado, sequioso por aprender a ler. Tal criana imaginria j conhece as letras do seu nome e de seus familiares, tem a sua volta variados materiais de leitura e de escrita e observa como essas atividades fazem parte do social e do profissional de seus pais. Essa criana, naturalmente, existe, mas s encontrada numa pequena camada da populao e aprende a ler e a escrever antes e fora dela, tanto quanto dentro dela. (Golbert, 1988, p. 10).

    Na verdade, as crianas que chegam s classes de alfabetizao, na escola pblica, so crianas reais, capazes de aprender a ler e a escrever. Resta que a escola identifique o seu percurso no processo de

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    aquisio da lngua escrita, organizando suas atividades de modo que a vivncia do ler e do escrever, na sala de aula, seja rica, til, podendo informar, transmitir conhecimentos, entreter e, enfim, tenha a gama de usos e funes socioculturais que a caracterizam na sociedade.

    Nesta percepo, esto implcitas concepes de lngua e de linguagem, pressupondo ambas na condio de artefatos culturais e de instrumentos de mediao do indivduo com o outro e com o mundo. Lngua e linguagem constituem-se sistemas simblicos, de natureza histrico-social, permeando as interaes sociais, tendo, portanto, como propsitos situaes lingsticas significativas. (Oliveira, 1992; Matncio, 1998; Geraldi, 1997; entre outros).

    O pensamento vigotskiano, no que concerne a essa questo, concebe a linguagem como intercmbio social, instrumento importante na formao de conceitos e na compreenso do real. Por conseguinte, a linguagem fundamental no desenvolvimento das funes psicolgicas superiores, estando estreitamente ligada ao pensamento. Em resumo, lngua e linguagem cumprem diferentes funes enquanto prticas sociais contextualizadas (comunicam, transmitem informaes, favorecem a interao homem/mulher/mundo, dentre outros).

    Prtica alfabetizadora: embates terico-metodolgicos

    As discusses feitas ao longo deste estudo do conta de importantes avanos nas produes tericas a respeito do processo de alfabetizao. Esses avanos esto, portanto, a requerer do professor alfabetizador um repertrio de conhecimentos relacionados especificidade do processo de aquisio da lngua escrita. So conhecimentos que se referem tanto aos saberes concernentes natureza da alfabe-tizao, quanto ao pedaggica nesta rea.

    Os cursos de formao de professores para as sries iniciais do ensino fundamental devem levar em conta que a ao pedaggica nas referidas sries est diretamente ligada ao ensino da lngua escrita. De um modo ou de outro, o professor estar lidando com crianas em processo de alfabetizao, algumas em fase de aquisio e outras na fase de desenvolvimento de habilidades de escrita ou, ainda, com crianas em diferentes graus de letramento.

    Esse fato exige uma interveno didtica centrada na construo de saberes lingsticos, entre eles a leitura e a escrita. Para que essa interveno didtica ocorra de forma coerente e dinmica, o professor necessita construir competncias para a organizao e execuo de uma prtica pedaggica que se caracterize como um saber-fazer-bem, envolvendo reflexo crtica sobre sua ao. Cagliari, ao se reportar competncia tcnica do alfabetizador, destaca:

    Os cursos de formao de professor tm se preocupado muito com outros aspectos da escola, dando muitas vezes um valor indevido aos aspectos pedaggicos, metodolgicos e psicolgicos. Como educador, o professor precisa ter uma formao geral, e esses conhecimentos so bsicos. Como professor alfabetizador precisa ter conhecimentos tcnicos slidos e completos. [...] Para ensinar algum a ler e escrever, preciso conhecer profundamente o funcionamento da escrita e da decifrao e como a escrita e a fala se relacionam. (1999, p. 130).

    necessrio, pois, que a formao do professor alfabetizador privilegie, tambm, os aspectos ligados importncia da linguagem oral na alfabetizao, explicitando que a variao lingstica deve ser

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    respeitada e tomada como ponto de partida nas construes sobre o escrever. A aprendizagem da escrita possui certas peculiaridades que envolvem o conhecimento lingstico, o uso da fala e sua relao abstrata com a escrita.

    Portanto, compreender as idiossincrasias presentes na aprendizagem da escrita, pode assegurar ao professor determinadas e conscientes intervenes pedaggicas. Por exemplo, torna-se fcil para o alfabetizador entender que a escrita infantil possui uma lgica particular, resultante de suas experincias com o universo letrado, que no se coaduna com a lgica da escrita ortogrfica. A anlise da lgica da escrita infantil pode mostrar ao professor o caminho percorrido pela criana, evidenciando suas interpre-taes e hipteses na leitura e na escrita, bem como indicar a ao didtica adequada a cada situao.

    Na verdade, sem a adequada formao, na tica do professor a lgica infantil na escrita passa a ser percebida como erro, devendo ser corrigida atravs de tarefas estereotipadas que envolvem apenas o treino, a repetio, sem permitir uma relao dinmica entre o sujeito que escreve, ou tenta escrever, e a lngua. Desse modo, entendemos que:

    Quanto s dificuldades enfrentadas pela criana nesse processo, se, anteriormente, eram consideradas erros que era preciso corrigir, e para isso os recursos eram, de novo, os exerccios ou treinos de imitao, repetio, associao, cpia; hoje, no quadro de uma nova concepo do processo de aquisio do sistema de escrita os erros so considerados construtivos [...]. (Soares, 1999, p. 53).

    Mas, embora no tendo havido mudanas significativas na prtica escolar de alfabetizao, o professor alfabetizador demonstra ter um certo conhecimento e, tambm, uma certa preocupao quanto a mudanas conceituais relacionadas alfabetizao. No tocante a esse aspecto, dois pontos devem ser analisados. O primeiro refere-se s prticas tradicionais de alfabetizao e o segundo relaciona-se s prticas construtivistas ou socioconstrutivistas.

    Na prtica tradicional, o professor, por haver construdo conhecimentos sobre ela, sente uma certa segurana no direcionamento do trabalho, organizado dentro da lgica do controle da aprendizagem dos alunos. Por essa razo, resiste, de certa forma, s novas propostas. Talvez essa resistncia se d, tambm, como resultado de uma formao inadequada (implicando em fragilidade terico-metodolgica) ou como decorrncia da falta de espao, dentro da escola, para discusso, estudo e reflexo sobre a prtica alfabetizadora.

    Quanto s prticas construtivistas ou socioconstrutivistas, sabe-se que algumas propostas delineadas nesta tica foram encaminhadas s escolas e, conseqentemente, aos professores. As propostas, via de regra, buscam o rompimento com as prticas tradicionais de alfabetizao, porm o professor no participa dos momentos de planejamento delas e, tampouco, parece convenientemente preparado para execut-las.

    A esse respeito, Oswald (1997), ao analisar as implicaes pedaggicas das diferentes correntes tericas em relao ao aprendizado da leitura e da escrita, mostra objetivamente que elas delineiam prticas escolares dicotmicas. A vertente de cunho tradicional, por exemplo, orienta a ao pedaggica baseando-a na transmisso de conhecimentos, situando o aluno como sujeito passivo. Neste caso, a aprendizagem da escrita orientada, inicialmente, pelo treino de habilidades perceptivo-motoras. Parte-se do pressuposto de que a criana no detm conhecimentos relativos ao objeto de sua aprendizagem, necessitando, portanto, ser submetida a um processo de preparao.

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    Ao analisar as contribuies da teoria construtivista, a autora enfatiza, entre outros aspectos: o papel do aluno como sujeito que age sobre a escrita, construindo hipteses e concepes acerca do que representa esse objeto sociocultural e sobre como representa. Nesse sentido, a aprendizagem tem contornos diferentes das prticas tradicionais, pois valoriza a produo espontnea da criana, libertando-a dos treinos mecnicos de leitura e de escrita. Outra contribuio importante, oriunda dos estudos construtivistas, refere-se concepo de erros de escrita. Tais erros, nas prticas tradicionais, representam srios problemas, servindo, em muitos casos, para rotular o aluno como dislxico ou algo similar.

    Nas consideraes sobre interacionismo, Oswald (1997) afirma que nesta abordagem a concepo do aluno difere das concepes postuladas nas teorias supracitadas. O aluno , portanto, um sujeito histrico-social que constri e reconstri a cultura, transformando-a e sendo por ela transformado. Do mesmo modo, constri e reconstri a escrita (objeto cultural), num processo essencialmente social que, dessa forma, juntamente com o desenvolvimento e apropriao de diferentes habilidades, favorece a ampliao das funes psicolgicas superiores.

    O papel do professor, nesta perspectiva, tomando o aluno como ser social que se apropria da escrita nas interaes com diferentes interlocutores (mediadores), refere-se organizao de prticas interativas de ensino-aprendizagem, que provoquem o desenvolvimento de suas concepes sobre o objeto de conhecimento. Essa compreenso do aprendizado da escrita implica interpretar os erros ortogrficos das crianas, na alfabetizao, como conhecimento potencial acerca da escrita, indicando um conhecimento real a ser construdo uma vez que:

    A zona de desenvolvimento proximal define aquelas funes que ainda no amadureceram, mas que esto em processo de maturao, funes que amadurecero, mas que esto presentes em estado embrionrio. Essas funes poderiam ser chamadas de brotos do desenvolvimento. O nvel de desenvolvimento mental, retrospectivamente, enquanto a zona de desenvolvimento proximal caracteriza o desenvolvimento prospec-tivamente. (Vigotski, 1998, p. 113).

    importante, ento, que o professor alfabetizador possa compreender a dinmica da apren-dizagem, percebendo o significado da prtica escolar na conduo desse processo e no desenvolvimento das funes psicolgicas superiores da criana. De outro modo, a nfase nos princpios da racionalidade tcnica, pode limitar a escrita mera habilidade motora, fragmentando e fossilizando o saber escolar.

    Assim, o fato de no estar preparado, do ponto de vista terico-metodolgico, para o desenvol-vimento das novas propostas, provocou e tem provocado srios equvocos na prtica pedaggica do professor alfabetizador. Esses equvocos referem-se ao papel do professor na sala de aula, que em razo da aplicabilidade de uma nova proposta, sem a sua adequada preparao, termina por deixar a turma entregue a situaes espontneas de aprendizagem.

    Reflexes conclusivas

    As reflexes aqui apresentadas constatam a necessidade de se abrir espaos, dentro da escola, para o estudo e anlise do processo de aquisio da escrita, deslocando-se o enfoque do como ensinar para como ocorre a aprendizagem do aluno. Os avanos conceituais na rea de alfabetizao requerem, da prtica escolar, o redimensionamento do aprendizado da escrita e da interveno pedaggica,

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    encaminhando para o questionamento dos saberes necessrios ao alfabetizador. Evidentemente esses saberes referem-se natureza da escrita e da prtica de alfabetizao.

    Trata-se, de um lado, de pensar a formao do professor, para o incio da escolarizao, situando a escrita como um sistema de signos culturalmente construdos, de modo que a aprendizagem se caracterize como processo de desenvolvimento de funes intelectuais, mediado pelo sociocultural, pelo signo e pelos outros. E, por outro lado, de compreender que a formao do professor alfabetizador necessita considerar os saberes que emergem da prtica alfabetizadora, reconhecendo sua legitimidade.

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