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  • A Arte Clssica na Historiografia da Arte

    Prof Vera Pugliese

    A Histria da Arte como disciplina uma inveno relativamente recente e possui uma trajetria pontuada por marcos legitimadores que respondem fixao da arte clssica grecorromana como gnese e paradigma da arte ocidental e dos conceitos relativos produo artstica nas mais diversas estruturas. Um primeiro marco precursor dessa literatura artstica pode ser reconhecido no Livro XXXV da Historia Naturalis de Plinio Senior (23-79 AD), que registrou o nascimento do retrato (PLINIO, 2004: 85-86), miticamente, na Grcia, como grande divisor entre a produo do tipo dos imprios agrrios orientais e uma produo calcada na medida do homem.

    Plinio estava interessado, ao longo deste volume, no estatuto jurdico da imagem no Imprio Romano, no sendo um texto autnomo sobre arte e, menos ainda, considerando-a como objeto esttico autnomo. Contudo, elencou uma longa lista de artistas e obras da Grcia do sculo V at a Roma imperial de meados do sculo I AD, cujas obras comentou a partir de fontes escritas e de cpias romanas, desde seus recursos materiais e tcnicos at as escolhas temticas e a qualidade de suas abordagens, sempre regido pelo critrio fundante da arte ocidental: a mimesis.

    Foi justamente a mimesis o alvo, pelo menos a partir do sculo V de nossa Era, de inmeras contendas da teologia da imagem que, relevantes no processo de constituio da iconografia crist, que interessam tambm por terem orientado os escritos sobre arte tomados como precursores da teoria e da Histria da Arte.

    No sculo XV surgiu a teoria da arte com Leon Battista Alberti (1404-72) ao lado de tratadistas como Piero della Francesca (1415-92) e, posteriormente, de Leonardo da Vinci (1472-1519). Apenas no Renascimento a arte passou a ser considerada um objeto autnomo digno de um discurso tambm autnomo. Mas renascimento do qu? Justamente da Antiguidade grecorromana, que buscou se ancorar nos escritos de Plinio, como ocorreu na inaugurao da Histria da Arte no sculo XVI, sob a pena de Giorgio Vasari (1511-74).

    A tradio vasariana, imbricada a outra remisso Antiguidade, a academia de arte que paulatinamente se sobreps ao sistema corporativo dos atelis medievais, reafirmou continuamente o modelo de uma Histria da Arte de matriz biogrfica. Tal modelo comeou a ser questionado apenas no sculo XVIII, com o desenvolvimento do pensamento patrimonial, que se reportava aos Miriabilia Urbis Romae do sculo XVI, atrelado ao pensamento arqueolgico setecentista do prximo grande marco da Histria da Arte: a obra do alemo Johann J. Winckelmann (1717-68).

    A histria da arte winckelmanniana se baseou nos princpios taxonmicos sistematizados a partir dos inventrios da arqueologia, cunhando quadros estilsticos que permitiam romper com as divises geogrfico-cronolgicas por escolas da tradio Vasariana e mesmo dos antiqurios de uma tradio quatrocentista. O sculo XVIII assistia tambm ao nascimento da crtica de arte. Suas preocupaes eram contemporneas discusso setecentista reaberta por Vasari do ut pictura poesis, por pensadores como o alemo Gotthold Lessing (1729-81).

  • Some-se a isso a busca por critrios que permitissem a afirmao da Histria da Arte como disciplina autnoma Arqueologia e Histria, que deveriam esperar at o sculo XIX, com a querela do Formalismo da Escola de Viena e de alemes como Konrad Fiedler (1841-95) e Adolf Von Hildebrand (1847-1921) e do suo Heinrich Wlfflin (1864-1945) frente Kulturwissenschaft (Cincia da Cultura) de Jacob Burckhardt (1818-97) e disseminao na Frana do pensamento da histria da arte positivista de Hipollyte Taine (1828-93), baseada principalmente no determinismo social sobre os fenmenos artsticos.

    O Formalismo oitocentista germnico e, no sculo XX, a Iconologia do Warburg Institute acabaram por se afirmar como as duas vertentes que, ainda que antagnicas, sistematizaram teorias e metodologias para abordar as obras de arte. Embora pudessem emprestar conceitos de outras esferas do conhecimento, elas concorreram para o reconhecimento da Histria da Arte, preocupadas com as especificidades do fenmeno artstico, polarizando questes de estilstica e dos processos de significao das migraes dos tipos iconogrficos.

    Da vertente iconolgica emergiu outro marco importantssimo do mainstream da Histria da Arte com a cunhagem, por Erwin Panofsky (1892-1968), de um mtodo que possivelmente se tornou o mais recorrente tanto na Histria da Arte quanto na Histria que tem por objeto ou por fonte a imagem: a Iconologia. A grande nfase dos estudos panofskyanos reafirmou a Antiguidade Clssica como fonte cannica da afirmao da arte ocidental.

    A remisso histria da Historiografia da Arte se faz presente nesse texto devido intimidade da relao da trajetria da Histria da Arte com o Renascimento, relao institucionalizada por esta disciplina que se percebia como herdeira direta da arte clssica antiga ou que nela projetou seus prprios anseios. Mas qual a natureza da filiao aos parmetros formais, estticos, morais e filosficos desse pretenso vnculo? Ou ainda, o que esse vnculo diz da Histria da Arte e, principalmente, o que esta disciplina regida por tal vnculo permite dizer da arte clssica?

    Torna-se, portanto, necessrio verificar, a partir das prprias obras, as caractersticas da arte clssica que tm orientado as pesquisas da Histria da Arte e da Histria sobre a produo visual grecorromana, buscando compreender as escolhas tericas e metodolgicas para esse estudo.

    Consideraes metodolgicas

    Sem problematizar a atribuio do clssico como paradigma da Histria da Arte ocidental assim como sua valorizao em detrimento do anticlssico, recorrentemente considerado de modo depreciativo como uma degenerao, corrupo ou declnio daquele paradigma, importa situar, a partir da produo visual, o conhecimento que foi sistematizado pela Histria da Arte.

    Embora o conceito de estilo seja controverso, seu sentido ser aqui tomado, metodologicamente, como uma circunscrio espao-temporal da produo artstica de determinada cultura de modo que seus fenmenos artsticos, ainda que sob tcnicas e linguagens distintas, possam ser aproximados segundo um conjunto de caractersticas reconhecveis por acordarem a certas normas e por interditarem certos procedimentos no que concerne relao entre forma e contedos dessas obras. Entendendo que a obra de arte

  • um fenmeno cultural, embora tenha uma especificidade que impede que ela seja reduzida a fenmeno cultural, ela ao mesmo tempo se ancora em caractersticas que subjazem a um ato individual de criao e que tem uma temporalidade mais escandida no tempo, alm de poder apresentar elementos de novidade que, muitas vezes, subvertem uma ordem j estabelecida. Se o primeiro fator (estabilidade dos estilos) doa legibilidade obra, o segundo (transformaes estilsticas) permite as diferenciaes de sintaxe (formal ou iconogrfica) coerentes a um mesmo estilo ou que divergem dele, indicando mutaes formais que podem ou ser sistematizadas como um novo estilo.

    A anlise estilstica, portanto, no uma cincia exata e seus parmetros se baseiam no conhecimento de um vasto repertrio, donde se depreendem critrios sistematizados pela Teoria e Histria da Arte para o reconhecimento dos estilos e subestilos. Posteriormente, esses quadros criteriolgicos passam a oferecer subsdios para a avaliao da qualidade das obras. Tudo isso levando em considerao que as normas e as restries de um estilo podem ser disseminadas tanto pela migrao espontnea (ou no) de atelis como da estruturao de um sistema de ensino que organiza o conhecimento em saberes que so transmitidos institucionalmente a novas geraes, o que tende a enrijecer um estilo que se tornaria hegemnico em uma poca.

    H ainda uma ltima ressalva que a das implicaes metodolgicas de qualquer anlise estilstica, que utiliza a analogia como conceito operatrio, mas que no pode se tornar uma ferramenta rgida que afaste o pesquisador de seu objeto de investigao que a obra. Alm disso, toda abordagem historiogrfica artstica, desde a mais introdutria, como o caso do que segue, sempre se coloca em um duplo risco ao relacionar um fenmeno artstico particular a um conjunto de obras. De um lado, pode-se impor a uma obra isolada caractersticas do grupo, turvando o exame de suas especificidades, sacrificando a individualidade de um fenmeno particular. De outro, o desprezo tnica do estilo pode permitir que certas convenes sejam confundidas com aspectos tomados como nicos na obra, prejudicando a anlise da obra individual em sua relao com o conjunto do qual faz parte (PANOFSKY, 2005: 86-87).

    Escultura Helnica

    Assumindo este duplo risco, tomemos a escultura Zeus ou Poseidon, de cerca de 460 a.C. (Fig. 1), que se encontra no Museu Nacional de Atenas. Trata-se de um nu, em bronze, de um homem maduro que nitidamente teve seu corpo cultivado com o mesmo equilbrio de sua mente. No h excessos. Ele musculoso, mas no poderia ser confundido com um Hrcules. No uma esttua para ficar resguardada em um nicho, mas uma escultura de vulto redondo que deve ser contornada pelo espectador para que possa ser vista em sua integridade. Essa massa de bronze virtuosamente delineada grave e densa, embora seu gesto de projetar um raio ou um tridente com a mo direita seja leve, pois o equilbrio da ao est coerentemente disseminado por todo o corpo. As pernas se abrem firmemente, com o peso concentrado na perna esquerda que, paralela cabea, flexiona ligeiramente permitindo que o calcanhar direito se distancie da base para dar fora ao movimento, integrando o contraposto. O brao esquerdo estendido levado frente como uma mira que, ao mesmo tempo, em um gesto preciso, contrabalana o brao direito que conscientemente flete para proporcionar a melhor

  • empunhadura do projtil. No h hesitao, emoo, apenas o equilbrio exato entre a tenso e a flexibilidade do corpo para que o deus alcance seu obje