A ARTE DE AMAR - JEAN DOUCHET

download A ARTE DE AMAR - JEAN DOUCHET

of 5

description

Texto sobre a arte ser crítico de cinema. Originalmente publicado em Cahiers du Cinéma, 126, dezembro de 1961; republicada na compilação L’Art d’aimer, Éditions de l’Étoile, 1987. Tradução do francês por Ruy Gardnier.

Transcript of A ARTE DE AMAR - JEAN DOUCHET

A ARTE DE AMAR

A crtica a arte de amar. Ela o fruto de uma paixo que no se deixa devorar por si mesma, mas aspira ao controle de uma vigilante lucidez. Ela consiste em uma pesquisa incansvel da harmonia no interior da dupla paixo-lucidez. Um dos dois termos sendo mais forte que o outro, a crtica perde uma grande parte de seu valor. necessrio que ela possua esses dois motores. evidente que no est em sua proposta entreter o leitor nessas tagarelices to difundidas em tantas gazetas. De crticos eles s levam o nome, e degradando o termo, aviltam a funo e abaixam aqueles que a praticam. Considerar o cinema (porque dessa arte que falamos) como um assunto de conversa e somente como tal, me parece inqualificvel. Visualiz-lo unicamente como objeto de interesse pessoal (ganha-po, ocasio de construir um nome e aparecer, possibilidade de vender um roteiro ou se vender), ou utiliz-lo para conduzir um combate ideolgico, poltico, religioso que lhe estranho, resumindo, inflar o ego ou uma causa, a mais nobre que seja, em detrimento do cinema, trai uma desonestidade intelectual consumada. A arte exige da crtica que ela lhe sirva e no que ela se sirva da arte.

***

porque a arte tem uma necessidade vital da crtica. Sem ela, a arte no pode existir. E isso de duas formas. Primeiro, uma obra de arte morre, se no se desencadear, por seu intermdio, um contato entre duas sensibilidades, a do artista que concebeu a obra e a do amador que a aprecia. O prprio fato de sentir profundamente uma obra, e depois de propagar seu entusiasmo, constitui uma ao crtica, mesmo que ela seja apenas oral. Um s amador basta para restituir o verdadeiro valor s obras ignoradas, como aos artistas esquecidos. A existncia material de uma obra de arte, com efeito, no vale nada em si. O que era para ns, ocidentais, at 1952, Mizoguchi, o maior, talvez, de todos os cineastas? Nada, ou apenas uma aglomerao de pelcula to perdida nos estdios japoneses quanto foi Angkor Vat em sua floresta. O acaso teve a bondade de preserv-las, como ele fez com Pompia, com a Vnus de Milo, Vermeer ou Vivaldi. Seu capricho poderia muito bem ter sido destru-las. Nem mesmo a lembrana, nem mesmo a idia delas. S importa, com efeito, a ressonncia que as obras, e por conseqncia a arte, provocam na conscincia dos homens. nela e por ela que as obras vivem.

***

A melhor prova vem de que as obras melhor expostas viso de todos, e mesmo as mais badaladas, so muitas vezes to mal conhecidas quanto suas irms enterradas debaixo da terra ou desgarradas no fundo de um celeiro. A tambm, se uma nica sensibilidade no foi tocada no mais profundo de si mesma, se ela no extraiu a vida ardente contida na forma e no ajuda os outros a partilhar sua emoo, no adiantar ter mostrado a obra ao mais vasto pblico, ela desaparecer to rpido quanto uma miragem. A curta histria do cinema rica em exemplos de filmes vistos por milhes de espectadores e entretanto completamente desconhecidos. Foi preciso revelar Murnau e Keaton, como Lang (segundo perodo), Hitchcock, Walsh, Hawks, Losey, etc. Inversamente, falsas glrias, Clair, Feyder, Pudvkin, etc., enterram-se progressivamente no brejo dos esquecimentos estticos merecidos. Considerada sob este ngulo, o nico possvel alis, a crtica torna-se sinnimo de inveno, no sentido corrente do termo e no de descoberta. A verdadeira crtica inventa uma obra, com se faria com um tesouro: ela capta, mantm e prolonga sua vitalidade. Ela descobre, por um incessante requestionamento, o valor dos artistas e da arte. Ela pertence indissoluvelmente ao domnio da criao e, arte ela prpria, torna-se criativa.

***

Porque, e eu abordo assim a segunda forma que tem a crtica de ser necessria arte, ela se encontra no princpio mesmo da atividade artstica. Toda arte deve criticar alguma coisa, diz Fritz Lang. que o artista ocupa, diante do mundo, a mesma posio que o amador (1) diante de sua obra.

Ele s sente, com efeito, o mundo como uma obra, seja ela o produto da natureza ou o produto do homem. Ele nem mesmo pode escapar das diferentes explicaes dessa obra (o mundo) por sistemas cosmognicos, filosficos ou religiosos, que traduzem, nas etapas sucessivas da humanidade, momentos de uma conscincia e de uma sensibilidade coletiva. Como a sensibilidade do artista, cuja razo de ser exprimir a relao de seu eu com o mundo e que recebe at o mais profundo de seu ser as impresses exteriores, poderia evitar um questionamento do mundo e de seu eu e de suas impresses, uma vez que conceber uma forma constitui justamente um ato de acordo ou recusa? Para o artista, criar uma forma fazer passar o todo sensvel, consciente ou inconsciente, de um sujeito receptivo (ele mesmo) num objeto (a obra). Por um movimento dialtico mais sentido que refletido (mesmo que nos maiores os dois caminhem ao par), preciso considerar, ora o sujeito, e passar no crivo as sensaes que ele deseja transmitir, ou seja, se criticar, ora o objeto, e examinar a qualidade de sua percepo e de seu resultado. o mtodo sensvel do conhecimento que se resolve na e pela forma.

***

Ora, a forma, que no pertence ao artista, mas deriva da arte na qual ele sentiu a necessidade de se exprimir (no se imagina em pintura como em msica, e um grande escritor no pode ser, sob hiptese alguma, um grande cineasta e inversamente), o elemento dinmico ao qual se dedica totalmente o artista para control-lo do interior, form-lo at que elo seja o signo sensvel e evidente de uma existncia nica, a sua prpria, e depois abandon-lo na corrente dessa arte da qual ele saiu e na qual, ser vivo e singular, ele vai desabrochar nico e independente, dali para diante. A, ainda e sobretudo, a crtica ser necessria ao artista. Pois forte a tentao, e poucos artistas escapam em algum momento de sua carreira e s vezes para sempre, de arrancar a forma de sua arte e de se apropriar dela, sem respeito pela vida prpria e especfica dessa arte. Aqueles que contestam Eisenstein, Welles ou Resnais me compreendero. preciso ser um afluente que enriquece e modifica pela qualidade original de sua fonte a gua do rio na qual ele voluntariamente se nutre para fabricar uma soberba pea dgua na qual ele faz para si um espelho que s reflete sua prpria imagem, orgulhosa e solitria. O esplendor aparente de uma tal obra no chega a dissimular que se trata ento de uma gua morta. Para o artista, mais ainda do que para o crtico, como perigosa e difcil essa busca incessante de uma harmonia entre a sua paixo e a lucidez!

***

Em qualquer estgio em que se observe, tudo na atividade do artista implica uma atitude crtica. E eu omiti voluntariamente os momentos em que essa atitude ser manifesta. Submetendo as influncias estticas ou outras que ele carrega, como suas prprias obras terminadas, a um perptuo e severo exame, aceitando ou recusando os elementos que lhe convm ou no, optando por tais ou tais vias, e, sobretudo, tentando atingir, ao se submeter, a essncia de sua arte, ele empenha-se num combate em que o que est em jogo a sobrevivncia de sua sensibilidade, garantida pela prpria vida de sua arte. Ele transmite a um trao, dotado por si mesmo de uma sensibilidade prpria, a diligncia de perpetuar para sempre a riqueza de uma conscincia ntima.

crtica, a diligncia de revelar seu esplendor. A ela, a diligncia de conservar a vitalidade dessa chama. Como? Operando a mesma conduta que permitiu a ecloso dessa obra. Sua sensibilidade no deve defrontar-se com o mundo como a do artista, de quem resultar a criao de uma obra, mas simplesmente, sem nada abdicar dela mesma, defrontar-se com essa obra a partir da qual ele descobrir o mundo do artista. O ideal, evidentemente, seria remontar fundando-se sempre, e da forma mais estrita possvel, sobre a forma do objeto, na falta do qual desliza-se irresistivelmente no delrio de interpretao ao ponto sensvel, espcie de ponto de fixao para o qual convergiram todas as impresses exteriores do artista, e que imps um estilo nico aos mltiplos jorros de formas e de obras novas. Na verdade, a crtica pode esperar, na melhor das hipteses, cercar esse n criador. Vivo, complexo, nico, um tal centro no se deixa fechar numa definio. Mas basta crtica sugerir dele a idia mais exata possvel. Porque aquilo que ela deve investigar, com efeito, inicialmente descobrir no objeto, no o sujeito aparente, mas o verdadeiro sujeito criador, quero com isso dizer o artista em sua totalidade, enquanto esse objeto trai a situao do artista em relao ao mundo; em seguida remontar do sujeito ao objeto para revelar a necessidade de sua forma, no somente em relao ao artista e a sua penetrao do mundo, mas sobretudo em relao a sua arte. A crtica no nada alm de uma tentativa de comunho entre duas sensibilidades, a do autor e a do amador, na e pela obra, na e pela arte especfica dessa obra.

***

Pois, alm do artista, a crtica visa a compreender e mesmo explicar a arte. Em seu movimento de ida e volta, no qual consiste seu acesso a uma obra, ela tende sobretudo a atingir o gnio e a natureza de uma arte. em nome dela que se explicam suas admiraes e suas recusas. Por pouco que a crtica tenha a impresso de que o artista quer lhe impor a sobrevivncia de sua sensibilidade por efeitos deformadores, contrrios natureza de sua arte, sua prpria sensibilidade se ergue e rejeita a obra. No que essa obra no possa ser sujeita exegese, muito pelo contrrio. Eisenstein, Welles ou Resnais, para no falar em Antonioni, Bergman, Fellini e outros fizeram escorrer muito mais tinta do que Walsh, Lang, Mizoguchi, Preminger ou Hawks. E normal. s pr mos obra, ou seja, passar do objeto ao sujeito, pois o objeto no foi fabricado seno em funo do sujeito, ele um vasto espelho que s devolve a imagem truncada do autor e de sua viso artificial do mundo. Ora, a dificuldade reside na volta, na inteligncia desse acordo harmonioso e natural entre o artista, sua obra e sua arte.

***

Revelar em que o artista enriquece sua arte pela sua obra e como essa obra enriquecida por sua vez pela arte me parece ser, em definitivo, a pedra no caminho da crtica. Isso se sente, mas como difcil explicar! Chegada nesse estado, a crtica entra no domnio do incomunicvel. Ela mergulha no mistrio prprio da arte. S existe uma forma, ento, de se fazer ouvir, e ainda, por uma posio negativa. Na impossibilidade de exprimir em palavras em que, numa obra, existe arte, quando h verdadeiramente arte nesta obra, foroso ento demonstrar que, em tal outra, no h arte, ou ao contrrio, se ela se engana, descobrir a arte ali onde ela no existe. Nesse sentido, os filmes de Eisenstein, Welles e Resnais tm uma importncia capital. Eles so po sagrado para a crtica, e no toa que a partir deles principalmente, a favor ou contra, ela tenta definir o que o cinema. Da mesma forma, os cinfilos, quando eles rejeitam esses cineastas, so mais unidos por esta recusa do que por suas admiraes. Ter os mesmos desgostos implica gostos comuns, sensibilidades vizinhas e uma mesma maneira, apesar das variaes pessoais, de se aproximar da arte.

***

S o artista prova a arte criando. O amador e o crtico s podem se apoderar da idia, sentir intuitivamente sua natureza. Eis uma limitao que contradiria o que eu dizia anteriormente sobre a crtica criadora. No exatamente, entretanto, pois eu penso que o artista primeiro e antes de tudo um crtico... que foi bem-sucedido, e que a crtica ligada intimamente arte s se realiza plenamente nele. Um sobrevo histrico da evoluo das artes mostra, alis, que foram os prprios artistas que secretam a crtica enquanto funo independente. No comeo de uma arte, ou do renascimento de uma arte, crtica e arte se confundem. O verdadeiro criador consciente de sua arte e se submete a ela. Pode-se mesmo dizer que um Giotto, um Homero, como um Griffith, encontram instintivamente e de uma vez s a extenso e todas as possibilidades de sua arte. A crtica comea a se separar do artista quando se trata de aprofundar algumas vias simplesmente esboadas pelos pioneiros, ou quando tcnicas novas vm modificar a concepo da arte e abrir novas perspectivas. O artista experimenta ento a necessidade de travar seu dilogo ntimo em praa pblica. De interior, sua crtica torna-se exterior.

Os primeiros verdadeiros crticos, como os primeiros verdadeiros tericos, so os prprios artistas. Foram o Quattrocento para a pintura, la Pliade para a literatura francesa, Monteverdi para a msica. Foram ainda, no momento do romantismo, Hugo, Delacroix e Berlioz, ou hoje Joyce, Schnberg, Le Corbusier. Cada vez que o artista percebe uma concepo diferente de sua arte, cada vez que preciso forjar no pblico uma sensibilidade nova qual se dirigir sua obra, ns o vemos deixando as esferas olmpicas da criao e se engajar no combate, proclamar suas admiraes e gritar suas averses. Enfim, quando j se estabeleceu o hbito de uma nova forma de sentir, o artista volta para a sua concha e deixa ao amador o cuidado da crtica. A crtica, se ela praticada com nobreza, atinge sua vocao primeira, tornando-se ela mesma uma arte. A sensibilidade do crtico em suas relaes com o mundo faz com que ele se empenhe inteiramente, diante da obra, diante do mundo. Uma crtica trai tanto, ou mais, seu autor quanto o artista, a obra e a arte qual ela se refere. Da que a crtica costumeiramente to incompreendida quanto a arte.

Jean Douchet

(1) Eu prefiro o termo amador (aquele que ama) ao de crtico. Porque um crtico proclamado, infelizmente, no necessariamente um amador, ao passo que o amador, mesmo se ele no sabe se exprimir, revela por sua escolha uma atitude crtica. A no ser se sua paixo, tornando-se por demais exclusiva, trucida toda lucidez. Mas ele deixa ento de ser um verdadeiro amador para ser apenas um manaco, ou seja, um doente.

(Originalmente publicado em Cahiers du Cinma, 126, dezembro de 1961; republicada na compilao LArt daimer, ditions de ltoile, 1987. Traduo do francs por Ruy Gardnier).