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Departamento de Geografia A ARTE DE RUA COMO INSTRUMENTO DE REENCONTRO À VIDA COTIDIANA FRENTE AO PROCESSO DE METROPOLIZAÇÃO DO ESPAÇO Aluna: Mayara Rangel Silva Orientador: Prof. Dr. Alvaro Ferreira Introdução Esta pesquisa nasce de uma inquietação enquanto o trajeto local de trabalho - local de almoço - local de trabalho se realiza no Centro do Rio de Janeiro: “Não havia uma banda que tocava aqui nessa rua? Acho que ela não fica mais por causa dessa obra”. Também tem crescido o número de pessoas que, para se localizarem na área central ou instruírem a uma localização, citam “o ‘cara’ que toca sax (saxofone)” como uma referência. Tais falas espontâneas de um trabalhador que rotineiramente faz o mesmo percurso, e de outras pessoas que frequentam a mesma área para cumprir as mais diversas finalidades de seu dia a dia, moveram uma questão: quais os sentidos da produção da arte de rua diante de uma produção alienadora da cidade? A partir desse pontapé inicial, temos nos dedicado ao estudo da arte de rua enquanto estratégia insurgente que promove a interação e contribui para questionar e propor mudanças na condução da vida e o uso da cidade, o que revela, em alguma medida, desalienação do cidadão que está preso na lógica do cotidiano programado. Portanto, é nosso objetivo analisar quais são os sentidos da produção da arte de rua diante da produção alienadora da cidade. Dessa maneira, nosso objeto é o processo de produção alienadora da cidade e a arte de rua como estratégia insurgente de desalienação. A produção do espaço de forma alienadora envolve muitos processos que aparecerão no decorrer desse trabalho. No seio do capitalismo industrial encontramos a origem da programação do cotidiano. Ao analisar processos como globalização e mundialização, aliadas a um urbanismo cada vez menos voltado para a realização da vida na cidade, percebemos que esses processos estão imbricados e tem relevância na constituição do presente cenário das cidades. Atualmente, a metropolização do espaço é um dos processos mais importantes nessa questão, pois acreditamos que, enquanto uma das facetas da globalização, esse processo imprime características – antes exclusivas – da metrópole ao território, submetendo as práticas espaciais e as identidades dos lugares aos códigos metropolitanos (LENCIONI, 2013). Nesse sentido, os lugares ficam cada vez mais sujeitos à lógica da mercadoria – que já está posta para todo o mundo; o imperativo do consumo adentra no modo de vida da sociedade e consagra uma realidade pautada no valor de troca sobreposto ao valor de uso, distanciando cada vez mais a importância do uso. Todo esse processo, além de fazer com que nossos referenciais na cidade sejam perdidos, e assim se perde também parte de nossa identidade, acaba por programar o cotidiano de cada cidadão. Por isso, analisar o cotidiano torna-se fundamental, pois apesar do processo ser cada vez mais global, se materializa no âmbito do lugar, tendendo à homogeneização, sem eliminar as tensões, os conflitos e as resistências (CARLOS, 2007). Em outras palavras, não apenas o discurso econômico, mas o próprio cotidiano

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A ARTE DE RUA COMO INSTRUMENTO DE REENCONTRO À VIDA COTIDIANA FRENTE AO PROCESSO DE

METROPOLIZAÇÃO DO ESPAÇO

Aluna: Mayara Rangel Silva Orientador: Prof. Dr. Alvaro Ferreira

Introdução Esta pesquisa nasce de uma inquietação enquanto o trajeto local de trabalho -

local de almoço - local de trabalho se realiza no Centro do Rio de Janeiro: “Não havia uma banda que tocava aqui nessa rua? Acho que ela não fica mais por causa dessa obra”. Também tem crescido o número de pessoas que, para se localizarem na área central ou instruírem a uma localização, citam “o ‘cara’ que toca sax (saxofone)” como uma referência. Tais falas espontâneas de um trabalhador que rotineiramente faz o mesmo percurso, e de outras pessoas que frequentam a mesma área para cumprir as mais diversas finalidades de seu dia a dia, moveram uma questão: quais os sentidos da produção da arte de rua diante de uma produção alienadora da cidade?

A partir desse pontapé inicial, temos nos dedicado ao estudo da arte de rua enquanto estratégia insurgente que promove a interação e contribui para questionar e propor mudanças na condução da vida e o uso da cidade, o que revela, em alguma medida, desalienação do cidadão que está preso na lógica do cotidiano programado. Portanto, é nosso objetivo analisar quais são os sentidos da produção da arte de rua diante da produção alienadora da cidade. Dessa maneira, nosso objeto é o processo de produção alienadora da cidade e a arte de rua como estratégia insurgente de desalienação.

A produção do espaço de forma alienadora envolve muitos processos que aparecerão no decorrer desse trabalho. No seio do capitalismo industrial encontramos a origem da programação do cotidiano. Ao analisar processos como globalização e mundialização, aliadas a um urbanismo cada vez menos voltado para a realização da vida na cidade, percebemos que esses processos estão imbricados e tem relevância na constituição do presente cenário das cidades.

Atualmente, a metropolização do espaço é um dos processos mais importantes nessa questão, pois acreditamos que, enquanto uma das facetas da globalização, esse processo imprime características – antes exclusivas – da metrópole ao território, submetendo as práticas espaciais e as identidades dos lugares aos códigos metropolitanos (LENCIONI, 2013). Nesse sentido, os lugares ficam cada vez mais sujeitos à lógica da mercadoria – que já está posta para todo o mundo; o imperativo do consumo adentra no modo de vida da sociedade e consagra uma realidade pautada no valor de troca sobreposto ao valor de uso, distanciando cada vez mais a importância do uso. Todo esse processo, além de fazer com que nossos referenciais na cidade sejam perdidos, e assim se perde também parte de nossa identidade, acaba por programar o cotidiano de cada cidadão.

Por isso, analisar o cotidiano torna-se fundamental, pois apesar do processo ser cada vez mais global, se materializa no âmbito do lugar, tendendo à homogeneização, sem eliminar as tensões, os conflitos e as resistências (CARLOS, 2007). Em outras palavras, não apenas o discurso econômico, mas o próprio cotidiano

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se tornou a base sobre a qual o capitalismo1 se estabelece. A consciência se perde gradativamente à medida que esse processo, primordialmente econômico, se realiza apossando todas as manifestações da vida humana.

Muitas vezes, os que deveriam ser atores sociais na luta por mudanças, acabam vivendo a partir da total naturalização de tudo, banalização da miséria, da desigualdade, mantendo uma experiência alienada com esse espaço, sendo apenas reprodutores de um discurso hegemônico, apoiando-se na constituição desse cotidiano programado e normatizado. Por outro lado, há os que a partir da indignação lutam contra a “ordem estabelecida”; e há os momentos em que essa lógica hegemônica é minimamente rompida por outros ritmos que se estabelecem nesse espaço (MOREAUX, 2014) e que invadem a dimensão da vida cotidiana. Nesse seguimento, pretendemos analisar a arte de rua como um evento que captura a atenção do transeunte e este passa a se relacionar com aquele espaço que era mera passagem, possibilitando o rompimento com o cotidiano programado – ainda que momentaneamente – e criando novas identidades espaciais a partir do reencontro da vida cotidiana, a partir de um novo uso.

Buscamos, nessa monografia, trabalhar com o que a arte de rua pode contribuir e materializar no espaço a partir dos corpos que afetam e se deixam afetar. Os artistas de rua necessitam dessa interação – que pode ocorrer através da troca de afetos, de acordo com Moreaux (2014) – para fazer sua intervenção. Não havendo essa interação, é impossível romper com a lógica estabelecida, pois eles estão na rua justamente para ter essa relação com seus espectadores. Todo artista precisa cativar seu público, caso contrário, não precisariam do público e nem da rua para expressar-se.

As intervenções artísticas de rua como malabaristas, palhaços, estátuas vivas, poetas, músicos, atores tem crescido nos espaços da cidade e os tomam momentaneamente. A arte de rua possui um caráter lúdico e determinadas manifestações artísticas não tem sobreposto – como a mercadoria o tem – o valor de troca. Esses momentos constituem o encontro, estabelecem o urbano como pensado por Lefebvre, fogem da rotina do cotidiano. Portanto, a dimensão cultural trazida para o trabalho através dessas intervenções podem, em primeira instância, parecer banais, mas tem ligação importante com o processo de metropolização, conforme visto em Moreaux (2014).

Para essa pesquisa, acompanhamos alguns grupos de arte de rua no Centro do Rio de Janeiro e frequentamos as reuniões do Fórum Carioca de Arte Pública. Então, outras questões passaram a ser observadas e orientaram os capítulos dessa monografia: como a produção da cidade alienou a experiência do ser humano com o espaço, submetendo-o à lógica de um cotidiano programado?; Quais os sentidos da produção da arte de rua enquanto estratégia insurgente desalienadora?

É importante ressaltar o fato de esses artistas estarem trabalhando nas ruas, que é espaço público. Intencionalmente esses artistas elegem a rua e não qualquer outro ambiente, pois pretendem modificar a ordem estabelecida naquele espaço.

Continuamos acreditando que pensar as cidades e o urbano a partir do viés da Geografia crítica de cunho marxista, obviamente não de forma dogmática, ainda auxilia bastante para desvelar a realidade. Ao contrário do que temos visto em vários artigos científicos, que dão grande ênfase à discussão teórica, muitas vezes                                                                                                                1 Harvey (2016, p. 19) faz uma importante distinção entre capitalismo e capital. Brevemente, por capitalismo, o autor entende que é “qualquer formação social em que os processos de circulação e acumulação de capital são hegemônicos e dominantes no fornecimento e moldagem das bases materiais”. Já o capital é o motor econômico do capitalismo.

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desprendida do real, reafirmamos que o ponto de partida tem de ser o real. Após a identificação do problema em questão é que devemos voltar-nos à teoria, repensando o real e retornando a ele já com um olhar instrumentalizado. Portanto, sempre estaremos preocupados com o movimento entre prática e teoria.

Através da dialética é possível aliarmos a contraditória relação que mantem unida teoria e prática. Essa relação coopera para manter em aberto as contradições do processo social e histórico – que agrega as práticas e o imaginário, o concreto e o simbólico – contribuindo, assim, para evitar reducionismos deterministas e idealizações afastadas do real, ambas colaborando para o fechamento do movimento e do diálogo crítico, quando o que buscamos é a abertura. Segundo Harvey (2013, p. 316): a dialética “ensina que a universalidade sempre existe em relação à particularidade: não é possível separá-las, ainda que constituam momentos distintivos de nossas operações conceituais e nossos engajamentos práticos”.

Portanto, é preciso esclarecer que estaremos, no que concerne ao método, perseguindo o materialismo histórico dialético. Buscaremos as tensões e conflitos; os momentos em que se encontram homogeneização, hierarquização e fragmentação; aproximações e afastamentos; ordem e desordem; acomodação e inquietação; conformação e inconformismos; imobilismos e (re)ação.

Retomando a importância de fazer a articulação entre a realidade e a teoria, devemos pontuar que a realidade não pode ser considerada como um limite à ação. Nem mesmo a teoria pode tornar-se um limite à transformação. Qualquer contraposição ao modelo capitalista vigente deve partir de dentro do próprio capitalismo. Não basta a crítica ao modelo. É preciso interpretá-lo, conforme acreditava Marx, para daí transformá-lo.

No que tange aos procedimentos de pesquisa: acompanhamos determinados grupos de arte de rua, como o grupo de arte Tá Na Rua e a banda de música instrumental Kosmo Coletivo Urbano, observando suas apresentações e registrando os variados ritmos, gestos, impressões e falas espontâneas que surgem no momento das apresentações; dialogamos com os artistas de rua, principalmente com Wagner José, da banda Wagner José e seu Bando; participamos de reuniões do Fórum Carioca de Arte de Rua; comparecemos ao evento de cortejo em homenagem ao quinto aniversário da Lei do Artista de Rua (Lei no 5429 de 5 de junho de 2012; tudo isso combinado ao resgate bibliográfico acerca de metropolização do espaço, arte de rua, cotidiano, entre outros.

Referente a estrutura desse estudo, no primeiro capítulo trataremos da formação desse cotidiano programado que acreditamos ser resultado da produção alienadora das cidades, intensificado pelo processo de urbanização das cidades que culminando no processo de metropolização do espaço. Esse espaço, portanto, mediado pela mercadoria, bem como as relações sociais e o modo de vida que também estão sujeitos à lógica do consumo, sobrepondo o valor de troca ao valor de uso e ao uso. Assim, esse espaço é cada vez mais pensado contrariamente ao sentido do urbano, negando o urbano e a própria cidade.

Também discorreremos sobre a lógica dos lugares que se tornam cada vez mais globais em vista do processo de globalização, o que confere às práticas cotidianas um caráter global e ao mesmo tempo local, pois materializam-se no âmbito do lugar. Esse lugar perde seus referenciais e compromete a identidade do cidadão. Para tanto, olharemos para conceitos que consideramos serem chave, como: urbano, espaço, globalização, urbanização, metropolização, lugar, cotidiano, entre outros.

No segundo capítulo trataremos sobre a arte de rua e as intervenções que elas promovem nos lugares rompendo com o processo hegemônico, tratando-se portanto,

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de práticas residuais que se revelam como estratégias insurgentes desalienadoras. Cuidaremos da relação da arte com a identidade, da importância da experiência e das formas de apropriação da cidade que dão outro uso ao espaço, buscando o lugar do encontro.

Por fim, faremos alguns apontamentos desse estudo em direção ao direito à cidade e à prática de teatros da ação, acreditando que seja fundamental um exercício do ser político.

Dialogaremos, a partir de todo esse conteúdo, com importantes autores como Harvey (2013, 2015, 2016), Carlos (1994, 2007a, 2007b), Santos (2001), Seabra (1996, 2004), Massey (2000, 2008), Lefebvre (1986, 2000, 2001), Lencioni (2013), Ferreira (2011), Pogrebinschi (2009) e outros.

1. A negação do urbano na construção do cotidiano programado Temos em nosso horizonte a relação da arte de rua com os processos

dominantes – alienadores – no espaço. Cremos que tais processos criam um contexto em que essa prática, ainda que pareça banal, acaba por se tornar uma evidente ruptura. Como alcançaremos nossa perspectiva? Ocuparemo-nos, nesse capítulo, de alguns processos de amplitude que participam da produção alienadora da cidade, tomam diversas escalas e negam o urbano modificando lugares e modos de vida. Preliminarmente, esses processos nos parecem muito distantes de nosso cotidiano, de nossas casas, de nossos lares, de nossos gostos, do que consumimos. É nesse momento de leitura em que pensamos que a teoria e a prática se dissociaram. Nosso esforço, portanto, será também de elucidar como cada indivíduo, cada lugar está integrado a esses amplos processos, como esses processos conectam indivíduos e lugares.

Olhamos ao nosso redor e vemos diversas formas no espaço: prédios com arquiteturas antigas, outros mais modernos. Fazemos compras nas feiras de rua, nos supermercados ou pela internet. Necessitamos dos serviços do chaveiro e do profissional de informática e tecnologias. Vemos o chaveiro coexistindo com o profissional de informática. Independente do valor (no sentido da troca e da especialização da mão de obra) atribuído a cada um desses espaços ou serviços no sistema capitalista, eles coexistem. Mas o importante de ser ressaltado nesse momento é: tudo que existe é fruto de produção humana, ou melhor, produção das sociedades. As sociedades mudam de acordo com o tempo. A sociedade feudal se difere de diversas maneiras de uma sociedade capitalista. O sistema de produção, o modo de vida, o lazer, a arquitetura das casas, as roupas, os utensílios etc.; tudo é diferente nessas duas sociedades. Cada modo de produção produziu e produz seu espaço. Logo, cada sociedade produz seu espaço. O espaço é, portanto, produto, como enxerga Lefebvre (1986, 2000), mas é também produtor, pois acaba por intervir na própria produção, através dos transportes, fluxos de matérias-primas e energias, por exemplo.

A partir dessa teoria do espaço como social, sendo produto-produtor, Lefebvre elabora uma discussão sobre o que é o urbano. Longe de ser um conceito engessado e estático, o urbano é dialético e permite a pesquisa de possibilidades que orientam a teoria acerca do real.

Segundo Lefebvre (1986), o conceito de urbano – precedido do termo urbanidade (próximo da civilidade) – nasce com a explosão da cidade e com a deterioração da vida cotidiana, substituindo, mas englobando, a Pólis antiga e a cidade medieval enquanto momentos históricos. Assim, a cidade medieval não desaparece com a modernidade. O movimento de implosão-explosão revela que a centralidade (centro de decisão, de autoridade política e administrativa, de economia

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etc.) se afirmava na cidade, condensando-a, aglomerando-a. Ao mesmo tempo, a pluralidade de centros persiste e ocorre dispersão no entorno da cidade ao ponto de não ser fácil a identificação de seus limites (a não ser por uma placa que indique a fronteira com outro município). Esse entorno da cidade constitui a periferia, os guetos. O termo “urbano” compreende, portanto, os centros, mas também essas extensões fragmentadas, como o gueto, a periferia. Ou seja, tudo que não é mais campo e que não está ligado à produção agrícola. Para o autor, o termo garante ênfase no cotidiano na vida das cidades, pois é onde se desenvolvem a modernidade e a cotidianidade no mundo moderno.

Para Ribeiro (2000, p. 241), não é possível e nem deve-se ignorar os problemas que surgem a partir do urbano, mas compreendê-lo apenas como um elenco de problemas, “nega qualquer possibilidade de reconstrução analítica e política dos vínculos entre cidade e nação, entre vida urbana e formação social, entre cultura urbana e identidade política”.

O modo de produção atual é o domínio da mercadoria. Até o espaço se torna mercadoria, pois é parcelado, vendido, especulado. Vendemos apartamentos, terrenos ou alugamos o imóvel. Mas a instauração do urbano requer transformar a propriedade em apropriação (no sentido filosófico, como pensado por Lefebvre), se opondo radicalmente a todas as expropriações que tomaram conta inclusive do humano, de sua sexualidade.

O urbano é o lugar da democracia, onde o cidadão-citadino-usuário participa ativamente de todos os momentos de realização de uma vida social fundada no vivido, não em abstrações.

Assim, para analisar o urbano, podemos considerá-lo sujeito, objeto e obra. Enquanto sujeito, analisamos as interações e ações dos atores sociais, ou seja, dos grupos, classes que compõem o urbano. Enquanto objeto, estudamos a situação no território, as interações do urbano com as suas imediações. E enquanto obra, examinamos o uso do espaço, o ordenamento de bairros e ruas, a monumentalidade. Ainda nessa perspectiva, precisaremos ter em vista a seguinte a afirmativa: o ser humano é um ser espacial. Nós produzimos o espaço que nos produz (FERREIRA, 2011, p. 30). Em outras palavras, o espaço é uma acumulação desigual de tempos, segundo Milton Santos. Esse mesmo pensamento está em Carlos (2007, p. 11) quando afirma que a cidade:

enquanto construção humana, é um produto histórico-social e nesta dimensão aparece como trabalho materializado, acumulado ao longo do processo histórico de uma série de gerações. Expressão e significação da vida humana, obra e produto, processo histórico cumulativo, a cidade contém e revela ações passadas, ao mesmo tempo em que o futuro, que se constrói nas tramas do presente – o que nos coloca diante da impossibilidade de pensar a cidade separada da sociedade e do momento histórico analisado.

Carlos (2001) analisa o espaço como produto, condição e meio de reprodução das relações sociais. É um produto social, pois a sociedade se reproduz produzindo seu espaço. Reproduzir espaço significa reproduzir uma vida nesse espaço. O espaço é condição porque somos seres espaciais e não há como desconectar espaço-tempo-sociedade, eles estão juntos e se condicionam mutuamente. O espaço condiciona certas estratégias de ação e certos comportamentos.

Se de um lado o espaço é condição tanto da reprodução do capital quanto da vida humana, de outro ele é produto e nesse sentido trabalho materializado. Ao produzir suas condições de vida, a partir

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das relações capital-trabalho, a sociedade como um todo, produz o espaço e com ele um modo de vida, de pensar, de sentir.

Sendo assim, a produção espacial mostra-se desigual, posto que o espaço urbano encontra-se associado à produção social capitalista que se (re)produz desigualmente. O Rio de Janeiro é um exemplo claro dessa reprodução desigual, pois, no âmbito do município, temos condomínios de luxo em contraposição às favelas e às periferias. Essas duas últimas contam com infraestrutura urbana bastante inferior em relação aos bairros nobres da cidade. Lefebvre (1986) já pontuava em sua época que as populações periféricas não se beneficiaram do urbano, foram, porém, excluídas das vantagens – ou, como preferimos, foram incluídas precariamente, porque eram necessárias à produção e reprodução desigual do capitalismo.

Abrimos aqui um parêntesis para explicar valor de uso e valor de troca que são conceitos fundamentais para entender como funcionam as relações no capitalismo. Nos apoiamos em Harvey (2016, p. 27-28) ao deixar claro o que significa o valor de uso através do exemplo de uma casa: abrigo, desenvolvimento de uma vida afetiva, espaço de reprodução diária e biológica, privacidade, segurança, status. Essas características que envolvem o uso da casa se referem ao valor de uso da mesma. Já o valor de troca é necessário para produzir o uso da casa, conquanto temos de comprá-la, arrendá-la ou alugá-la. Esse valor de troca é determinado pelos custos associados à construção da casa, podendo limitar a criação de valores de uso, pela falta de recursos, ou podem aumentar o valor de uso, construindo um anexo ou mais um andar. Muitas vezes, a valorização do uso tem no horizonte a troca. Porém, certamente o valor de troca se sobrepõe ao valor de uso no mundo capitalista, e isso ocorre para além do contexto de uma casa, mas está entranhado nesse sistema – como já mencionado anteriormente – que hegemoniza a circulação e a acumulação de capital em detrimento das relações sociais, afetando diretamente a vida cotidiana.

Para Marx, conforme nos lembra Harvey (2015, p. 32), tudo que é valor de uso está no espaço e tempo absolutos, ou seja, podem ser compreendidos no âmbito do quadro newtoniano. No que se refere ao valor de troca, temos uma perspectiva de espaço-tempo relativo, porque toda troca derruba barreiras de espaço e tempo, remodelando nossas vidas cotidianas. O valor de troca implica circulação, seja de mercadorias, capital, força de trabalho, dinheiro ou de pessoas através do tempo e do espaço.

Com o advento do dinheiro, esta mudança qualitativa radical definiu um universo ainda mais vasto e fluido de relações de troca através do espaço-tempo relativo do mercado mundial (compreendido não como uma coisa, mas como interação e movimento contínuos). A circulação e a acumulação do capital ocorrem no espaço-tempo relativo. O valor é, por sua vez, um conceito relacional. Sua referência é, portanto, o espaço-tempo relacional. Marx estabelece (às vezes surpreendentemente) que o valor é imaterial, mas objetivo. (HARVEY, 2015, p. 32)

Mas como leremos este espaço, esta cidade? Buscamos através de Harvey (2015) uma abordagem tripartite do espaço:

absoluto, relativo e relacional. Entendemos o espaço relacional (associado ao nome de Leibniz) como um evento, um fenômeno, um objeto, situado num ponto do espaço e que não podem ser compreendidos em referência ao que existe somente naquele ponto. Portanto, trabalhamos também com as influências externas que são internalizadas no espaço: processos, fluxos. Acreditamos que qualquer parcela de espaço estudada tem de ser percebida de forma heterogênea. Há classes sociais, atores

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distintos, conflitos particulares que diferenciam aquela parcela de espaço de outras parcelas. Os conflitos e características quase sempre ultrapassam o limite jurídico-político de um bairro ou de alguma demarcação, ou às vezes não preenchem essa demarcação por completo.

Essas interações interna-externas que se manifestam de todas as formas é que caracterizam o relacional. A mônada de Leibniz não é isolada nem no sentido relativo – que se refere ao comparativo horizontal. Logo, optamos por, em alguns momentos, sobrepor uma visão relacional do espaço, pois sabemos que comparações horizontais não serão suficientes e nem mesmo a ideia de trabalhar apenas com o espaço de forma absoluta – geométrico, matematizado, o espaço de Descartes e Newton, o espaço abstrato de Lefebvre – seria satisfatória. Certas temáticas, como a desenvolvida aqui, não podem ser encerradas dentro de uma perspectiva apenas do espaço absoluto, uma vez que não basta situá-las claramente em uma grade ou sobre um mapa, nem compreender sua circulação em função de regras – ainda que sofisticadas – do espaço-tempo relativo. Cientes de que o espaço não é absoluto, nem relativo, nem relacional em si mesmo, mas pode tornar-se um ou outro separadamente ou simultaneamente em função da natureza do processo considerado, em alguns momentos damos mais atenção a uma perspectiva absoluta e material do espaço, em outros momentos tratamos de forma relativa e, ainda, por vezes veremos de forma relacional.

O atual momento nos revela transformações, acelerações, rupturas. E também nos revelam cenas muito parecidas: nas grandes cidades, adolescentes em seus telefones conversam com vários amigos ao mesmo tempo. Na sala de aula, se “desligam” da discussão e acessam um bate-papo pelo celular, onde conversam com pessoas que fizeram amizade virtualmente. Ao sair da escola, dão uma volta no shopping mais perto para ver as novidades das lojas, assistir um filme hollywoodiano no cinema ou comprar uma calça jeans última moda. Vão ao McDonald’s fazer um lanche e quando voltam para casa ficam em frente à televisão assistindo séries norteamericanas ou reality shows. Se não gostam de ver televisão, podem optar por jogar o último lançamento de um jogo de violência e guerra em seu Playstation. Enquanto jogam, colocam para tocar algumas músicas internacionais em seus iPods. Seus dedos são velozes nos teclados dos celulares iPhones.

Essas cenas se repetem no Brasil, na França, nos Estados Unidos, no Japão, na Alemanha. Há uma semelhança no que estamos ouvindo, vendo, consumindo, comprando, comendo. Podemos ir ao exterior e encontraremos as mesmas lojas, ouviremos as mesmas músicas que estão no topo de músicas mais ouvidas do mundo, comeremos, em alguma medida, a mesma comida.

Os exemplos dados demonstram brevemente como podemos perceber a globalização: um processo sinônimo de conexão entre várias partes do mundo, palpável em nosso cotidiano, ocorrendo em diversas dimensões (social, cultural, econômica, política, etc.), ou seja, trataremos aqui como sendo multidimensional. Também podemos afirmar que esse processo é multiescalar, uma vez que ele atua no local e no global, afeta indivíduos e Estados. O desenvolvimento e o aprimoramento da técnica e da tecnologia permitiram sabermos instantaneamente o que acontece em qualquer outro lugar do mundo – a isso chamamos de convergência de momentos (SANTOS, 2011); garantiram um comércio que antes não era possível de ser realizado; possibilitaram uma produção em escala mundial.

Vivemos em um momento de internacionalização com uma mundialização do produto, do dinheiro, do crédito, do consumo e da informação. Certamente que esse processo não se realiza sem seus conflitos e sem suas contradições. Santos (2011) nos lembra das mazelas trazidas por esse processo. Mas nesse momento buscamos

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demonstrar como a globalização faz parecer que os lugares foram capturados e são todos parecidos, todos tem as mesmas coisas e seguem a mesma lógica. Mais uma vez, apontamos para as características desse processo: é um processo multiescalar e multidimensional.

De antemão, concordamos com Carlos (2007b, p. 18) quando refuta a ideia de uma anulação do espaço por conta do “encurtamento das distâncias” trazido pela globalização, pois as distâncias continuam sendo percorridas da mesma forma, integralmente. O que mudou foi o tempo em que elas são percorridas, que é cada vez menor. Analisar o real através do conceito de espaço torna-se fundamental, posto que as estratégias do capital, reprodução e acumulação acontecem no e através do espaço.

Alguns autores chamam de “compressão espaço-tempo”, como indica Massey (2000, p. 177), esse momento de aceleração que marca a época atual aliado à “superação das barreiras espaciais” e uma ideia de “aldeia global”. Para a autora, “a interpretação habitual é a de que isso resulta quase exclusivamente das ações do capital e de sua internacionalização crescente” (MASSEY, 2000, p. 178). Assim, nossa experiência com o espaço seria determinada majoritariamente pelo capitalismo e seu desenvolvimento, mas para além disso, outras coisas também influenciam nossa vivência. Massey nos coloca diante dos exemplos de raça e gênero para demonstrar como essa compressão espaço-tempo não contempla todas as pessoas igualmente em todos os lugares porque o processo em si necessita de uma diferenciação social. Existe uma geometria do poder, termo proposto pela autora, que se refere a como diferentes grupos sociais e diferentes indivíduos se posicionam em relação aos fluxos da globalização: alguns se beneficiam da compressão e são responsáveis por ela, fazendo uso de fato; enquanto outros são prisioneiros ao mesmo tempo em que são grandes colaboradores, estando em uma inclusão precária (é o caso, por exemplo, dos moradores de favelas do Rio de Janeiro). Assim, nesse processo de compressão espaço-tempo há diferentes formas e níveis de controle e iniciação, de acordo com a diferenciação social que vai ditar quem se beneficia e quem é prisioneiro.

Junto do processo de globalização, temos de tratar o processo de mundialização. Segundo Carlos (2007b), a primeira revela uma dimensão econômica do processo. Já a segunda, trata-se da sociedade urbana em constituição e os conteúdos de seus novos valores, do novo modo de vida e da outra identidade, mediada pela mercadoria. A mundialização nos revela a sociedade urbana e a constituição de um espaço mundial, articulando espaços e escalas. Materializa-se na escala da vida humana (do lugar, do cotidiano) e diz respeito à generalização do processo de formação da sociedade urbana. Novos modo de vida, comportamentos e cultura são incutidos nesse processo.

Com o advento de uma sociedade mundial, também o espaço se tornou mundial. Num mundo em que as determinações se verificam em escala internacional, num mundo universalizado, os acontecimentos são comandados direta ou indiretamente por forças mundiais. É a unidade dos acontecimentos e a cumplicidade das formas que perfazem a unidade do espaço. Pode-se dizer que o espaço atual é global (SANTOS, 2001, p. 25).

Nessa sequência, a mundialização da sociedade urbana pretende a homogeneização e aprofundamento da fragmentação do espaço e do indivíduo.

Como uma das facetas desses processos, surge a metropolização do espaço que – como já mencionado – imprime características que antes eram exclusivas da metrópole, aos territórios e submete as identidades dos lugares e as práticas espaciais aos códigos metropolitanos (LENCIONI, 2013).

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Antecipadamente, no intuito de evitar enganos, urbanização e metropolização são distintas, embora estejam imbricadas. Para Seabra (2004, p. 185):

a urbanização capitalista é um processo de concentração (de homens, de produtos e de coisas) nas cidades, capaz de articular os sistemas hierarquizados das cidades, através de fluxos materiais e imateriais, numa convergência que deu forma à metrópole, até um ponto que o fenômeno urbano mudou de qualidade. Nesta mudança, o fundamental é a luta por territórios. Pode-se dizer que, de um ponto de vista estritamente teórico, o território articula o particular ao geral ou o local ao global e que, revelando o modo de vida, eleva o cotidiano, enquanto expressão da vida cotidiana na modernidade, à teoria e ao conceito. No cotidiano urbano realizam-se todas as abstrações. Inclusive, o processo de valorização do espaço, enquanto abstração da forma mercadoria, realiza-se como abstração concreta, delimitando territórios.

A urbanização possui elos diretos e indiretos com a transformação da experiência social, da vida nas cidades, “Afinal, a urbanização significa mudanças abrangentes no conteúdo de relações técnicas e sociais e, portanto, em formas de organização e reivindicação para além dos contextos urbanos” (RIBEIRO, 2000, p. 238).

Se esses processos amplos afetam o cotidiano e a vida cotidiana, é possível esclarecê-los rapidamente e pautar sua transformação na medida em que entendemos a passagem para a metropolização, que passa principal e fundamentalmente pela industrialização. De acordo com Seabra (2004), a industrialização possibilitou a difusão da mercadoria e do Mercado – o que determinou as relações da sociedade com seu espaço.

A influência da industrialização remodelou toda a vida do homem, principalmente através da captura do tempo. Para entender melhor como isso ocorreu, buscamos em George Woodcock (1986) a resposta. Em seu livro, trabalha a ditadura do relógio – assim intitulada pelo autor – se referindo à captura do tempo na modernidade e vai de encontro à rotina dos homens antes e depois desse processo.

Para o autor, a forma de conceber o tempo é o que ainda hoje difere a sociedade ocidental da oriental, pois alguns grupos costumavam medir seu tempo a partir dos processos cíclicos da natureza. Aliás, o próprio tempo era visto como um processo natural de mudança. O trabalho do homem do campo era harmônico com os elementos da natureza. O dia era do amanhecer ao crepúsculo. Os anos eram de acordo com o plantio e com a colheita. Não havia preocupação com a medição exata do tempo, inclusive os instrumentos de que dispunham (ampulheta, relógio de sol, etc.) eram imprecisos e dependiam de condições climáticas favoráveis. Isso porque “em nenhum lugar do mundo antigo ou da Idade Média, havia mais do que uma pequeníssima minoria de homens que se preocupassem realmente em medir o tempo em termos de exatidão matemática” (WOODCOCK, 1986, p. 122).

Já o homem ocidental tem seu tempo matematizado e mecanizado. A instauração do relógio significa poder controlar, dominar o tempo. Assim, comprar um relógio é o mesmo que transformar o tempo em uma mercadoria que pode ser comercializada (assim como um sabonete). Todo esse processo da ditadura do relógio foi importante para a instauração do capitalismo industrial. Sem a precisão das horas,

o capitalismo industrial nunca poderia ter se desenvolvido, nem teria continuado a explorar seus trabalhadores, o relógio representa um elemento de ditadura mecânica na vida do homem moderno, mais poderoso do que qualquer outro explorador isolado ou do que qualquer outra máquina (WOODCOCK, 1986, p. 122-123)

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O uso do relógio, esse controle exato do tempo, não nasceu de uma necessidade popular. Esse ritmo foi imposto à vida através dos patrões, senhores dos relógios, e os pobres concebiam, mas não sem resistências. Porém, a Igreja desempenhou seu papel ajudando na difusão desse novo modo de vida, ao proclamar que “perder tempo” era pecado. Aliado a isso, as escolas adotaram a rotina dos horários e também havia a rotina nas fábricas. O indivíduo que não conseguia ajustar-se enfrentava desaprovação da sociedade e a ruína econômica. Agora são os movimentos do relógio que ditam o ritmo da vida do ser humano. O homem tornou-se escravo de uma ideia de tempo criada por eles mesmos. O tempo deixa de ser importante:

Refeições às pressas, a disputa de todas as manhãs e de todas as tardes por um lugar nos trens e ônibus, a tensão de trabalhar obedecendo horários, tudo isso contribui, pelos distúrbios digestivos e nervosos que provoca, para arruinar a saúde e encurtar a vida dos homens. (WOODCOCK, 1986, p.125)

Com isso, os homens passam a ignorar o tempo como duração e se reportam a ele através de extensões, como se falassem de metros de algodão. O tempo como mercadoria tem sua máxima no slogan da ideologia capitalista “tempo é dinheiro”. Nesse sentido, “matar o tempo” ou “perder tempo” dos flâneurs se traduz como rebeldia, confrontando a lógica capitalista.

Assim, o capitalismo capturou o tempo. Acompanhar o tempo de relógio, e não o tempo da vida passou a ser a regra e a condição para existir dentro desse sistema. A difusão dos relógios possibilitou que cada vez mais a sociedade aderisse a essa concepção do tempo. Por isso os passos do homem de hoje são sempre funcionais: ele não “gasta seu tempo” andando sem rumo. Pelo contrário, tem sempre seu destino e seu trajeto traçado. Aqueles que erram sem destino são tidos como vadios, ociosos. Estar ocioso já fora um símbolo de inteligência na filosofia antiga, em que os filósofos não trabalhavam para poder meditar e filosofar em suas divagações sobre o mundo. Naquele momento, o trabalho não era emblema, como o é atualmente, de uma coisa que “dignifica o homem”, como o ditado popular. Woodcock (1986), nos mostra como o capitalismo capturou o tempo, e a captura do tempo remodela a forma de experiência no espaço. Essa mudança no cotidiano entra em conformidade com Seabra (1996, p. 77), quando diz que o cotidiano:

O cotidiano se concebe como estratégia do Estado dirigida às classes médias, suporte e produto desse mesmo Estado. Só com a existência das classes médias, ampliadas pelas estratégias de crescimento, é que foi se tornando possível ao Estado erigir-se acima da sociedade.

Como já mencionado, esse processo não foi fruto da necessidade da população, mas algo concebido de “cima” para “baixo”, ou seja, das autoridades da época para a população. Certamente, não é uma novidade para nós que vemos, ainda hoje, as tomadas de decisões do governo baseadas em interesses elitistas.

Nesse seguimento, Jacques (2012), analisando a prática errância – aqueles que “perdem seu tempo” vagueando pelo espaço – como possibilidade de experiência urbana de insurgência e resistência, considera que a modernidade trouxe o empobrecimento da experiência da alteridade. Mas na contemporaneidade, de acordo com Jacques, o capital captura as subjetividades e os desejos, buscando eliminar conflitos e promovendo a pasteurização, homogeneização e diluição das possibilidades de experiência. A experiência é portanto, expropriada, pois há uma contemplação anestésica da cidade que se coloca como espetáculo (no sentido de Guy

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Debord). Não se trata da privação da capacidade de fazer experiências, mas de trocá-las, transmiti-las, narrá-las.

Dessarte, as práticas do homem foram modificadas. O cotidiano fora modificado. É importante reiterar que apesar de parecerem banais, essas práticas se constituem como práticas espaciais e, portanto, nos interessam no que tange a dimensão do cotidiano e da vida cotidiana.

No cotidiano estão as aparências misturadas com a realidade, e é ele que nos permite a identificação do que é cada coisa; nele estão contidas as representações. Seabra (1996) traz, através das reflexões de Lefebvre, a importância do uso no cotidiano, tendo em vista que o uso precede a mercadoria (que por sua essência já agrega valor de uso e valor de troca). O uso implica no modo de ser e se insere no costume. Nesse sentido, podemos tratar do cotidiano, uma vez que é o “lugar do embate entre o concebido e o vivido, estão os enigmas pelos quais se discute a sociedade e o social, para compreender o uso” (SEABRA, 1996, p. 72).

Assim, Seabra (2004, p. 187) explica que o cotidiano urbano delineava-se conforme o progresso da industrialização. A cidade ia se tornando o lugar do encontro da vida privada e da vida pública e iniciava seu processo de acumulação de riquezas baseado em um ideal de progresso e ordem pública. Nesse sentido, a cidade representava uma promessa de mundo melhor, principalmente para aqueles que migravam do campo em busca de melhores condições na cidade.

Naquele momento, a cidade moderna se apresentou como adequada para o desenvolvimento da indústria porque reunia as condições sociais e de produção necessárias para que a industrialização se efetivasse, além da quantidade de trabalhadores – que Seabra, inspirada em Marx, denomina “exército de trabalhadores”.

Nas primeiras fases da industrialização, os bairros articulavam em alguma medida trabalho e família quase sempre no mesmo lugar e não havia uma cisão entre festa e vida. A cidade apresentava-se ainda de maneira distante, era o outro, um lugar a ser conquistado. O cotidiano ainda era pensado como banal e rotineiro e a família, discorre Seabra, ainda era produtora de valores de uso.

O modo de vida se trata do plano da vida imediata. A vida cotidiana foi se configurando como o modo de vida, sendo então estruturada multiescalar e multidimensionalmente, traduzindo as formas de emprego do tempo em formas de uso do espaço, sendo esse processo viabilizado pela indústria principalmente, que expropriou o tempo e sujeitou o modo de vida à lógica do mercado:

A vida cotidiana como conceito refere-se aos conteúdos da vida na modernidade, os quais seguem sendo transformados pelas tecnologias do cotidiano e por elas modulados, caracterizando uma maneira de viver ou um modo de vida regido pela lógica da mercadoria. (SEABRA, 2004, p. 190)

A vida cotidiana articula espaço e tempo, é a materialidade do cotidiano. O cotidiano é aqui entendido como categoria filosófica, um conceito operacional:

A produção do cotidiano revela os conflitos humanos, as contradições da sociedade situadas no conjunto de problemas humanos de nossa época. O cotidiano não se restringe às atividades de rotina, nem tão pouco a atos isolados, isto porque no cotidiano se realizam as coações e se gestam as possibilidades. De um lado, temos, então, que a produção do cotidiano no mundo moderno vincula-se a ampla difusão do consumo de massa e da constituição de uma cultura, também de massa, que invadem a vida determinando-a, associada às necessidades de reprodução das

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relações sociais que produz um modo de vida, valores, um modo de consumo, necessidades. Por outro lado, o cotidiano – fortemente burocratizado, dominado – também é o lugar onde se formulam, para Lefebvre, os problemas da reprodução no seu sentido amplo; é o lugar da superação das necessidades, é o lugar do novo. (CARLOS, 2007, p. 81)

o cotidiano é ao mesmo tempo abstrato e concreto; institui-se a partir do vivido. Com isso ele traz o vivido ao pensamento teórico e mostra aí uma certa apropriação do tempo, do espaço, do corpo e da espontaneidade vital. Apropriação esta sempre em vias de expropriação. O cotidiano, ele próprio, é uma mediação entre o econômico e o politico, objetivação de estratégias do Estado no sentido de uma gestão total da sociedade; lugar de realização da indústria cultural visando os modelos de consumo, no que se destaca o papel da mídia. Enfim, no cotidiano, entre o concebido e o vivido, travam-se as lutas pelo uso, sempre envolvendo as particularidades na direção e com o sentido de firmarem-se como diferença. (SEABRA, 1996, p. 76)

Em meio ao desenvolvimento tecnológico, industrial, ao qual a sociedade acompanhava, acontecia a o surgimento da metrópole. Ao mesmo tempo em que a metrópole afirma a cidade, é a anticidade, pois nasce negando o ideal civilizatório da cidade.

Por conta do aprofundamento na divisão do trabalho, ocorreram transformações na forma de usar o tempo, e essa forma repetitiva de uso do tempo que estabeleceu-se envolveu em um único processo o tempo de trabalho e o do não trabalho (da família, da região, do lazer).

Cada cidade, cada forma espacial ganha uma especificidade no seu tempo histórico. As cidades foram e são constantemente pensadas para dar suporte ao momento vivenciado.

Mas não podemos tratar de cidade como simples resultado que reflete a história geral; não é como um objeto que pode ser manuseado, como um papel. A cidade tem suas especificidades (LEFEBVRE, 2001, p. 51) e “sempre teve relações com a sociedade no seu conjunto (...) Portanto, ela muda quando muda a sociedade no seu conjunto”. Mas o autor afirma que a cidade não é um resultado de transformações passivas a partir dos processos globais, ela está em um meio ermo entre a ordem próxima (relações entre os indivíduos e grupos) e a ordem distante (ordem da sociedade, administrada por instituições). Assim, Lefebvre aponta que a cidade, longe de ser produto, está mais associada a uma obra de arte, pois:

Se há uma produção da cidade, e das relações sociais na cidade, é uma produção e reprodução de seres humanos por seres humanos, mais do que uma produção de objetos. A cidade tem uma história; ela é obra de uma história, isto é, de pessoas e de grupos bem determinados que realizam essa obra as condições históricas. (LEFEBVRE, 2001, p. 52)

O autor chega a esboçar um conceito de cidade (LEFEBVRE, 2001, p. 62), mas que não se explica sozinha, e sim com o processo de desvendamento onde o conceito pode se soltar aos poucos das ideologias. A cidade seria, primeiro, “projeção da sociedade sobre um local”, sendo também vários tempos e vários ritmos; a cidade pode ser ouvida como se fosse uma música e lida como uma escrita discursiva.

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Segundo, a cidade seria “conjunto das diferenças entre as cidades”, buscando visibilidade nas particularidades, mas também na pluralidade.

Essa obra não se separa das decisões e condutas que foram tomadas, das mensagens e dos códigos, das relações que a influencia e são influenciadas por ela. Da mesma maneira, não existe uma obra sem sua realidade prático-sensível, sua materialidade. Assim, podemos brevemente, com o apoio de Lefebvre, distinguir a cidade e o urbano. Essa distinção é entre a morfologia material e a morfologia social. A cidade é um dado prático-sensível, arquitetônico e presente. Já o urbano se associa à vida urbana, à sociedade urbana. Lefebvre (2001, p. 55) enfatiza que o urbano “não é uma alma, um espírito, uma entidade filosófica”, ele coexiste com a cidade.

Assim, o termo metrópole define o momento histórico atual; é a materialização da urbanização hoje. Atualmente, é onde o urbano se revela enquanto modo de vida. Em outras palavras, o modo de vida da sociedade urbana produz um espaço no qual a metrópole é sua forma mais acabada. De acordo com Carlos (2007, p. 12), na metrópole as contradições do mundo moderno se revelam com toda sua força, pois a metropolização é um processo que hierarquiza, fragmenta e homogeneíza os espaços. Não podemos passar pelos termos homogeneização-fragmentação-hierarquização sem dar a devida atenção.

Segundo Carlos (2007b, p. 35), a hierarquização do espaço ocorre a partir da divisão do trabalho que se revela para nós na dominação dos centros ao exercerem funções administrativa, jurídica, fiscal, policial e de gestão. Uma característica da metrópole é a centralidade que ela possui em relação ao resto do território, e por isso dominando e articulando outras áreas. A hierarquização pode ser pensada também na escala global através da divisão internacional do trabalho e dos produtos e serviços, por exemplo, oferecidos por cada país num comércio global. A multiplicidade de centros que esse processo ocasiona faz com que habitar na metrópole tenha um significado diverso que muitas vezes se distancia do próprio sentido de habitar – enquanto ato criativo e possibilidade de realizar a vida – e se aproxime mais do sentido de habitat – que para a autora, trata da redução da vida ao plano do espaço privado. Uma casa, por exemplo, é considerada apenas um receptáculo onde as pessoas se instalam e se reproduzem, é reduzida à função de mercadoria.

Assim, a consciência urbana é dissipada, mudando hábitos, comportamentos, valores. A própria cidade como obra (se opondo à cidade como produto) desaparece.

Percebemos, portanto, que a globalização e a fragmentação ocorrem em diversos planos: no plano do indivíduo e do espaço. Segundo Carlos (2007b, p. 36),

Na sociedade essa fragmentação dá-se através da dissolução de relações sociais que ligavam os homens entre si, na vida familiar e social bem como na sua relação com novos objetos dentre eles a TV que banaliza tudo, da religião à política, através de seu poder hipnótico extraordinário que consegue transformar a guerra num aparato cômico (como aquele que vimos na “guerra do Golfo”). A segmentação da atividade do homem massacrado pelo processo de homogeneização, onde as pessoas “pasteurizadas tornam-se idênticas”, presas ao universo do cotidiano, submissas ao consumo e á troca, capturadas pela mídia, encontram-se diante do efêmero e do repetitivo como condição da reprodução das relações sociais. No caso do espaço — no lugar —, este aparece como produto de uma atividade dividida, onde a se fragmentação ocorre enquanto produto do conflito entre o processo de produção socializado e sua apropriação privada. Esta fragmentação que se aprofunda divide o espaço em parcelas cada vez menores, que são compradas e vendidas no mercado, como produtos de atividades cada vez mais

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parceladas. Uma vez mundializado, o espaço vai então se fragmentando através de formas

de apropriação (trabalho, lazer, consumo, morar), criando espaços separados, e torna-se por fim, uma mercadoria, e enquanto mercadoria: é produzido, vendido, submetido a trocas e à especulação, escapando dos indivíduos o seu conteúdo. O valor de troca passa a prevalecer sobre o valor de uso que esse espaço tem, gerando apropriação diferenciada pelos diferentes estratos da sociedade. Para elucidar que essa lógica ocorre nas relações sociais, que passam a ser mediadas pela mercadoria, Carlos (2007b) nos lembra que as cadeiras nas calçadas foram substituídas pela televisão, assim como os aparelhos de videogame substituíram a brincadeira entre as crianças que agora se “relacionam” com uma tela.

Ainda, Carlos (2007a, p. 17) sinaliza as contradições da metrópole: a importância do valor de troca que constrói a cidade como um “negócio” ao mesmo tempo em que privilegia o espaço da realização da vida cotidiana enquanto espaço improdutivo, ou seja, não que está submetido à valorização; e a queda dos referenciais urbanos que ocasionam perda de identidade simultaneamente à persistência dos lugares e suas relações sociais aí contidas.

Atingimos, então, a noção de lugar, pois a metrópole não pode ser vivida integralmente, apenas parcialmente: portanto, não pode ser considerada lugar e não é suficiente enquanto escala analítica (CARLOS, 2007b, p. 18). Assim, para analisarmos o cotidiano na cidade e as relações que nele se realizam, temos de recorrer ao lugar.

O sentido do lugar para Carlos (2007b, p. 43) é essencialmente coletivo, havendo uma forte relação entre os homens e que constitui-se em referência para os indivíduos:

Assim os lugares enquanto áreas definidas da metrópole podem ser analisados enquanto espaço material onde se inscrevem os atos de gerações e onde o processo de apropriação aparece como condição necessária à vida que se realiza no e através do uso. Mas o uso não é um simples ato de consumo, ele coloca acento sobre as relações entre as pessoas com o espaço no plano do imediato, no nível das relações de vizinhança, na construção de uma identidade concreta. É nesse contexto que para o cidadão a metrópole aparece como o lugar do desejo, da mesma forma que representa também um conjunto de coações que impede ou inibe os desejos.

O lugar tem profunda relação com a identidade histórica que liga o homem ao local, porém isso está mudando uma vez que existe uma relação mais estreita do lugar como mundo e com histórias que são compartilhadas para além de limites físicos.

É no lugar que os processos se materializam: nele vivemos, nele o cotidiano se realiza. No lugar percebemos, entendemos e lemos o mundo moderno em suas múltiplas dimensões. O mundial existe no local e redefine o conteúdo deste, sem anular as particularidades. O lugar se constitui como um ponto de articulação entre a mundialidade e o local, enquanto momento, especificidade concreta. No lugar, podemos analisar o cotidiano e a vida cotidiana.

O lugar abre a perspectiva para se pensar o viver e o habitar, o uso e o consumo, os processos de apropriação do espaço. Ao mesmo tempo, posto que preenchido por múltiplas coações, expõe as pressões que se exercem em todos os níveis. (CARLOS, 2007b, p. 12)

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Para Massey (2008, p. 191), podemos falar de um sentido global de lugar: Este é um entendimento de lugar – como aberto (“um sentido global de lugar”), como um tecer de estórias em processo, como um momento dentro das geometrias de poder, como uma constelação particular, dentro de topografias mais amplas de espaço, e como em processo, uma tarefa inacabada – sobre o que já escrevi muitas vezes.

O lugar é, portanto, transformado constantemente, ocasionando perda das referências, pois cada vez mais o contato diminui. A ideia de que podemos fazer tudo de dentro das nossas casas ou de nossos condomínios fechados, aliada ao desenvolvimento das tecnologias – que nos permite, por exemplo, pagar uma conta acessando o celular e não mais enfrentando uma fila nas casas lotéricas – e à construção dos condomínios fechados que possuem todo o serviço de beleza, saúde e consumo dentro dos seus limites, negam o urbano porque negam a rua, e a rua é o lugar do encontro. Assim, a rua deixa de ser o lugar do encontro para ser apenas passagem. Pode-se falar, portanto, de um desencontro entre o tempo de transformação da cidade e o desenrolar da vida, o tempo da vida.

Toda essa aceleração, compressão, homogeneização etc. causa estranhamento, que é a sensação do desconhecido, do não identificado. Para Carlos (2001, p. 33):

O estranhamento provocado pelas mudanças no uso do espaço e por uma nova organização do tempo na vida cotidiana coloca o indivíduo diante de situações mutantes inesperadas. A constante renovação/transformação do espaço urbano por meio das mudanças morfológicas da metrópole produz transformações nos tempos urbanos da vida, nos modos e tempos de apropriação/uso dos espaços públicos, por exemplo, aquele da rua. A cidade aparece como exterioridade; ela está fora do indivíduo, apontando para uma condição de alienação.

Se parece que os lugares foram capturados e são todos parecidos, todos seguem a mesma lógica; se vivemos uma condição de alienação da cidade, qual a nossa identidade? Se nossa existência atravessada por mecanismos de alienação e dominação, logo nossa compreensão da História e do próprio destino são distorcidos (MARTINS, 2013, p. 9).

Um “sentido de lugar”, como trazido por Massey (2000, p. 181), tem um sentido de enraizamento, e pode fornecer certa estabilidade “e uma fonte de identidade não problemática”. E essa identidade viria não de uma coesão ou de um sentido particular de lugar que seria compartilhado por todos.

“Se se reconhece que as pessoas têm identidades múltiplas, pode-se dizer a mesma coisa dos lugares. Ademais, essas identidades múltiplas podem ser uma fonte de riqueza ou de conflito, ou de ambas” (Massey, 2000, p. 183). Não se trata, entretanto, de confundir comunidade e lugar, mas de conectar a história do lugar à história do mundo, pois o lugar não se dá nele mesmo, o lugar é conectado. Nem mesmo a ideia de fronteira é uma ideia limitadora, pois não é possível fechar um lugar em si mesmo através de suas fronteiras. A fronteira é, essencialmente, uma zona de contato.

Cada lugar pode ser visto como um ponto particular, se visto do globo, como sugere Massey. É um lugar de encontro, um ponto único na interseção de tantos processos que o perpassam. Se articulam em rede e constroem relações em diversas escalas: na rua, na região, no continente. Integra, dessa forma, o global e o local. Logo, qualquer explicação sobre determinado lugar deve ser feita dentro de um

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contexto geográfico mais amplo, reiterando todo nosso esforço de ligar os processos nesse primeiro capítulo.

Em suma, ainda trazendo Massey, um conceito progressista de lugar consiste em: primeiro, o lugar não é estático, é um processo; segundo, os lugares não tem de ter demarcação de fronteira; terceiro, o lugares não tem identidades únicas ou singulares; e por último, cada lugar tem suas especificidades.

Cada sociedade produz seu espaço e determina as formas de apropriação, bem como o ritmo da vida. Na realidade do mundo moderno globalizado que se reproduz em diferentes níveis sem suprimir particularidades dos lugares, parece que o lugar deixa de fazer sentido. Porém, o lugar guarda em si seu significado e as dimensões do movimento da história enquanto movimento da vida que pode ser apreendido pela memória através dos sentidos (CARLOS, 2007b).

Diante do panorama dos megaeventos, a cidade foi sendo (re)planejada para atender a essa demanda internacional de jogos olímpicos, Copa do Mundo e encontro religioso. O valor de troca da cidade, mais uma vez, foi sobreposto ao valor de uso. A cidade foi enfatizada como mercadoria, vendida para turistas. O ex-prefeito Eduardo Paes, em suas falas, reforçava os ganhos obtidos com venda da imagem da cidade, e não os ganhos por suprir das necessidades dos cidadãos, como seria o esperado. Isso demonstra mínima preocupação com o uso – justamente o contrário ao que propõe a arte de rua. As obras do Centro do Rio de Janeiro, por exemplo, aconteceram rapidamente e cunharam o adjetivo de “revitalizadoras”2, ascendendo no cenário global como melhorias turísticas. Para Ribeiro (2000, p. 237):

Beneficiam-se, com essa ótica, projetos de renovação urbana que segmentam o tecido social e que mercantilizam a vida espontânea, favorecendo o embelezamento apenas da paisagem e ampliando os obstáculos à apropriação social da cidade. Essa tendência pode ser constatada pela difusão de uma arquitetura, de negócios e lazer, absolutamente recorrente e, em médio prazo, desinteressante e estéril ou, ainda, de uma arquitetura dirigida aos olhos externos, que busca ampliar a face mercantil da vida urbana através dos fluxos de consumo rápido.

Carlos (2007a) aponta que o planejamento urbano tem sido cada vez mais para reduzir a cidade a um nível funcional. O morar, o trabalho e o lazer aparecem de modo separado na cidade, o que traz uma simplificação das necessidades e revela o habitante como “usuário de serviços”, “consumidor” ou “produtor”, mas nunca como sujeito da reprodução do espaço urbano, substituindo a cidadania real por uma cidadania formal.

A imposição de um urbanismo que é dado como única forma possível de urbanismo e que está voltado para o automóvel, para os negócios e para o poder – e assim a abertura de vias expressas, viadutos e outras obras arquitetônicas acontecem rapidamente – faz com que os bairros sejam destruídos, os centros tenham seus atrativos reduzidos e sejam cada vez mais esvaziados porque tem o encontro e as

                                                                                                               2 O termo “revitalizar” foi colocado entre aspas, pois entendemos por revitalizar “dar vida novamente”. Questionamos, então, o uso desse termo pelo poder público nas obras que ocorreram no Centro do Rio de Janeiro, uma vez que se deu em espaços de fins comerciais e residenciais, ou seja, onde já residiam muitas pessoas (de baixa renda). Acreditamos, portanto, que a vida que já existia ali foi erroneamente, mas propositalmente, desconsiderada – o que ficou claro nas práticas autoritárias e violentas que foram protagonizadas pelo governo na expulsão de moradores do Morro da Providência e da implementação de um teleférico que não atende à necessidade da população. Ver mais em: ORLANDI, N. (2012) Projeto “Porto Maravilha” e a transformação espacial da Zona Portuária do Rio de Janeiro.

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trocas cada vez mais difusa. As pessoas são afastadas, os pontos de encontro são destruídos ou difíceis de se chegar a pé. O ritmo acelerado da modernidade permite criar novas formas ininterruptamente, colocando-se numa nova noção de tempo que é imposto principalmente pela ciência e pela técnica. A busca incessante pelo novo, orientada pelas ideias de progresso e moderno, altera profundamente a morfologia urbana, onde surgem novas formas construídas sobre outras.

De acordo com Carlos (2007b) por um lado, esse processo de transformação urbana tem uma ordem formal que agrega características de efêmero e instantâneo à cidade por conta das formas urbanas (viadutos e vias rápidas, por exemplo) que estão voltadas para a rápida circulação. O resultado disso é a reprodução de um espaço sem referências do tempo longo para o habitante, não vemos no espaço a acumulação de tempos, a história da civilização. As formas não ganham o adjetivo de antigas porque a mudança é cada vez mais veloz. Os elementos impressos na paisagem da metrópole e que eram conhecidos se esfumam. Não é claro no espaço a acumulação de tempos, não conseguimos enxergar a história da civilização.

Por outro lado, esse processo possui ordem social que se refere aos novos sentidos de apropriação do espaço urbano pela sociedade, apontando para outros usos da cidade. Porém, como as transformações na metrópole acontecem velozmente, as pessoas são obrigadas a se readaptar constantemente, o que esvazia o uso e empobrece as relações sociais na cidade.

Brevemente, no intuito de haver um melhor entendimento sobre o que significa apropriação, nos apoiaremos em Seabra (1996), que baseada em Lefebvre, afirma que apropriação e propriedade estão relacionadas dialeticamente. A apropriação, no limite, seria a não-propriedade. Está referenciada à qualidades. Seria, portanto, o fim da alienação. Já a propriedade se referencia ao dinheiro, à quantidades, tende a restringir o uso. Essa relação dialética, para a autora:

está formulada como momentos ínfimos que implicam o âmbito do vivido, lugar dos embates entre os diversos processos de institucionalização da vida, como princípios lógico-políticos. Estes embates se travam na textura fina da sociedade, e tem de subverter formas de uso, revolver costumes. (SEABRA, 1996, p. 72)

Assim, a perda desses referenciais corresponde diretamente à vida do habitante, causando estranhamento. Desse processo sucede uma prevalência do valor de troca sobre o uso, e assim cada vez mais o uso se distancia do valor de uso e do valor de troca, e o ápice do conflito ocorre quando o espaço se torna mero objeto de compra e venda. Perdemos o contato com a tradição, e a memória é progressivamente empobrecida, transformando o herói moderno em uma vítima da amnésia (CARLOS, 2007b, p. 39), pois o moderno impõe o efêmero.

Em suma, os lugares de realização da vida estão distantes dos indivíduos e as pessoas são obrigadas a se readaptar constantemente por conta da velocidade que todo esse processo impõe. Se a produção da identidade se realiza praticamente nos lugares de apropriação pela relação com o outro, logo a construção da identidade está comprometida. A identidade se perde e dá lugar a uma identidade abstrata, mediada pela mercadoria. Da prevalência do valor de uso sobre o valor de troca, aliado ao “ter para ser”, podemos admitir que o próprio homem é uma mercadoria, assim como o espaço e todas as demais coisas sobre a qual estão no circuito capitalista: “Considera-se então que mercadorias não são apenas os produtos que saem das fábricas, mas que fragmentos e momentos da experiência social também se realizam nos circuitos de valorização do capital” (SEABRA, 1996, p. 82).

Assim, em uma cidade aparentemente “cheia”, temos a produção de espaços

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de isolamento, vazios, Carlos (2007a, 2007b) se refere a espaços amnésicos, pois resultaram de uma ruptura brutal que diluiu os referenciais e o espaço da metrópole:

O constante reconstruir do espaço da metrópole modifica o uso, que, cada vez mais normatizado, revela a produção de um “espaço amnésico” em relação direta com o “tempo efêmero”. Nessa direção o espaço se reproduz na direção do homogêneo com a profusão de formas simétricas que se impõem como único modelo possível, ao mesmo tempo em que fragmentado pelas estratégias imobiliárias locais, ao mesmo tempo que mundial. (CARLOS, 2001, p. 351)

Os espaços que não expressam homogeneidade e não são funcionais (inclusive por vezes são tidos como um impedimento à mobilidade do urbano e ao processo de reprodução ampliada do capital) são chamados de espaços residuais (SEABRA, 2004, p. 185). A partir de sua permanência, esses espaços guardam as coexistências das temporalidades, retém histórias e vivências.

Ribeiro (2000, p. 243, grifo da autora) constata a importância de não ocultar a história e do surgimentos de formas de narrar a experiência social “em que os riscos da reificação e da objetivação do outro (vivos e mortos) sejam reconhecidos (e refletidos verdadeiramente) desde o início.

Todo esse processo insiste no desenvolvimento de uma identidade abstrata marcada pela mercadoria e pelo consumo, e essa identidade é imposta à sociedade, pois a produção da identidade se realiza praticamente nos lugares de apropriação pela relação com o outro e os lugares de realização da vida estão distantes dos indivíduos.

Seria especulativo ou distante tratarmos de identidade, vivências e histórias sem ir de encontro ao sujeito que as empreende: o ser humano. Cada ser ajuda na produção tanto dessas vivências que competem à vida cotidiana, como na reprodução da lógica que torna a experiência no espaço uma experiência alienadora. Tratar do ser humano nos leva à escala do corpo, pois experienciamos o espaço através dos corpos (por meio dos sentidos), através do modo de uso e das apropriações dos lugares. Nesse sentido, é que partimos para o capítulo seguinte: a insurgente prática da arte de rua e os processos na escala do corpo. 2. Arte de rua: estratégia insurgente desalienadora

Para iniciar o segundo capítulo, temos de declarar que não há nesse estudo a pretensão de universalizar o que é particular, nem particularizar o universal, pois corremos alguns riscos referentes à “tradução” do concreto ao abstrato (HARVEY, 2013, p. 317). Temos, porém, o objetivo de analisar de forma multiescalar e multidimensional para entendermos como uma prática cotidiana pode estar ligada à processos tão amplos como a metropolização, por exemplo, já citadas no primeiro capítulo.

Para esclarecimento, em diversos trabalhos acadêmicos veremos “arte pública” ao invés de “arte de rua”. Esse termo foi escolhido pelos artistas de rua para diferenciar a arte que acontece gratuitamente na rua da arte que se dá em espaços privados. É uma arte que não serve aos interesses do capital. Além disso, contem um sentido de educação e cultura, ou seja, de cidadania. Não é nosso intuito aprofundar essa questão, porém isso revela certa preocupação e consciência por parte de alguns artistas, enquanto atores sociais. As discussões do Fórum Carioca de Arte Pública3

                                                                                                               3 Foi através dos encontros da classe artística nesse fórum que surgiu a proposta de uma lei para o artista de rua, culminando na Lei do Artista de Rua (Lei 5.429/2012), de autoria do vereador Reimont que participa das reuniões.

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(ocorrem todas as segundas feiras na sede do grupo Tá Na Rua, na Lapa) tem um teor político e até geográfico, pois tratam desde as ações cotidianas dos artistas até formas de intervenção no espaço e estratégias frente ao Estado para garantir a sobrevivência da classe artística e a continuidade de seu trabalho. Esse conteúdo dialoga diretamente com o que temos estudado: experiência no espaço, memória, intervenção, identidade, o político.

No contexto atual (conforme visto no capítulo anterior) percebemos cada vez mais que o viver escapa tem escapado ao homem porque se apresenta como um “absurdo, como se fosse um viver destituído de sentido” (MARTINS, 2013, p. 9).

Na escala da vida cotidiana parece ser mais difícil resistir e lutar contra o processo de reprodução e perpetuação do capital, mas sabemos que o lugar está conectado a esses processos que são multiescalares e que capturam os menores aspectos do cotidiano, no âmbito do vivido, e os submete à lógica da mercadoria. É na vida cotidiana que, para Martins (2013), trava-se o embate pelas conquistas fundamentais por aquilo que liberta o homem das misérias. Esse homem aparece como o herói comum e fragmentado, divorciado de si mesmo e de sua obra, que nutre estranhamento diante de uma cotidianidade que mutila as relações, mas é o herói que busca – ainda que pelos caminhos de sua alienação – os caminhos da vida cotidiana em busca da criatividade, da liberdade, da imaginação, do prazer no trabalho, da festa.

É no âmbito do lugar que compreendemos a racionalidade homogeneizante inerente ao processo de acumulação. Esse processo não se realiza apenas a partir da produção de objetos e mercadorias, mas liga-se cada vez mais à produção de um novo espaço, de uma nova divisão e organização do trabalho, além de produzir modelos de comportamento que induzem ao consumo e norteiam a vida cotidiana. (CARLOS, 2007b).

Harvey (2013, p. 307) acredita que: Ao mudar nosso mundo, mudamos a nós mesmos. Como, então, pode algum de nós falar de mudança social sem ao mesmo tempo estar preparado, em termos tanto mentais como físicos, para alterar a si mesmo?

Tendo essa reflexão em vista, podemos afirmar a importância de não banalizar estudos que tratam do cotidiano, e nem devemos banalizar as ações cotidianas. As transformações – e não podemos descartar inclusive as internas de cada indivíduo – acontecem no cotidiano, no âmbito do lugar.

Assim, a escala do corpo pode ser trazida para essa análise. Através da domesticação dos corpos, dos desejos, das necessidades e dos sonhos que foi possível se erigir uma sociedade pautada no consumo, pois cada indivíduo teve de ser convencido a participar desta estrutura, internalizando a lógica e as práticas, forjando assim uma racionalidade. A racionalidade é construída gradativamente através da mudança de pensamento – que se traduzirá em prática espacial – de cada indivíduo. Nesse sentido que o autor traz a afirmação "o pessoal é profundamente político". Como exemplo, cabe lembrar o "american way of life" que penetrou na consciência dos indivíduos a necessidade de mudança da racionalidade - racionalidade essa pautada no consumo e no “ter para ser”. Seabra (1996, p. 81) trouxe essa questão de forma muito clara: “Então, tendo que uma racionalidade imposta altera uma forma específica de uso, e não esquecendo que o uso é um emprego do tempo, conclui-se que ela implicará uma alteração de costume”.

A despeito de tudo isso, falar do indivíduo pressupõe uma análise que ultrapassa a escala do corpo e se direciona às outras escalas da produção e reprodução da vida cotidiana. Não se trata de dar mais ou menos importância a atuação ou tomada

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de decisão em uma ou outra escala, mas entendermos que apenas as ações cotidianas, apesar de importantíssimas e fundamentais, não serão suficientes. O inverso também é verdadeiro. Dessarte, trazer à luz a multiescalaridade continua sendo fundamental pra entender os múltiplos processos que ressignificam constantemente o espaço e as práticas espaciais.

Para Harvey (2013, p. 309), a multiescalaridade é tão importante que enxerga o indivíduo como um “conjunto de relações socioecológicas”, uma vez que infinitos processos que atravessam os mundos físicos e sociais são recebidos e incorporados nas pessoas.

Por isso, é justamente nessa escala da vida cotidiana que as ações são tão importantes, pois podem romper em alguma medida com a racionalidade capitalista. Logo, trazemos essa escala através do corpo e da rua. Para Moreaux (2014, p. 20), apropriar-se da vida cotidiana é enxergar o vivido e as possibilidades de transformação que aí estão inseridas.

O momento do racional é o momento apreciado pela técnica que invade profundamente a vida social. Esse momento é o da dominação que deixou de lado o uso do corpo, do sexo, e a religião porque são consideradas necessidades e espiritualidade. A destruição do uso já era uma questão tratada por Lefebvre, como lembra Seabra (1996), a saber que o espontâneo foi destruído não somente por fora, externamente, mas internamente, dentro do corpo, transformando até o sexo em discurso e produção publicitária. Tal momento racional, portanto: “é portador de uma racionalidade mais ampla, capaz de expropriar o sonho, o prazer, o corpo, e que essa expropriação é inerente às relações, não podendo ser ignorada” (SEABRA, 1996, p. 73). Portanto, podemos analisar e buscar o vivido no espaço urbano através das práticas errantes, conforme desenvolvido por Jacques (2012), pois os errantes se deixam surpreender pela cidade, pelos eventos, pelos encontros. Afinal, é no vivido que:

a natureza aparece e transparece, como corpo, como uso. É nesse nível que o prazer, o sonho, o desejo se debatem, e que os sentidos da existência propriamente humana, não se deixando aniquilar, podem se insurgir. Possibilidade que se funda nas particularidades. (SEABRA, 1996, p. 75)

Ao caminhar pelas ruas do Centro do Rio de Janeiro, além de poder comprar artigos de todos os tipos nos camelôs, pode-se parar e desfrutar de determinados tipos de arte de rua. Ao longe já é possível ouvir a música instrumental tocada pelo músico que pretende chamar a atenção de quem passa. Assim, a música convida o público. Da mesma forma que o músico, um palhaço tem a árdua tarefa de sincronizar sua narrativa com ritmo e energia para cativar os que seguem seus caminhos. Um mágico imposta sua voz e controla os objetos, olhando diretamente para o público, convidando-o ao desafio. O artista sabe que seu corpo não pode estar cotidiano, mas “extra-cotidiano”. As técnicas são necessárias desde o aprendizado da arte que desenvolve, como para lidar com os imprevistos e para atrair a atenção daqueles que passam. A preparação dos seus corpos, física e emocional, facilita as interações, a escolha da melhor qualidade de energia para entusiasmar o público e manter seu interesse.

Se o cotidiano é esse lugar da dominação, é também é o lugar da ação. Moreaux (2014) nos recorda Lefebvre já chamava atenção para a repetição também como obra, posto que pode surgir a essência do imaginário. Por exemplo, a música é repetição, mas também é mobilidade, e através dela podem aparecer sentimentos novos ou esquecidos e recordações.

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Nessa mesma linha de raciocínio, podem ser entendidas também as artes de rua. O ator, o palhaço, o performer adquirem suas técnicas através da repetição, de ensaios exaustivos, do corpo sendo moldado e disciplinado a entender determinados movimentos. Essa repetição é dura a princípio e faz o artista testar os limites do corpo e do intelecto.

Carreri (2011) relata em seu livro sua trajetória com o teatro e a disciplina árdua de treinamento que permitiu a ela desenvolver uma técnica corporal e vocal que são frutos desse treinamento. A exemplo disso, os “exercícios físicos”, exercícios de acrobacia e os “exercícios suíços” (uma técnica baseada em modos de sentar-se e levantar-se) são repetitivos e constantes. Para ilustrar como toda a técnica entranhar no corpo do ator, compara-a a uma escada de ferro que é fria e dura, mas totalmente necessária. Quando neva, a escada fica branca e cintilante. O espectador deve ver a neve, não a escada.

A diretora de teatro Anne Bogart (2011, p. 47) também relata a exaustão física dos atores que, apenas após muita frustração e cansaço, conseguem atingir sua memória corporal, pois para a autora “teatro é sobre memória; é um ato de memória e descrição”.

Com o passar do tempo de treinamento, as técnicas, os gestos, os movimentos, a energia, a entonação da palavra são internalizadas e quase tornam-se automáticas. A memória corporal passa a lidar com aquele aprendizado. Como Bogart (2011, p. 31) descreve em seu livro: “seu corpo lembrou”.

Por que isso é tão importante na arte? O artista de rua tem de lidar com o improviso da rua: um sinal que abre e fecha, uma pessoa que interrompe, a chuva que molha os instrumentos, até mesmo com algum tipo de repressão que possa ocorrer. Nesse sentido, a repetição faz com que ele se liberte da preocupação com o entendimento físico de seu corpo, da sua voz ou das suas palavras e possa focar sua energia e estar livre para receber e interagir com o público, dando conta de possíveis situações de improviso. O artista estará seguro e atento para estabelecer uma relação de interação com os fatores externos. É como dirigir um carro: primeiro há uma dificuldade quase desumana de comandar aquela poderosa e mortal máquina e ainda ter de driblar o trânsito, os pedestres que atravessam fora da faixa, os animais que circulam pela via. Com a repetição dos comandos – de marcha, pedais, espelhos, volante, painéis etc. – a ação de dirigir um carro se torna automática e estamos mais preparados para sair em um trânsito intenso ou tomar uma via expressa.

A repetição torna-se benéfica na medida em que pode libertar, em que pode surgir a essência. Existe um mundo sensível que acontece a partir de gestos repetitivos, e brechas que se abrem para o criativo, para o virtual e para o externo – para o outro e para as possibilidades (CARLOS, 2007b, p. 58).

Moreaux (2014, p. 102) considera importante a repetição no sentido da frequência com que essas intervenções ocorrem. Para o autor, há na repetição a oportunidade para que o público se acostume com essas ações, ampliando a possibilidade que tais ações tem de transformar o lugares em lugares de encontro, dando outro sentido à vida a partir da corporeidade.

Em outras palavras, o artista de rua precisa “pensar” com o corpo. Portanto, torna-se fundamental trazer o corpo para análise. Esse corpo que estabelece uma experiência no espaço, que se relaciona, que produz, que interage. A escala corporal nos permite visualizar novas formas de ação. É apenas a partir da existência desse corpo que é possível a interação, a troca de afetos e a formação da roda de arte de rua. Obviamente, as práticas não podem ser realizadas por coisas ou objetos, mas apenas

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por indivíduos e através de seus corpos presentes, atuantes é que as práticas são materializadas.

Moreaux (2014) concebe os eventos da arte de rua como um ritmo singular impresso nos corpos e no espaço urbano, momentaneamente se materializando através de presenças e relacionando os corpos através dos afetos.

A expressão analisada por Moreaux é a expressão dos corpos, necessária para a proposta de intervenção, pois relaciona aqueles que realizam a intervenção com aquelas pessoas que colaboram através do famoso “chapéu” e daquelas que param para assistir.

A interação aqui pode ser vista também como uma troca de afetos, conforme Moreaux (2014, p. 9):

respiração “compartilhada”, quando o público retém seu fôlego para um número “perigoso”, ou respira de maneira mimética junto com o acrobata, ou ainda dá gargalhadas junto com as brincadeiras do palhaço; a emoção, o riso e a reflexão relacionadas à dramaturgia exposta pelos grupos de teatro de rua, vista num sentido largo (visual, auditivo, textual...), a dança e os aplausos que acompanham os músicos de rua.

O público se reúne em volta e participa desse encontro singular. Existe, portanto, um envolvimento que é estabelecido entre os artistas e o público que os assiste. Uma roda de arte numa praça é uma reunião de corpos que trocam afeto, que trocam experiências, que trocam. E por realizarem essa troca – essa interação, como preferimos denominar – se apropriam do uso daquele lugar contrariando a lógica dominante que impõe um ritmo acelerado no cotidiano – a mesma lógica que faz com que os lugares sejam apenas de passagem. “Esses momentos constituem o encontro de algumas das diversas trajetórias que atravessam o espaço urbano e estabelecem no lugar um tempo suspenso, que foge da rotina do cotidiano” (MOREAUX, 2014, p. 8).

Essas interações entre artista e público são temporárias. A arte de rua possui um caráter temporário porque não se fixa em um único lugar. O artista de rua é uma figura da rua, seu habitat natural é a rua porque seu lugar de trabalho é o espaço da cidade. Coloca a si mesmo na figura de um errante, um nômade, que perambula pelo mundo. E ao perambular em busca de apresentar seu trabalho, escolhe preferencialmente os lugares de mais movimento. Alguns escolhem pontos e ai se estabelecem sazonalmente, mas outros se apresentam somente em deslocamento: caminham e dançam enquanto a apresentação acontece.

Contudo, essas práticas não deixam de ser marcantes. Moreaux (2014) já havia observado que a troca de afeto acontece no momento em que o ritmo do público é modificado e entra em sintonia com o ritmo proposto pelo artista. O público participa do chapéu, ri, bate palmas, chora, dança ou apenas balança o corpo, canta junto. Em nossas observações vimos que no momento da roda acontece a união de pessoas (o que já é extraordinário: o simples fato de unir pessoas) que normalmente se evitam: moradores de rua participam com muita energia dessas intervenções e interagem livremente com os artistas e com aqueles que ali também pararam pra assistir. Alguns se incomodam, mas outros aproveitam para corresponder às brincadeiras que eles (os moradores de rua) estão propondo.

Esse momento constitui o encontro, a festa, restaurando uma das promessas do urbano, como pensado por Lefebvre. Mais ainda, podem revelar o sentido do “pertencer a um lugar e a um determinado grupo”, como ponderado por Carlos (1994), pois essas pequenas lutas com caráter reivindicatório que pretendem manter

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algo no espaço urbano que já foi perdido só podem ocorrer a partir de um laço de solidariedade e identidade.

Em conformidade com a autora, o contato que é estabelecido no cotidiano produz não só identidade, mas consciência da desigualdade e das contradições da vida humana. Assim sendo, os movimentos que acontecem no espaço e que tem em sua essência essa proposta superam as particularidades, levando a uma consciência do coletivo, que nos leva a refletir sobre a constituição de um ser político.

Primeiro, abordaremos então a relação do espaço com a identidade. Para Massey (2008, p. 29-30), o espaço está longe de ser morto e fixo, ele é,

em primeiro lugar, produto de inter-relações, ou seja, as identidades e a espacialidade são co-constitutivas, existe uma construtividade relacional em que o espaço não existe antes de identidades/entidades e de suas relações.

Aqui, então, o espaço é, sem dúvida, um produto de relações (primeira proposição), e para que assim o seja tem de haver multiplicidade (segunda proposição). No entanto, não são relações de um sistema coerente, fechado, dentro do qual, como se diz, tudo (já) está relacionado com tudo. O espaço jamais poderá ser essa simultaneidade completa, na qual todas as interconexões já tenham sido estabelecidas e no qual todos os lugares já estão ligados a todos os outros. (MASSEY, 2008, p. 32)

A espacialidade pode ser integrante da constituição dessas identidades. As identidades não estão para sempre constituídas. Ao contrário, Massey acredita que as identidades e as relações que as constroem fazem parte de um jogo político.

Segundo, a esfera da multiplicidade. Se o espaço é produto de inter-relações, nele está contida a pluralidade onde distintas trajetórias coexistem. Nesse sentido, o espaço é um processo, o que nos leva ao terceiro ponto colocado por Massey: o espaço está sempre em construção e nunca pode ser percebido como um sistema fechado, pois conexões, interações, relações podem ou não serem realizadas.

Retomando, enquanto processo, o espaço é construído pela sociedade de acordo com as estruturas de seu tempo. As formas e a monumentalidade do espaço são carregadas de história, tornando-se referências que são iluminadas pela memória, como descrito por Carlos (2007b, p. 48-49):

As formas que a sociedade produz guardam uma história, pois o tempo implica duração e continuidade. As formas materiais arquitetônicas guardam uma certa monumentalidade com seu conteúdo social que a memória ilumina, torna-o presente e com isso lhe dá espessura (conteúdo ao presente). A memória articula espaço e tempo, ela se constrói a partir de uma experiência vivida num determinado lugar. Produz-se pela identidade em relação ao lugar, assim lugar e identidade são indissociáveis.

Prontamente, a relação do espaço com o lugar pode parecer confusa, mas Haesbaert (2014) explica que o espaço é como o sol, centro de uma constelação de conceitos na qual paisagem, lugar, território aparecem sendo iluminados. Isso ocorre, em sua visão, porque o espaço atravessa todos os conceitos. Em outras palavras, suas características estão nos demais conceitos e é a convivência com esse espaço via formas várias de apropriação e dominação dele que nos dirão qual conceito mais conveniente para trabalhar. E como visto anteriormente, nesse estudo o lugar se revelou como uma importante escala, pois através dele podemos ter acesso à identidade dos lugares, ao cotidiano e ao modo de vida da sociedade. No lugar que os processos se tornam concretos, se realizam e se efetivam. Carlos (2007b, p. 49) já

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considerou que “a memória liga-se decididamente a um lugar”. Ao atentar para a identidade e sua construção, temos que a memória é parte intrínseca desse processo. Esse estudo de identidade e memória podem ser empregados em outros aspectos mais psicológicos que não participam do presente conteúdo4. Os referenciais urbanos já apresentados por Carlos (2007b) são importantes, nesse sentido. Assim, a autora explica que a memória:

aproxima, faz mover/retroceder o tempo. É o campo do irredutível, é o que permite ao passado aproximar. Enquanto há o que recordar, o passado se enlaça no atual e conserva a vivacidade cambiante que significa uma ausência em presença.” (CARLOS, 2007b, p. 49).

Nessa perspectiva, é de grande relevância trazer a rua para análise, pois é onde a arte de rua acontece, e através da rua podemos notar os usos da cidade que permitem perceber os tempos simultâneos. A rua guarda múltiplas dimensões, conforme Carlos (2007b), e ainda:

Marca a vida no movimento dado pelo uso. E assim os usos da rua, o entendimento de como se organiza a sociedade em seus hábitos e costumes, pois a rua se liga à ideia da construção dos caminhos que junto com a casa criam o quadro da vida. Mas na metrópole o caminho vira rua, depois de transforma em avenida, e nesse ponto da história das formas de apropriação da cidade, a rua deixa de ser extensão da casa para se contrapor a ela. O que temos é que as casas de hoje, na metrópole, vivem trancadas com pessoas dentro, diante da televisão, sem contatos com a vizinhança pois cada vez mais a casa tem a função de preservar a individualidade, reforçando o privado. Desse modo o que era púbico, o que acontecia no ambiente da rua se fecha “intramuros”. (CARLOS, 2007b, p. 52)

A rua é o lugar da vida, é a dimensão concreta da espacialidades das relações sociais, é o nível do vivido, revela aspectos particulares, mas também do coletivo, e aspectos do mundo, mas também do lugar. Nela acontecem as apropriações do lugar e da cidade, afloram diferenças e contradições da vida no cotidiano (CARLOS, 2007b).

Em seu livro de grande referência sobre lugar e cotidiano, muito baseada em Lefebvre, Carlos (2007b, p. 53), expressa os sentidos que a rua pode ter. É necessário fazer menção a esses sentidos que a rua pode agregar para que possamos entender como a arte de rua se conecta nesse processo.

Nessa sequência, a rua pode ter seu fim em si mesma e seu uso está voltado para a dinâmica do grupo que se apropria do espaço (pode ter o sentido de comércio quando apropriada por um camelô ou sentido comemorativo quando há uma vitória em um jogo de futebol importante). Isto posto, pode ter o sentido do mercado, da troca; pode ter o sentido da festa; da reivindicação; sentido de morar (no caso dos sem-teto5); podem ser territorializadas por gangues; tem o sentido da normatização da vida; da segregação social; da formação de guetos urbanos e, finalmente, o sentido do encontro – quando as ruas ou as praças são utilizadas no sentido do lazer e do encontro de pessoas, como nas ruas que fecham aos finais de semana para as crianças

                                                                                                               4 Nos estudos de Piaget e Vygotsky encontramos informações acerca dos processos mentais superiores que tem relação com a construção da personalidade, passando pela memória. 5 Indicamos o interessante estudo sobre espaço e os sem-teto: SMITH, N. Contornos de uma política especializada: veículos dos sem-teto e produção de escala geográfica. In: ARANTES, A. (Org.) O espaço da diferença. Campinas: Papirus, 2000. p. 132-159.

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brincarem6. Ao nosso ver, esses sentidos não são didaticamente separados no tempo e no espaço, acontecem simultaneamente, se sobrepõem. A mesma rua pode ter um sentido de encontro para um pequeno grupo e o sentido de mercado para outro, no mesmo momento ou em momentos distintos.

Assim, a rua demonstra a apropriação dos lugares, o uso e o valor de uso que podem se sobrepor ao valor de troca e à troca. Quando a sociedade quer manifestar, toma as ruas da cidade em forma de protesto. A vida fervilha nas ruas, a cidade aparece nas ruas.

De acordo com Moreira (2014, p. 151), o teatro de rua, independentemente de rua forma (em roda, procissão ou invasão), tem potencialidade para reconstruir o imaginário de uma praça ou para resgatá-lo, pois:

o teatro de rua irá propor ao habitante da cidade converter-se em espectador-ouvinte ao mergulhar numa dimensão imaginária capaz de fazê-lo transcender os limites usuais do cotidiano e descobrir, nessa experiência, novos modos de reapropriação da cidade.

A afirmação de Moreira nos leva a seguinte reflexão: ainda que temporariamente, o teatro de rua, e as artes de rua num modo geral, conseguem ressignificar o lugar, dar um novo sentido porque dá um novo uso. Os sentidos promovidos pela produção da arte de rua rompem com a normatização do espaço. Normatização essa, como explicitado por Carlos (2001, p. 339), que faz com que o homem deixe de se afirmar na atividade da apropriação. O espaço é então esvaziado de sentido, a cidade vira “fantasmagoria”. Mas a arte de rua propõe outros sentidos para esse espaço e esse ato no espaço é um ato político.

E no que tange ao aspecto político, entendemos o ser político da mesma forma que Pogrebinschi (2009), ao estudar os manuscritos de Marx em alemão. O político não se trata da política feita no governo, nas câmaras e nos senados. O político supera a dimensão estatal, pois pretende o desvanecimento do Estado a partir do fortalecimento da sociedade civil, até o momento em que essa separação (Estado e sociedade civil) seria suplantada, fazendo surgir o político. O político é o que ganha forma depois do Estado. Seria, portanto, a negação da política. Pogrebinschi (2009, p. 21-22) relaciona a experiência do político com a experiência do ser, que é simultaneamente individual e social, quando declara que:

O político é uma parte constitutiva da experiência humana, ao passo que a experiência humana é também uma parte constitutiva do político; juntos, formam um todo que só pode ser compreendido pela indissociabilidade de suas partes.

Exercitar o ser político, pelo olhar de Pogrebinschi, é pensar em autogestão, ou seja, uma não valorização das práticas institucionais, mas sim a instauração de uma comunidade real conciliando a individualidade com a sociabilidade.

Podemos problematizar então se a experiência da interação na arte de rua pode ser um ato no sentido político de Marx. Antecipamos que não há respostas prontas. Existe uma construção de pensamento que faz crer que sim. Se considerarmos que estar nas ruas, dando a elas um novo uso que ressignificar de algum modo o lugar, trazendo por um momento uma ruptura com o ritmo hegemônico e com a                                                                                                                6 Acontece com mais frequência no subúrbio carioca a rua nesse sentido do encontro e do lazer de forma mais espontânea, sem que precise ser um dia do final de semana. Mas aos domingos, por exemplo, temos a Rua Dia das Cruz, rua principal do bairro Méier (zona norte da cidade, subúrbio carioca), que é fechada em um dos sentidos e lá encontramos muitas famílias em seu momento de lazer. Também a praia de Copacabana (zona sul da cidade) segue o mesmo exemplo.

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programação do cotidiano, e instaurando o tempo lento e a festa, então podemos afirmar que é um ato político nos moldes traçados por Marx. Não porque tem como seu fim o desvanecimento do Estado, mas porque acaba por fortalecer a sociedade civil, por ser um ato que não precisa em sua essência do Estado para acontecer – sabemos que é uma arte secular. Assim, fendas podem ser abertas, ou seja, um campo de possibilidades, para pensar outro tipo de cidade, outro tipo de uso, outro tipo de experiência, outro tipo de vida.

Seabra (1996) ao recorda que Lefebvre distinguia duas qualidades de uso do espaço: os usuários do espaço e os usadores do espaço. Os usuários seriam aqueles que apenas consomem o espaço; sua identidade é de consumidor. Já os usadores estão ligados aos fluxos de energia vitais, ao espaço do corpo etc.

A banda Kosmos, por exemplo, naturalmente territorializa o espaço onde toca. E há uma dimensão da territorialidade que se liga ao vivido e que se opõe ao território no âmbito tratado pelo Estado. Isso demonstra que a proposta da arte de rua pretende o uso do espaço.

Nas discussões do Fórum fica clara a consciência que o artistas tem de que sua atuação é política em várias dimensões (talvez seja um meio termo entre política e político). A arte pública transmite cultura de forma gratuita aos que passam. A classe artística debate a possibilidade do governo fornecer um auxílio a quem realiza esse trabalho para que isso incentive mais e mais artistas a irem para as ruas e para que cada vez mais a Lei do Artista de Rua seja respeita, tendo em vista a quantidade de repressão que esses artistas sofrem7.

É importante, portanto, analisarmos nosso objeto à luz do vivido – que não coincide com o concebido, mas sem descartá-lo. Uma vez que os sentidos da vida urbana foram reduzidos e expressam apenas a superficialidade do discurso operacional, empreendedor e administrativo (RIBEIRO, 2000, p. 246), os ritmos e os sentidos que se expressam na vida cotidiana podem mostrar possibilidades através dos resíduos, apresentando o urbano como uma possível reapropriação da vida cotidiana. Os sentidos trazidos pela arte de rua tem grande relevância nesse sentido.0jnd

Se o cotidiano é um campo de regulação e controle com repressões, coações em todos os níveis – inclusive o familiar, a rua se revela como um lugar onde a repressão se impõe de forma muito clara por conta das estratégias de controle do Estado. Exemplos disso são as repressões em manifestações ou a proibição de reunião de pessoas, artistas, grupos etc..

Ainda, a classe artística enfatiza o engajamento político da arte pública que altera a paisagem ordinária e interfere na fisionomia urbana, fomentando o debate cívico e recuperando espaços degradados (MOREAUX, 2014, p. 105). Moreaux já havia citado em seu estudo o grupo Buraco d’Oráculo que realiza a arte de rua pautada nas relações de trabalho e exploração, praticando gestos bem próximos dos gestos dos trabalhadores.

Moreaux valoriza a dimensão do gesto, pois é através da leitura dos gestos (sua interpretação) que se torna possível a troca de afeto, o vínculo. A relação que se estabelece é uma decifração de símbolos que passa pelo corpo o ator e se reflete num

                                                                                                               7 Nas reuniões muitos artistas relataram casos de abuso e repressão por parte da Guarda Municipal do Rio de Janeiro que pede que os artistas mostrem sua autorização para realizar aquela intervenção. Isso demonstra que a Guarda Municipal não tem conhecimento da Lei do Artista de Rua, apesar de essa Lei ter feito 5 anos no dia 5 de junho do presente ano. NA Lei fica a incumbência do artista apenas de avisar às autoridades competentes no sentido de saber se já existe algum evento programado para aquele local, mas não no sentido de autorização, tendo em vista que a Lei já é essa autorização. De forma despreparada, a Guarda Municipal os expulsa com muita truculência.

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conjunto simbólico. Além disso, a arte promove saúde pública na medida em que a arte pode

diminuir o estresse. Moreaux (2014) nos lembra da arte que acontece nos ambientes hospitalares que ajuda na recuperação dos pacientes. Existem diversos trabalhos e grupos que fazem esse papel no Rio de Janeiro. O circuito inferior da economia, principalmente, é favorecido por essas práticas de artes de rua, pois uma vez reunidas as pessoas na roda do artista, os camelôs se estabelecem ao derredor vendendo comida, bebida e toda sorte de artigos. Ainda mais se esses grupos fazem suas apresentações no mesmo lugar, como é o caso do Kosmo Coletivo Urbano e tantos outros. O mesmo ocorre com algumas manifestações, pois como muitas delas são combinadas pelas redes sociais, os ambulantes vão para esses lugares com seus produtos (refrigerantes, água, salsichão etc.) no intuito de realizar a venda. Certamente, algumas pessoas se tornam consumidoras desses produtos, mas não sem continuar afetadas. Ainda pode permanecer o sentido da festa ou da reivindicação trazida pela proposta da arte de rua. Muitas vezes o discurso do artista entre uma música e outra (ou ao final de uma apresentação) aborda a importância da arte estar na rua de modo gratuito ou possui algumas palavras de ordem contra a ordem hegemônica.

Na comemoração de 5o ano da Lei do Artista de Rua, houve um cortejo saindo da sede do grupo Tá Na Rua, na Lapa, até a Cinelândia. As apresentações aconteciam em três pontos da praça. No ponto principal, em frente ao Palácio Pedro Ernesto, havia uma grande roda com atrações principais no centro e outras atrações nas laterais da roda (onde tocaram o percussionista Calebi e o coletivo Kosmo, com um integrante da banda Bagunço).

O coletivo Kosmo profere “Viva a rua! Viva a arte de rua!” e a exaltação da rua já vai na contramão da programação do cotidiano. Nas reuniões do Fórum Carioca de Arte Pública, o diretor de teatro Amir Haddad repete as palavras de Lígia Veiga – fundadora da Cia Brasileira de Mysterios e Novidades: “Não somos um protesto, somos uma proposta”.

Indiretamente, a realização desse momento acaba beneficiando os circuitos maiores da economia. Apesar de não tratarmos aqui especificamente desse ponto8, temos visto que esse fato incomoda alguns vendedores que já estão fixados antes da chegada do artista para realizar sua apresentação9.

A noção de que esses artistas de rua estão propondo o uso a apropriação podem ser transformadoras. Temos em vista como o uso pode superar a lógica, estabelecendo-se de tal maneira a permitir apropriações. Podemos pensar que através das práticas criadoras isso é possível. De acordo com Seabra (1996, p. 85):

Nas rebeliões situadas no cotidiano e que tem como suporte o vivido, se defrontam as racionalidades e as irracionalidades: saber e conhecer, facticidade e naturalidade, coisa e signo da coisa... nesse embate existem momentos que permitem apropriações; ganha-se presença. Em tais circunstâncias as representações recuam, e no limite tendem a se desfazer. Só a prática criadora, comportando

                                                                                                               8 Sobre os circuitos da economia, ver: SANTOS, Milton. Os Dois Circuitos da Economia Urbana e suas Implicações Espaciais. São Paulo: EDUSP, 2008. p. 93-116. 9 É importante ressaltar que temos utilizado o termo “apresentação” e não “espetáculo” porque pensamos esse último como espetáculo de Guy Debord, associamos diretamente à espetacularização da vida. Mas o termo “apresentação”, inclusive, pode ser pensado no sentido das representações de Lefebvre, sendo não uma representação, mas uma apresentação. Essa pode ser uma questão a ser abordada futuramente em nossos trabalhos.

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relações de criação, tem uma tal potência, contém o sentido da obra”.

Decerto, um indivíduo não consegue subverter a lógica dominante no espaço, mas os artistas de rua vão ajudando na construção teatros de ação. Os teatros da ação foram elaborados por Harvey (2013, p. 306-334), e são formas de pensar e agir em alguma fronteira de práticas políticas rebeldes.

No primeiro teatro, Harvey afirma que “o pessoal é político”, pois para falar em mudança social deve haver uma mudança pessoal, pois as ações sociais dos indivíduos estão carregadas seus desejos, emoções, temores... Apesar disso, não basta apenas esse tipo de mudança. É necessário mais do que uma mudança pessoal individualizada. Por isso, os teatros caminham em direção à coletividade. O segundo teatro declara que “a pessoa política é uma construção social”, nesse sentido:

A pessoa que é política é assim entendida como entidade receptiva aos incontáveis processos (que ocorrem em diferentes escalas espaçotemporais) que atravessam nossos mundos físicos e sociais. Logo, tem-se de ver a pessoa como um conjunto de relações socioecológicas. (HARVEY, 2013, p. 309)

Harvey pensa na importância desse segundo teatro porque, para o geógrafo, a luta em busca de alternativas passa pela vida cotidiana de cada um e pode haver um choque entre a consciência derivada dessa vida cotidiana e a atuação em outras escalas.

Para Moreaux (2014, p. 43-44): tratamos as práticas de artes de rua como práticas urbanas, no sentido que estas permitem ressignificar momentaneamente as relações sociais. Fundadas num controle do espaço e do tempo, promovem a interação dos corpos via afetos, assim como outra maneira de experimentar o fato urbano. Introduzem uma nova qualidade à experiência urbana cotidiana, geram o encontro e o jogo, que são tratados como momentos por Lefebvre.

O terceiro teatro caminha para a coletividade, o quarto para a universalidade da luta, e assim prossegue em seu raciocínio até propor que cada indivíduo, na condição de arquiteto rebelde, deve abraçar e defender os direitos universais traçados na Declaração de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas.

A prática do artista de rua ao se relacionar com o espectador promove uma pequena parte da construção dos teatros da ação, pois é capaz de – dentro desse processo que homogeneiza, fragmenta e hierarquiza – promover o sentido de urbano, como pensado por Lefebvre (2001). A arte de rua também seria um possível caminho – dentro de muitas outras possibilidades – à construção de uma identidade pautada no encontro e na aproximação, uma identidade concreta que se opõe à abstrata (imposta hegemonicamente) visto que propõe a festa, o movimento, o imprevisto, o possível e os encontros na cidade. O espaço lúdico é importante para Lefebvre (2001, p.133) ao pensar o direito à cidade. Para o autor:

Pôr a arte a serviço do urbano não significa de modo algum enfeitar o espaço urbano com objetos de arte. Esta paródia o possível denuncia a si mesma como caricatural. Isso quer dizer que os tempos-espaços tornam-se obra de arte e que a arte passada é reconsiderada como fonte e modelo de apropriação do espaço e do tempo. A arte traz casos e exemplos de “tópicos” apropriados: de qualidades temporais inscritas em espaços. A música mostra como a

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expressão apreende o número, como a ordem e a medida veiculam o lirismo. Mostra que o tempo, trágico ou alegre, pode absorver e reabsorver o cálculo.

Assim, o futuro da arte é urbano, posto que a arte, através da arquitetura como arte, pode criar “estruturas de encantamento”, presenteando o urbano com um novo sentido. Seabra (1996, p. 85) se debruça sobre os escritos de Lefebvre e explicita a relação da arte como uma obra, revelando o encantamento que existe a partir do vivido:

Mas sem limitar ou reduzir o conceito de obra à arte, Lefebvre considera a obra de arte como exemplar. Vê o artista como criador, como aquele que encontra no vivido um lugar de nascimento, sua nutrição. Sem partilhar da trivialidade do mundo e integrar-se à sua prosa, o artista mergulha no vivido para recolher seus impulsos vitais e em seguida volta à superfície do mundo, das coisas, e expressa as contradições e conflitos.

O direito à cidade estaria garantido a partir da incorporação da arte como um

todo no modo de ser da sociedade. O direito à cidade elaborado por Lefebvre reúne o direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar: “O direito à obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto do direito à propriedade) estão implicados no direito à cidade” (LEFEBVRE, 2001, p. 134). Vem dos direitos do cidadão que deixa de ser apenas um membro da “comunidade política” e passa a integrar um agrupamento que propõe o urbano e o conduz à participação ativa. O direito à cidade impede a perda da herança histórica e pretende não transformar o espaço em migalhas, mas reencontrar no centro o lugar da criação, de civilização, de urbanidade (LEFEBVRE, 1986, p. 7).

O caminho da arte, no sentido trazido pelo autor, é se tornar práxis e poiesis em escala social, fazendo da arte de viver na cidade uma obra de arte e, a arte de rua, em nosso entendimento, se desnuda como um acesso a esse movimento.

3. Considerações finais

Tentamos demonstrar nesse estudo, através do olhar da geografia crítica de cunho marxista, e do pensamento materialista histórico dialético, o porquê das artes de rua serem, a nosso ver, tão importantes ao ponto de dedicarmos nossa atenção para elas.

Fizemos uma trajetória de ir em busca, em primeiro lugar, dos principais conceitos que norteiam nosso estudo. Através deles e do desvelamento dos processos que constituem uma produção alienadora da cidade, pudemos apresentar o cotidiano enquanto lugar de dominação, alienação, programação, controle, repetição e libertação – e como a vida cotidiana foi se modulando frente a essas condições e trazendo mudanças.

Em segundo lugar, fizemos o esforço de retratar nossas observações em campo e mostrar como a prática de arte de rua faz frente aos processos dominantes, trazendo o corpo e a rua para análise - através do próprio corpo, da identidade, da memória, da repetição.

O aporte teórico trazido nessa pesquisa apoia-se na ideia de que o espaço é produto e produtor, é meio, condição e fim para a ação e a para a produção e (re)produção; e que nós produzimos o espaço que nos produz. Assim, a cidade e a metrópole estão diante de processos que as modelam, mas esses processos são guiados por homens. Como Lefebvre (2001, p. 52) dissertou “Se há uma produção da

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cidade, e das relações sociais na cidade, é uma produção e reprodução de seres humanos por seres humanos, mais do que uma produção de objetos”.

A cidade e a sociedade atuais são fruto (e não produto) de uma racionalidade moderna, pautada no consumo e na primazia da mercadoria. O ritmo imposto é veloz e é necessário um esforço para que se tente acompanhá-lo. As formas urbanas mudam o tempo todo, também as relações que são estabelecidas no espaço e os fluxos. Não há primazia e o tempo da lentidão, conforme Milton Santos.

Através de uma abordagem tripartite do espaço – absoluto-relativo-relacional – de Harvey (2015), demos relevância para a multiescalaridade e multidimensionalidade dos processos, e vimos que o espaço integra os demais conceitos, como paisagem e lugar. Posteriormente, percebemos que local e o lugar se revelaram como parte fundamental na análise, pois o local tem cada vez mais ligação com o mundial por conta das transformações e do avanço nas comunicações que tornam o fluxo de informações contínuo e ininterrupto.

O processo de globalização conecta os lugares e os fluxos, de forma que cada lugar é um ponto particular e ao mesmo tempo ponto de interseção de diversos processos. Junto do processo de globalização, tratamos da mundialização que se refere à sociedade urbana e à constituição de um espaço mundial, promovendo novos valores, comportamentos e modo de vida. Como uma das facetas desse grande processo, temos a metropolização do espaço que pretende a impressão de características da metrópole ao lugar, inclusive na dimensão cultural.

Para chegar até a metropolização do espaço e vislumbrar como esse cotidiano se configurou da forma atual, tivemos de dar atenção ao processo de industrialização (Seabra, 2004), demonstrando que o capitalismo industrial capturou o tempo da vida e o substituiu pelo tempo do relógio – a ditadura do relógio (WOODCOCK 1986) –, impondo não apenas horas, mas mudança inclusive nos gestos, na forma de relacionar-se, no afetar-se. Tais alterações alienaram o ser humano de suas condições, de seu trabalho, de si mesmo. O homem não podia mais “perder tempo” vagueando e sem produzir, portanto cabe não vagar por aí, como um errante, mas dar funcionalidade aos seus passos.

Surgia um cotidiano urbano delineado nos moldes da industrialização e remodelado conforme esse processo progredia. A programação do cotidiano foi instaurada, as práticas do homem modificadas.

Tais práticas estão materializadas no âmbito do lugar e só puderam ser analisadas recorrermos a ele, pois o lugar tem profunda ligação com a identidade histórica, com os referenciais, com a memória.

Hoje, os lugares podem ser vistos em rede por conta dos processos que os perpassam. Nessa rede, a identidade histórica que liga o homem ao local se encontra comprometida, visto que essa relação multiescalar acaba por determinar e influenciar, sem suprimir, diversos aspectos do local. Um exemplo disso é a perda dos referenciais no espaço e o reforço cada vez maior dos espaços amnésicos – não sem a resistência que ocorre, principalmente, através do que é residual.

Multiescalarmente, temos então um lugar que compartilha histórias para além dos seus limites; em outras palavras, compartilha histórias em várias escalas. Assim, alcançamos a noção de que o lugar não pode ser tomado apenas como uma escala, pois é parte integrante de uma totalidade espacial que é produto de uma divisão espacial do trabalho, revelando conflitos e contradições. Assim, temos acreditado que diversos lugares no globo estão articulados, existindo uma simultaneidade nos eventos interligados que acontecem em lugares diferentes. Enfatizamos, nessa análise, a noção de simultaneidade ao invés de refletirmos sobre a natureza do lugar.

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A ininterrupta busca pelo novo, as rápidas transformações no espaço aliadas a um planejamento urbano que pretende cada vez mais o afastamento das pessoas (pois os pontos de encontro são destruídos ou difíceis de se chegar a pé), temos elementos que se esfumam na metrópole, trazendo alienação. Esse processo de alienação e programação causa um espaço de isolamento e vazio de sentidos, em uma cidade cheia. Dessa maneira, demos atenção ao espaço amnésico (CARLOS, 2001), ou seja, um espaço que resultou de uma ruptura brutal que diluiu os referenciais e o espaço da metrópole.

Assim, para refletirmos acerca da cidade devemos refletir também sobre as práticas espaciais que dizem respeito ao modo como a vida se realiza na cidade, e isso se dá através de momentos de apropriação do espaço. Compreendemos a cidade através da análise da vida cotidiana. É na cidade que a vida cotidiana – prática espacial – ganha sentido. A sociedade produz o espaço, apropria-se dele e o domina. Assim, o espaço nos esclarece o vivido.

Carlos (2007a; 2007b) esclarece-nos que a construção da identidade está comprometida sob esses parâmetros, havendo assim a imposição de uma nova identidade: a identidade abstrata, posto que é mediada pela mercadoria. No movimento de buscar uma teoria que seja coerente ao prático-sensível, em vista de mudar esse quadro, recorremos aos teatros da ação de Harvey, que colocam a importância de ações que se iniciam no interior do indivíduo, mas atravessam as escalas e ganham a coletividade.

Mas para chegar até os teatros da ação, foi necessária a análise dessas ações. Nesse intuito, esboçamos um cenário: Na maior parte do dia o que vemos na área central do Rio de Janeiro são os passos apressados dos trabalhadores, indo e vindo de seus trabalhos, de seus locais de almoço e finalmente indo para a casa, sem interagir entre si, sem estabelecer reais vínculos com o lugar. Por outro lado, as intervenções artísticas podem modificar o ritmo daquele espaço. Certamente há aquelas pessoas que seguem sem se deixar envolver pela intervenção, mas determinados transeuntes deixam de sê-lo e passam a ser espectadores, integrando o público que comporá a roda ao redor daquela intervenção.

Para realizar sua apresentação, o artista precisa de preparo, o que é sinônimo de um treinamento árduo e repetitivo. Na repetição o artista encontra sua libertação, pois se desprende das dificuldades pelas quais seu corpo teve de enfrentar para alcançar a melhor performance através da memória corporal – o teatro é memória (BOGART, 2011). Lefebvre já tratava a repetição como obra, conforme lembrado por Moreaux (2014). Carlos (2007b) também tratou a repetição como benéfica na medida em que promove libertação.

As ações que ocorrem no espaço, apesar de parecerem banais, podem se revelar como práticas transformadoras ou mantenedoras do status quo. Acreditamos, conforme Moreaux (2014), que a prática do artista de rua é importante no que tange a dimensão cultural do processo de metropolização e produção do espaço. Assim, munidos de todo esse embasamento teórico, chegamos na relação entre artistas-espectadores-espaço que se constituem como atividade prática e são relações sociais. Novamente, as relações sociais se traduzem em relações espaciais, posto que engendram e participam da (re)produção do espaço (CARLOS, 2007a).

Os artistas de rua e aqueles que os param para assistir se apropriam do espaço através do uso. Apesar de parecer que a arte de rua se encaixa na programação do cotidiano, percebemos que certamente essas práticas evidenciam uma ruptura com os ritmos que dominam o espaço.

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Muitas vezes o artista de rua é extremamente qualificado e poderia estar dentro de um circuito maior, mas ele recusa pois prefere a rua. De alguma maneira, ele já rompe com a cotidianidade programada. Os grupos de discussão de artistas de rua pensam e reivindicam políticas públicas no sentido de apoiar e incentivar sua iniciativa – que como já explicitado, contribui socialmente e de forma gratuita. Também sinalizam a reconquista do espaço público como lugar do encontro e do uso, exercitando a cidadania e caminhando no sentido do urbano.

Mas não podemos autonomizar a arte de rua. Não é a arte de rua em si. A arte de rua nela mesma não funciona como proposta de mudança. É a relação, a interação que ela promove entre quem apresenta e quem assiste/participa que faz com que ela seja uma potência. Assim, é a arte em relação ao outro. Ela própria aparece como o outro desse cotidiano programado.

A rua se destaca por seus vários sentidos (CARLOS, 2007b). O próprio termo “arte de rua”, traz a principal característica dessa arte, e essa caraterística não é o tipo de arte (se a arte circense, se o teatro, se a dança, se a música); seu principal atributo é estar na rua, promovendo saúde pública, educação, cidadania e dando uma dimensão do ser político (através da experiência do ser).

Diante de uma produção alienadora da cidade – que esvazia a cidade de sentidos, que rompe com o tempo da vida, que nega o uso, que aliena o homem de si e de sua obra – a produção da arte de rua promove sentidos em direção à desalienação. Esse caminho só é possível através da uma proposta de uso da cidade; de apropriação; da impressão de um ritmo singular no espaço urbano e nos corpos através da interação; do rompimento com a normatização do espaço; do compartilhamento de experiências. Dessarte, se o cotidiano é o campo do controle, da dominação, da repressão, é também o lugar da resistência, da luta e da arte, onde o sentido de urbano enquanto encontro pode ser instituído, onde pode acontecer a insurreição do uso, propiciando o encontro e a apropriação, e estabelecendo, assim, um compromisso com a utopia revelada no direito à cidade. Referências BOGART, A. A preparação do diretor: sete ensaios sobre arte e teatro. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. CARRERI, R. Rastros: treinamento e história de uma atriz do Odin Teatret. São Paulo: Perspectiva, 2011. CARLOS, A. F. A. A (re)produção do espaço urbano. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994. 270p. __________. Espaço - Tempo na metrópole: a fragmentação da vida cotidiana. São Paulo: Contexto, 2001. 368p. __________. O espaço urbano: novos escritos sobre a cidade. São Paulo: FFLCH, 2007a. 123p. __________. O lugar no/do mundo. São Paulo: FFLCH, 2007b. 85p. FERREIRA, A. A cidade do século XXI: segregação e banalização do espaço. Rio de Janeiro: Consequência, 2011. 296p. HAESBAERT, R. Viver no limite: território e multi/transterritorialidade em tempos de insegurança e contenção. Rio de Janeiro: Bertrand, 2014. HARVEY, D. 17 contradições e o fim do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2016. 304p. __________. Espaços de esperança. 6. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2013.

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