A Aventura Da Língua Portuguesa Sob o Olhar de Charlotte

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A aventura da língua portuguesa sob o olhar de Charlotte, francesa ÁLVARO KASSAB A linguista Charlotte Galves nasceu na Borgonha, região francesa célebre por sua produção de vinhos de primeira. Ao ser indagada sobre seu interesse sobre a língua portuguesa, brinca. “O primeiro rei de Portugal [D. Afonso Henriques] é filho de um burgonhês”. A boutade, proferida com um levíssimo sotaque, embute uma trajetória de anos de dedicação à língua portuguesa. Charlotte deixou a terra natal aos 19 anos rumo a Portugal, onde permaneceu por três anos, tempo suficiente para aprender o idioma. De volta à França, testemunhou a chegada de milhares de portugueses, num movimento imigratório que deixaria marcas definitivas em seu país. Consolidou-se aí, na década de 70, o contato da intelectual com o idioma de Camões. Charlotte cursou linguística e trabalhou como intérprete e tradutora, além de atuar como professora de crianças cujos pais deixaram Portugal em busca de uma vida melhor. O português não sairia mais da vida da hoje diretora do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. Tanto no campo pessoal – casou-se com um brasileiro –, como na profissional. Charlotte tornou-se especialista no idioma. Suas pesquisas abrangem, entre outros temas e subtemas, a história do português,

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Estudos da língua portuguesa

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A aventura da lngua portuguesa sob o olhar de Charlotte, francesaLVARO KASSABAlinguista Charlotte Galves nasceu na Borgonha, regio francesa clebre por sua produo de vinhos de primeira. Ao ser indagada sobre seu interesse sobre a lngua portuguesa, brinca. O primeiro rei de Portugal [D. Afonso Henriques] filho de um burgonhs. A boutade, proferida com um levssimo sotaque, embute uma trajetria de anos de dedicao lngua portuguesa. Charlotte deixou a terra natal aos 19 anos rumo a Portugal, onde permaneceu por trs anos, tempo suficiente para aprender o idioma. De volta Frana, testemunhou a chegada de milhares de portugueses, num movimento imigratrio que deixaria marcas definitivas em seu pas. Consolidou-se a, na dcada de 70, o contato da intelectual com o idioma de Cames. Charlotte cursou lingustica e trabalhou como intrprete e tradutora, alm de atuar como professora de crianas cujos pais deixaram Portugal em busca de uma vida melhor.O portugus no sairia mais da vida da hoje diretora do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. Tanto no campo pessoal casou-se com um brasileiro , como na profissional. Charlotte tornou-se especialista no idioma. Suas pesquisas abrangem, entre outros temas e subtemas, a histria do portugus, a relao da lngua falada em Portugal com a usada no Brasil, alm da evoluo do nosso idioma. Assim que comeou a ter contato com as pesquisas que indicavam as semelhanas entre o portugus falado no Brasil e em pases africanos, a docente viu descortinar uma fonte inesgotvel e fascinante de novas abordagens lingusticas que transcendiam a lusofonia, muito embora no deixem de integr-la. As contribuies dos africanos e de seus descendentes iniciada na escravido foram colocadas sob o tapete mas vieram tona por meio de um fenmeno vivo e mutante, infenso a controles embora os colonizadores, governantes e escravocratas teimassem em aliment-los: a fala e, em ltima anlise, a lngua.O resultado desse cruzamento de culturas ser o foco do Colquio Caminhos da lngua portuguesa: frica-Brasil, que ocorrer na Unicamp entre os prximos 6 e 9 de novembro. O enfoque multidisciplinar ser uma das marcas do evento j esto confirmadas, por exemplo, a presena do historiador Luiz Felipe de Alencastro e do escritor angolano Jos Eduardo Agualusa (leia entrevista na pgina 8). O programa definitivo deve ser consolidado no incio de setembro, e a chamada de comunicaes est aberta at 15 de agosto (http://www.iel.unicamp.br/coloquio/). Na opinio da especialista, o colquio vai possibilitar a abertura de um leque imenso de possibilidades nos campos da pesquisa e do ensino. Na entrevista que segue, Charlotte analisa as nuances de uma lngua falada hoje por cerca de 200 milhes de pessoas e explica as origens das influncias exercidas pelas culturas, a comear pela portuguesa.Jornal da Unicamp O que o colquio vai enfocar no campo da lingustica?Charlotte Galves No caso da lngua, a questo do contato entre a lngua portuguesa e as lnguas africanas. Na realidade, a lngua portuguesa esteve em contato com duas grandes famlias: a banto e uma outra famlia da qual faz parte, por exemplo o yorub. E o que muito interessante e que certamente esse contato do portugus com as lnguas africanas tem um efeito sobre o desenvolvimento brasileiro na sua diferena com o portugus de Portugal , mas tambm sobre o portugus falado na frica. H muita coisa em comum entre o portugus falado aqui e aquele falado em pases como Angola, Moambique, Cabo Verde, Guin-Bissau, So Tom e Prncipe.H muito em comum entre o portugus falado aqui e aquele falado em Angola, Moambique, Cabo Verde...A literatura fundamental. Se no houvesse a obra do Jorge Amado, possivelmente perderamos muita coisa

JU Quais so os pontos coincidentes?Charlotte Na pronncia, por exemplo, muito embora seja um caso complicado, j que Portugal tambm mudou a sua. O fato de as pronncias brasileira e africana terem muito em comum podia ser, simplesmente, porque em Portugal houve uma mudana que no ocorreu aqui ou l na frica. Mas, na realidade, um pouco mais complicado do que isso. Os africanos que falam o portugus como lngua materna usam hoje em dia a pronncia portuguesa. E os africanos que falam portugus mas que no fazem parte dessa classe social, digamos, mais prxima da universidade ou to escolarizada falam um portugus diferente. Possivelmente, era assim no Brasil no sculo 19.JU A chegada da Corte colaborou para isso?Charlotte Havia um portugus falado pela elite, que era muito prximo do portugus de Portugal, e um portugus falado pelo povo, que era muito diferente. Na realidade, justamente esse portugus falado pelo povo que vai se impor. As elites, com o tempo, vo incorpor-lo. Na frica, no houve tempo para isso.JU Por qu?Charlotte Justamente porque a descolonizao recente, ocorreu h coisa de 30 anos.JU De certa forma, ento, ocorre um processo semelhante ao verificado no Brasil no sculo 19?Charlote Sim, temos l as duas vertentes do portugus. Uma que bem semelhante ao portugus europeu um africano fala como um lisboeta. E a outra que o portugus mais popular, que na pronncia e na sintaxe se aproxima muito do portugus do Brasil. Uma coisa que se fala muito a questo da colocao dos pronomes, tida como um dos problemas de gramtica normativa. Eles usam, por exemplo, o pronome em primeira posio da orao; a gramtica diz que no pode, j que em Portugal no pode... Constata-se isso quando voc l os romances escritos na frica, sobretudo nas falas das personagens.JU Isto ocorre ento na oralidade e na escrita?Charlote Na oralidade e em particular na escrita literria, que quer justamente trazer essa fala mais coloquial. Percebe-se isto tambm nas palavras. No portugus brasileiro houve muita importao de palavras de origem africana.JU Qual seria o papel da literatura?Charlotte Ela fundamental, retrata essa relao muito fortemente. Muitos trabalhos de linguistas foram baseados em obras literrias. Os escritores tm muita sensibilidade para isso, so muito antenados. Jorge Amado, por exemplo, mostra muita coisa da influncia da cultura africana na Bahia. Se no houvesse a obra do Jorge Amado, possivelmente a gente perderia muita coisa.JU A cadncia tambm diferente?Charlotte As lnguas bantos, em particular, e at aonde eu saiba tambm o outro grupo de lnguas das quais o yorub faz parte, tm palavras que invariavelmente tem consoantes e vogais intercaladas. Dificilmente voc encontrar uma palavra que tenhas vrias consoantes, na seqncia. Isso tem a ver com o ritmo da lngua. Ento, a tendncia, na fala, acrescentar uma vogal. Um exemplo: fala-se adivogado (sic). Na frica, ocorre a mesma coisa.JU A que pode ser atribudo esse fennemo?Charlotte Possivelmente, trata-se do efeito do contato com as lnguas africanas. Os muitos escravos que vieram para o Brasil tiveram que aprender o portugus. At porque eles eram muito misturados, numa estratgia que visava coibir a sua organizao e, consequentemente, possveis revoltas. E eles aprendiam o portugus como uma segunda lngua, e o pronunciavam como na lngua deles.JU Por que se deu essa apropriao?Charlotte Esse portugus do sculo 17, muito diferente do de hoje, foi aprendido por muitos africanos em situaes difceis. Essa lngua acabou se tornando o portugus popular brasileiro. Por um lado, tnhamos os portugueses que vinham para c cuja escolarizao era toda feita em Portugal que falavam como portugueses. De outro, havia o grosso da populao, que falava o portugus popular extremamente influenciado pelas lnguas africanas.JU E o que ocorreu quando os pases africanos passaram a ser colonizados?Charlotte A grande diferena que ocorreu que, no Brasil, o portugus era a lngua majoritria. Mesmo no incio do sculo 20, parece que se falavam lnguas africanas na Bahia. Mas, hoje em dia, o Brasil praticamente monolngue, tirando o caso das lnguas indgenas, que hoje uma questo aberta. H certamente influncia no vocabulrio, como, por exemplo, na toponmia. Na pronncia e na sintaxe, a contribuio indgena uma questo que vem sendo discutida. Agora, o Brasil, hoje em dia, obviamente fala o portugus. J em Moambique, Angola, Cabo Verde, diferente. Em Moambique e Angola, por exemplo, uma boa parte da populao no fala portugus. Outra parte fala o portugus como a segunda lngua.JU muito diferente do Brasil.Charlotte Sem dvida. O peso das lnguas africanas hoje em dia ainda existe nesses pases. Outro fator interessante que, nas ilhas em particular, como Cabo Verde e So Tom e Prncipe, e tambm na Guin-Bissau, se desenvolveu o que os linguistas chamam de crioulos.JU Como so constitudas essas lnguas?Charlotte Elas tm uma base vocabular que vem das lnguas europeias: francs, portugus, ingls e holands. O que sobra da lngua portuguesa nos crioulos so as palavras portuguesas. Voc reconhece se ouvir bem, porque se torna uma lngua totalmente diferente. Tem um parentesco lexial, mas o resto totalmente diferente. Atualmente, esses crioulos so lnguas oficiais em alguns pases, juntamente com o portugus. Nesses lugares, o portugus no a lngua materna. Trata-se de uma situao diferente tambm da verificada do Brasil.JU O curioso que o portugus sobreviveu apesar de o seu pas de origem ser pequeno. Como a senhora analisa isso?Charlotte So dois momentos. No primeiro, quando o colonizador impe sua lngua de maneira violenta. No Brasil, at o sculo 18, no se falava portugus em certo lugares. Aqui em So Paulo, se falava a lngua geral, que era um tupi mesclado com o portugus. Foi necessria uma poltica muito especfica do governo portugus naquele momento para impor a sua lngua. Em particular, isso culminou na expulso dos jesutas do Brasil; eles tinham um papel importante na relao com os ndios e usavam a lngua geral. Os portugueses que vinham para o Brasil acabavam, tambm, falando a lngua geral. Isto poderia ameaar inclusive a sobrevivncia do portugus. Essa poltica do governo portugus era deliberada: impor o portugus.Num segundo momento, temos o caso da frica. Na descolonizao dos pases, h uma variedade lingustica muito grande. Os pases africanos tiveram de escolher as suas lnguas oficiais. Em geral, acabaram optando pela lngua do colonizador.Em So Paulo se falava um tupi mesclado com o portugus. O governo portugus precisou de uma poltica para impor a lnguaOs alunos esto muito interessados no colquio. Nessa gerao no h preconceito, h uma vontade dever explicitada essa raiz africana

JU A que pode ser atribuda essa escolha?Charlotte Porque o portugus tinha prestgio no resto do mundo. E tambm porque a diversidade de lnguas era muito grande. Se eles no pegassem o portugus, eles tinham que decidir qual das lnguas de l eles iam escolher. Isto era complicado, porque poderia criar um problema entre as diversas etnias. Dessa forma, o portugus aparece como uma lngua relativamente neutra. Ela prtica para se relacionar com o resto do mundo, e ela uma lngua comum para todo o mundo. Angola, Moambique, Guin escolheram o portugus como sua lngua oficial.Um caso muito interessante o de Timor Leste. Depois que deixou de ser colnia portuguesa, o pas foi invadido pela Indonsia. Foi terrvel, foram anos e anos de luta. Havia um movimento de libertao, cujos integrantes no queriam ser parte da Indonsia. Quando Timor Leste conseguiu enfim ganhar a batalha e ser tornar independente mesmo, eles tiveram que decidir que lngua oficial eles deveriam escolher. Houve um referendo para escolher entre o ingls e o portugus, alm da lngua local, o tetum. E 80% da populao escolheu o portugus. Isso interessante, porque eles poderiam ter escolhido o ingls, uma lngua mais falada internacionalmente.JU Quando foi constatada essa semelhana entre o portugus falado no Brasil e na frica?Charlotte relativamente nova a constatao. Agora, a comunidade acadmica est comeando a se interessar por isso, est vindo tona, muito embora tenha gente trabalhando com o tema h muito tempo. O interessante ver que, independentemente, pesquisadores brasileiros e africanos mostraram que havia uma influncia das lnguas africanas sobre a lngua portuguesa e verificaram que esse componente era muito parecido aqui e l. Agora, o nosso objetivo nesse colquio justamente incentivar a colaborao entre os pesquisadores que trabalham na frica e no Brasil.JU No que pode resultar esse intercmbio?Charlotte S temos a ganhar nesse estudo do contato entre a lngua portuguesa e as lnguas africanas. Para todo mundo importante. Trabalhando junto, os resultados sero mais interessantes. Cabe destacar tambm que os linguistas no podem trabalhar sozinhos. muito importante ter a viso histrica, os componentes literrios. A abordagem precisa ser multidisciplinar. Na teoria, vai ser importante porque entenderemos melhor qual o efeito do contato entre as lnguas. Isso uma das grandes questes da lingustica.JU O contato pode ser visto como o grande deflagrador desse processo?Charlotte Se voc o olha portugus brasileiro hoje em dia, ele muito diferente do portugus europeu. Ele mudou. Se a gente compara o portugus de hoje no Brasil e o portugus do sculo 18, a gente constata que diferente. Alis, preciso ter cuidado. O fato de o portugus brasileiro ser diferente do portugus europeu, pode ser atribudo tambm ao fato de o portugus europeu ter mudado, por razes que so complexas j que l no houve muito contato com outras lnguas.JU Quais seriam essas razes?Charlotte Venho trabalhando muito com o fato de ter havido, no fim do sculo 17 e incio do sculo 18, uma grande mudana na pronncia dominante do portugus. consensual, por exemplo, que nova a maneira que os portugueses tm de pronunciar a lngua hoje em dia. Trata-se de uma coisa recente. O portugus que veio para o Brasil, nos sculos 16 e 17, era diferente. H vrias hipteses possveis sobre os motivos dessas mudanas, mas muito difcil comprov-las.Tenho um projeto de pesquisa que tenta entender o efeito que essa mudana na pronncia, que uma mudana no ritmo, provocou sobre as alteraes registradas na gramtica da lngua. Mas isso era l em Portugal. Para o Brasil, veio um portugus que era o dos sculos 16 e 17, que tinha uma pronncia diferente, mas que sofreu a influncia das lnguas africanas. Portanto, essa pronncia dos sculos 16 e 17, no s era diferente, como evoluiu no sentido oposto do portugus europeu.JU De que maneira?Charlotte O portugus europeu evoluiu no sentido do fechamento das vogais, o que d justamente uma pronncia que se parece com certas lnguas do centro da Europa, as quais tm muitas consoantes, umas depois das outras. J o portugus brasileiro sempre vai ter uma consoante e uma vogal. Isso porque na lngua que vem para o Brasil j era mais assim do que hoje em dia em Portugal. Entretanto, certamente a influncia africana forou essa tendncia.Uma das fontes de mudanas lingusticas o contato. Voc tem uma lngua que aprendida por algum que fala outra. Foi assim, por exemplo, que se desenvolveram as lnguas romnicas. O latim foi falado por milhes de pessoas. Os romanos impunham o uso do latim, que era falado por pessoas chamadas de brbaros pelos colonizadores. Acontece que essas pessoas no eram capazes de falar o latim como os romanos, mas falavam de uma maneira diferente. Isso que deu origem s lnguas romnicas.Na histria das lnguas, como j disse, o contato essencial. A gente tem um exemplo de contato que extremamente interessante, entre o portugus e as lnguas africanas. Isso teve efeito no portugus falado na frica e no portugus falado no Brasil, com 200 anos de diferena em termos de descolonizao. Isso interessante, porque olhando para aquilo que acontece na frica talvez a gente entenda melhor o que aconteceu aqui no sculo 19, apesar do contexto bem diferente. interessante observar como, nessa histria do contato, a lngua popular vai se impondo at mesmo nas camadas mais favorecidas.JU A senhora acha que h uma unidade da lngua no Brasil?Charlotte H, e bem razovel. Os professores universitrios falam um portugus muito prximo daquele portugus falado por pessoas pouco escolarizadas. Existem diferenas, mas so superficiais.JU Mas no deixa de ser curioso, dada a dimenso do pas.Charlotte A que se torna interessante saber a histria do Brasil. Na realidade, uma boa parte das regies brasileiras foram colonizadas e habitadas por brasileiros. Quando chegaram, os portugueses fundaram algumas cidades no litoral, entraram um pouquinho, mas depois, Gois, Minas Gerais e outras regies mais afastadas foram colonizadas por brasileiros. Os grupos que iam j tinham um forte componente de negros; ento, no fundo, acaba tendo uma espcie de homogeneizao no Brasil do ponto de vista cultural, do ponto de vista lingustico.JU Estamos falando dessa ponte imaginria entre a frica e o Brasil. Porm, qual o papel a ser desempenhado por Portugal, alm do fato de ter difundido a lngua?Charlotte H muita gente interessada no assunto em Portugal. Ns vamos ter, nesse colquio, uma pesquisadora portuguesa que tem um trabalho absolutamente magnfico sobre textos escritos em portugus por chefes africanos desde o sculo 18.Em Coimbra, que tem a universidade mais antiga de Portugal, h um grupo de pesquisadores trabalhando sobre o contato do portugus com as lnguas africanas. Eu acho que hoje em dia boa parte dos pesquisadores portugueses est envolvida com nisso e colaborou com pesquisadores brasileiros e africanos. Vejo ento um tringulo de interesses comuns muito fortes.No colquio, o enfoque maior vai ser nessa relao entre a frica e Brasil porque tem uma histria comum. Convidamos o historiador Luiz Felipe de Alencastro, que tem um livro em que mostra como, na poca colonial, a frica e Brasil formavam praticamente uma unidade. No momento em que no se falava em estado brasileiro e l ainda menos em estados africanos, era uma unidade. O assunto dele, que justamente o trfico de escravos, se d entre Portugal, Brasil e frica. E muitos brasileiros estavam envolvidos nisso.Acho que existe uma histria comum. Dizer que h uma cultura em comum talvez seja muito forte. Mas certamente, h uma identificao possvel.Nossos alunos esto muito interessados no colquio. Outro fator relevante que os afrodescendentes aqui no Brasil so hoje em dia grupos reconhecidos e valorizados. uma coisa muito forte. Nessa gerao dos nossos alunos, no h preconceito e h um interesse muito grande nessa relao. H uma vontade muito grande de ver explicitada essa raiz africana, via esses milhes de africanos que vieram para c e trouxeram seu sangue, sua cultura e sua viso de mundo.JU Mas nem sempre foi assim.Charlotte Houve no Brasil, durante muito tempo, uma certa tendncia em esconder isso, mas acho que est mudando fortemente.JU Qual a importncia da mdia nessa insero das culturas em mo dupla?Charlotte Uma pesquisadora do Labeurb est com um projeto extremamente interessante que baseado no que ela chama de pontos de cultura. So locais conectados internet nos quais possvel comunicar em tempo real. Trata-se de algo prximo, por exemplo, da videoconferncia. O projeto, que conta com o aval da Unesco, prev a criao de 10 pontos de rede. Alis, o nosso colquio vai ser transmitido nos pases da CPLP (Comunidade dos Pases de Lngua Portuguesa).As novas tecnologias vo nos ajudar muito. Ademais, os jovens hoje em dia lidam com isso muito facilmente. E mesmo pases muito pobres, como o caso dos pases africanos, tm recursos hoje em dia para a instalao desse tipo de tecnologia. uma coisa que d para fazer.JU Para a difuso da lngua muito bom.Charlotte muito bom, sem dvida. O grande problema hoje em dia para a lngua como, ao mesmo tempo ter essa possibilidade de comunicao que implica usar a mesma lngua, sem acabar com a diversidade lingustica. O perigo no tanto a comunicao, mas sim a uniformizao.O reverso desse projeto trabalhar juntos sobre as lnguas africanas, acerca da influncia do portugus sobre as lnguas africanas, ou seja, no olhar para esses fenmenos em mo nica. preciso enxergar sempre os dois lados.

JU Qual seria o efeito da uniformizao?Charlotte interessante fazer do portugus uma lngua de comunicao, mas preciso ter cuidado para que ele no sufoque as demais lnguas. quase um paradoxo. O ideal que todo mundo falasse a mesma lngua, mas a gente sabe que as lnguas so veculos de cultura. Quando determinadas lnguas deixam de ser faladas, sempre uma perda. Essa cultura s no morre totalmente porque os falantes sempre vo levar algo de sua bagagem. Chegar ao equilbrio muito difcil.Isto no pode ser esquecido. preciso trabalhar a diversidade, muito embora ela seja problemtica j que, se no falamos a mesma lngua, no nos entendemos.JU luz da perspectiva histrica, em que medida essa constatao que d conta da semelhana entre o portugus falado aqui e na frica pode causar mudanas na lngua?Charlotte No sei se pode mudar, mas pode tornar a mudana mais visvel, precipitar e agilizar as coisas. Pessoalmente, acho que o portugus brasileiro, tal como a gente conhece hoje, existe h muito tempo. S que, nas camadas mais escolarizadas e de nvel socioeconmico mais alto, houve uma tendncia em esconder e recusar essas evidncias. Durante muito tempo, houve a iluso de que as pessoas continuam a falar a lngua da norma, l de Portugal. Isso problema que esteve muito vivo inclusive na escola. As criancinhas tinham de aprender a colocar pronomes, e isto os portugueses fazem naturalmente.Outro dia vi uma reportagem numa revista [Lngua] sobre a evoluo da lngua nos gibis. Nos gibis publicados nos anos 50, voc constata que Huguinho, Zezinho e Luizinho falavam como os professores universitrios. Esse portugus j no era o portugus das crianas da poca e nem dos pais deles. Mas ainda se achava que era assim que ele precisava ser escrito.Seria melhor reconhecer isso, saber muito bem como o portugus brasileiro e descrev-lo. preciso aceitar que as crianas cheguem falando esse portugus. Eu acho que podemos fazer isso. Agora, provocar a mudana, acho que no. Aconteceu a mesma coisa no sculo 16, nos pases europeus, quando foram introduzidas gramticas em francs e portugus. At ento, tudo era escrito essencialmente em latim. At que se comeou a achar que as lnguas como o francs, o espanhol e o portugus tambm eram dignas de ser escritas. Quando isso ocorreu, parecia que a lngua havia mudado, quando na verdade isso havia ocorrido muito tempo atrs. Na hora de escrever, as pessoas usavam aquilo de 100, 200 anos atrs. Mas a lngua do dia-a-dia j havia mudado.A lngua escrita nos d um reflexo atrasado da lngua falada. Afirmar que a lngua mudou vai gerar um efeito sobre a representao que as pessoas tm da prpria lngua. importante para valorizar essa lngua. Existe um complexo lingustico grande no Brasil. E muito comum a gente ouvir que fulano no sabe falar o portugus. Eles sabem falar o qu, ento?