A Banalização da injustiça social - Christophe Dejours

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A BANALIZAO DA INJUSTIA SOCIAL Christophe Dejours Traduo Luiz Alberto Monjardim FUNDAO GETLIO VARGAS ISBN - 85-225-0266-8 Copyright 0 Editions du Seuil, 1998 TTULO DO ORIGINAL: Souffrance en France; La banalisation de l'injustice socia le Direitos desta edio reservados ... EDITORA FUNDAO GETULIO VARGAS Praia de Botafogo, 190 - 6 andar 22253-900 - Rio de Janeiro - Brasil Tel.: (021) 536-9110 - Fax: (021) 536-9155 e-mail: editora@ fgvbr http://www.fgv.br/publicacao impresso no Brasil / Printed in Brazil vedada a reproduo total ou parcial desta obra 1 edio - 1999 EDITORao ELEcTRNICA: Jayr Ferreira, Vaz e Simone Ranna REVISO: Aleidis de Beltran e Fatima Caroni PRODUo GRFICA: Helio Loureno Netto CAPA: Inventurn Design e Solues Gr ficas Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV Dejours, Christophe A banalizao da injustia social / Christophe Dejours; traduo de Luiz Alberto Monjardim. - Rio de Janeiro : Editora Fundao Getulio Vargas, 1999. 160p. inclui bibliografia e ndice. 1. Justia social. 2. Normas sociais. 3. Trabalho. 4. Capitalismo - Aspectos morais e ticos. 1. Fundao Getulio Vargas. II. Ttulo. CDD - 301.55 Agradecimentos Este livro foi concebido aps um debate num grupo de trabalho dirigido por Patrick Pharo no Cerses (Centre d' tudes et de Recherche: Sens, thique et Socit - EHESS) Quero agradecer primeiramente aos membros desse grupo: Simone Batemari-Novaes, Luc Boltanski, Vronique Nahoum-Grappe, Ruwen Ogien e Daniel Vidal. Quero agradecer tambm aos meus colegas do Laboratrio de Psicologia do Trabalho do Conservatrio Nacional de Artes e Of-cios, com quem venho dialogando h vrios anos. Muitas das idias deste livro me vieram do convvio com outros pesquisadores cujos nomes no poderiam ser todos mencionados aqui, mas que em sua maioria foram citados no texto. Graas generosidade de Patrick Pharo e Alan Cottereau, pude elucidar pontos essenciais da anlise apresentada neste texto, pelo que lhes sou profundamente reconhecido. Todos me prestaram ajuda inestimvel, mas fique claro que sua boa vontade no deve ser considerada nenhuma espcie de fiana intelectual. Por fim, quero expressar toda a minha gratido a Virginie Herv e Dani le Guilbert.Sumrio Agradecimentos Prefcio Captulo 1: zer Captulo 2: 27 1. 2. 3. 4. Captulo 3: 1. 2. 3. 4. Captulo 4: 1. 2. 3. 4. 14n A r, 64 65 66 5. A mdia da comunicao interna 6. A racionalizao Captulo 5: A aceitao do "trabalho sujo" 1. As explicaes convencionais 2. A explicao proposta: a valorizao do mal Como tolerar o intolervel? 19 O trabalho entre sofrimento e pra O medo da incompetncia A presso para trabalhar mal Sem esperana de reconhecimento Sofrimento e defesa O sofrimento negado 37 A negao pelas organizaes polticas e sindicais 37 Vergonha e inibio da ao coletiva Surgimento do medo e submisso Da submisso mentira A mentira instituda A estratgia da distoro comunicacional A mentira propriamente dita Da publicidade comunicao interna O apagamento dos vestgios3. O recurso ... virilidade Captulo 6: A racionalizao do mal1. A estratgia coletiva de defesa do "cinismo viril" 2. A ideologia defensiva do realismo econ"mico 3. O comportamento das vtimas a servio da racionalizao 4. A cincia e a economia na racionalizao 5. "Trabalho sujo", banalidade do mal e apagamento dos vestgios Captulo 7: Ambig idades das estratgias de defesa 1. A alienao 2. Virilidade versus trabalho 3. Reflexo sobre as estratgias coletivas de defesa 4. Reversibilidade das posies de carrasco e de vtima 5. Reflexo sobre o mal Captulo 8: A banalizao do mal 1. Banalidade e banalizao do mal 2. O caso Eichmann 3. An lise das condutas de Eichmann do ponto de vista psicolgico 68 70 73 73 76 81 87 87 90 92 94 95 97 97 102 103104 106 109 109 111 114 4. An lise das condutas de Eichmann do ponto de vista da psicodin mica do trabalho 5. A estratgia defensiva individual dos "antolhos volunt rios" 6. Limites das estratgias defensivas e crise psicopatolgica 7. Banalizao do mal: a articulao dos est gios do dispositivo Captulo 9: Requalificar o sofrimento1. A virilidade contra a coragem 2. Desbanalizar o mal Captulo 10: Sofrimento, trabalho, ao Bibliografia ndice tem tico ndice de autores 129 157 Pref cio Encontra-se largamente difundida a idia de que paira sobre nosso pas uma ameaa de derrocada econ"mica. At mesmo cientistas e pensadores admitem que, sendo a situao excepcionalmente grave, preciso aceitar recorrer a meios dr sticos, sob risco de fazer algumas vtimas. Portanto, estaramos hoje a acreditar em tais rumores, numa conjuntura social que apresenta muitos pontos em comum com uma situao de guerra. Com a diferena de que no se trata de um conflito armado entre naes, mas de uma guerra "econ"mica", na qual estariam em jogo, com a mesma gravidade que na guerra, a sobrevivncia da nao e a garantia da liberdade. Nada menos que isso! em nome dessa justa causa que se utilizam, larga manu, no mundo do trabalho, mtodos cruis contra nossos concidados, a fim de excluir os que no esto aptos a combater nessa guerra (os velhos que perderam a agilidade, os jovens mal preparados, os vacilantes ... ): estes so demitidos da empresa, ao passo que dos outros, dos que esto aptospara o combate, exigem-se desempenhos sempre superiores em termos de produtividade, de disponibilidade, de disciplina e de abnegao. Somente sobreviveremos, dizem-nos, se nos superarmos e nos tornarmos ainda mais eficazes que nossos concorrentes. Essa guerra travada sem re1 A an lise apresentada neste livro no v lida somente para a Frana. Ao que eu saiba, ela serve para outros pases da Europa e das Amricas do Norte e do Sul (em part icular o Brasil). Porm, os argumentos empricos foram tirados principalmente de sondagen s feitas na Frana, de modo que, a rigor, s posso defender a demonstrao para esse pas. Cabe aos leitores que no moram na Frana confirmar essa an lise ou indicar as adaptaes a serem feitas para levar em conta os dados especficos a cada pas. 13 A banalizao da injustia social curso ...s armas (pelo menos na Europa) implica no entanto sacrifcios individuais consentidos pelas pessoas e sacrifcios coletivos decididos em altas inst ncias, em nome da razo econ"mica. Nessa guerra, o fundamental no o equipamento militar ou o manejo das armas, mas o desenvolvimento da competitividade. Em nome dessa guerra - da qual no se diz que seja santa, embora ...s vezes se cochiche que uma "guerra s" - admite-se atropelar certos princpios. O fim justificaria os meios. A guerra s antes de tudo uma guerra pela sade (das empresas): "enxugar os quadros", "tirar o excesso de gordura" (Alam Jupp), "arrumar a casa", "passar o aspirador", "fazer uma faxina", "desoxidar", "tirar o t rtaro", "combater a esclerose ou a ancilose" etc., eis algumas expresses colhidas aqui e ali na linguagem corrente dos dirigentes. sabido que os tratamentos higinico-dietticos so dolorosos, assim como as intervenes cirrgicas, e para eliminar o pus preciso lancetar ou extrair o abcesso, no mesmo? As met foras mdico-cirrgicas so particularmente apropriadas para justificar as decises de remanejamento, rebaixamento, marginalizao ou dispensa, que causam ...s pessoas sofrimentos, aflies e crises de que so testemunhas compulsrias os psiquiatras e assistentes sociais. " la guerre comme ... la guerre", ou seja, " preciso aceitar os inconvenientes que as circunst ncias impem (ver resignao)", ou ainda, "a guerra justifica os meios", eis o que diz, a propsito, o dicion rio Robert. Nessa guerra, porm, s h vtimas individuais ou civis. Fazer a guerra no tem por objetivo unicamente defender a prpria segurana e sobreviver ... tormenta. Para o empres rio, a guerra consiste em polir as armas de uma competitividade que lhe possibilite vencer os concorrentes: for -los a bater em retirada ou lev -los ... falncia. A cada semana, essa guerra econ"mica destri mais empresas. As pequenas e mdias empresas, mais vulner veis do que as grandes, so particularmente atingidas, mas tambm os gigantes - que lucram, ...s vezes por muito tempo, com a eliminao de seus concorrentes menores - no esto a salvo da derrota. Assim que as grandes empresas, por sua vez, se vem condenadas a capitular sem condies, quando no o caso de seus dirigentes preferirem fugir in extremis (levando os mveis) ou "passar para o lado inimigo" (traindo sua empresa e entregando sua clientela ... concorrncia segundo um procedimento pouco elegante porm bastante difundido) Na verdade, essa guerra econ"mica causa estragos, inclusive entre os mais ardentes defensores de um liberalismo sem peia. Nessa guer-14 Christophe Dejours ra "s", como em tantas outras guerras consideradas malss, h desperdcios e prejuzos absurdos. Os analistas que se debruam sobre esse entusiasmo irrefletido e deletrio, inclusive na comunidade cientfica, ficam chocados com o absurdo de alguns desses combates fratricidas entre concorrentes. Alguns especialistas enviam sinais de alarme. A inefic cia de seus apelos os leva a suspeitar que certos atores do drama esto conduzindo as coisas ...s cegas. Donde concluem que sua misso como estudiosos consistiria sobretudo em esclarecer os dirigentes de empresas e os dirigentes polticos, como se uma explicao racional os convencesse prontamente a agir de outra forma. No partilho dessa opinio. Minha experincia junto aos dirigentes me diz, ali s, que eles esto cientes dos riscos que correm, mas que, em sua maioria, no querem mudar de rumo. Por qu? Porque contam que, nessa guerra, seus advers rios sero os primeiros a se esgotar, e ento eles reinaro na paz restabelecida. E, de fato, dessa felicidade que gozam desde j alguns vencedores. Essa guerra tem benefici rios, no h dvida, que desfrutam de uma prosperidade e de uma riqueza que os demais admiram e invejam. Muitos so os dirigentes de empresas e os lderes polticos que reclamam ainda mais liberalismo, contando da tirar vantagens na guerra econ"mica contra seus concorrentes. Contudo, cabe esperar que alguns deles no ficaro insensveis ...s questes que sero levantadas neste livro. Ali s, pode-se mesmo adiantar que alguns deles sabero se servir de parte da argumentao apresentada para conduzir o debate no seio da comunidade a que pertencem. Porm este livro no tem a ambio de influenciar diretamente as decises da parcela dominante dos dirigentes, cujas convices neoliberais so lgicas e compreensveis. Estas, ali s, so aceitas, se no partilhadas, pela maioria dos cidados europeus. Por isso as posturas e as decises de nossos dirigentes so legais e talvez legtimas. O que no impede que a denncia dessas escolhas e dessas decises venha a manifestar-se aqui e ali, por vezes com a mesma eloq ncia (Forrester, 1996). Mas a denncia nem sempre de grande utilidade, na medida em que, no propondo alternativa vi vel, permanece pouco convincente e pouco mobilizadora. Nem resignao nem denncia: a an lise a ser desenvolvida neste livro parte de um ponto de vista bem diferente. Reconhece, antes de tudo, que os partid rios da guerra s esto vencendo nos ltimos 15 anos, e que na batalha h mais vencidos - ningum o nega - do que vencedores. Assim, proponho deslocar o eixo da investigao. Se h vencedores, e se a guerra prossegue, porque a m quina de guerra que foi 15 A banalizao da injustia social acionada funciona. E funciona admiravelmente bem, isso incontest vel. Mas por que a m quina de guerra funciona to bem assim? H duas respostas possveis, mas s a primeira levada em considerao nas an lises abalizadas: A guerra comeou e se prolongou porque era inevit vel. Ela se autoengendrou e se auto-reproduziu em virtude da lgica interna do sistema: por sistema entenda-se o sistema econ"mico mundial, o mercado. Essa guerra seria de algum modo natural, isto , resultaria de leisinevit veis, as quais a cincia econ"mica elucida. Estas teriam status de leis naturais - inscritas na ordem do universo, alm da vontade de homens e mulheres - ou mesmo de leis pertencentes ao "celestial", no sentido aristotlico do termo. A outra resposta, raramente formulada (Ladri re & Gruson ' 1992), consiste em admitir a existncia de leis econ"micas, tidas porm como leis institudas, isto , construdas pelos homens, ou ainda como leis do "sublunar", tambm no sentido aristotlico do termo. Sublunar: o mundo situado abaixo da Lua, isto , o mundo habitado pelos humanos, onde a evoluo das conjunturas sensvel ...s decises e aes humanas (... diferena do mundo dos astros e da matria, regido pelas leis eternas da fsica e da natureza). Nessa perspectiva, a guerra s no teria origem unicamente na natureza do sistema econ"mico, no mercado ou na "globalizao", mas nas condutas humanas. Que a guerra econ"mica seja desejada por certos dirigentes nada tem de enigm tico, e, como eu j disse antes, no creio que ela resulte de uma cegueira, mas de um c lculo e de uma estratgia. Que a m quina de guerra funcione, por sua vez, pressupe que todos os outros (os que no so "decisores"), ou pelo menos a maioria deles, contribuem para seu funcionamento, sua efic cia e sua longevidade, ou, em todo caso, que no a impedem de continuar em movimento. A partir desse ponto da discusso, no se trata de procurar compreender a lgica econ"mica, mas, ao contr rio, de p"r de lado essa questo, para concentrar o esforo de an lise nas condutas humanas que produzem essa m quina de guerra, bem como nas que levam a consentir nela e mesmo submeter-se a ela. 16 Christophe Dejours A maquinaria da guerra econ"mica no , porm, um deus ex machina. Funciona porque homens e mulheres consentem em dela participar maciamente. A questo central deste livro , para usar a expresso de Alain Morice (1996), a das "motivaes subjetivas da dominao": por que uns consentem em padecer sofrimento, enquanto outros consentem em infligir tal sofrimento aos primeiros? Este livro uma tentativa de analisar essa difcil questo, que considero uma questo poltica crucial. Ela fundamental para a poca atual, mas no apan gio desta. Vale para todas as pocas do sistema econ"mico liberal, passado, presente e futuro. Tal tentativa tem essencialmente uma orientao terica. Embora inspirada e fundamentada em pesquisas empricas iniciadas h 25 anos, a orientao da reflexo terica, porquanto no existe, ao que me parece, resposta poltica para a noo de "guerra econ"mica" sem novo aporte conceitual. Se uma crise poltica e social vier a desencadear-se em futuro prximo, ela poder extinguir-se ou favorecer uma sada ainda mais reacion ria, por falta de matria conceitual capaz de sustentar a deliberao e a ao com vistas a controlar ou subverter a maquinaria de guerra econ"mica. Se essa maquinaria continua a mostrar seu poderio porque consentimos em faz-la funcionar, mesmo quando isso nos repugna. Mesmo quando isso nos repugna! Por qu? As motivaes subjetivas do consentimento (isto , derivadas do sujeito psquico) tm aqui um papel que considero decisivo, se no determinante. Pelo menos isso que mostram as pesquisas sobre o sofrimento no trabalho de que falaremos mais adi-ante. por intermdio do sofrimento no trabalho que se forma o consentimento para participar do sistema. E quando funciona, o sistema gera, por sua vez, um sofrimento crescente entre os que trabalham. O sofrimento aumenta porque os que trabalham vo perdendo gradualmente a esperana de que a condio que hoje lhes dada possa amanh melhorar. Os que trabalham vo cada vez mais se convencendo de que seus esforos, sua dedicao, sua boa vontade, seus "sacrifcios" pela empresa s acabam por agravar a situao. Quanto mais do de si, mais so "produtivos", e quanto mais procedem mal para com seus companheiros de trabalho, mais eles os ameaam, em razo mesmo de seus esforos e de seu sucesso. Assim, entre as pessoas comuns, a relao para com o trabalho vai-se dissociando paulatinamente da promessa de felicidade e segurana compartilhadas: para si mesmo, primeiramente, mas tambm para os colegas, os amigos e os prprios filhos. 17 A banalizao da injustia social Esse sofrimento aumenta com o absurdo de um esforo no trabalho que em troca no permitir satisfazer as expectativas criadas no plano material, afetivo, social e poltico. As consequencias desse sofrimento para o funcionamento psquico e mesmo para a sade so preocupantes, como veremos mais adiante neste livro. Mas o sofrimento no desativa a maquinaria de guerra econ"mica. Ao contr rio, alimenta-a, por uma sinistra inverso que cumpre elucidar. Na verdade, homens e mulheres criam defesas contra o sofrimento padecido no trabalho. As "estratgias de defesa" so sutis, cheias mesmo de engenhosidade, diversidade e inventividade. Mas tambm encerram uma armadilha que pode se fechar sobre os que, graas a elas, conseguem suportar o sofrimento sem se abater. Para compreender como chegamos a tolerar e a produzir a sorte reservada aos desempregados e aos novos pobres numa sociedade que todavia no p ra de enriquecer, devemos primeiramente tomar conscincia do sofrimento no trabalho. Temos igualmente que analisar certas estratgias de defesa particularmente preocupantes porque nos ajudam a fechar os olhos para aquilo que, no entanto, infelizmente intuimos. Mas no nos enganemos. No sofrimento, assim como nas defesas, e mesmo no consentimento para padecer ou infligir sofrimento, no h mecanismo incoercvel ou inexor vel. Em matria de defesa contra o sofrimento, no h leis naturais, e sim regras de conduta construdas por homens e mulheres. Na falta de meios conceituais indispens veis para analisar sofrimento e defesa, no podendo pois apreend-los nem domin -los, voltamo-nos para as condutas que alimentam a injustia e a fazem perdurar. Se, por outro lado, f"ssemos capazes de refletir sobre o sofrimento e o medo, bem como sobre seus efeitos perversos, em vez de desconheclos, talvez no pudssemos mais consentir em fazer o mal ainda que nos repugne faz-lo. Refletir sobre a relao subjetiva para com o trabalho permite que nos desliguemos daquilo que insensivelmente nos levou a agir como se fizssemos nossa essa m xima altamente suspeita: ... la guerre comme ... la guerre! Este livro no tem por objetivo fazer um balano nacional da condio que dada aos trabalhadores de nosso pas. Certamente as relaes de trabalho no evoluem no mesmo ritmo em toda parte, de modo que se observam importantes disparidades regionais. Mas as situaes que aqui analisaremos so atestadas por sondagens realizadas in loco. No sabemos se a evoluo que descrevemos dever estender-se a todo o pas. Muitos especialistas temem que sim. Seja como for, tal receio por si s justifica que nos dediquemos sem mais tardar ao estudo.18 C a P t U l o 1 como tolerar o intoler vel? Indubitavelmente, quem perdeu o emprego, quem no consegue empregar-se (desempregado prim rio) ou reempregar-se (desempregado cr"nico) e passa pelo processo de dessocializao progressivo, sofre. sabido que esse processo leva ... doena mental ou fsica, pois ataca os alicerces da identidade. Hoje, todos partilham um sentimento de medo - por si, pelos prximos, pelos amigos ou pelos filhos - diante da ameaa de excluso. Enfim, todo mundo sabe que a cada dia aumentam em toda a Europa o nmero de excludos e os riscos de excluso, e ningum pode em s conscincia esconder-se atr s do vu demasiado transparente da ignor ncia que serve de desculpa. Por outro lado, nem todos partilham hoje do ponto de vista segundo o qual as vtimas do desemprego, da pobreza e da excluso social seriam tambm vtimas de uma injustia. Em outras palavras, para muitos cidados, h aqui uma clivagem entre sofrimento e injustia. Essa clivagem grave. Para os que nela incorrem, o sofrimento uma adversidade, claro, mas essa adversidade no reclama necessariamente reao poltica. Pode justificar compaixo, piedade ou caridade. No provoca necessariamente indignao, clera ou apelo ... ao coletiva. O sofrimento somente suscita um movimento de solidariedade e de protesto quando se estabelece uma associao entre a percepo do sofrimento alheio e a convico de que esse sofrimento resulta de uma injustia. Evidentemente, quando no se percebe o sofrimento alheio, no se levanta a questo da mobilizao numa ao poltica, tampouco a questo de justia e injustia. Para compreender o drama que representa a precariedade da mobilizao contra o desemprego e a excluso, seria preciso analisar pre19 A banalizao da injustia social cisamente as relaes ou os vnculos que se estabelecem ou se desfazem entre sofrimento alheio e injustia (ou justia). As pessoas que dissociam sua percepo do sofrimento alheio do sentimento de indignao causado pelo reconhecimento de uma injustia adotam freq entemente uma postura de resignao. Resignao diante de um "fen"meno": a crise do emprego, considerada uma fatalidade, compar vel a uma epidemia, ... peste, ao clera e at ... Aids. Segundo essa concepo, no haveria injustia, mas apenas um fen"meno sistmico, econ"mico, sobre o qual no se poderia exercer nenhuma influncia. (No entanto, mesmo no caso de uma epidemia como a Aids, constata-se que as reaes de mobilizao coletiva so possveis, e que no se obrigado a aceitar o fatum ou a aderir ... tese da "causalidade do destino", a qual seria antes conseq ncia de uma paralisia das capacidades analticas [Flynn, 1985].) Acreditar que o desemprego e a excluso resultam de uma injustia ou concluir, ao contr rio, que so fruto de uma crise pela qual ningum tem responsabilidade no algo que dependa de uma percepo, de um sentimento ou de uma intuio, como o no caso do sofrimento. A questo da justia ou da injustia implica antes de tudo a questo da responsabilidade pessoal: a responsabilidade de certos dirigentes e nossa responsabilidade pessoal esto ou no implicadas nessa adversidade?As noes de responsabilidade e de justia concernem ... tica e no ... psicologia. O juzo de atribuio, por sua vez, passa principalmente pela adeso a um discurso ou a uma demonstrao cientfica, ou ainda a uma crena coletiva, que seja inconteste para o sujeito que julga. A meu ver, a atribuio da adversidade do desemprego e da excluso ... causalidade do destino, ... causalidade econ"mica ou ... causalidade sistmica no advm de uma inferncia psico-cognitiva individual. A tese da causalidade do destino no resultado de uma inveno pessoal, de uma especulao intelectual ou uma investigao cientfica individuais. Ela dada ao sujeito, exteriormente. Por que o discurso economicista que atribui o infortnio ... causalidade do destino, no ven da responsabilidade nem injustia na origem desse infortnio, implica a adeso macia de nossos concidados, com seu corol rio, ... resignao ou ... falta de indignao e de mobilizao coletiva? Para responder a essa pergunta, creio que a psicodin mi20 Christophe Dejours ca do trabalho, 2 que tem implicaes nos campos psicolgico e sociolgico, pode nos trazer algumas luzes. Em suma, a psicodin mica do trabalho sugere que a adeso ao discurso economicista seria uma manifestao do processo de "banalizao do mal". Minha an lise parte da "banalidade do mal" no sentido em que Hannah Arendt emprega essa expresso com referncia a Eichmann. No, como fez ela, no caso do sistema nazista, mas no caso da sociedade contempor nea, na Frana, em fins do sculo XX. A excluso e a adversidade nfligidas a outrem em nossas sociedades, sem mobilizao poltica contra a injustia, derivam de uma dissociao estabelecida entre adversidade e injustia, sob o efeito da banalizao do mal no exerccio de atos civis comuns por parte dos que no so vtimas da excluso (ou no o so ainda) e que contribuem para excluir parcelas cada vez maiores da populao, agravando-lhes a adversidade. Em outras palavras, a adeso ... causa economcista, que separa a adversidade da injustia, no resultaria, como se costuma crer, da mera resignao ou da constatao de impotncia diante de um processo que nos transcende, mas funcionaria tambm como uma defesa contra a conscincia dolorosa da prpria cumplicidade, da prpria colaborao e da prpria responsabilidade no agravamento da adversidade social. Vale acrescentar que aquilo que tentarei analisar aqui nada tem de excepcional. a prpria banalidade! No s a banalidade do mal, mas a banalidade de um processo que subjacente ... efic cia do sistema liberal econ"mico. Ento, no uma novidade? No! Somente nova a identificao de um processo. Processo que se torna mais visvel, na poca atual, em virtude das mudanas polticas verificadas nas ltimas dcadas. Algum 2 Essa disciplina por objeto o estudo clnico a ao final da II Guerra por um t, ela ganhou h uns 15 anos minao inicialmente denominada psicopatologia do trabalho - tem e terico da patologia mental decorrente do trabalho. Fundad grupo de mdicos-pesquisadores liderados por L. Le Guillan um novo impulso que a levou recentemente a adotar a denode "an lise psicodin mica das situaes de trabalho", ou simplesmente "psicodin mica do trabalho". Nessa evoluo da disciplina, a questo do sofrimento passou a ocupar u ma posio central. O trabalho tem efeitos poderosos sobre o sofrimento psquico. Ou be m contribui para agrav -lo, levando progressivamente o indivduo ... loucura, ou be m contribui para transform -lo, ou mesmo subvert-lo, em prazer, a tal ponto que, em certa s situaes, o indivduo que trabalha preserva melhor a sua sade do que aquele que no traba lha. Por que o trabalho ora patognico, ora estruturante? O resultado jamais d ado de antemo. Depende de uma din mica complexa cujas principais etapas so identificada s e analisadas pela psicodin mica do trabalho. 21 A banalizao da injustia social tempo atr s, quando as lutas polticas e a mobilizao coletiva eram mais intensas e o espao pblico mais aberto do que no perodo histrico atual, esse processo de banalizao do mal era menos acessvel ... investigao. Tentarei portanto analisar o processo que favorece a toler ncia social para com o mal e a injustia, e atravs do qual se faz passar por adversidade o que na verdade resulta do exerccio do mal praticado por uns contra outros. Alguns leitores se sentiro tentados a no prosseguir, por entenderem que este texto no se prope somente identificar um punhado de respons veis conden veis e analisar as estratgias que adotam para cometer seus delitos. Mesmo que haja lderes cujo comportamento merea uma an lise especfica, sua identificao nem por isso confere aos outros, em particular aos leitores ou ao autor, o benefcio da inocncia. O presente ensaio um percurso penoso, tanto para o leitor quanto para o autor. Todavia, o esforo de an lise se afigura necess rio. Creio que permite entender por que no h soluo a curto prazo para a adversidade social gerada pelo liberalismo econ"mico na atual fase de nosso desenvolvimento histrico. No que a ao seja impossvel, mas para inici -la seria necess rio criar condies de mobilizao que no parecem vi veis sem um perodo prvio de difuso e debate das an lises sobre a banalizao do mal. Pois creio poder afirmar que a maioria de ns participa dessa banalizao. Devo acrescentar que, se a banalizao do mal nada tem de excepcional, por ser subjacente ao prprio sistema liberal, ela tambm est implcita nas vertentes totalit rias, inclusive no nazismo. Mas quais so, afinal, as diferenas entre totalitarismo e neoliberalismo? Por onde passa a linha divisria? falta de uma resposta clara para essa pergunta, tal banalizao parece deveras inquietante. Este ensaio visa, alm de analisar a referida banalizao, a identificar as especificidades do funcionamento social ordin rio no sistema liberal. Deveramos poder tirar da algumas conseq ncias para caracterizar as formas de banalizao do mal nos sistemas totalit rios (que a meu ver no foram satisfatoriamente elucidadas nem mesmo por H. Arendt). A banalizao do mal passa por v rias fases intermedi rias, cada uma das quais depende de uma construo humana, Em outras palavras, no se trata de uma lgica incoercvel, mas de um processo que implica responsabilidades. Portanto esse processo pode ser interrompido, controlado, contrabalanado ou dominado por decises humanas que,evidentemente, tambm implicariam responsabilidades. A acelerao ou a freagem desse processo depende de nossa vontade e de nossa liberda22 Christophe Dejours de. Nosso poder de controle sobre o processo pode pois ser aumentado pelo conhecimento de seu funcionamento, Na impossibilidade de contribuir para a ao, a an lise que vamos desenvolver pode ao menos servir ... compreenso, sem que possamos afastar o risco - mas somente um risco - de uma reconciliao tr gica: "compreender, diz em suma Hannah Arendt, uma atividade sem fim pela qual nos ajustamos ao real, nos reconciliamos com ele e nos esforamos para estar de acordo ou em harmonia com o mundo" (Revault d'Allones, 1994). Em 1980, ante a crise crescente do emprego, os analistas polticos franceses previam que no se poderia ter mais de 4% de desempregados na populao ativa sem que surgisse uma grande crise poltica, a qual se manifestaria por distrbios sociais e movimentos de car ter insurrecional, capazes de desestabilizar o Estado e toda a sociedade. No Japo, os analistas polticos previam que a sociedade japonesa no poderia assimilar poltica e socialmente uma taxa de desemprego superior a 4% (De Bandt & Sipek, 1979). certo que no sabemos o que acontecer com a situao poltica japonesa. Em compensao, sabemos que na Frana somos agora capazes de tolerar at 13% de desempregados e talvez mais, Estavam errados os analistas e os futurlogos? Sim e no. Sim, na medida em que suas previses no foram confirmadas pela realidade. No, na medida em que, provavelmente, a sociedade francesa de 1980 no teria podido tolerar 4% de desempregados, muito menos 13%, sem reagir mediante graves distrbios sociais e polticos. Evidentemente, no a progressvidade do crescimento do desemprego que pode explicar essa inesperada toler ncia social. No, pois esse crescimento foi r pido demais. Trata-se provavelmente de algo bem diferente. Nossa hiptese consiste em que, desde 1980, no foi somente a taxa de desemprego que mudou, e sim toda a sociedade que se transformou qualitativamente, a ponto de no mais ter as mesmas reaes que antes. Para sermos mais precisos, vemos nisso essencialmente uma evoluo das reaes sociais ao sofrimento, ... adversidade e ... injustia. Evoluo que se caracterizaria pela atenuao das reaes de indignao, de clera e de mobilizao coletiva para a ao em prol da solidariedade e da justia, ao mesmo tempo em que se desenvolveriam reaes de reserva, de hesitao e de perplexidade, inclusive de franca indiferena, bem como de toler ncia coletiva ... inao e de resignao ... injustia e ao sofrimento alheio. Nenhum analista contesta essa evoluo. A muitos, ela causa desespero. Somente as explicaes do fen"meno que divergem. No se compreende como uma mutao poltica dessa amplitude p"de produzir-se em to pou23 A banalizao da injustia social co tempo. Segundo a interpretao mais corrente, essa inslita passividade coletiva estaria ligada ...falta de perspectivas (econ"mica, social e polt ica) alternativas. Certamente difcil negar essa falta de alternativa mobilizadora. Mas seria ela, como pensam muitos analistas, a causa dessa inrcia social e poltica ou sua conseq ncia? Particularmente, no creio que os movimentos coletivos de dimenso social sejam habitualmente mobilizados pela vontade de marchar para uma felicidade prometida, ainda quepor uma ideologia estruturada. Entendo que a mobilizao tem sua principal fonte de energia no na esperana de felicidade (pois sempre duvidamos dos resultados de uma transformao poltica), mas na clera contra o sofrimento e a injustia considerados intoler veis. Em outras palavras, a ao coletiva seria mais reao do que ao, reao contra o intoler vel, mais que ao voltada para a felicidade. 3 Exemplo disso, entre outros, so os movimentos grevistas de novembro/dezembro de 1995: o que os provocou foi a clera contra o desmantelamento do servio pblico, e no a perspectiva de um futuro risonho. Voltando ... falta de alternativa ideolgica, sou propenso a crer que ela geneticamente secund ria, e no prim ria, em relao ... falta de mobilizao coletiva contra a adversidade e a injustia infligidas a outrem. Nessa perspectiva, devemos tentar explicar de outra forma, que no pela falta de utopia social alternativa, a precariedade da mobilizao coletiva contra o sofrimento. O problema passa a ser ento o do desenvolvimento da toler ncia ... injustia. justamente a falta de reaes coletivas de mobilizao que possibilita o aumento progressivo do desemprego e de seus estragos psicolgicos e sociais, nos nveis que atualmente conhecemos. indiscutvel que os anos Mtterrand (1981-95) foram marcados por uma reviravolta ideolgica em relao aos ideais socialistas, sob a forma de um "economicismo de esquerda". Mas essa reviravolta poltica, que consiste em colocar a razo econ"mica acima da razo poltica, 3 Nessa esfera, portanto, as condutas coletivas se distinguem das condutas p articulares cujo primum movens, em vez de racional, pode ser primariamente induzido pelo d esejo (ou pela pulso). Tal diferena me parece atestada pela experincia clnica em psicodin mi ca do trabalho, que faz do mdico ou do pesquisador uma testemunha privilegiada d o surgimento e da extino dos movimentos coletivos concernentes ... justia e ... injust ia nos locais de trabalho. Essa experincia, comparada ... experincia clnica do psicanali sta, sugere - voltaremos a esse ponto mais adiante - uma diferena radical entre processo de mobilizao subjetiva individual e processo de mobilizao coletiva na ao. 24 Christophe Dejours no a causa da desmobilizao. Seria antes o resultado desta, resultado que, por muitos anos, foi ao mesmo tempo incerto e surpreendente. Esse perodo de 15 anos tambm se caracteriza, no universo do trabalho, pela adoo de novos mtodos de gesto e direo de empresas, o que se traduz pelo questionamento progressivo do direito do trabalho e das conquistas sociais (Supiot, 1993). Esses novos mtodos se fazem acompanhar no apenas de demisses, mas tambm de uma brutalidade nas relaes trabalhistas que gera muito sofrimento. Decerto que essa brutalidade denunciada. Mas a denncia permanece absolutamente sem conseq ncia poltica, pois no h mobilizao coletiva concomitante. Ao contr rio, essa denncia parece compatvel com uma crescente toler ncia ... injustia. Acaso devemos ver nisso a prova da fragilidade dos discursos de denncia no plano poltico ou o indcio de uma duplicidade que, por tr s da denncia, esconde uma toler ncia crescente? Ser que a denncia funciona aqui de uma maneira inusitada, ou seja, que em vez de catalisar a ao poltica ela serve para familiarizar a sociedade civil com aadversidade, para domesticar as reaes de indignao e para favorecer a resignao, constituindo inclusive uma preparao psicolgica para padecer a adversidade? 25 C a P t U l o 2 O trabalho entre sofrimento e prazer Antes de nos aprofundarmos na an lise das relaes entre sofrimento e injustia, devemos precisar o que entendemos aqui por sofrimento. At agora, mencionamos principalmente as relaes entre sofrimento e emprego. Mas cumpre estudar tambm as relaes entre sofrimento e trabalho. As primeiras se referem ao sofrimento dos que no tm trabalho ou emprego; as ltimas se referem ao sofrimento dos que continuam a trabalhar. A banalizao do mal repousa precisamente sobre um processo de reforo recproco de umas pelas outras. Eis por que devemos primeiramente descrever a din mica das relaes entre trabalho, sofrimento e prazer. Querem-nos fazer acreditar, ou tendemos a acreditar espontaneamente, que o sofrimento no trabalho foi bastante atenuado ou mesmo completamente eliminado pela mecanizao e a robotizao, que teriam abolido as obrigaes mec nicas, as tarefas de manuteno e a relao direta com a matria que caracterizam as atividades industriais. Alm de transformar braais "cheirando a suor" em operadores de mos limpas, elas tenderiam a transmutar oper rios em empregados e a livrar Pele de Asno de seu traje malcheiroso para propiciar-lhe um destino de princesa de vestido prateado. Quem, dentre as pessoas comuns, no capaz de evocar as imagens de uma reportagem de televiso ou a lembrana de uma visita guiada a uma f brica de aspecto asseado, new-look? Infelizmente, tudo isso no passa de clich, pois s o que as empresas mostram so suas fachadas e vitrinas, oferecidas - generosamente, verdade - aos olhares dos curiosos ou dos visitantes. Por tr s da vitrina, h o sofrimento dos que trabalham. Dos que, ali s, pretensamente no mais existem embora na verdade sejam legio, e que assumem inmeras tarefas arriscadas para a sade, em condies pouco diferentes daquelas de antigamente e por vezes mesmo agravadas 27 A banalizao da injustia social por freq entes infraes das leis trabalhistas: oper rios da construo civil, de firmas de servios de manuteno nuclear, de firmas de limpeza (seja em indstrias ou em escritrios, hospitais, trens, avies etc.), de montadoras de automveis, de matadouros industriais, de empresas avcolas, de firmas de mudanas ou de confeco txtil etc. H tambm o sofrimento dos que enfrentam riscos como radiaes ionizantes, vrus, fungos, amianto, dos que se submetem a hor rios alternados etc. Tais malefcios, que so relativamente recentes na histria do trabalho, vo-se agravando e multiplicando, provocando no s o sofrimento do corpo, mas tambm apreenso e at angstia nos que trabalham. Enfim, por tr s das vitrinas, h o sofrimento dos que temem no satisfazer, no estar ... altura das imposies da organizao do trabalho: imposies de hor rio, de ritmo, de formao, de informao, de aprendizagem, de nvel de instruo e de diploma, de experincia, de rapidez de aquisio de conhecimentos tericos e pr ticos (Dessors & Tor-rente, 1996) e de adaptao ... "cultura" ou ... ideologia da empresa, ...s exigncias do mercado, ...s relaes com os clientes, os particulares ou o pblico etc. Os estudos clnicos e as sondagens que realizamos nos ltimos anos, tanto na Frana quanto no exterior, revelam por tr s das vitrinas do progresso um mundo de sofrimento que ...s vezes nos deixa incrdulos. Quando se dispe de informaes, ou individualmente, por experincia prpria do trabalho, ou indiretamente, por intermdio de algum ntimo que sofre e nos faz confidncias. Mas como no imaginar que informaes to discordantes do discurso corrente, ainda por cima pessoais, no resultem de excees ou anomalias sem grande import ncia num mundo que, graas ao progresso da tcnica, se livrou das misrias da condio oper ria? Faz duas dcadas que os jornalistas deixaram de fazer sondagens sociais ou pesquisas no mundo do trabalho comum para se dedicarem a "reportagens" sobre as luzes das vitrinas do progresso. Pouco interesse pelo sofrimento comum... e to prximo de ns! Somente o martrio das vtimas da violncia e das atrocidades blicas, ... dist ncia, se oferece ... curiosidade de nossos concidados. As meias-tintas no geram receita. Do mundo do trabalho no se ouvem seno ecos amortecidos na imprensa ou no espao pblico, o que nos leva a crer que as informaes que ...s vezes nos chegam sobre o sofrimento no trabalho so de car ter excepcional, extraordin rio, no tendo portanto significado nem valor heurstico no que concerne ... situao geral dos que trabalham na Europa de hoje. Assim, muito embora sua prpria experincia 28 Christophe Dejours seja discordante, muitos so os que fazem coro com os refros da moda sobre o fim do trabalho e a liberdade recobrada. Mas em que consiste afinal esse sofrimento no trabalho, que afirmamos aqui ser amplamente ignorado? Fazer o invent rio das formas tpicas do sofrimento seria impor ao leitor a obrigao de percorrer todos os captulos de um tratado de pscodin mica do trabalho. Por ora vamos nos limitar a um resumo visando principalmente a alertar sobre a gravidade de uma questo insuficientemente debatida. 1. O medo da incompetncia Que se entende por "real do trabalho"? O real definido como o que resiste ao conhecimento, ao saber, ao savoir-faire e, de modo mais geral, ao domnio. No trabalho, o real assume uma forma que as cincias do trabalho evidenciaram desde os anos 70 (Daniellou, Laville & Teiger, 1983). Ele se d a conhecer ao sujeito4 essencialmente pela 4 O termo "sujeito" tornar a aparecer com freq ncia neste livro. No uma denomin ao genrica para designar tanto o sujeito quanto um homem ou uma mulher, uma pess oa qualquer ou um agente indefinido. Toda vez que esse termo aparecer, ser par a falar de quem vivencia afetivamente a situao em questo. Afetivamente, isto , sob a forma de uma emoo ou de um sentimento que no apenas um contedo de pensamento, mas sobretudo um estado do corpo. A afetividade o modo pelo qual o prprio corpo v ivencia seu contato com o mundo. A afetividade est na base da subjetividade. A subj etividade dada, acontece, no uma criao. O essencial da subjetividade da categoria do invi svel. O sofrimento no se v. Tampouco a dor. o prazer no visvel. Esses estados afe tivos no so mensur veis. So vivenciados "de olhos fechados". O fato de que a afet ividade no possa jamais ser medida nem avaliada quantitativamente, de que ela pert ena ao domnio das trevas, no justifica que se lhe negue a realidade nem que se despre ze os que dela ousam falar de modo obscurantista. Ningum ignora o que sejam o sofriment o e o prazer, e todos sabem que isso s se vivencia integralmente na intimidade da e xperiencia interior. TUdo quanto se possa mostrar do sofrimento e do prazer no seno suger ido. Negar ou desprezar a subjetividade e a afetvidade nada menos que negar ou des prezar no homem o que sua humanidade, negar a prpria vida (Henry, 1965). Este livro combate todas as formas, sejam quais forem, de condescendncia e desdm para com a subjetividade, as quais se tornaram o credo das elites gerenciais e polticas, bem como a senha do parisianismo intelectual. Alm disso, o termo "sujeito" s ser empregado no texto quando for impossvel, considerando o que dissemos a respeito da subjetividade, substitu-lo por agen te, ator, trabalhador, operador, cidado ou pessoa, termos que remetem a uma srie de conotaes especficas e a teorias ou disciplinas distintas. 29 A banalizao da injustia social defasagem irredutvel entre a organizao prescrita do trabalho e a organizao real do trabalho. Na verdade, sejam quais forem as qualidades da organizao do trabalho e da concepo, impossvel, nas situaes comuns de trabalho, cumprir os objetivos da tarefa respeitando escrupulosamente as prescries, as instrues e os procedimentos... Caso nos atenhamos a uma execuo rigorosa, nos veremos na conhecida situao da "operao padro" ou "operao tartaruga" (gr ve du z le), em que o trabalho executado com zelo excessivo. O zelo precisamente tudo aquilo que os operadores acrescentam ... organizao prescrita para torn -la eficaz; tudo aquilo que empregam individual e coletivamente e que no depende da "execuo". A gesto concreta da defasagem entre o prescrito e o real depende na verdade da "mobilizao dos impulsos afetvos e cogntivos da inteligncia" (Dejours, 1993a; Bhle & Milkau, 1991; Detienne & Vernant, 1974). Tal conjuntura pode ser exemplificada pelo caso de um mdico ainda inexperiente, mas a quem foi atribudo um cargo de responsabilidade num setor de reanimao. Mesmo no tendo concludo sua formao, confiaram-lhe a responsabilidade mdica por todo o servio. Na verdade, como v rios colegas mudaram de posto, restaram cargos por preencher. Mas o diretor do hospital se recusou a fazer contrataes. Assim, para "tapar buraco", aproveitou-se esse estudante, cuja remunerao no se compara ...quela de um titular - em suma, trata-se de mais um caso de "habilitao" abusiva e fraudulenta, como se v com freq ncia em muitas indstrias em que h riscos (Mendel, 1989).Ento esse jovem mdico, consciencioso e trabalhador, consegue dar conta das tarefas que lhe so confiadas. Tudo corre bem e ele vai ganhando gradualmente a confiana da equipe, dos pacientes e de suas famlias. Sua competncia amplamente reconhecida. Mas algo o atormenta. Persiste nele a impresso de que ocorrem bitos demais naquele setor. Alguns de seus pacientes morrem mesmo quando o prognstico lhes favor vel. Exasperam-no os resultados incompreensveis de certas decises suas, sobretudo quando prescreve a utilizao de "respirador artificial" em pacientes intubados. V rios pacientes so vtimas de asfixia, e ele no consegue entender por qu. Chega a pensar que provavelmente cometeu erros de diagnstico ou falhas teraputicas, mas no consegue esclarec-los. Torna-se cada vez mais perturbado, perde a confiana em si mesmo e resolve finalmente consultar um psiquiatra que o ajude a vencer uma depresso ansiosa, tanto mais surpreendente porque todos o respeitam. Mas, tornando-se cada vez mais fechado e irrit vel, ele se isola, se aflige e vai aos poucos perdendo a confiana de sua equi30 Christophe Dejours pe. Esta, por sua vez, ao descobrir a causa de sua perplexidade, acaba por duvidar de sua competncia e, por fim, a suspeitar dele. Somente seis meses depois, quando sua situao psquica est francamente deteriorada, que lhe ocorre uma idia. Antes de p"r um novo paciente sob respirao artificial, ele encaixa a m scara de oxignio no prprio nariz. Ento, sufoca ao inalar algo que, pelo cheiro, reconhece imediatamente como formol. Suas diligncias o levam a descobrir que a firma respons vel pela manuteno e esterilizao dos aparelhos de reanimao no respeita os procedimentos, a fim de ganhar tempo e disfarar, por essa fraude, a falta de pessoal, esta igualmente ligada aos cortes orament rios determinados pela direo daquela firma. Em situaes de trabalho comuns, freq ente verificarem-se incidentes e acidentes cuja origem (nem sempre fraudulenta como no caso anterior, antes pelo contr rio) no se consegue jamais entender e que abalam e desestabilizam os trabalhadores mais experientes. isso vale para a pilotagem de avies, a conduo de indstrias de processamento e todas as situaes de trabalho tecnicamente complexas que implicam riscos para a segurana das pessoas ou das instalaes. Em tais situaes, muitas vezes os trabalhadores no tm como saber se suas falhas se devem ... sua incompetncia ou a anomalias do sistema tcnico. E essa fonte de perplexidade tambm a causa de angstia e de sofrimento, que tomam a forma de medo de ser incompetente, de no estar ... altura ou de se mostrar incapaz de enfrentar convenientemente situaes incomuns ou incertas, as quais, precisamente, exigem responsabilidade. 2. A presso para trabalhar mal Outra causa freq ente de sofrimento no trabalho surge em circunst ncias de certo modo opostas ...quelas que vimos de mencionar. No esto em questo a competncia e a habilidade. Porm, mesmo quando o trabalhador sabe o que deve fazer, no pode faz-lo porque o impedem as presses sociais do trabalho. Colegas criam-lhe obst culos, o ambiente social pssimo, cada qual trabalha por si, enquanto todos sonegam informaes, prejudicando assim a cooperao etc. Nas tarefas ditas de execuo sobeja esse tipo de contradies em que o trabalhador se v de algum modo impedido de fazer corretamente seu trabalho, constrangido por mtodos e regulamentos incompatveis entre si (Dejours, 1991).31 A banalizao da injustia social Por exemplo, numa usina nuclear, temos um tcnico de manuteno encarregado de efetuar o controle tcnico dos servios contratados com uma firma de mec nica, Nas mltiplas tarefas a executadas, envolvendo a segurana das instalaes, turmas de oper rios se revezam dia e noite. Mas o tcnico respons vel pelo controle, que tem vnculo empregatcio com a empresa contratante, est sozinho. No pode supervisionar os trabalhos 24 horas por dia, pois tambm precisa repousar e dormir. Mas sua obrigao assinar as faturas e responsabilizar-se pela qualidade do servio prestado pela firma de mec nica. Embora tenha feito reiterados pedidos, ele continua sendo o nico respons vel e, para no prejudicar os trabalhadores precariamente vinculados ... empresa contratada, obrigado a assinar as faturas e a fiarse na palavra do chefe do turno da noite quanto ... qualidade do servio realizado. Tal situao psicolgica dificilmente aceit vel para um tcnico que conhece bem o ofcio da mec nica, por exerc-lo h 20 anos, e que sabe como este cheio de percalos. As condies que ora lhe so oferecidas na nova organizao do trabalho, aps as ltimas reformas estruturais, o deixam numa situao psicolgica extremamente penosa, conflitante com os valores do trabalho bem-feito, o senso de responsabilidade e a tica profissional. Ser constrangido a executar mal o seu trabalho, a atamanc lo ou a agir de m -f uma fonte importante e extremamente freq ente de sofrimento no trabalho, seja na indstria, nos servios ou na administrao. Eis um segundo exemplo. Trata-se de um engenheiro, recentemente designado para uma garagem da SNCF (Societ Nationale des Chemins de Fer Franais). Alguns dias aps sua chegada, toma conhecimento de informaes sobre um incidente ocorrido no setor da ferrovia pelo qual respons vel. A cancela de uma passagem de nvel no abaixou ... passagem de um trem. Nesse momento no havia ningum na estrada, nem a p nem de carro. Em reunio de trabalho, o engenheiro relata o incidente. Os dispositivos autom ticos no funcionaram. Aps o incidente, a cancela voltou a funcionar normalmente, sem nenhuma interveno tcnica ou reparo especfico. Porm o fato inquestion vel. Qual a causa? Onde est o defeito? Silncio geral entre os colegas. O novo engenheiro insiste, mas os demais minimizam a import ncia do fato. O engenheiro no pensa assim e, entendendo que o incidente grave, exige uma investigao tcnica completa. O grupo vai aos poucos isolando o novato insistente. Por qu? As mudanas estruturais e o enxugamento dos quadros deixam 32 Christophe Dejours todos to sobrecarregados de trabalho que eles "deixam pra l ". No podem, claro, admitir tal situao oficialmente e se limitam a recusar a investigao proposta pelo novo colega porque ela seria difcil e demandaria muito tempo e trabalho. Alm disso, insistem no fato de que, desde o ocorrido, a cancela aparentemente funciona sem mais incidentes. Os nimos se exaltam. O engenheiro se recusa a desistir da investigao. V-se obrigado a sustentar a gravidade do incidente, enquanto os outros o minimizam. Por fim, o chefe da garagem intervm e decide: Chefe: Houve descarrilamento do trem? Engenheiro: No! Chefe: Houve coliso com algum veculo ou passante?Engenheiro: No! Chefe: Houve feridos ou mortos? Engenheiro: No! Chefe: Ento no houve incidente. O caso est encerrado. Ao sair da reunio, o engenheiro no se sente bem, est arrasado, no entende a atitude dos outros, tampouco sua unanimidade. Fica em dvida, no sabe mais se est apenas seguindo o regulamento e o bom senso tico (enquanto seus colegas se lhe opem, negando uma realidade) ou se, ao contr rio, est dando mostras de perfeccionismo e teimosia descabida, cumprindo-lhe, nesse caso, rever toda a sua vida profissional. Nos dias seguintes, seus colegas evitam comer ... mesma mesa que ele e dirigir-lhe a palavra. O infeliz j no compreende mais nada. O cerco se aperta. Ele se sente cada vez mais angustiado e perplexo. Dois dias depois, no seu local de trabalho, ele se joga do vo de uma escada, transpondo o parapeito. hospitalizado com fraturas mltiplas, depresso, confuso mental e tendncia suicida. (Trata-se de um caso de alienao social, diferente da alienao mental cl ssica, tal como definida por Sigaut, 1990.) Ao contr rio do que se pensa, situaes desse tipo nada tm de excepcional no trabalho, ainda que seu desfecho seja menos espetacular. 3. Sem esperana de reconhecimento Quer se consiga, como no caso do mdico, vencer os obst culos do real, quer se capitule, como no caso do engenheiro mec nico, diante dos obst culos ... qualidade do trabalho, quer ainda, como em outros casos, se possa trabalhar em boas condies tcnicas e sociais, o resultado 33 A banalizao da injustia social obtido em geral ... custa de esforos que exigem total concentrao da personalidade e da inteligncia de quem trabalha. H os indolentes e os desonestos, mas, em sua maioria, os que trabalham se esforam por fazer o melhor, pondo nisso muita energia, paixo e investimento pessoal. justo que essa contribuio seja reconhecida. Quando ela no , quando passa despercebida em meio ... indiferena geral ou negada pelos outros, isso acarreta um sofrimento que muito perigoso para a sade mental, como vimos no caso do engenheiro da SNCF, devido ... desestabilizao do referencial em que se apia a identidade. O reconhecimento no uma reivindicao secund ria dos que trabalham. Muito pelo contr rio, mostra-se decisivo na din mica da mobilizao subjetiva da inteligncia e da personalidade no trabalho (o que classicamente designado em psicologia pela expresso "motivao no trabalho"). O reconhecimento esperado por quem mobiliza sua subjetividade no trabalho assume formas extremamente reguladas, j analisadas e elucidadas h alguns anos (juzo de utilidade e juzo de beleza), e implica a participao de atores, tambm estes rigorosamente situados em relao ... funo e ao trabalho de quem espera o reconhecimento (Dejours, 1993b). No indispens vel retomar aqui a an lise da "psicodin mica do reconhecimento". Basta conhecer-lhe a existncia para discernir o papel fundamental que desempenha no destino do sofrimento no trabalho e na possibilidade de transformar o sofrimento em prazer. Do reconhecimento depende na verdade o sentido do sofrimento. Quando a qualidade de meu trabalho reconhecida, tambm meus esforos, minhas angstias, minhas dvidas, minhas decepes, meus des nimos adquirem sentido. Todo esse sofrimento, portanto, no foi emvo; no somente prestou uma contribuio ... organizao do trabalho, mas tambm fez de mim, em compensao, um sujeito diferente daquele que eu era antes do reconhecimento. o reconhecimento do trabalho, ou mesmo da obra pode depois ser reconduzido pelo sujeito ao plano da construo de sua identidade. E isso se traduz afetivamente por um sentimento de alvio, de prazer, ...s vezes de leveza d'alma ou at de elevao. o trabalho se inscreve ento na din mica da realizao do ego. A identidade constitui a armadura da sade mental. No h crise psicopatolgica que no esteja centrada numa crise de identidade. Eis o que confere ... relao para com o trabalho sua dimenso propriamente dram tica. No podendo gozar os benefcios do reconhecimento de seu trabalho nem alcanar assim o sentido de sua relao para com o trabalho, o su34 Christophe Dejours jeito se v reconduzido ao seu sofrimento e somente a ele. Sofrimento absurdo, que no gera seno sofrimento, num crculo vicioso e dentro em breve desestruturante, capaz de desestabilizar a identidade e a personalidade e de levar ... doena mental. Portanto, no h neutralidade do trabalho diante da sade mental. Mas essa dimenso "p tica" do trabalho amplamente subestimada nas an lises sociolgicas e polticas, com conseq ncias tericas que veremos mais adiante. 4. Sofrimento e defesa Assim, embora faa parte das expectativas de todos os que trabalham, o reconhecimento raramente conferido de modo satisfatrio. Portanto de se esperar que o sofrimento no trabalho gere uma srie de manifestaes psicopatolgicas. Foi para analis -las e inventari -las que se realizaram estudos clnicos denominados "psicopatologia do trabalho". No incio das pesquisas, nos anos 50, procurou-se identificar e caracterizar os efeitos deletrios do trabalho sobre a sade mental dos trabalhadores, visando a constituir um diagnstico das "doenas mentais do trabalho". Apesar de certos resultados espetaculares - em particular a neurose de telefonistas (Begoin, 1957) -, no foi possvel descrever uma patologia mental do trabalho compar vel ... patologia das afeces som ticas profissionais, cuja variedade e especificidade, ali s, so conhecidas. Se o sofrimento no se faz acompanhar de descompensao psicopatolgica (ou seja, de uma ruptura do equilbrio psquico que se manifesta pela ecloso de uma doena mental), porque contra ele o sujeito emprega defesas que lhe permitem control -lo. No domnio da psicologia do trabalho, o estudo clnico mostrou que, a par dos mecanismos de defesa classicamente descritos pela psican lise, existem defesas construdas e empregadas pelos trabalhadores coletivamente. Trata-se de "estratgias coletivas de defesa" que so especificamente marcadas pelas presses reais do trabalho. Assim, descreveram-se primeiramente as estratgias coletivas de defesa tpicas dos oper rios da construo civil, depois as dos pilotos de processo das indstrias qumicas, dos encarregados da manuteno em usinas nucleares, dos soldados do Exrcito, dos marinheiros, das enfermeiras, dos mdicos e cirurgies, dos pilotos de caas etc. Descreveremos algumas delas no captulo 3, seo 3. 35 A banalizao da injustia socialAs pesquisas foram ento redirecionadas a partir da inverso da questo inicial: em vez de detectar as inapreensveis doenas mentais do trabalho, registrou-se que, em sua maioria, os trabalhadores permanecem na normalidade. Como conseguem esses trabalhadores no enlouquecer, apesar das presses que enfrentam no trabalho? Assim, a prpria "normalidade" que se torna enigm tica. A normalidade interpretada como o resultado de uma composio entre o sofrimento e a luta (individual e coletiva) contra o sofrimento no trabalho. Portanto, a normalidade no implica ausncia de sofrimento, muito pelo contr rio. Pode-se propor um conceito de "normalidade sofrente", sendo pois a normalidade no o efeito passivo de um condicionamento social, de algum conformismo ou de uma "normalizao" pejorativa e desprezvel, obtida pela "interiorizao" da dominao social, e sim o resultado alcanado na dura luta contra a desestabilizao psquica provocada pelas presses do trabalho. Nos ltimos 20 anos, as pesquisas em psicodin mica do trabalho revelaram a existncia de estratgias defensivas muito diferentes. A an lise detalhada do funcionamento dessas estratgias mostra igualmente que elas podem contribuir para tornar aceit vel aquilo que no deveria s-lo. Por isso as estratgias defensivas cumprem papel paradoxal, porm capital, nas motivaes subjetivas da dominao a que j nos referimos. Necess rias ... proteo da sade mental contra os efeitos deletrios do sofrimento, as estratgias defensivas podem tambm funcionar como uma armadilha que insensibiliza contra aquilo que faz sofrer. Alm disso, permitem ...s vezes tornar toler vel o sofrimento tico, e no mais apenas psquico, entendendo-se por tal no o sofrimento que resulta de um mal padecido pelo sujeito, e sim o que ele pode experimentar ao cometer, por causa de seu trabalho, atos que condena moralmente. Em outras palavras, bem possvel que agir mal, isto , infligir a outrem "um sofrimento indevido" - segundo a concepo proposta por Pharo (1996) e ... qual voltaremos mais adiante -, cause tambm sofrimento ...quele que assim age, no contexto de seu trabalho. E se ele for capaz de construir defesas contra esse sofrimento, poder manter seu equilbrio psquico. Teriam o sofrimento no trabalho e a luta defensiva contra o sofrimento alguma influncia sobre as posturas morais particulares e mesmo sobre as condutas coletivas no campo poltico? Essa questo no foi at agora considerada porque os especialistas da teoria sociolgica e filosfica da ao geralmente hesitam em abrir espao, em suas an lises, para o sofrimento subjetivo. 36 C a p t u l o 3 O sofrimento negado Se hoje a principal fonte de injustia e de sofrimento na sociedade francesa o desemprego, o grande palco do sofrimento certamente o do trabalho, tanto para os que dele se acham excludos quanto para os que nele permanecem. Portanto, as organizaes sindicais esto na linha de frente. Muitos analistas consideram que a atonia das reaes ... escalada da adversidade social se deve ... fragilidade crescente das organizaes sindicais. Essa an lise, embora justa, incompleta. Afinal, a fragilidade dos sindicatos causa ou conseq ncia? 1. A negao pelas organizaes polticas e sindicais Nossa hiptese consiste em que a fragilidade sindical e a dessindicalizao, cujo avano foi to r pido quanto o da toler ncia ... injustiae ... adversidade alheia, no so apenas causas da toler ncia, mas conseq ncia dessa toler ncia. Na verdade, a questo do sofrimento no trabalho e, de modo mais geral, das relaes entre subjetividade e trabalho foi negligenciada pelas organizaes sociais muito antes de eclodir a crise do emprego. A questo do sofrimento no trabalho ganhou amplitude nos movimentos sociais de 1968. poca, desencadeara-se um vasto debate sobre a natureza das reivindicaes trabalhistas. Reivindicaes corporativas contra reivindicaes polticas; reivindicaes salariais contra reivindicaes qualitativas sobre as condies de trabalho e o significado do trabalho. A questo da alienao repercutiu ento intensamente no mundo dos trabalhadores e dos empregados, mas foi quase sistematicamente descartada do debate pelas grandes organizaes sindicais. 37 A banalizao da injustia social Se o movimento esquerdista assumiu essas reivindicaes rejeitadas pelos sindicatos e o Partido Comunista Francs (PCF), f-lo to-somente na perspectiva de um movimento de unio em prol de objetivos polticos revolucion rios voltados para a conquista do poder. Assim, o movimento esquerdista no analisou melhor nem deu maior ateno ao sofrimento no trabalho do que as organizaes tradicionais. E quando, de um lado e de outro, se descrevia o sofrimento psquico, era no decorrer de um romance ou de um relato (Linhart, 1978), nunca num texto de an lise poltica ou sindical. Somente a questo do sofrimento fsico e as reivindicaes relativas aos acidentes de trabalho, ...s doenas profissionais e, de modo geral, ... sade do corpo foram assumidas pelas diversas organizaes polticas. Cabe ainda assinalar que na Frana, em particular, a questo da s ude no trabalho foi tratada muito mais paulatina e parcimoniosamente do que em outros pases europeus (Rebrioux, 1989) e at mesmo fora da Europa (Crespo-Merlo, 1996). Afora a sade do corpo, as preocupaes relativas ... sade mental, ao sofrimento psquico no trabalho, ao medo da alienao, ... crise do sentido do trabalho no s deixaram de ser analisadas e compreendidas, como tambm foram freq entemente rejeitadas e desqualificadas. Nos anos 70, tanto as organizaes sindicais majorit rias quanto as organizaes esquerdistas recusaram-se a levar em considerao as questes relativas ... subjetividade no trabalho. Antes de 1968, realizaramse alguns raros estudos sobre a psicopatologia do trabalho (Begoin, 1957; Le Guillant, 1985; Moscovitz, 1971), encomendados e patrocinados pela Central Geral dos Trabalhadores (CGT), mas depois daquele ano efetuaram-se pouqussimas pesquisas nesse campo. As pesquisas em psicopatologia do trabalho iniciadas nos anos 70 esbarraram ento na resistncia dos sindicatos e na condenao da esquerda. Tudo o que dizia respeito a subjetividade, sofrimento subjetivo, patologia mental, tratamentos psicoter picos suscitava desconfiana e at reprovao pblica, salvo em certos casos notrios (Hodebourg, 1993). Por que essa resistncia? Toda abordagem dos problemas psicolgicos por psiclogos, mdicos, psiquiatras e psicanalistas incorria num pecado capital: o de privilegiar a subjetividade individual, de supostamente levar a pr ticas individualizantes e de tolher a ao coletiva. A an lise do sofrimento psquico remetia ... subjetividade - mero reflexo fictcio e insignificante do subjetivismo e do idealismo. Tidas como antimaterialistas, tais preocupaes com a sade mental tolheriam a mobilizao coletiva e a conscincia de classe, favorecendo um "egocentrismo pequeno-burgus" de natureza essencialmente reacion ria. O esprito da 38Christophe Dejours declarao que denunciava "a psican lise como ideologia reacion ria" (Bonnaf et alii, 1949) dominava ainda as an lises das organizaes sindicais e esquerdistas nos anos 70. A meu ver, trata-se de um erro histrico que teve tremendas consequencias: No s as pesquisas no campo do sofrimento psquico no puderam desenvolver-se, como tambm as que chegaram a ensaiar-se foram emperradas, resultando numa ignor ncia que deixou tais organizaes carentes de idias e meios de ao num campo que, no entanto, se tornaria decisivo. Ao mesmo tempo, as pesquisas em psicologia do trabalho, em psicossociologia, sobre o estresse no trabalho, bem como em psicopatologia geral e em psican lise, foram avanando em amplos setores da sociedade (escolas, justia, hospitais, polcia, partidos polticos etc.) e em v rios meios profissionais, inclusive especialistas do comrcio, da gesto empresarial, da mdia, da comunicao e da administrao. Mas no no campo da medicina do trabalho nem nos sindicatos! Esse atraso de alguns, essa defasagem crescente em relao ...s preocupaes da populao, e essa sensibilizao crescente de outros (os tcnicos, os gerentes, os administradores e a intelligentsia) presidiram ao surgimento progressivo (e em ritmo constante) de novos mtodos: formao de gerentes por meio da din mica de grupo, da psicossociologia, de recursos audiovisuais etc. Desse amplo movimento articulado ... margem das organizaes trabalhistas, o resultado mais palp vel foi o surgimento, nos anos 80, do novo conceito de "recursos humanos". Ali onde os sindicatos no queriam se aventurar, patres e gerentes formulavam novas concepes e introduziam novos mtodos concernentes ... subjetividade e ao sentido do trabalho: cultura empresarial, projeto institucional, mobilizao organizacional etc., alargando drasticamente o fosso entre a capacidade de iniciativa de gerentes e patres, de um lado, e a capacidade de resistncia e de ao coletiva das organizaes sindicais, de outro. Inegavelmente, porm, o efeito mais terrvel dessa recalcitr ncia sindical contra a an lise da subjetividade e do sofrimento no trabalho foi que, ao mesmo tempo, tais organizaes infelizmente contriburam para a desqualificao do discurso sobre o sofrimento e, logo, para a tole39 A banalizao da inJuStI a social r ncia ao sofrimento subjetivo. Assim, a organizao da toler ncia ao sofrimento psquico, ... adversidade, em parte resultado da poltica das organizaes sindicais e esquerdistas, bem como dos partidos de esquerda. A est o paradoxo. Portanto, as preocupaes alegadas por essas organizaes no mais correspondiam ... vivncia das pessoas no trabalho, e isso desde o comeo dos anos 70. De sorte que, uma dcada depois, em plena escalada do desemprego, os assalariados j no se identificavam com as causas defendidas por suas organizaes. A dessindicalizao irresistvel prosseguiu at que a Frana se tornou o pas com o menor ndice de sindicalizados em toda a Europa. Em outras palavras, a fragilidade sindical estaria ligada, pelo menos em parte, a um erro de an lise no tocante ao sig-nificado dos eventos de maio de 1968. Tal fragilidade j existiria pois de modo latente antes da crise do emprego e da guinada socialista em favor do liberalismo econ"mico. A fragilidade sindical no seria a causa da toler ncia ... injustia que hoje presenciamos, mas a conseq ncia do desconhecimento e da falta de an lise do sofrimento subjetivo por parte das prprias organizaes sindicais, desde antes da crise do emprego. O silncio social sobre a injustia e a adversidade que possibilitou o triunfo do economicismo da era Mitterrand estaria ligado, em ltima an lise, ao descompasso histrico das organizaes sindicais com a questo da subjetividade e do sofrimento, o que provocou um enorme atraso em relao ...s teses do liberalismo econ"mico - deixando o campo livre aos adeptos dos conceitos de recursos humanos e cultura empresarial - e eventualmente uma sria dificuldade para formular um projeto alternativo ao economicismo de esquerda ou de direita. 2. Vergonha e inibio da ao coletiva A falta de reao coletiva diante da adversidade social e psicolgica causada hoje pelo desemprego foi portanto precedida por uma recusa deliberada de mobilizao coletiva em face do sofrimento causado pelo trabalho, sob pretexto de que esse sofrimento resultava da sensibilidade exacerbada, de que se mobilizar pelo sofrimento psquico era tomar o reflexo pela causa e levar ao impasse o movimento sindical. A indiferena pelo sofrimento psquico dos que trabalham abriu caminho portanto ... toler ncia social para com o sofrimento dos desem40 Christophe Dejours pregados. Mas isso apenas uma condio favor vel, e essa etapa de nossa histria no poderia explicar, por si s, a toler ncia crescente ao sofrimento e ... injustia. Resta ainda aprofundar a an lise da relao para com o trabalho, a qual, segundo as teses neoliberais, se tornou uma questo sem interesse. O erro de an lise das organizaes poltico-sindicais no tocante ... evoluo das mentalidades e das preocupaes com relao ao sofrimento no trabalho deixou o campo livre para as inovaes gerenciais e econ"micas. Os que especulavam, que concediam inusitados benefcios fiscais aos rendimentos financeiros, que favoreciam os rendimentos patrimoniais em detrimento dos rendimentos do trabalho, que organizavam uma redistribuio desigual das riquezas (que aumentaram consideravelmente no pas, ao mesmo tempo em que surgia uma nova pobreza), esses mesmos que geravam a adversidade social, o sofrimento e a injustia eram tambm os nicos a se preocuparem em forjar novas utopias sociais. Essas novas utopias, inspiradas pelos Estados Unidos e pelo Japo, sustentavam que a promessa de felicidade no estava mais na cultura, no ensino ou na poltica, mas no futuro das empresas. Proliferaram ento as "culturas empresariais", com novos mtodos de recrutamento e novas formas de gesto, sobretudo dos "recursos humanos". A empresa, ao mesmo tempo em que era o ponto de partida do sofrimento e da injustia (planos de demisses, "planos sociais"), acenava com a promessa de felicidade, de identidade e de realizao para os que soubessem adaptar-se a ela e contribuir substancialmente para seu sucesso e sua "excelncia". Hoje, afora seu objetivo principal - o lucro -, o que caracteriza uma empresa no mais sua produo, no mais o trabalho. O que a caracteriza sua organizao, sua gesto, seu gerenciamento. Prope-se assim um deslocamento qualitativamente essencial. O tema da organizao (da empresa) substitui-se ao tema do trabalho nas pr ticas discursivasdo neoliberalismo. Trata-se de uma verdadeira reviravolta cuja caracterstica principal no promover a direo e a gesto, que sempre ocuparam um lugar de destaque, e sim desqualificar as preocupaes com o trabalho, cuja I'centralidade" agora contestada tanto no plano econ"mico quanto nos planos social e psicolgico. No que concerne ao problema da centralidade do trabalho e de sua negao nos ltimos 15 anos, remetemo-nos a v rias fontes onde recentemente o debate foi retomado: Freyssenet (1994); De Bandt, De41 A banalizao da injustia social jours & Dubar (1995); Cours-Salies (1995); Kergoat (1994). Em suma, as teses neoliberais so as seguintes: No existe mais trabalho. Este se tornou artigo raro em nossa sociedade. As principais razes disso so o progresso tecnolgico, a automatizao, a robotizao etc. O trabalho no mais suscita problema cientfico, tornou-se te transparente, inteligvel, reproduzvel e formaliz vel, svel substituir progressivamente o homem por aut"matos. O diz respeito to-somente ... execuo. Os nicos problemas da empresa residem na concepo e na gesto. inteiramensendo postrabalho residuaisComo perdeu seu mistrio, o trabalho no mais se presta ... realizao do ego nem confere sentido ... vida dos homens e das mulheres da "sociedade ps-moderna". Convm, pois, procurar substitutos do trabalho como mediador da subjetividade, da identidade e do sentido (Gorz, 1993; e Meda, 1995). Essas trs teses podem ser contestadas: Por um lado, o trabalho no se tornou artigo raro. Enquanto se "enxugam os quadros", os que continuam a trabalhar o fazem cada vez mais intensamente, e a durao real de seu trabalho no p ra de aumentar; no s entre os gerentes, mas tambm entre os tcnicos, os empregados e todos os "executores", em particular os terceirizados. Por outro lado, uma parte importante do trabalho deslocada para os pases do Sul, o Extremo Oriente, por exemplo (Pottier, 1997), onde terrivelmente mal remunerado. O trabalho no diminui; ao contr rio, aumenta, mas muda de local geogr fico graas ... diviso internacional do trabalho e dos riscos. Por fim, uma parte do trabalho, evidentemente no mensur vel, deslocada no mais para o Sul e sim para o interior, pelo recurso ... terceirizao, ao trabalho prec rio, aos biscates, ao trabalho no remunerado (est gio em empresas, aprendizado, horas extras ... vontade etc.), ao trabalho ilegal (estabelecimentos clandestinos no setor de vestu rio, terceirizao em cascata na construo civil ou na manuteno de usinas nucleares, nas firmas de mudanas ou de limpeza etc.). 42 Christophe Dejours O trabalho no inteiramente inteligvel, formaliz vel e automatiz vel: uma vez difundido o slogan da "qualidade total", so cada vez mais numerosos os incidentes que comprometem a qualidade do tra-balho e a segurana das pessoas e das instalaes. cada vez mais difcil esconder a degradao das condies de higiene e os erros na administrao de cuidados mdicos. Nos ltimos anos, tornaram a aumentar os acidentes de trabalho fatais, notadamente na construo civil. A segurana dos trens comprometida pelo aumento dos acidentes ferrovi rios, a segurana das usinas nucleares posta em dvida. O trabalho continua sendo o nico mediador da realizao do ego no campo social, e no se v atualmente nenhum candidato capaz de substitu-lo (Rebrioux, 1993). O trabalho pode ser mediador da emancipao, mas, para os que tm um emprego, tambm continua a gerar sofrimentos, como mostraram as pesquisas em psicodin mica do trabalho nos ltimos 15 anos; no apenas sofrimentos j conhecidos, mas novos sofrimentos especificamente ligados ... nova gesto, sobretudo entre os gerentes, como veremos mais adiante. Quanto aos que sofrem por causa da intensificao do trabalho, por causa do aumento da carga de trabalho e da fadiga, ou ainda por causa da degradao progressiva das relaes de trabalho (arbitrariedade das decises, desconfiana, individualismo, concorrncia desleal entre agentes, arrivismo desenfreado etc.), estes encontram muitas dificuldades para reagir coletivamente. Numa situao de desemprego e injustia ligada ... excluso, os trabalhadores que tentam lutar por meio de greves se deparam com dois tipos de dificuldades que, mesmo sendo subjetivas, no deixam de ter conseq ncias importantes para a mobilizao coletiva e poltica: A inculpao pelos "outros", isto , o efeito subjetivo do juzo de desaprovao proferido pelos polticos, os intelectuais, os executivos, a mdia e at a maioria silenciosa, segundo os quais se trata de greves de "abastados" que, ali s, constituiriam uma ameaa ... perenidade das empresas (supostamente to prec rias, mesmo quando no o caso). Em 1988/89, por exemplo, as greves organizadas por ferrovi 43 A banalizao da Injustia social rios e professores foram amplamente denunciadas, inclusive pela esquerda, tendo ali s fracassado, em grande parte, por esse motivo. As greves de 1995 e as que se seguiram s concederam um lugar discreto ... an lise do sofrimento no trabalho, pois hesita-se em generalizar o debate de um tema especfico. Somente se enfatizam o abandono dos valores ligados ao servio pblico e a denncia do desemprego, ao passo que o debate sobre o sofrimento no trabalho permanece ainda embrion rio. A vergonha espont nea de protestar quando outros so muito mais desfavorecidos: como se hoje as relaes de dominao e injustia social s afetassem os desempregados e os pobres, deixando inclumes os que, por terem emprego e recursos, so privilegiados. Quando mencionamos a situao dos que sofrem por causa do trabalho, provocamos quase sempre uma reao de recuo ou de indignao, pois damos assim a impresso de que somos insensveis ... sorte supostamente pior dos que sofrem por causa da falta de trabalho.O espao dedicado ... discusso sobre o sofrimento no trabalho tornou-se to restrito que, nos ltimos anos, produziram-se situaes dram ticas como jamais se viu anteriormente: tentativas de suicdio ou suicdios consumados, no local de trabalho, que atestam provavelmente o impasse psquico criado pela falta de interlocutor que d ateno ...quele que sofre e pelo mutismo generalizado. Numa empresa industrial onde fomos chamados a prestar consulta, um tcnico encontrado ...s primeiras horas do dia enforcado em seu local de trabalho. O pessoal - os colegas, os companheiros - naturalmente est bastante abalado. O mdico do trabalho, vtima tambm de v rias tentativas de intimidao por parte da direo para dissuadi-lo de mostrar-se excessivamente zeloso em sua atividade mdica junto aos empregados, consegue obter, em nome do Comit de Higiene, Segurana e Condies de Trabalho (HSTC), um pedido de inqurito de psicopatologia do trabalho sobre as causas e conseq ncias do suicdio do tcnico. Tm lugar na empresa v rias reunies com a equipe de especialistas, na presena dos atores sociais. Mas a presso sobre o emprego exercida h v rios meses pela direo to forte que os sindicatos fazem da questo do trabalho sua principal preocupao. Nesse contexto, a vergonha de promover um debate sobre o sofrimento no trabalho e de reclamar verbas para financiar o inqurito acaba por gerar tergiversaes e hesitaes, at que o pedido apresentado inicialmente pelos sindicatos prete44 rido por falta de vontade e convico. Assim, a vergonha de revelar o so frimento no trabalho, diante do sofrimento dos que correm o risco de de misso, termina por impedir que um suicdio seja analisado, explicado e discutido. A vergonha de queixar-se cria um terrvel precedente: algum pode agora suicidar-se nas dependncias dessa f brica sem que isso cause espcie. Terrvel precedente de banalizao de um ato desesperado, conquanto espetacular e eloq ente, manifestamente dirigido ... coletividade do trabalho e ... empresa. Assim, a morte de um homem, de um colega de empresa, pode fazer parte da situao de trabalho e ser relegada ... condio de incidente comum. Permanecer assim impassvel em seu posto de trabalho acaso significa que o suicdio agora faz parte do cen rio? Nesses ltimos anos, outros casos igualmente graves e por vezes ainda mais espetaculares deram ensejo a pedidos de inqurito que terminaram todos de maneira semelhante ao que acabamos de relatar: silncio e mutismo dentro em pouco resultam em sigilo e, por fim, amnsia forada. Assim, ... primeira fase do processo de construo da toler ncia ao sofrimento, representada pela recusa sindical de levar em considerao a subjetividade, segue-se uma segunda fase: a da vergonha de tornar pblico o sofrimento gerado pelos novos mtodos de gesto do pessoal. Certamente algum poder alegar que me ocupo aqui do sofrimento dos que trabalham, e no do sofrimento dos desempregados ou marginalizados, o qual no entanto o ponto de partida da discusso sobre a toler ncia ao sofrimento na sociedade contempor nea. Meu ponto de vista se baseia no que a psicopatologia nos ensina a respeito da percepo do sofrimento na terceira pessoa (isto , o sofrimento infligido a outrem por um terceiro). A percepo do sofrimento alheio no diz respeito apenas a um processo cognitivo, de resto bastante complexo, em sua construo psquica e social (Pharo, 1996). Sempre implica, tambm, uma participao p tica5 do sujeito que percebe. Perceber o sofrimento alheio provoca uma experincia sensvel e uma emoo a partir das quais se associam pensamentos cujo contedo depende da histria particular do sujeito que percebe: culpa, agressividade, prazer etc. A percepo do sofrimento alheio provoca, pois, um processoafetivo. Por sua vez, esse processo afetivo parece indispens vel ... concre5 O termo "p tico" tornar a ser empregado v rias vezes neste texto ... guis a de qualificativo, remetendo ao sofrer e ao sofrimento, ao padecer e ... paixo, com suas c onotaes de passar por, sentir, experimentar, suportar, ag entar situaes que gerem dor ou pr azer. 45 A banalizao da injustia social tizao da percepo pela tomada de conscincia. Em outras palavras, a estabilizao mnsica da percepo necess ria ao exerccio do julgamento (a substituio do sistema percepo-conscincia pelo sistema prconsciente, na teoria psicanaltica) depende da reao defensiva do sujeito diante de sua emoo: rejeio, negao ou recalque. No caso de negao ou rejeio, o sujeito no memoriza a percepo do sofrimento alheio - perde a conscincia dele. Mas vimos que o sujeito que sofre com sua relao para com o trabalho freq entemente levado, nas condies atuais, a lutar contra a expresso pblica de seu prprio sofrimento. Afetivamente, ele pode ento assumir uma postura de indisponibilidade e de intoler ncia para com a emoo que nele provoca a percepo do sofrimento alheio. 6 Assim, a intoler ncia afetiva para com a prpria emoo reacional acaba levando o sujeito a abstrair-se do sofrimento alheio por uma atitude de indiferena logo, de intoler ncia para com o que provoca seu sofrimento. Em outras palavras, a conscincia do - ou a insensibilidade ao - sofrimento dos desempregados depende inevitavelmente da relao do sujeito para com seu prprio sofrimento. Eis por que a an lise da toler ncia ao sofrimento do desempregado e ... injustia por ele sofrida passa pela elucidao do sofrimento no trabalho. Ou, dito de outra maneira, a impossibilidade de exprimir e elaborar o sofrimento no trabalho constitui importante obst culo ao reconhecimento do sofrimento dos que esto sem emprego. 3. Surgimento do medo e submisso penetrando mais fundo no mundo do trabalho que podemos prosseguir a an lise da toler ncia social ao sofrimento e ... injustia. De fato, na terceira etapa do processo opera-se uma nova clivagem, no mais entre sofrimento e indignao, mas entre duas populaes: os que trabalham e os que so vtimas do desemprego e da injustia. As demisses no fizeram apenas aumentar a carga de trabalho dos que continuam empregados. Pesquisa recente na indstria automobi6 "Esquecer" o suicdio de um colega de trabalho, como vimos anteriormente, pr essupe acionar uma defesa (negao) que funciona como um anestsico contra a prpria emoo, mas supe tambm "vacinar-se" contra a percepo do sofrimento alheio, para no correr o risco de suspender a amnsia e ser tomado de angstia. 46 Christophe Dejours lstica mostra que o sofrimento dos que trabalham assume formas novas e inquietantes. Trata-se de pesquisa feita numa montadora em 1994, 20 anos depois da primeira pesquisa l realizada. Segundo os engenheirosde mtodos, a organizao do trabalho nessa f brica mudou radicalmente em relao ao que era h 20 anos, desde que se introduziram mtodos inspirados no modelo japons, em particular o just in time. Constata-se com grande surpresa que, no nvel dos "operadores",7 a principal diferena em relao aos antigos oper rios especializados diz respeito ... sua denominao, nitidamente menos importante do que antes. Nota-se tambm o menor atravancamento dos recintos, tanto pelos compartimentos separados quanto pelo nmero de supervisores (poucos reguladores e contramestres, nenhum cronometrista). Mas o trabalho, enquanto atividade (no sentido ergon"mico do trabalho), no muito diferente, qualitativamente, do que era h 20 anos. A an lise mais detalhada da realidade do oper rio mostra que os tempos ociosos desapareceram, que o "ndice de empenho" (isto , a parte do tempo que ele passa no trabalho em cadeia e que dedicada ...s tarefas diretas de fabricao, montagem ou produo - descontados os tempos de locomoo, aprovisionamento, pausa ou descanso) muito mais penoso do que no passado, que no existe atualmente nenhum meio de "remanchar", nenhuma possibilidade, ainda que transitria, de se livrar individual ou coletivamente das presses da organizao. A principal preocupao, do ponto de vista subjetivo, a resistncia, ou seja, a capacidade de ag entar firme o tempo todo, sem relaxar, sem se importar em machucar as mos (certos oper rios enrolam um pedao de pano nos dedos para no sangrar), sem se ferir e sem adoecer. As presses e o ritmo do trabalho so , a bem dizer, "infernais". Mas ningum reclama mais! assim mes mo. O sofrimento moral e fsico intenso, sobretudo entre os jovens, que so minoria na f brica (onde os operadores tm em mdia mais de 40 anos). De fato, estes ltimos passam por uma terrvel seleo: todo ano, mais de 15 mil pessoas se apresentam espontaneamente ... porta da f brica para pedir emprego. Segundo a diretoria de recursos humanos, 7 Este o termo que tende a se impor, nos ltimos anos, para designar os oper r ios. Tratase originariamente de um termo empregado pelos ergonomistas para denominar t odos os que trabalham, sem considerao de status social, profissional ou hier rquico. D epois passou a ser usado em certas indstrias para substituir o termo "tcnico", onde era considerado mais lisonjeiro que este ltimo. Seguindo assim a tendncia habitual, o ter mo hoje usado correntemente para designar os oper rios, que foram sucessivamente bri ndados com os ttulos de trabalhador manual, depois oper rio especializado e agora op erador. 47 A banalizao da injustia social todos os candidatos so examinados, embora no final s se contratem de 150 a 300 jovens. A seleo, naturalmente, pressupe mltiplos e variados testes, nos quais se procura sondar a "motivao", que deve ser intensa, inabal vel e associada ao gosto pelo esforo e a demonstraes de boa vontade e disciplina, para que um candidato seja aprovado.8 Ele passa ento por um aprendizado, durante o qual lhe dizem que foi escolhido por estar entre os melhores e que ele agora considerado um eleito, que faz parte da elite e que dele se espera um desempenho ... altura de sua capacidade e de suas obrigaes morais para com a empresa que nele depositou sua confiana e que lhe concedeu o privilgio de o acolher. Se ele se aplicar realmente, a empresa poder garantir-lhe uma bela carreira. Mas quando se contratam jovens, obviamente para preparar a substituio dos oper rios veteranos que trabalham na linha de montagem. Desejosos de aprender e de mostrar seu empenho, os jovens aceitam todas as tarefas polivalentes, sem regatear. Passado algum tempo, porm, eles compreendem: no h outro futuro para eles que no a linha de montagem. E se fraquejarem, sero despedidos. Ento, progressivamente, seu ponto de vista evolui. O trabalho torna-se pouco a pouco um infortnio. Aps a decepo vem a macabra impresso de que o trabalho e a empresa esto lhes tirando sua subst ncia vital, seu el e mesmo seu sangue: de que esto sendo "consumidos", "espoliados", "sugados". Pois, como lhes disseram no est gio aps a contratao: "Vocs so o sangue novo da empresa". "A empresa necessita de juventude e de sangue novo." E outras tantas met foras que revolvem cruelmente em seu jovem esprito de 20 anos. E se eles guardam no seu ntimo, sem nisso acreditar verdadeiramente, a secreta esperana de um dia deixarem a linha de montagem para serem promovidos a chefe de unidade elementar de trabalho (UET), porque essa a condio sine qua non para suportar tarefas estafantes executadas com vertiginosa rapidez. De resto, vem com respeito e at admirao os veteranos: como fazem eles para ag entar, para resistir a essa terrvel organizao do trabalho? Onde vo buscar foras, depois de tantos anos, para persistir? Na verdade, muitos desses jovens oper rios, mesmo motivados, decidi8 Hoje em dia utilizam-se outros meios igualmente sofisticados para efetuar a seleo aps a observao psicolgica dos trabalhadores em atividade, em nome da segurana das pessoas e das instalaes, e que implicam a participao de psiclogos, mdicos do traba lho e psiquiatras. 48 Christophe Dejours dos e entusi sticos, no conseguem suportar o ritmo de trabalho. E o ndice de rotatividade (isto , o nmero de dispensas e substituies em relao ... populao de trabalhadores jovens) permanece excepcionalmente elevado, segundo a diretoria de recursos humanos. Esses oper rios trabalham cronicamente em regime de insuficincia de pessoal. Todas as manhs, o chefe de UET tem que retomar as discusses e negociaes com os colegas de outras unidades para pechinchar um ou mais operadores e tentar atenuar os efeitos da insuficincia de pessoal na seo da linha de montagem pela qual respons vel. O "autocontrole" ... japonesa constitui um acrscimo de trabalho e um sistema diablico de dominao auto-administrado, o qual supera em muito os desempenhos disciplinares que se podiam obter pelos antigos meios convencionais de controle. No cabe repetir aqui todas as descries da vivncia subjetiva dos operadores. Basta-nos um apanhado para tomar p na situao. H duas dcadas, pesquisadores de fora dessa empresa automobilstica conduziram v rias sondagens sobre a produo, a produtividade, a gesto, a qualidade etc. Mas no se fez nenhuma pesquisa sobre a vivncia subjetiva da condio de "oper rio". Nossa pesquisa nos leva pois a uma situao indita. Entre a situao descrita pelas outras pesquisas e a nossa h to pouca semelhana que se tem a impresso de que nossos colegas pesquisadores e ns prprios no tivemos acesso ... mesma f brica, nem ...s mesmas dependncias, nem ... mesma empresa, nem aos mesmos setores de produo, nem aos mesmos oper rios. Os pesquisadores mencionados e os engenheiros de mtodos em ati-vidade descrevem a situao atual como se fosse um mundo radicalmente novo. Para ns, ao contr rio, existe uma ineg vel semelhana entre ontem e hoje, com um ntido agravamento, todavia, do sofrimento subjetivo de operadores e chefes de UET (que sucederam aos antigos contramestres). Tal paradoxo nos levou a propor a adoo de um novo conceito: o de defasagem entre "descrio (no sentido de Anscombe, 1979) gerencial do trabalho" (apresentada pelos quadros superiores) e "descrio subjetiva do trabalho" (Llory & Llory, 1996). A "descrio subjetiva" que se ope ... "descrio gerencial", uma descrio do trabalho que reconstruda a partir do relato de operadores e chefes de UET. Relato das dificuldades com que uns e outros se defrontam no exerccio de sua atividade; relato, tambm, das maneiras de se "arranjar" com essas dificuldades, de super -las ou contorn -las, inclusive de empurr -las para os outros. Descobre-se ento que o trabalho no se apresenta absolutamente como o desejariam os tericos, os engenheiros de mtodos ou os gerentes. Os imprevistos so inmeros, a or49 A banalizao da injustia social ganizao do trabalho est constantemente sujeita a modificaes e improvisaes, o que deixa operadores e chefes de unidade em situaes caticas, nas quais impossvel prever o que vai acontecer. Tal "descrio" do trabalho subjetiva porquanto construda a partir da elaborao da vivncia dos operadores, omitindo qualquer referncia ... organizao formal. Subjetiva no implica, portanto, que o contedo dessa d