A Batalha de Toro - repositorio-aberto.up.pt · Marcelo Augusto Flores Reis da Encarnação A...
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Universidade do Porto
Faculdade de Letras
Departamento de História
Curso de Doutoramento em História
A Batalha de Toro
Volume I
Dissertação de Doutoramento em História apresentada à Faculdade de Letras da Universidade
do Porto
Orientação: Prof. Doutor Luís Miguel Duarte
Co-orientação: Prof. Doutora Maria Isabel del Val Valdivieso (U. Valladolid)
Marcelo Augusto Flores Reis da Encarnação
Porto
Novembro / 2011
« Vijimos portugal, castella
quatro vezes adjuntados,
por casamentos liados,
principe natural della
q herdaua todos reynados,
todos vimos fallescer,
em breue tempo morrer,
e nenhû durou tres annos,
portugueses, castelhanos
não hos quer deos juntos ver »
Garcia de Resende, Crónica de D. João II e miscelânea, p. 341
« Talvez que o leitor ache estas coisas mínimas;
pois creia que não há minucias exageradas, quando
se trata de restabelecer a verdade em assuntos históricos »
Anselmo Braancamp Freire, Crítica e História, p. 179
« La ynmensa turbacion
Deste reyno castellano
Faze pesada mi mano
Y torpe mi descricion:
Que las oras y candelas
Que se gastaban leyendo,
Agora gasto poniendo
Rondas, escuchas y velas »
Gómez Manrique, Cancionero, I, p. 131
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AGRADECIMENTOS
Este humilde trabalho não teria sido possível sem o apoio incondicional e a preocupação
constante da minha família, com quem partilhei não só as alegrias dos progressos, como
também as frustrações dos becos sem saída.
Agradeço também ao meu orientador, Professor Doutor Luís Miguel Duarte, pela sua
amizade, estima e profissionalismo, sem o qual este trabalho não teria chegado a bom
porto.
Uma palavra de agradecimento também à minha co-orientadora, Professora Doutora
Maria Isabel del Val Valdivieso, pelas suas sugestões, ideias e resposta sempre pronta às
minhas solicitações.
Last but not least, não posso deixar de agradecer ao meu querido amigo de sempre,
Tiago Faria, medievalista, com quem troquei ideias e de quem recebi conselhos
preciosos.
Marcelo Augusto Flores Reis da Encarnação
A Batalha de Toro (dissertação de Doutoramento apresentada à Universidade do Porto)
Palavras-chave: Portugal, Castela, século XV, Afonso V, Reis Católicos, Enrique IV,
Joana, batalha, Toro.
Sumário: esta dissertação pretende estudar a entrada do exército de Afonso V em
Castela em 1475, observando dois pontos de vista – um político e outro militar,
utilizando uma metodologia comparada entre fontes portuguesas, castelhanas e
aragonesas. Procurou-se analisar a complexidade dos diferentes interesses e das distintas
visões da realidade, em particular a partir das fontes cronísticas. Assim, à morte de
Enrique IV, em 12 de Dezembro de 1474, Afonso V, crendo ser o legítimo rei de
Castela, por responder ao último desejo do rei defunto e por desposar a sobrinha Juana,
reuniu apoios em Portugal, assegurou forças em Castela e pensou que com elas seria
aceite como rei de Castela. A campanha, que inicialmente conheceu algum sucesso com
o cerco falhado que Fernando I de Castela lançou ao Africano, em Toro, com as
conquistas de Toro e Zamora e com a batalha de Baltanás, foi pendendo para o lado dos
Reis Católicos a partir do momento em que conseguem assegurar mais apoios e,
especialmente, a partir do ponto de não retorno – a batalha de Toro, a 1 de Março de
1476.
Ao longo destes quatro anos de guerra não houve somente uma contenda política entre
dois reinos. Travou-se um jogo de forças entre a nobreza e a monarquia castelhanas,
comum a outras monarquias tardo-medievais.
A falta de apoios internacionais e a transição da opinião do príncipe D. João no sentido
de procurar o entendimento contribuíram para a procura da paz, alcançada em 1479.
Keywords: Portugal, Castile, 15th century, Alphonse V, Catholic Kings, Enrique IV,
Juana, battle, Toro.
Abstract: this dissertation aims to study how King Alphonse V’s army entered Castile
in 1475. This fact will be analyzed from both a political and military point of view and
comparing sources from Portugal, Castile and Aragon. In this sense the work will focus
on the complexity of different perceptions of the reality of the time, particularly from
chronicles of that period. When Enrique IV died on 12th December 1474, Alphonse V
believed himself to be a legitimate heir to the throne because he thought this was the late
king’s desire. Furthermore, he married Juana, who was Enrique’s daughter and thus
gathered support in Portugal and Castile. Initially this military campaign was successful
when Ferdinand I of Castile besieged Toro and failed to expel Alphonse V; when the
cities of Toro and Zamora declared their commitment to Alphonse and Juana’s cause; or
when Alphonse V, the African won the battle of Baltanás. However, as the Catholic
Kings ensured more support to their cause, the Portuguese cause was walking towards its
demise, which reached the point of no return after the battle of Toro, on 1st March 1476.
During a period of four years there was not only a war, there was also a political conflict
between the two kingdoms. There was a “tug of war” between the nobility and
monarchy in Castile, which was common in late medieval monarchies.
The lack of international help and the change of opinion of Prince John, in order to find
a solution for this conflict, contributed to a search for peace, which was only established
in 1479.
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ABREVIATURAS:
CDVA – Crónica de D. Afonso V, de Rui de Pina
CPDJ – Crónica do príncipe D. João, de Damião de Góis
CDJII – Crónica de D. João II, de Garcia de Resende
CEIV-DEC – Crónica de Enrique IV, de Diego Enríquez del Castillo
CEIV-LGC – Crónica de Enrique IV, de Lourenço Galíndez Carvajal
CEIV-AP – Crónica de Enrique IV, de Afonso de Palencia
CRC-FP – Crónica de los Reyes Católicos, de Fernando del Pulgar
CVC-FP – Claros varones de Castilla, de Fernando del Pulgar
CRC-DV - Crónica de los Reyes Católicos, de Mosem Diego de Valera
MRC-AB – Memorias del reinado de los Reyes Católicos, de Andrés Bernáldez
VHRC-LMS – Vida y hechos de los Reyes Católicos, de Lúcio Marineo Sículo
ACA-JZ – Anales de la corona de Aragón, de Jerónimo Zurita
CIRC – Crónica incompleta de los Reyes Católicos (1469-1476)
CV – Cronicón de Valladolid: 1333-1539
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INTRODUÇÃO
A presente dissertação de doutoramento, por sugestão do Doutor João Gouveia
Monteiro e do Doutor Luís Miguel Duarte, visa estudar a campanha militar de 1475-
1479, a qual veio transformar as boas relações entre Portugal e Castela em clima de
guerra. Além do mais, como terei a oportunidade de explicar no “Estado da arte”, mais à
frente neste trabalho, considero que há um nicho temporal que é frequentemente
relegado para segundo plano pelos investigadores que se dedicam aos temas bélicos.
Como demonstrarei, historiadores de renome e que trabalham o tema da guerra, em
estudos próprios, ou seja, não contando os trabalhos de carácter mais abrangente, ou
terminam em 1450, ou então dão importância às lutas travadas pelos Reis Católicos mas
já a partir de finais da década de oitenta de 1400, com as campanhas contra Granada. Se
no primeiro caso posso identificar nomes como Francisco García Fitz, João Gouveia
Monteiro, Miguel Gomes Martins, para o estudo de um período mais recente saltam à
vista os vários trabalhos de Miguel Ángel Ladero Quesada. É, portanto, esse vazio que
tenciono tratar neste trabalho.
Ainda assim, não obstante a batalha de Toro ser relativamente conhecida, senti
que poderia aprofundar o seu conhecimento, por via de um estudo comparativo em que
utilizasse todas as fontes coevas e pertinentes para a temática visada. Assim, utilizei
com um elenco de mais de uma vintena de fontes cronísticas, entre portuguesas,
castelhanas e aragonesas. É certo que ainda poderiam ter sido consultadas outras mais
mas por constrangimentos temporais deste trabalho, tal não foi possível. Num estudo
mais abrangente e mais completo, teria sido útil para perceber a actuação política de
Portugal e Castela integrar a questão africana e ver como as navegações influiram na
política internacional do século XV, temáticas que espero desenvolver em trabalhos
futuros, uma vez que há ainda algumas portas que se podem abrir. Teria de igual modo
sido desejável integrar melhor o panorama militar contido neste trabalho num cenário
global, introduzindo a componente bélica naval, bem como os conflitos militares que D.
Fernando travou com os franceses, podendo mesmo comparar a campanha castelhano-
francesa com a luso-castelhana, para daí poder retirar conclusões. Pelo exposto, também
sem resposta ficam temas que me são caros: como era travada a guerra no mar? Como
influenciava a guerra naval a guerra terrestre e vice-versa? Que recursos movimentava?
Que dividendos retirava? Que conhecimentos, entre teóricos e práticos preenchiam os
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espíritos dos capitães? E da soldadesca? Que tácticas eram utilizadas? E em que
circunstâncias? Como apoiava a guerra naval a guerra terrestre? Como se utilizavam
armas de pólvora (pessoais ou artilharia) dentro de um navio? São tudo questões válidas
e que gostaria de ter abordado, mas que os prazos actuais para concluir um
doutoramento tornaram incomportáveis neste trabalho, até porque nunca tive
possibilidade de me dedicar à investigação a tempo inteiro. Aproveito para esclarecer
que, durante os três anos de duração do Curso de Doutoramento em História da
Universidade do Porto, no âmbito do qual esta dissertação foi elaborada, trabalhei
sempre como professor de história no ensino básico e secundário. Com isto não
pretendo de modo algum desculpar as omissões e os erros que este trabalho certamente
contém, mas sim explicar quais foram as suas circunstâncias de produção. Ficarão,
como disse, estas interrogações em aberto para uma investigação futura. Igualmente
para trabalhos vindouros remeto a elaboração de mais mapas, tais como apresentar os
percursos comparados de D. Isabel, D. Fernando e D. Afonso V; ou os territórios
castelhanos e as suas esferas de influência, por exemplo. Estes mapas, por limitações
temporais, não fazem parte deste trabalho, tal como inicialmente pretendia.
Embora a maior parte da acção se passe no reinado de D. Afonso V (de 1448,
data em que começa a reinar de facto, até 1481), no caso castelhano foram revisitados
vários monarcas: Enrique IV (1454-1474), Afonso XII (1465-1468), Isabel, a Católica
(1474-1504), casada com Fernando V de Castela, cujo reinado termina com a morte da
mulher, embora tenha regido até à sua morte, em 1516, por incapacidade da sua filha
Juana. A sobreposição de datas no reino vizinho explica-se pelo golpe de estado levado
a cabo pelos Grandes castelhanos, depondo o rei legítimo e elevando à condição de rei o
seu meio-irmão – Afonso, o que seria uma maneira de satisfazer os seus interesses
económico-políticos. Não puderam ser deixados de parte, pela importância na cena
política internacional, Luís XI de França (1461-1483) e Juan II de Aragão (1458-1479).
Desta forma, embora tenha querido avaliar principalmente a guerra de 1475-1480 – e
note-se que guerra é uma designação demasiado genérica e que será precisada ao longo
deste trabalho. De acordo com as suas fases, não me cingi somente a esse período,
começando a contextualização a partir do reinado de Enrique IV de Castela.
A escolha do tema prende-se com uma certa continuidade que vem já desde a
dissertação de mestrado, na qual estudei a guerra de um ponto de vista local, nos
reinados fernandido (1367-1383) e joanino (1385-1433). Assim, continuando com os
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temas militar e político, pelo corte que representa nas boas relações entre Portugal e
Castela que vinham desde meados do reinado de D. João I; e pelas razões expostas
anteriormente, estavam reunidas as condições para avançar para um estudo que se
adivinhava difícil de conciliar com a minha actividade profissional ligada à docência.
Porém, mesmo assim, foi possível desenvolver algumas actividades no âmbito deste
programa de doutoramento, entre as quais saliento a visita a instituições estrangeiras,
como é o caso da Universidade de Salamanca, bem como uma comunicação proferida
em Cáceres, ficando agendadas algumas outras, na Escócia e na Inglaterra, por motivos
profissionais.
Decidi organizar o trabalho em duas partes: uma essencialmente política e outra
militar, norteadas pela constante contraposição das fontes, de forma a recriar um nexo
condutor isento de agendas. A primeira parte está dividida em três capítulos: “O Legado
Godo”, no qual eu faço uma apreciação de como a cultura hispano-goda influenciou o
pensamento político baixo-medieval; “Crónicas e Cronistas”, no qual é traçada uma
contextualização das principais fontes que informaram este trabalho; e o
“Desenvolvimento Político”, que se encontra dividido em seis subcapítulos e no qual
avalio as relações políticas principalmente entre Portugal e Castela, ao longo da segunda
metade do século XV. A segunda parte do trabalho tem dois capítulos principais, nos
quais me centro em questões orientadas para uma vertente militar, desde que a
campanha militar portuguesa começou a ser preparada, até ao estabelecimento de boas
relações novamente, nos últimos decénios do século XV.
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1. “ESTADO DA ARTE”
Aparentemente bem conhecida, a batalha de Toro e todas as circunstâncias que a
ela levaram, nomeadamente a questão da guerra civil na vizinha Castela, não foi ainda
estudada de uma forma estrutural nem comparativa. Senão vejamos: temos uma
primeira produção acerca da mesma, sob forma de monografia, por parte de Sousa
VITERBO, no fim do séc. XIX, a qual se estrutura à volta de personalidades notáveis
durante o conflito de 1475-1479, e que se baseia em documentos provenientes da
chancelaria de D. Afonso V e D. João II. Não é, portanto, o habitual estudo cronológico,
mas não deixa de ser utilíssimo para a identificação de algumas pessoas e mercês que
lhes foram concedidas. Já na segunda metade do século XX, surgirão alguns estudos
pontuais sobre a temática. Humberto BAQUERO MORENO tencionava estudar a fundo
esta questão, tal como o fez para a batalha de Alfarrobeira, mas da sua pena emanaram
somente alguns estudos sob a forma de artigos que, embora muito ajudem à
compreensão deste assunto, são secções, partes de um todo ainda inexistente, sendo dos
anos 80 do século XX. Referente aos aspectos puramente militares mas numa
perspectiva mais actual temos o capítulo de Luís Miguel DUARTE na Nova História
Militar de Portugal (2003).
Se os autores anteriores nos dão uma visão mais militar, Joaquim Veríssimo
SERRÃO vem trazer também alguma luz ao assunto ao estudar as relações luso-
francesas medievais (1975), estando esta monografia mais orientada para as relações
político-económicas. Porém, fica bem patente no seu estudo a esperança que Afonso V
depositava no auxílio militar de Luís XI para a operação em Castela ser bem sucedida. É
em Joel SERRÃO (1998), José MATTOSO (1993), José MARQUES (1994) e Oliveira
MARQUES (1998) que vamos encontrar um enquadramento político para o cenário que
me proponho estudar. São obras de referência. Julieta ARAÚJO estudou na sua tese de
doutoramento1, e para o lapso temporal compreendido entre 1431-1475, as relações
políticas entre Portugal e Castela. O seu trabalho carece, por isso, de uma análise
político-militar de fundo à questão da guerra da sucessão em Castela, passando pela
batalha de Toro e terminando na pacificação e assinatura do tratado das Alcáçovas-
1 A tese é de 2003, embora tenha sido recentemente publicada com outro título: Portugal e Castela na
Idade Média, Lisboa: Edições Colibri, 2009.
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Toledo em 1480, embora o mesmo denote já outras preocupações, mormente a nível da
expansão para o novo mundo.
Se ARAÚJO se situa no período anterior ao que pretendo estudar, já David
MARTELO se situa no imediatamente a seguir. Com efeito, MARTELO (2005) conduz-
nos diacronicamente desde a paz joanina até desembocar na União Ibérica (1431-1580),
passando em revista, de forma muito sumária, os acontecimentos ocorridos em solo
Ibérico no último quartel do século XV.
No que respeita ao aspecto linhagístico, Margarida GARCEZ (2004) escreve um
pequeno artigo, onde dá continuação a um trabalho de BAQUERO MORENO (1988),
no qual discorre sobre linhagens de origem portuguesa refugiadas em Castela e cujas
segunda e terceira gerações não só estão economicamente bem implantadas e detêm um
poderio político, militar e económico assinalável, como também numa primeira fase se
dispõem a ajudar o monarca português.
Manuela MENDONÇA (1991), Saul GOMES (2006), Luís Adão da FONSECA
(2006) e Isabel Vaz FREITAS e Humberto BAQUERO MORENO (2006) completam o
panorama português, com estudos biográficos, analisando para isso os dois monarcas
portugueses envolvidos no conflito: D. Afonso V e D. João II.
Do outro lado da fronteira encontramos o assunto muito melhor estudado,
nomeadamente por Luis SUÁREZ FERNÁNDEZ e por Ramon MENÉNDEZ PIDAL
(1966). Porém, as suas abordagens naturalmente pendem mais para uma aproximação
centrada em Castela e são, uma vez mais e à semelhança das suas congéneres
portuguesas, norteadas por um carácter mais político. Começam nos anos cinquenta do
séc. XX com o professor Luis Suárez, o qual se dedicou amplamente à história política
dos Reis Católicos2. Títulos como Nobleza y monarquía (1959); Los Trastámaras de
Castilla y Aragón en el siglo XV (1964), Los Trastámaras y los Reyes Católicos (1985),
Los Reyes Católicos – la conquista del trono (1989), Fundamentos de la monarquía
(1989), etc. Nos anos Sessenta, Tarsicio de AZCONA edita a sua Isabel la Católica –
estudio crítico de su vida y su reinado, a qual vem a conhecer uma segunda edição
2 A obra deste especialista em história política é demasiado extensa para ser toda enunciada. Ficam, assim,
as obras de incontornável referência.Mais recentemente, o professor Luis Suárez deu à estampa três obras
baseadas nos seus trabalhos anteriores: Isabel I, Reina (2000), Enrique IV de Castilla (2001) e Fernando
el Católico (2004). Tanto Suárez como Menéndez Pidal deram um novo fôlego à investigação deste
período, tendo hispanistas americanos, ingleses e franceses continuado essa linha de investigação como
W. D. PHILLIPS, Angus MACKAY e Joseph PEREZ, embora com enfoque e metodologia diferentes face
a Luis Suárez.
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aumentada e actualizada em 1993, nela se foca a vida e o reinado de Isabel, da política à
religião, passando pela guerra e pela cultura. Nas décadas de Setenta e Oitenta, Maria
Isabel del VAL VALDIVIESO (1974) centrou as suas atenções na figura de Isabel,
enquanto princesa. Juan TORRES FONTES estudou a figura do príncipe D. Afonso.
Miguel Ángel LADERO QUESADA divergiu um pouco da temática política e ocupou-
se da fazenda real de Castela no século XV. Outro estudo clássico de 1929 (mas que
conhece a 2ª edição em 1993) é o de J. FERNÁNDEZ DOMÍNGUEZ, que abordou a
questão das fortalezas de Zamora, Toro e Castronuño, pontos-chave no domínio
afonsino do território castelhano no decorrer da guerra.
No final da década de oitenta também José Luís del PINO GARCÍA se posiciona
cronologicamente imediatamente antes da invasão portuguesa (1475), estudando para
isso a Extremadura espanhola. Paz ROMERO PORTILLA é uma das autoras que se têm
debruçado sobre as relações dos dois reinos peninsulares em questão (1999, 2004, etc.).
Porém, é a partir da década de Noventa que têm proliferado os estudos sobre o séc. XV
castelhano. Também prova disso são as monografias sobre Juan II de Pedro Andrés
PORRAS ARBOLEDAS (1995) e de Francisco de Paula CAÑAS GALVEZ (2007,
2010), dedicando-se este último a um estudo prosopográfico, da chancelaria e dos
itinerários do monarca, ligando-o à sua acção governativa e relação com o reino, em
situações políticas, religiosas, militares, festivas, etc., salientando a intensa itinerância
da corte, embora num território relativamente restrito; sobre o condestável Álvaro de
Luna, com trabalhos de Isabel Pastor BODMER (1992); sobre Enrique IV, com
contribuições de Jose Manuel CALDERON ORTEGA e Rogelio PÉREZ-
BUSTAMENTE (1998) e Jose Luis MARTÍN (2003), o qual, partindo de várias fontes
narrativas que oferecem visões opostas da realidade, cria a história paralela e
implicitamente comparativa do rei e da sua nobreza, e cujo resultado é um monarca
melhor conceituado do que seria de supor, demonstrando que o problema da sucessão,
embora muito grave, estava longe de ser a única preocupação da sociedade castelhana.
Outros problemas de ordem social, política, económica e religiosa afectavam
profundamente o reino.
Recente é a obra de Ana Isabel CARRASCO MANCHADO (2006) que ao
procurar conhecer o conflito sucessório de Castela (1474-1482), acaba por
necessariamente analisar o espectro político, mas ficando a vertente militar um pouco
olvidada. Vêm trazer uma renovada atenção ao tema as comemorações dos 500 anos dos
Reis Católicos, principalmente através do congresso internacional “Isabel la Católica y
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su Época”, no qual foram proferidas algumas comunicações de relevo para o tema
visado, nomeadamente por Luis Miguel ENCISO RECIO e ROMERO PORTILLA, que
apresentaram comunicações nas quais relacionam a história política deste período com a
monarquia enquanto instituição, sendo que o primeiro buscou as origens godas da
monarquia até chegar à instituição construída pelos Católicos no séc. XV; Maria Isabel
del Val relembrou a importância política do principado de Isabel, entre 1468 e 1474,
demonstrando que não obstante Isabel se ter contradito e em algumas missivas ter
colocado o seu interesse acima do interesse do reino, ela assumiu-se como legítima
herdeira do irmão, o infante Afonso, nunca tendo condenado a sua rebeldia face a
Enrique IV; Tarsicio de AZCONA, centrou-se nos interesses geopolíticos dos reinos
peninsulares na sua relação com Castela, começando, contextualizando-as com os
fenómenos sócio-políticos ocorridos a partir do início da década de cinquenta; Miguel
Ángel LADERO QUESADA, estudando a evolução das instituições políticas e
religiosas, traçou um quadro evolutivo da monarquia medieval castelhana; Shima
OHARA ocupou-se das relações internacionais da coroa de Castela na altura do conflito
sucessório decorrente do reinado de Enrique IV. De 2001 é a obra coordenada por Julio
VALDÉON BARUQUE – Isabel la Católica y la política: ponencias presentadas al I
Simposio sobre el reinado de Isabel la Católica, uma compilação na qual participaram o
próprio coordenador e Isabel del Val, por exemplo, e que não deixa de ser uma
referência obrigatória para o tema.
Por último Rubén SÁEZ ABAD deu à estampa La batalla de Toro 1476 (2009),
na qual resenhou política e militarmente as relações dos reinos de Portugal e Castela,
não descurando aspectos técnicos do armamento envolvido nestas campanhas, os quais
ilustra em diversas estampas.
A história militar pode ser estudada em variadíssimos aspectos: políticos,
económicos, sociais, técnicos, culturais, etc. A produção historiográfica militar em geral,
e particularmente em Portugal, tem conhecido um grande desenvolvimento nos últimos
tempos. Como inestimável recurso, servi-me de vários números do Journal of Medieval
Military History, editado pela inglesa Boydell. Nesta publicação especializada servi-me
de autores como Clifford ROGERS, Stephen MORILLO e John GILLINGHAM, que
trataram temas relativos a como se fazia a guerra medieval e quais as fontes que os
nobres e letrados medievos utilizavam para as suas tácticas e estratégias, tema esse que
Gouveia MONTEIRO retomou mais tarde (vide infra); Kelly DeVRIES, além de ter
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importantes estudos sobre o armamento e a técnica militar, fortaleceu a orientação de
base desta tese, apelando ao cruzamento de fontes narrativas para obter um estudo de
história militar medieval equilibrado. Consultei amiúde a “Revista de Historia Militar”,
do Instituto de Historia e Cultura Militar, de Madrid, da qual, entre muitos outros, retirei
o precioso artigo de David GARCÍA HERNÁN (2001), em que o autor colige e
comenta um amplo conjunto de fontes e de trabalhos para o estudo da história militar ao
longo do Antigo Regime, em Espanha. Como mencionei acima, também Portugal tem
vindo a renovar o tema da história militar, florescendo desde finais da década de
noventa do século XX. João Gouveia MONTEIRO é um nome incontornável. Títulos
como A guerra em Portugal nos finais da Idade Média (1998); Castelos portugueses
dos finais da Idade Média (1999); Aljubarrota revisitada (um projecto multidisciplinar
coordenado pelo autor, editado em 2001); Vegécio. Compêndio da arte militar (em
conjunto com José Eduardo BRAGA, 2009), projecto que consistiu na tradução do
original em latim – inovando uma vez mais já que não existia nenhuma tradução em
português, e ainda aumentando-a com um precioso estudo introdutório e com
comentários; Entre Romanos, Cruzados e Ordens Militares é o último trabalho deste
medievalista, o qual se preocupa em dar a conhecer fontes menos utilizadas,
nomeadamente fontes judaicas e árabes, traçando uma evolução de como se fazia a
guerra. De Miguel Gomes MARTINS, discípulo do anterior, têm de ser mencionados as
seguintes obras, que embora digam respeito à guerra, têm a cidade de Lisboa no seu
epicentro: Lisboa e a guerra (2001); A vitória do quarto cavaleiro. O cerco de Lisboa
de 1384 (2006); em 2010 deu à estampa, em conjunto com Gouveia MONTEIRO, As
cicatrizes da guerra no espaço fronteiriço português (1250-1450); já em 2011 saiu da
sua pena De Ourique a Aljubarrota, obra em que disseca técnica e tacticamente as um
conjunto de campanhas militares desde o século XII até finais do século XIV. Por
último, tenho ainda de referenciar a mais recente contribuição colectiva no nosso país
para o estudo destas temáticas: o volume 30 da “Revista de História das Ideias”, do
Instituto de História e Teoria das Ideias da Faculdade de Letras de Coimbra.
Variado poderia ser o elenco de historiadores espanhóis que se dedicam ao
estudo da guerra. Porém, vou destacar apenas um, remetendo os outros, oportunamente,
para o corpo deste trabalho. Francisco GARCÍA FITZ tem trabalhado as questões
militares, principalmente na visão dual e nas relações entre muçulmanos e cristãos, em
tempos da Reconquista. Desde Las Navas de Tolosa (2005), no qual chamou logo a
atenção relativamente às batalhas campais, as quais não seriam tão frequentes quanto se
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poderia pensar à primeira vista; a Edad Media: guerra e ideologia: justificaciones
jurídicas y religiosas (2003), em que o autor trata alguns temas pertinentes ao que leva a
fazer a guerra; passando por Reconquista (2010), no qual o investigador discute, entre
outros assuntos, a validade do conceito de Reconquista.
De encontros científicos temáticos peninsulares destacaria essencialmente dois:
a XXXI semana de estudos medievais de Estella (2003) e, mais recentemente, as VI
jornadas luso-espanholas de estudos medievais (2009), das quais saíram novas
contribuições para o conhecimento militar, nas suas diversas acepções. Em Estella,
Miguel Ángel Ladero relacionou a teoria e a prática no modo de fazer a guerra e a paz,
apresentando um vasto e pertinente reportório bibliográfico que secunda as temáticas
que apresentou; Philippe CONTAMINE observou a importância do estudo da política e
da guerra para a compreensão total dos fenómenos, dado que ambos estão imbricados;
por último Marcelino BEROIZ e Íñigo MUGUETA trouxeram uma listagem
bibliográfica sobre guerra e diplomacia ocidental, à semelhança do que LADERO
QUESADA fez para para os Reis Católicos (2004). Das VI jornadas luso-espanholas, e
para o tema que me interessa, daria relevo às contribuições de Vicente Ángel ÁLVAREZ
PALENZUELA, o qual após ter feito a resenha do conflito que levou à batalha de Toro,
analisou o seu resultado do ponto de vista das mentalidades, buscando alguns paralelos
na batalha de Aljubarrota e aplicando o conceito de divina retribución; João Gouveia
MONTEIRO trouxe novas perspectivas acerca de como se guerreava na Idade Média,
assim como elaborou alguns considerandos acerca da importância da batalha campal,
pendendo esta hoje em dia, na óptica dos historiadores militares, mais para o campo da
ortodoxia, isto é, do paradigma, do que para o campo do revisionismo: por outras
palavras, as novas orientações historiográficas dizem-nos que a batalha campal não é
um recurso de segunda categoria face à guerra de desgaste. Paz ROMERO PORTILLA
renovou o tema do partido português em Castela, que corresponde, na verdade, às
poderosas famílias que se tinham exilado no reino vizinho, algumas das quais desde o
final do séc. XIV, mas que mantinham as boas relações com Portugal; por último, a
jovem investigadora Filipa ROLDÃO argumentou acerca da construção da memória
colectiva portuguesa da batalha de Toro, baseando-se na procissão ordenada por D. João
II para comemorar a vitória na Batalha de Toro, à semelhança do que se fazia em
Castela; mas a mesma foi cancelada em 1491, devido à aproximação entre os dois
reinos, com o casamento do príncipe herdeiro D. Afonso e a princesa D. Isabel.
15
2. METODOLOGIA E FONTES
Este trabalho segue um método analítico, no qual houve que seccionar parcelas
do todo que é a realidade histórica. Esta escolha tem necessariamente algo de arbitrário,
fruto de um objectivo previamente ponderado, o qual norteou e delimitou o trabalho.
Tive naturalmente de me socorrer de bibliografia e de fontes castelhanas e
aragonesas. Um dos grandes objectivos desta tese é estudar um acontecimento histórico
por uma perspectiva múltipla, comparando os vários testemunhos, e não apenas pelo
ponto de vista português ou castelhano, para que pudesse ser estabelecido um
contraponto com o intuito de verificar e criticar, atingindo desta forma um todo mais
isento de juízos deformados.
Dado o grande manancial de informação disponível e os prazos limitados para a
elaboração de uma tese houve que fazer escolhas, nomeadamente no que às fontes diz
respeito. Ficaram afastados, de uma forma geral, os escritos historiográficos menos
ambiciosos e sistematizados, tantas vezes mesclados com outros géneros literários não
especificamente históricos. Os Anales de Galíndez de Carvajal são um desses exemplos,
bem como os Anales de Garcí Sanchez, jurado de Sevilla; por outro lado, analisei a
Crónica de Enrique IV, de Carvajal. Ainda dentro deste género, considerei o Cronicón
de Valladolid. O género epistolar teria sido apreciado, se o trabalho tivesse outra
dimensão. Nesta categoria podia incluir as Letras de Pulgar, ou o Opus Epistolarum de
Pedro Mártir de Anglería, com visões particulares e jocosas sobre os sucessos. Juan
Barba escreveu em verso a ambiciosa Consolatoria de Castilla, na qual contempla o
lapso temporal desde o nascimento de Isabel até à tomada de Málaga. Há ainda secções
de um todo que dizem respeito ao reinado de Isabel e Fernando. Afonso Ramires de
Villaescusa tem um capítulo especial no seu Espejo de Corregidores, dedicado a este
período, onde examina se ambos governaram virtuosa e prudentemente. Encontramos
um excerto semelhante nas Memorias de Carlos V, de Sancho Cota, no qual o autor
historia acontecimentos desde o reinado dos Católicos até ao de Carlos V.
Para o reinado de Enrique IV não foram considerados Rodrigo Sánchez de
Arévalo e Fr. Jerónimo de la Cruz: o primeiro por ter uma perspectiva muito generalista
16
da história e o segundo por estar bastante distante dos acontecimentos3. Quanto a Diego
de Valera não considerei o Memorial de Diversas Hazañas em detrimento da Crónica
de los Reyes Católicos, uma vez que é uma obra que sumaria os principais feitos já
relatados por Palencia, embora rectificando as incorrecções deixadas por este4. O
conhecimento que bebe em Diego Enríquez del Castillo é residual5. Apesar de Aureliano
Sánchez Martín considerar que Fernando del Pulgar não é uma fonte credível para o
estudo do reinado de Enrique IV, decidi incluir a sua Crónica de los Reyes Católicos
porque não só historia, como o nome indica, o reinado dos Reis Católicos, como
também tem os vinte primeiros capítulos sobre Enrique IV, não obstante eles terem sido
escritos de forma a defender o direito sucessório de Isabel a Católica6. O facto de terem
concepções políticas e posições opostas torna interessante a inclusão de Afonso de
Palencia e de Diego Enríquez del Castillo, cada um com a sua Crónica de Enrique IV.
Indo também contra a ideia de Sánchez Martín, decidi incluir Lourenço Galíndez de
Carvajal, o qual, embora seja mais tardio, tenta ser imparcial e usa as crónicas de
Palencia, Castillo e mais pontualmente Pulgar e Valera com o intuito de suprir as
incorrecções nela existentes7.
Relativamente a crónicas anónimas, utilizei a fragmentária Crónica Incompleta
de los Reyes Católicos, que relata apenas os dois primeiros anos do reinado dos
Católicos, e o Cronicón de Valladolid: 1333-1539; apesar de este último se apresentar
como um conjunto de notícias muito desigual, inclui informação que não se encontra
em qualquer outra obra coeva.
Pretendo com esta pequena contribuição aprofundar o conhecimento político-
militar peninsular da segunda metade do século XV e mostrar as discrepâncias do que
foi veiculado pelas diversas crónicas, as quais sabemos bem servirem interesses
3 SÁNCHEZ MARTÍN, Aureliano - «Introducción» in Cronica de Enrique IV, Valladolid: Universidad de
Valladolid, 1984, p. 57. Sobre Rodrigo Sánchez de Arévalo, vejam-se os capítulos correspondentes ao
mesmo em TATE, Robert Brian – Ensayos sobre la historiografia peninsular del siglo XV, versão
espanhola de Jesús Díaz, Madrid: Editorial Gredos, 1970, pp. 74-121.
4 SÁNCHEZ MARTÍN - «Introducción», p. 56.
5 Alonguei-me nas considerações sobre o Memorial de diversas hazañas no capítulo Cronistas e crónicas,
pelo remeto o leitor para a parte de Mosén Diego de Valera.
6 SÁNCHEZ MARTÍN - «Introducción», pp. 56-57.
7 Cfr. SÁNCHEZ MARTÍN – «Introducción», p. 57.
17
propagandísticos em função do que mais convinha ao monarca reinante, ou a
determinados partidos ou facções, bem como as diferentes perspectivas historiográficas
dentro de Portugal e de Espanha e entre os dois países. Mas nem por isso devemos fazer
uma leitura simplista das crónicas. Considero apropriado incluir as palavras de Ladero
Quesada, a propósito de Andrés Bernáldez, mas que mudando o monarca e alterando-se
o cronista, farão sentido num contexto com essas duas variáveis diferentes: «hay que
matizar mucho, por lo tanto, la idea tan extendida que muestra a los cronistas como
propagandistas directos de los puntos de vista y los intereses de la monarquía isabelina,
perspectiva que, según este punto de vista, sería a menudo incompatible con la
veracidad de sus relatos. Mucho más intensa sería la propaganda ejercida por otros
medios y autores que a través de los cronistas»8. Embora possa parecer uma ideia
contraditória face ao que acabei de expor, creio que as crónicas transmitem uma visão
de um complexo mosaico, embora não sejam nem propaganda pura e primária, nem
relatos objectivos de historiadores no sentido que hoje lhes atribuímos.
Como já expliquei, o trabalho estrutura-se em duas partes que se
complementam: a primeira parte é fundamentalmente de história política, na qual
tentamos perceber as atracções e as fricções entre as três coroas peninsulares mais
poderosas: Aragão, Castela e Portugal. Também neste capítulo se incluirá o pedido de
ajuda levado a cabo por D. Afonso V a Luís XI.
Uma segunda parte diz respeito à batalha de Toro, ocorrida em Castro
Queimado, e a toda a preparação e decurso das campanhas anteriores e posteriores a
esta batalha, aos vários episódios bélicos protagonizados por Portugal e por Castela,
dentro e fora do seu território.
8 LADERO QUESADA, Miguel Ángel - «La Reina en las crónicas de Fernando del Pulgar y Andrés
Bernáldez», in Visión del reinado de Isabel la Católica: desde los cronistas coetáneos hasta el presente:
ponencias presentadas al IV Simposio sobre el reinado de Isabel la Católica, coord. de Julio Valdeón
Baruque. Valladolid: Ámbito, 2004, p. 17. Sobre o assunto da propaganda veja-se a tese de doutoramento
de CARRASCO MANCHADO, Ana Isabel - Isabel I de Castilla y la sombra de la ilegitimidad -
propaganda y representación en el conflicto sucesorio (1474-1482), Madrid: Sílex, 2006.
18
3. O LEGADO GODO COMO ELEMENTO NORTEADOR DA POLÍTICA
CASTELHANA
O “legado godo” é uma ideia muito cara aos castelhanos e talvez por isso, mais
ou menos consciente, sempre tenha estado presente, como conjunto peculiar dentro da
Europa. A ideia de uma monarquia hispana condiciona a acção governativa devido ao
forte sentido de identidade nacional, e sem a entendermos corremos o perigo de não
apreendermos correctamente as relações entre Portugal e Castela durante este período9.
Assim, convém que esta ideia seja clarificada.
Façamos uma breve resenha para que compreendamos como o conceito de
monarquia hispana é ainda tão importante quase mil anos depois10
. Após o Império
Romano do ocidente ter caído em 476, a desagregação do território na Península Ibérica
dará origem a uma nova ordem em menos de um século, com a instauração do reino
visigodo em Toledo em 567. Em 654 é promulgado o primeiro Código Visigótico – Fori
Iudicum, o que pode indicar a existência de um Estado11
, servindo de base para
elaboração da atribuição de forais no reinado de Fernando II de Castela.
Claro que isto é simplificar as coisas ao extremo. É depois das reformas de
Diocleciano (244-311) que o território se estrutura hierarquicamente. A noção de Cidade
deixa de ser dominante e o império converte-se num imenso estado. A Hispânia é então
9 ROMERO PORTILLA, Paz - Dos monarquías medievales ante la modernidad - relaciones entre
Portugal y Castilla, Corunha: Universidade da Corunha, 1999, p. 23. Num pequeno artigo de homenagem
ao Doutor Baquero Moreno, Luis Suárez traça a evolução das plataformas políticas peninsulares, desde o
seu estado mais embrionário, como sendo os condados, passando pela sua evolução para reinos, até se
deter no séc. XX: SUÁREZ FERNÁNDEZ, Luis - «Portugal y España: vivencias comunes», in Os reinos
ibéricos na Idade Média: livro de homenagem ao Professor Doutor Humberto Carlos Baquero Moreno,
Porto: Civilização, 2003, vol. 2, pp. 815-819.
10 Diferentes autores trataram já o tema do neogoticismo e respectiva influência no mundo medieval, os
quais são essenciais para compreender a historiografia posterior. Entre outros, destaco: SÁNCHEZ
ALONSO, B. – Historia de la historiografia española, I, 2ª ed., Madrid, 1947, pp. 103-111; BENITO
RUANO, E. - «La historiografía en la Alta Edad Media española. Ideología y estructura», in Cuadernos
de Historia de España, Buenos Aires, 1952, XVII, pp. 50-104; SÁNCHEZ ALBORNOZ, C. –
Investigaciones sobre historiografía hispana medieval (siglos VIII-XII), Buenos Aires, 1967;
MARAVALL, J.A. – El concepto de España en la Edad Media, Madrid, 1981, pp. 299-337.
11 LÓPEZ DÍAZ, María Isabel - «La construccíon del estado hispanogodo» in Aragón en la Edad Media:
XX. Homenaje a la Professora M.ª de los Desamparados Cabanes Pecourt. Saragoça: Universidade de
Saragoça, 2008, pp. 470-1.
19
uma diocese que compreende a Península Ibérica, as ilhas Baleares e parte de Marrocos.
Não devemos, no entanto, esquecer que os monarcas godos tiveram desafios muito
grandes especialmente ao nível da integração de populações com etnias, culturas e
religiões tão diversas. Foi necessária a conversão ao Cristianismo; foi necessário
submeter os suevos a noroeste e expulsar os bizantinos que ocupavam o leste da
Península Ibérica. O cristianismo torna-se num novo bastião de unificação, com a
introdução do ideal de império religioso12
, servindo de mote à cruzada contra o Islão.
Com o tempo, há uma progressiva distinção entre a auctoritas religiosa-sacerdotal e a
potestas político-secular. Desde que os povos germânicos se converteram ao
cristianismo (sécs. VI a VIII), o elemento religioso como fundamento e legitimação da
monarquia teve cada vez mais importância: a realeza era um officium ou ministerium,
cabeça do 'corpo místico' que era a comunidade política. Os reis tinham a obrigação de
reinar de forma justa, com o conselho dos bispos ou magnates do reino. Assim se
desenvolveu a monarquia visigoda no séc. VII, com o apoio dos concílios reunidos em
Toledo. Estes princípios enunciados, enquadrados pelos Fori Iudicum, serão herdados
pela monarquia astur-leonesa, nos séculos IX a XI13
.
Através das actas dos concílios de Toledo14
que chegaram até nós sabemos que o
século VII conhece uma Península Ibérica com território e população unificados,
12 OLIVEIRA, Aurélio - «Hispânia: De construção unitária à fronteira política», in Jornadas de cultura
hispano-portuguesa, Madrid: Universidad Autonoma de Madrid, 1999, p. 214.
13 LADERO QUESADA, Miguel Ángel - «La monarquía: las bases políticas del reinado», in Isabel la
Católica y su época. Actas del congresso internacional, Coord. de Luis Ribot et al., Vol. I, Valladolid:
Universidad de Valladolid, 2007, pp. 136-137. Sobre questões acerca da evolução da monarquia como
instituição e elemento na formação e consolidação do estado medieval e moderno torna-se imprescindível
consultar os trabalhos de Miguel Ángel LADERO QUESADA, dos quais cito alguns mais pertinentes: «Patria, nación y estado en la edad media», in Revista de historia militar: Patria, nación, estado, año
XLIX, n.º extraordinário, [s.l.]: Ministerio de defensa – secretaría general técnica, 2005, pp. 33-58;
«Guerra y paz: teoría y práctica en Europa occidental: 1280-1480», in XXI Semana de estudios
medievales: Guerra y paz en la Europa occidental – 1280-1480 (Estella, 19-23 de julio de 2004),
[Pamplona], Gobierno de Navarra, Departamento de cultura y turismo, 2004b - pp. 21-67; «Algunas
reflexiones sobre los orígenes del „Estado moderno‟ en Europa (siglos XIII-XVIII)», in La Península
Ibérica en la Era de los Descubriminetos (1391-1492). Actas de las III Jornadas Hispano-Portuguesas de
Historia Medieval, Sevilha, 1997, I, pp. 483-497; «Poderes públicos en la Europa Medieval (Principados,
Reinos y Coronas)», in Poderes públicos en la Europa Medieval. XXIII Semana de estudios medievales
de Estella, Pamplona, 1997, pp. 19-68; Los Reyes Católicos, Madrid, 1999, pp. 99-131. Outro título
importante para a memória histórica gótica é, do mesmo autor, Lecturas sobre la España histórica,
Madrid, 1998, especialmente nas pp. 53-62 e 71-81.
14 Os concílios de Toledo foram uma instituição eclesiástica e civil, composta pelos bispos e pelos
mandatários do conselho do rei.Os cânones emanados deste órgão reflectiam uma posição espiritual que,
20
reconhecida no contexto internacional. Falta apenas o exercer da soberania sobre os
ditos população e território, acto esse que vai sendo paulatina e solidamente construído
ao longo tempo. Abdica-se do direito romano-germânico a favor deste novo código, que
sobreviverá à invasão muçulmana, o que mostra o vigor e a unidade de origem da
Espanha cristã na Reconquista. Como referiu López Díaz15
, são constantes nas actas
conciliares as referências a Espanha, Pátria, Interesse Geral e Bem Comum que apesar
de não serem conceitos novos16
, são aplicados à realidade da Hispânia por
representantes de até setenta e sete cidades, distinguindo-a da Gália por exemplo.
Perante o exposto, facilmente se compreende o desejo de recuperar a unidade
que tinha sido perdida com a invasão islâmica como algo próprio do reino de Castela,
utilizado amiúde como elemento propagandístico. Não é de estranhar, portanto, que na
política interna e externa estejam patentes contactos e alianças tendo em vista atingir
este objectivo17
, não obstante as dificuldades impostas pelos contrastes regionais
fortemente acentuados.
Pelo menos desde o século IX que os reinos cristãos do norte peninsular
elaboraram um forte sistema ideológico, no qual justificaram a guerra movida ao
inimigo e que haveria de vigorar até ao século XV. Este tinha como alicerces uma
panóplia de motivações económicas, sociais, políticas, culturais e religiosas18
.
A Igreja soube tirar partido do móbil religioso, afirmando que não foi só a pátria
que se tinha perdido, mas também a Igreja católica. Logo, buscava-se uma unidade
religiosa que acompanhava de perto a pretendida unidade política. Recuperada a
segunda, a Igreja readquiria a sua plenitude, tendo em conta a Hispânia como um ente
em última análise, se não fossem cumpridos resultavam em excomunhão. Enquanto lei obrigavam a uma
pena material em caso de não serem respeitadas as suas determinações. Cfr LÓPEZ DÍAZ, 2008, p. 471.
15 LÓPEZ DÍAZ - «La construccíon del estado...», p. 477.
16 Sobre estes conceitos e, em particular, sobre pátria, estado e nação, deve consultar-se o artigo de
LADERO QUESADA - «Patria, nación y estado en la edad media», in Revista de historia militar: Patria,
nación, estado, año XLIX, n.º extraordinário, [s.l.]: Ministerio de defensa – secretaría general técnica,
2005, pp. 33-58.
17 ROMERO PORTILLA - Dos monarquías medievales..,, p. 25. LADERO QUESADA - «La monarquía:
las bases políticas del reinado», p. 137.
18 GARCÍA FITZ, Francisco - «En el nombre de Dios. La ideología de la guerra en la Península Ibérica»,
in Revista de história das ideias, Coimbra: Instituto de História e Teoria das Ideias, 2009, p. 139.
21
histórico e cultural específico, no qual houve um grande esforço de reconquista e
restauração de um passado em que existiu uma união política em torno da monarquia
visigoda.
Os pequenos condados e reinos cristãos do norte, em especial o reino das
Astúrias, cresceram com a memória da velha ideia romano-gótica: o que os
historiadores vêm chamando de neogoticismo astur-leonês foi um feito muito
importante e de longa duração na configuração de ideias e imagens sobre Espanha. O
neogoticismo foi uma construção ideológica que teve a sua origem numa realidade
originária, como a resistência contra os invasores, consolidou-se com Afonso II (791-
842) e alcançou a sua primeira expressão historiográfica em tempos de Afonso III,
altura em que se transferiu a sede régia de Oviedo para León a partir de 914. Estes
monarcas consideravam-se herdeiros dos reis godos e tinham como missão restaurar o
poder usurpado pelos invasores islâmicos, para o que muito contribuiu a singularidade
geográfica da península.
Houve uma intensa renovação das ideas hispano-góticas, a partir da batalha das
Navas de Tolosa, em 1212 e 1266, com a submissão dos mudéjares sublevados na
Andaluzia e em Múrcia. Foi nesse momento que a historiografia castelhana se apropriou
do neogoticismo leonês, tal como o evidenciava o bispo Lucas de Tuy, sendo que os
grandes autores desta mudança foram o arcebispo de Toledo, Rodrigo Jiménez de Rada,
autor de De rebus Hispaniae e Afonso X, autor da primeira história geral redigida em
vernáculo. Assim se mostrava a grandeza de Espanha como marco de uma história
inteligível, que arrancava de uma passado remoto e mítico que, ainda que começasse
nos godos, era comum a todos os que habitavam a península.
D. Alonso de Cartagena, bispo de Burgos, ao proferir o discurso fúnebre de Juan
II de Castela em 1454, apresenta o defunto como descendente de Alarico, o que conferia
a Castela uma continuidade política notável de um milénio. Era um feito único que
nenhum outro povo podia ostentar devido à mudança de linhagens, procurando atingir-
se a unificação sob uma só coroa (a de Castela) da antiga província romana19
. O
objectivo desta perspectiva não se esgota ao conferir uma ordem providencialista da
história. Na verdade, procura legitimar a dinastia Trastâmara, cuja conturbada ascensão
19 MENÉNDEZ PIDAL, Ramón - «Introducción», in História de España, dirigida por Ramón Menéndez
Pidal, T. XIV, Madrid: Espassa Calpe, 1966, p. XI.
22
ao trono necessitava de uma imagem positiva e herdeira da Reconquista levada a cabo
pelos monarcas antecessores. Este continuum assenta no facto de já previamente a
monarquia goda se afirmar descendente do império romano e, por sua vez, a monarquia
castelhano-leonesa se afirmar descendente da monarquia goda. As invasões muçulmanas
foram um retrocesso mas não foram suficientes para quebrar a continuidade20
. Sem
embargo, a realidade mostra-nos a instabilidade política e os monarcas a sucederem-se a
outros monarcas por vias menos legítimas (Mauregato, Nepociano, Fruela Bermudez). A
solução foi arranjar a figura do tirano, o qual obtém o poder ilegitimamente. Estes
tiranos são criticados por corromperem a linha dinástica pura e, deste modo, é comum
que no séc. XV eles sejam retirados das listas régias de forma a não as mancharem com
a sua chegada não ortodoxa ao trono. Por outro lado, a monarquia cria um panteão
próprio, no qual guarda escrupulosamente os artefactos dos seus antepassados, criando
assim locais de culto, como forma de proteger e legitimar o seu passado21
.
Os bispos tiveram uma missão multifacetada. Eram letrados e possuíam
bibliotecas próprias: numa sociedade com um elevadíssimo grau de iliteracia,
conhecimento significava poder e, sem prejuízo das suas funções espirituais, imiscuíam-
se nos assuntos da governação do reino. Proporcionavam igualmente protecção religiosa
aos fiéis, quer em tempo de paz, quer em tempo de guerra e eram também
20 SÁNCHEZ MARTÍN, Aureliano - «Introducción» in Cronica de Enrique IV, Valladolid: Universidad
de Valladolid, 1984, p. 43. Na transição da centúria de Trezentos para a de Quatrocentos, o Sumario de los
Reyes de España de Juan Rodríguez de Cuenca, despenseiro mor da rainha Leonor, mulher de Juan I de
Castela, defendia já esta continuidade entre o reino visigodo e o asturiano: “Estos son los Reyes que ovo
en Castilla é en Leon desde el año de la Era de César de 752 años, que conquisieron los Moros las
Españas en tempo del Rey Don Rodrigo, que fue el postrimer Rey de los Godos: e los Reyes que fueron
desde el Rey Don Pelayo fijo del Duque Don Favila, que fue el primero Rey que regnó entonce en
Asturias, fasta que nuestro señor el Rey Don Enrique, fijo del Rey Don Juan é de la señora Reyna Doña
Leonor su mujer, regnó en Castilla é en Leon, fueron cuarenta Reyes” (RODRIGUÉZ DE CUENCA, J. –
Sumario de los Reyes de España, Madrid, 1781, ed. de LLAGUNO AMIROLA, E., p. 1, citado por
MUÑIZ LÓPEZ, Iván – «Pasado y mitos de origen al servicio del poder. La imagen de la monarquía
asturiana en la España de los Reyes Católicos», in Isabel la Católica y su época. Actas del congresso
internacional, Coord. de Luis Ribot et al., Vol. I, Valladolid: Universidad de Valladolid, 2007, p. 438).
21 MUÑIZ LÓPEZ, Iván – «Pasado y mitos de origen al servicio del poder. La imagen de la monarquía
asturiana en la España de los Reyes Católicos», in Isabel la Católica y su época. Actas del congresso
internacional, Coord. de Luis Ribot et al., Vol. I, Valladolid: Universidad de Valladolid, 2007, pp. 442-
443. Como diz o autor, «de Covadonga a Granada, de la Asturias nuclear a los inmensos espacios del
Imperio español, de Pelayo a los Reyes Católicos y los Austrias se había recorrido un largo camino. Pero
las piezas del viaje histórico habían sido convenientemente aglutinadas en un proceso sin fisuras, con un
esqueleto programático auspiciado por la misión divina de la realeza, extraño a qualquier inestabilidad
dinástica y alimentado por la viva conciencia de que la guerra como vehículo expansivo no era sino un
instrumento otorgado por Dios» (p. 458).
23
suficientemente capazes de recrutar, organizar e liderar exércitos22
. Assim podemos
compreender que os autores da Historia Compostelana afirmassem que entre os galegos
surgiu o refrão: «Obispo de Santiago, báculo y ballesta»23
.
No século XV há numerosos autores e textos – mais do que em séculos
anteriores que preconizam a união do território ibérico sob uma única coroa. Alfonso de
Cartagena, na sua Anacephaleosis reelabora a Historia Gothica do arcebisbo Jiménez de
Rada, da primeira metade do século XIII e com ela a ideia de que Castela era o legítimo
herdeiro do reino visigodo e que o título de Rex Hispaniae, utilizado por coroas
estrangeiras para designar o rei de Castela, tinha validez histórica. Esta apologia acaba
por influenciar os autores da geração seguinte. Homens como Sánchez de Arévalo,
Fernán Pérez de Guzmán, Diego de Valera e Rodríguez de Almela, para citar alguns.
Em 1469, Rodrigo Sánchez de Arévalo termina a sua História Hispânica, dedicando-a a
Enrique IV de Castela. Nela faz uma retrospectiva de como a Hispânia se dividiu em
vários reinos, nascendo então o conceito dos cinco reinos quando a unidade goda
termina. Este é um conceito do século XIII: Astúrias (ou Leão) com a Galiza e Castela;
Navarra; Aragão e Catalunha e finalmente Portugal. Como Leão e Castela se uniram,
para deixar ficar o mítico número cinco, Arévalo inclui Granada. Eis que começam
então as justificações: Castela não só é maior que todos os outros24
, como também é
22 Cfr. GARCÍA FITZ - «En el nombre de Dios…», p. 143. Poderiam dar-se inúmeros exemplos mas
citarei apenas um, o de João Carrillo, o qual, na batalha de Torote (1441) e depois na primeira batalha de
Olmedo (1445), só para mencionar duas, teve uma intervenção brilhante e decisiva. Podemos ver o
conflito militar de Torote desenvolvido em CASTILLO CÁCERES, Fernando - «La caballería y la idea
de la guerra en el siglo XV: el marqués de Santillana y la batalla de Torote», in Estudios sobre cultura,
guerra y política en la corona de Castilla (siglos XIV-XVII), Madrid: Consejo superior de investigaciones
científicas, 2007, pp. 79-111. Neste trabalho, o autor evidencia a importância do conhecimento teórico,
que potencialmente possuiriam os ricos magnates e os grandes prelados, mas também o conhecimento que
advém da experiência no terreno. Veja-se também MUÑIZ LÓPEZ – «Pasado y mitos de origen al
servicio del poder. La imagen de la monarquía asturiana en la España de los Reyes Católicos», pp. 440-
441. Um último exemplo que pretendo destacar é o de Rodrigo Sánchez de Arévalo, o qual advoga que a
ocupação legítima do monarca é «mudar a paz desonesta para justa discórdia e guerra louvável»,
defendendo também a conquista das províncias do norte de África, herança legal de um descendente da
monarquía visigoda. Cfr. SÁNCHEZ de ARÉVALO, Rodrigo – Vergel de los príncipes (1456-7), ed. de
Fr. de Uhagón, Madrid: 1900, p. 7. Este assunto vem também tratado na sua obra De Pace et Bello
(1468), ed. de T. A. Vairani, in Cremonensium monumenta Romae extantia, Roma, 1778, I.
23 Historia Compostelana, traduzida por Emma Falqué, Madrid, 1994, Livro II, cap. I, p. 297.
24 Já foi provado que o argumento de quantificar a área do território e o número de habitantes do mesmo é
demasiado simples para dele se concluir taxativamente o êxito político, económico ou cultural do maior
em detrimento do fracasso do menor. Veja-se GÓMEZ MOREDA, V. – «La población española en
tiempos de Isabel I de Castilla», in Sociedad y economía en tiempos de Isabel la Católica, Ed. Ámbito,
24
dela que provêm todos os outros reinos; mas mais importante do que tudo, ainda que os
vários reinos de Espanha tivessem tido guerras entre si, nunca o principado passou a
famílias estranhas, como aconteceu por exemplo em Inglaterra. Até 1495 há uma
estreita ligação das famílias régias devido à homogeneidade política, cultural e de
sangue. O quadro fica completo se tivermos em conta a descrição de Arévalo (não
esqueçamos a dimensão propagandística contida na sua obra), a qual apresenta um
louvor histórico a Castela com base em pensadores clássicos como Estrabão, Justino,
Vegécio e Tito Lívio. A Hispânia destes pensadores é salubre na qualidade do ar, possui
uma orografia favorável, é abundante em recursos e é dotada de homens corajosos25
.
Atentemos, por último, na correspondência que Fernando de la Torre envia a
Enrique IV em 1455. Este homem viajado que visitou as cortes de França e Itália
descreve o poder do monarca castelhano como sendo superior ao do rei francês e avança
ainda que a riqueza de matérias-primas faz com que outros povos com menos riqueza
natural tenham de solucionar esse problema através da transformação e da
manufactura26
.
Por último, os Reis Católicos, ao aglutinarem quatro dos cinco reinos ibéricos,
assumem-se como restauradores e não como instauradores, de acordo com Fernando del
Pulgar, sendo essa a expressão usada por Valera e que Palma exaltará na vitória de Toro,
usando a expressão de «divina retribuição». Fechava-se assim um ciclo com as cortes de
Toledo, em 1480.
É esta consciencialização do neogoticismo27
que me leva de volta ao início: a
ideia de monarquia goda estar de tal forma fortemente enraizada na cultura hispânica
Valladolid, 2002, pp. 13-38: «contra lo que han creído muchos historiadores, clásicos y modernos, y a
pesar de la insistencia con que los escritos mercantilistas de la época subrayaban la conveniencia de un
voluminoso potencial demográfico, la abundancia de súbditos no era una condición necesaria para el éxito
en la lucha por el liderazgo de las grandes potencias». O mesmo autor alerta ainda que as densidades
demográficas não devem coincidir com o óptimo demográfico e que as diferenças daquelas, entre as
Coroas de Castela e Aragão, não eram tão marcadas e muito menos decisivas.
25 MENÉNDEZ PIDAL - «Introducción», T. XIV, pp. XII e XIV. Muitos outros exemplos de variados
autores podiam ser dados: Joan Margarit, Lúcio Marineo Sículo, Antonio de Nebrija, Fabricio de Vagad.
Porém, remeto o leitor para o artigo de LADERO QUESADA - «La monarquía: las bases políticas del
reinado», pp. 153-154.
26 MENÉNDEZ PIDAL - «Introducción», T. XIV, pp. XIV e XV. Cfr. igualmente LADERO QUESADA -
«La monarquía: las bases políticas del reinado»,p. 152.
27 Relativamente a este assunto aponto ainda como leitura obrigatória SUÁREZ FERNÁNDEZ, Luis –
Los Reyes Católicos: fundamentos de la monarquía, Madrid: Ediciones Rialp, 1989, pp. 9-27.
25
que leva ao unitarismo, ou seja, que a Península Ibérica seja potencialmente vista como
um todo – e essa mítica unidade primitiva goda será sempre utilizada como um topos ao
serviço do expansionismo castelhano. Estavam assim reunidas as condições para que o
reinado de Enrique IV se cobrisse de glória, mas este projecto só foi bem sucedido com
os Reis Católicos, por acção da monarquia, a qual promoveu os elementos históricos
comuns às Espanhas e mesmo assim não da forma definitiva como se tinha idealizado,
isto é, com toda a Península Ibérica unificada e ainda parte do norte de África, uma vez
que o reino de Portugal continuou a existir e foi este que começou com as empresas
ultramarinas no continente africano. Aliás, nas palavras de Menéndez Pidal, Portugal vai
afirmar-se como uma força antagónica: «contra la unidad hispánica, que el imperio
venía realizando desde siempre, surge ahora un gravísimo obstáculo: la aparición de un
reino nuevo, que nace desentendido de toda la secular tradición imperial acatada, por
reinos antiguos»28
.
Portugal obtém esta alforria porque termina a sua Reconquista mais de dois
séculos antes da vizinha Castela, o que lhe permite legitimar-se enquanto entidade
política e ideológica autónoma através da conquista dos Algarves de além-mar. Aurélio
Oliveira refere-se a esta realidade como a «integração geográfica e económica dos
espaços atlânticos, marcando o divórcio entre dois destinos diferentes: a atlantização de
Portugal e a continentalização das Castelas»29
.
Não obstante, a ideia hegemónica também não anda apartada das outras
monarquias peninsulares nos séculos XIV e XV30
, nem tão pouco os muçulmanos
perderam de vista a unidade que antes tiveram. Avaliando a situação do prisma dos
estados islâmicos, compreende-se que também eles se sentiram lesados face à conquista
territorial que conseguiram em tempos e que foram perdendo com a Reconquista cristã.
No seu imaginário estava um al-Andalus que estendia o seu domínio pela quase
28 MENÉNDEZ PIDAL, Ramón – El imperio hispánico y los cinco reinos: Dos épocas en la estructura
política de España, Madrid: Instituto de estudios políticos, 1950, p. 160, citado por ROMERO
PORTILLA - Dos monarquías medievales..., p. 25.
29 OLIVEIRA - «Hispânia: De construção unitária à fronteira política», p. 225.
30 MENÉNDEZ PIDAL – El imperio hispánico y los cinco reinos…, p. 202, citado por ROMERO
PORTILLA - Dos monarquías medievales..., p. 27.
26
totalidade da Península Ibérica e que era preciso reconquistar através de uma missão
teológica que sempre caracterizou o avanço muçulmano31
.
Ainda com a atenção focada sobre Castela e longe de ter expulsado ainda os
granadinos, podemos falar de uma primeira tentativa hegemónica por parte de Juan I de
Castela, ao ter-se casado com a herdeira do trono português, D. Beatriz. Conhecemos
bastante bem o resultado desses intentos que culminaram em Aljubarrota.
Já no século XV, Aragão tentou impor-se através dos Infantes de Aragão, embora
estes fossem „geneticamente‟ castelhanos. Estes estavam presentes em todas as cortes
peninsulares; chegaram a ocupar os tronos de Aragão e Navarra, ao mesmo tempo que
as duas irmãs eram rainhas de Portugal e de Castela. Porém, o prosseguimento das suas
agendas pessoais em detrimento do plano familiar, bem como o surgimento de
fortíssimas oposições em Castela e em Portugal, causou o insucesso do plano gizado por
Fernando de Antequera, o que aliado à resistência portuguesa liderada pelo infante D.
Pedro e à resistência castelhana de D. Álvaro de Luna gorou quaisquer hipóteses
hegemónicas para Aragão, uma vez que os bandos adversos da nobreza portuguesa e
castelhana compreenderam bem que os infantes de Aragão defendiam um sistema de
governo que favorecia a nobreza, enquanto os primeiros favoreciam a centralização e o
reforço do poder do monarca.
O último reino a tentar liderar um processo de união das coroas ibéricas foi
Portugal na segunda metade do século XV. Na década de sessenta convergiram, para
isso, as boas relações de Afonso V com Enrique IV, a revolta da Catalunha e o breve
reinado do condestável D. Pedro na Catalunha. Sem me querer alongar demasiado sobre
este assunto, uma vez que o mesmo vai ser analisado mais à frente neste trabalho,
lembro apenas que após a morte de Enrique IV, Afonso V casa-se com a sua sobrinha,
D. Juana (alcunhada de Beltraneja e que será mais tarde alcunhada pelos portugueses de
Excelente Senhora) e vê-se na obrigação de defender os seus direitos, invadindo
Castela. Este projecto não teve êxito e viu as suas probabiblidades diminuir a partir da
batalha de Toro, em Março de 1476.
Conforme afirma Paz Romero Portilla, que temos vindo a seguir, apesar dos
fracassos conhecidos nestes três projectos hegemónicos supracitados, a ideia de
31 GARCÍA FITZ - «En el nombre de Dios…», p. 151.
27
monarquia hispana não soçobrou e nas pazes com Portugal pretende-se, no futuro, unir
os reinos mas de forma pacífica32
. Embora saibamos que o futuro reservou outros
desígnios para Castela e para Portugal, é o que podemos concluir a partir dos contratos
de casamento e por conhecermos os contratos das Terçarias de Moura e os projectos de
enlaces entre os infantes e princesas de ambos os reinos33
.
É certo que isto segue uma linha de pensamento político cujo intuito é justificar
e atingir a unidade política e territorial peninsular. Todavia, é impossível não reconhecer
que há zonas que manifestam dinâmicas próprias e se traduzem em nações que não
correspondem a estados e que influenciam o território em seu redor34
. Portugal é nesse
aspecto mais linear do que Castela, mas só a estreita correspondência entre estado e
nação pode não ser suficientemente forte para assegurar a independência e, nesse
sentido, foram vitais as esferas de influência extra-peninsulares criadas por Portugal.
Em Castela sobreviveram alguns desses contrastes e reivindicações até à actualidade.
Madrid, Barcelona, Burgos e Sevilha são alguns exemplos de dinâmicas próprias
estabelecidas por estes núcleos urbanos. Se nos afastarmos da geografia humana e, ao
invés, analisarmos a geografia física, podemos apontar três zonas principais: a parte
atlântica (Cantábrica e Ocidental), a parte Mediterrânica e uma última Continental.
Por outro lado, é importante reter que o sentido e os timings que a Reconquista
tomou acentuaram as diferenças, «real ou virtualmente pré-existentes: fossem elas de
carácter etno-antropológico, fossem político-administrativo»35
. O que à partida pode
parecer uma contradição face ao raciocínio atrás exposto, não o é, já que este ideal de
império foi sempre perseguido pelos monarcas das Astúrias, Leão e depois de Castela. É
o irradiar do ideal que se transformará em utopia, mas que não se esgotará com o
aniquilar do reino mouro de Granada e que conhecerá o seu último fôlego com a
32 Feitas as pazes entre as duas monarquias cristãs peninsulares, D. João II e os Monarcas Católicos
diligenciaram por unir as coroas, assegurando uma Monarquia Hispânica, nos príncipes herdeiros: D.
Afonso e D. Isabel. Tal plano não resultou devido à morte prematura do infante Alfonso. Mais tarde,
quem vem a colher esses louros é Filipe II (Filipe I de Portugal), por via da política de alianças familiares,
já que Filipe II era filho de Carlos V (Casa da Áustria) e de D. Isabel de Portugal (irmã de D. João III).
Mas antes disso, D. Manuel de Portugal perfilou-se como um candidato muito sério à União das Coroas.
33 ROMERO PORTILLA - Dos monarquías medievales..., p. 28.
34 Esta ideia já foi desenvolvida por Aurélio de Oliveira. Cfr. OLIVEIRA - «Hispânia: De construção
unitária à fronteira política», p. 212.
35 OLIVEIRA - «Hispânia: De construção unitária à fronteira política», p. 215.
28
dinastia filipina em Portugal, isto se não considerarmos o período dsa Invasões
Francesas Mesmo assim, o ideal que se veio a considerar uma utopia permitiu que nos
derradeiros anos de Quatrocentos a Península Ibérica passasse a ter apenas dois reinos,
já que Castela absorveu Aragão, Navarra e Granada.
29
4. CRONISTAS e CRÓNICAS
«El reinado de los Reyes Católicos fue uno de los de más alta producción
historiográfica»36
. Com tantos cronistas “à disposição” parece-me indispensável dedicar
algumas linhas a analisá-los, ainda que brevemente, até porque é ncessário enquadrá-los
no tempo e no ambiente político-cultural em que redigem as suas crónicas. Há as
crónicas que são redigidas do zero e há as que são revistas e recompiladas. Por outro
lado, e de acordo com Sanchéz Martín, devemos ter presente que no reino de Castela é
só a partir da baixa Idade Média que surge o ofício de cronista como um cargo
profissional com chancela oficial, o qual dá reconhecimento ao profissional da escrita37
.
Em Portugal o cargo de cronista-mor do reino foi criado por D. Duarte38
, sendo Fernão
Lopes geralmente considerado como o primeiro cronista nacional. Sente-se, portanto,
uma necessidade de aprender e apreender o passado com vista a moldar, educar e
legitimar. É o valor formativo da história não só para o monarca que decide os destinos
do reino, mas também para o povo, o qual adquire e interioriza o sentido de unidade
nacional39
. Em solo luso estamos habituados a ter um cronista por reinado40
, regra que
36 PÉREZ PRIEGO, Miguel Ángel - «Introducción», in Claros varones de Castilla, Madrid: Ediciones
Cátedra, 2007, p.18.
37 SÁNCHEZ MARTÍN - «Introducción», p. 32. Sánchez Martín aponta a segunda metade do século XV
para este efeito; PÉREZ PRIEGO - «Introducción», p.18.
38 Já anteriormente tive oportunidade de considerar a questão da importância da cronística e o seu papel
legitimador da política. Cfr. ENCARNAÇÃO, Marcelo Augusto Flores Reis da – A guerra vista do chão:
os conflitos militares em Portugal nos reinados fernandino e joanino observados numa perspectiva local,
(policopiado), dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto,
Porto: 2006, p. 8.
39 A este respeito acredito que vale a pena citar uma passagem mais longa de José Luis Bermejo Cabrero:
«Habia en el mundo cultural y político de la época un pensamiento muy arraigado, consistente en admitir
que el conocimiento de la historia era buena fórmula de educar políticamente a un monarca, de someterlo
a una reflexión histórica, sin desatender la perspectiva colectiva, es decir, se procuraba que un rey estaría
mejor formado cuanto más hubiese recalado en sus progenitores más modélicos, que le indicarán el
camino a seguir en cada circunstancia; pero también el pueblo, en los albores del sentimiento nacional,
utilizará la historia como medio de conocimiento de su propria idiosincrasia que le permitirá ir avanzando
hacia la posteridad, a través del modelo de sus antecesores». BERMEJO CABRERO, José Luis - «Ideales
políticos de Juan de Mena», in Revista de Estudios Políticos, 188, Madrid, 1973, pp. 153-175, citado por
SÁNCHEZ MARTÍN - «Introducción», p. 32.
40 Esta afirmação necessita de ser melhor explicitada. Tal como já avançou Luís Miguel Duarte, as datas
precisas de início e termo dos titulares do ofício de cronista apresentam algumas dúvidas, e é natural que
tenham existido períodos de vacância ou sobreposições. Cfr. DUARTE, Luís Miguel – «A crónica perdida
30
também devia imperar no reino vizinho e que apenas é quebrada com Enrique IV, em
cujo reinado há três cronistas oficiais: Alonso de Palencia, Diego Enríquez del Castillo e
Martín de Ávila, do qual não se conhece nada. É no facto de possuírem um elevado grau
de liberdade que reside a explicação para as narrações contraditórias que encontramos
em Palencia e em Castillo, ao documentar os mesmos acontecimentos. Não é de
estranhar que estes cronistas exercessem ainda funções de secretário, conselheiro,
enviado diplomático e historiador. Também no reinado de Isabel a Católica não houve
grandes preocupações com a cronística oficial. Esta abarca poucos anos do reinado e
difunde-se escassa e posteriormente. Na verdade, embora a rainha desse um peso
decisivo à propaganda, procurou-a por outros modos que não as crónicas41
. À volta de
1474, circulavam pelo reino todo o tipo de argumentos, justificações, panegíricos e
outro material propagandístico que preparava o terreno, a longo prazo, para legitimar
Isabel42
. Um exemplo é o Regimiento de príncipes, escrito em verso, por Gomes
Manrique, obra que pelo ano de 1482 foi reproduzida amiúde43
.
Explica ainda Sanchéz Martín que desde as primeiras crónicas régias até aos
Reis Católicos se manifesta um conjunto de características: são obras oficiais de
inspiração régia; reflectem um sentimento protonacional; narram feitos históricos
de Vasco Fernandes de Lucena», in Biblos – Revista da Faculdade de Letras. 3ª parte da miscelânea em
honra do Doutor Salvador Dias Arnaut “Cultura e Prática Rituais”, Coimbra: Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, vol. LXXVIII, p. 129.
41 PÉREZ PRIEGO, Miguel Ángel - «Introducción», in Claros varones de Castilla, Madrid: Ediciones
Cátedra, 2007, pp.18-19.
42 CARRASCO MANCHADO - Isabel I de Castilla y la sombra de la ilegitimidad…, pp. 19, 39, etc.
Esta propaganda tem início com a morte de Enrique IV e a proclamação de Isabel. Isabel quer demarcar o
início do seu reinado do fim do reinado do meio-irmão com o denegrir da morte do mesmo, fazendo
alguns autores relatar que o defunto monarca tinha morrido mal vestido, sem se confessar, logo, ímpio e
tinha sido enterrado sem as cerimónias típicas que se faziam quando morriam os grandes príncipes. Isto já
foi desmentido por FERRARA, O – Enrique IV, Isabel de Castilla y la Beltraneja, Madrid: 1945, p. 337 e
por MITRE, E. - «Muerte y memoria del rey en la Castilla bajomedieval», in La idea y el sentimiento de
la muerte en la historia y en el arte de la Edad Media (II), Universidad de Santiago de Compostela, 1992,
pp. 17-26. MARTÍNEZ GIL, F. - La muerte viviva. Muerte y sociedad en Castilla durante la Baja Edad
Media, Toledo, 1996, p. 41. Sobre a importância da propaganda do reinado de Isabel, veja-se, ainda
CARRASCO MANCHADO, A. I. - «La toma del poder de Isabel I de Castilla: golpe a la legitimidad de
Enrique IV», in Golpes de Estado a fines de la Edad Media? Fundamentos del poder político en la
Europa Occidental, editado por F. Foronda; J. P. Genet; J.M. Nieto Soria, Madrid, 2005, pp. 331-349.
43 A edição da sua obra poética pode encontrar-se em MANRIQUE, Goméz – Cancionero, edição de F.
Vidal González, Madrid, 2003.
31
concretos; têm o fim de servir de fiel testemunho para a posteridade; estão escritas em
língua vulgar e não têm material épico no corpo da narração histórica44
.
Mas não me quero adiantar. Faço então uma síntese dos cronistas utilizados
neste trabalho.
a) Cronistas portugueses:
Rui de Pina terá nascido na Guarda, próximo do meio da centúria de
Quatrocentos e desde novo que esteve de alguma forma envolvido no ambiente da corte.
Como já notou Saul Gomes, Pina «é o autor da principal biografia afonsina de que
dispomos, ainda que este autor seja sobretudo o cronista de D. João II, como Zurara o
fora de D. Afonso V»45
. A sua presença fez-se notar em ocasiões importantes tais como
na abertura das Terçarias de Moura e na cerimónia oficial de profissão religiosa de D.
Juana, no convento de Santa Clara de Coimbra, em 1480, acontecimento directamente
relacionado com as Terçarias. Em 1481 está já ao serviço da casa do príncipe como
escrivão. No ano seguinte integra uma embaixada enviada a Medina del Campo, aos
Reis Católicos, como secretário e três anos volvidos é apresentado novamente como
secretário da embaixada chefiada por Vasco Fernandes de Lucena ao papa Inocêncio
VIII. A 16 de Fevereiro de 1490 D. João II atribuiu-lhe uma tença de 9600 reais para
«escrepver e assentar os feitos famosos asy nossos como de nossos Regnos»46
. De tal
forma o seu trabalho agradou a D. Manuel que, a 11 de Maio de 1497, o monarca lhe
concedeu uma nova tença de seis mil reais47
e o nomeou cronista-mor. É já no terceiro
ano do século XVI que Pina dá as suas crónicas de D. Afonso V e D. João II como
terminadas, sendo estas as mais completas e documentadas que saíram da sua pena.
Começou ainda a crónica de D. Manuel mas morre antes de a terminar, servindo esta a
44 SÁNCHEZ MARTÍN - «Introducción», p. 16.
45 GOMES, Saul António - D. Afonso V: o Africano, Mem Martins: Círculo de Leitores, 2006, p. 18.
46 ALMEIDA, Manuel Lopes de - «Introdução», in Crónicas de Rui de Pina, Porto: Lello & Irmão, 1977,
pp. X-XVII.
47 ALMEIDA, «Introdução», p. XVII.
32
Damião de Góis, o qual acusou Pina de ter plagiado as crónicas de D. Sancho I até D.
Afonso IV de Fernão Lopes. Morreu a 22 de Novembro de 152248
.
Pelo exposto podemos perceber que Pina acompanhou de perto os reinados do
Africano e do Príncipe Perfeito e teve como missão a apresentação das acções dignas de
valor e os bons exemplos dos reis e dos príncipes, cujo intuito foi não deixar cair no
esquecimento o seu conhecimento e a sua memória. Afirma o guarda-mor da Torre do
Tombo o seguinte no prólogo da sua Crónica de Afonso V: «o conhecimento dos boons
exenpros e das cousas passadas, de qe a Estoria hé um vivo espelho, e os livros sam
fyées tesoureiros, se recebe, para nom errar, conselho sem paixam, e doutrina sem
receo, de que aa Humanydade, e ao Estado Real pryncipalmente se segue hum muy
seguro proveyto, e por ysso a Deos: grande e muy assinado servyço»49
.
Pese embora a obrigação à qual Pina estava sujeito de exaltar as virtudes e de
esbater os defeitos do biografado (neste caso concreto de Afonso V), a sua escrita, tal
como acontecia com todos os outros cronistas, nunca está isenta de simpatias e
preferências. Do seu aparo saiu um Afonso V «muy Catolico e amigo de Deos, e mui
fervente na fée», «deleitavasse com homens honestos Relligiosos» e «foy no comer,
beber, e dormir muy regrado [...] esmollador e de muy piadosa condiçam [mas] nas
cousas da Coroa do Reyno [...] a desguarneceo e mynguou em pouca parte». «Principe
de muy alto e esforçado coraçam, foy sempre zellador de emprender cousas arduas, e
prosseguyllas por armas como cavaleiro, mais que de entender como Rey no Regimento
Civel e Polytico de Reynos»50
. Temos de ter presente que as personagens e os seus actos
ricos em pormenores que Pina descreve apenas são coevos para o reinado de D. João II.
Quanto a este último monarca, descreve-o como bem proporcionado fisicamente, à
excepção do nariz, um pouco comprido. Por volta dos trinta anos engordou e aos trinta e
sete seria já bastante calvo, o que lhe aumentaria a dignidade régia. Embora longe de ser
isento, podemos ler com proveito a caracterização psicológica de D. João II, e que 48 ALMEIDA, «Introdução», p. XIX. Sobre este cronista deve ver-se igualmente GOMES, Rita Costa –
Rui de Pina, in «Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa», organização e coordenação de
Giulia Lanciani e Giuseppe Tavani, Lisboa: Editorial Caminho, pp. 597-598. É igualmente incontornável
a obra de VERÍSSIMO SERRÃO, Joaquim – A historiografia portuguesa. Doutrina e crítica, vol. I,
Séculos XII-XVI, Lisboa: Editorial Verbo, 1972, não só para Rui de Pina, mas para os outros cronistas
portugueses nos quais se baseia este estudo: Damião de Góis e Garcia de Resende.
49 CDAV, pp. 583-4.
50 CDAV, p. 881.
33
grande parte da mesma foi formando enquanto príncipe: «maravilhoso engenho, e
subida agudeza (…); juizo craro, e profundo» são pois as palavras que Pina usa para
descrever o monarca, sem deixar de notar a sua obsessão pela justiça: «nas exuquções
della [justiça] mais riguroso, e severo, que piedoso», como que a apontar a purga de
nobres levada a cabo no seu reinado, o que acabou por passar para a posteridade,
embora, uma vez mais, lá esteja o cronista a absolvê-lo: «em sua vida foy ávido por
secco de condiçam, e nom humano, nem pareceo em vivendo de todos assi amado, e
estimado, como ho foy despois de sua morte»51
.
Historiador profissional, mais de metade da sua Crónica de D. Afonso V ocupa-
se do infante D. Pedro e da tomada da posição do povo que o queria como regente, ao
invés de D. Leonor.
Saul Gomes observa que «no que à investigação histórica respeita, Rui de Pina,
não nos parece muito inovador face aos antecessores e sucessores52
. Como estes,
também ele “ajunta” as histórias dos reis que pretende historiar, colhendo nas páginas
dos que o anteciparam [...], valorizando tradições e/ou testemunhos orais, mais do que,
cremos, investigando documentação escrita inédita nos arquivos reais cujos princípios
diplomáticos não eram fundamentais para a escrita da história tal como os cronistas
quatrocentistas a entendiam e os seus públicos-alvo esperariam ler ou ouvir»53
.
Damião de Góis (1502-1574), cronista não oficial, tratou o período que vai de
1455 a 1481 (lapso temporal balizado pelo nascimento do príncipe D. João até à morte
de D. Afonso V), numa narrativa sóbria e cronológica, dando origem à Crónica do
Príncipe D. João. O facto de ter acesso directo aos documentos, como guarda-mor do
Arquivo Real e a experiência na corte, fazem dele um candidato com os requerimentos
necessários para começar a compor uma obra, em 1556, que se afasta do selo oficial e
51 PINA, Rui de – Crónica de D. João II, Porto: Lello & Irmão, 1977, pp. 1029-1030.
52 Veríssimo Serrão faz uma análise do percurso de Pina ligeiramente diferente e considera que o cronista
«revela uma língua a caminho da modernidade». Para este efeito, vejam-se as páginas que o autor lhe
dedicou em: SERRÃO, Joaquim Veríssimo - Cronistas do século XV posteriores a Fernão Lopes, Lisboa:
Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1989, especialmente as pp. 53-66.
53 GOMES – D. Afonso V..., p. 20.
34
que traz consigo uma motivação própria54
, o que não significa que outros cronistas não
se tenham já dedicado a este período – Gomes Eanes de Zurara, Rui de Pina e Garcia de
Resende.
O método moderno de fazer história de Góis fez com que ele reconheça que usa
fontes55
, sejam elas autores que escreveram antes de si, sejam fontes estrangeiras
(registando também assuntos internacionais), as quais usou para completar o seu próprio
trabalho.
Foi um cronista consciente da sociedade do seu tempo e, embora a Crónica do
príncipe D. João só dedique doze capítulos a assuntos da política interna, estão patentes
as reflexões e os comentários do autor sobre o aumento e concentração de dignidades no
seio da alta nobreza, em particular nas casas de Bragança e Viseu, fruto dos
magnânimos prémios que Afonso V concedeu aos nobres que o seguiram na campanha
portuguesa em Castela, na década de setenta de Quatrocentos. Este é, porém, um fardo
com o qual D. João II irá arcar e com o qual lidará, concentrando o poder novamente na
figura do monarca.
Damião de Góis foi um defensor dos direitos de D. Juana (a Beltraneja) ao trono,
em detrimento dos Reis Católicos. A intromissão de Portugal na guerra civil castelhana
é, portanto, um assunto importante aos seus olhos, e para isso reuniu provas da lavra dos
cronistas do reino vizinho, mas as provas que submete à apreciação do leitor não são
conclusivas56
, embora cite oito cronistas: Mosén Diego de Valera, D. Alonso de
54 Góis afirma no prólogo da Crónica do Príncipe D. João o seu móbil para escrever: «mas quem sem ser
chamado se offereçe a taes perigos, e sem ter obrigaçam se auentura a trattar de negoçios de que nam
possa dar boa conta, digno he por çerto de ser reprehendido, se nessa parte nam mostrar que tomou
empresa de que possa sair com honrra, e acabar com louuor. […] Minha tençam que he reduzir ha
Chronica delRei dom Afonso quinto do nome, desno nasçimento do Prinçipe dom Ioam seu filho, atté que
elle faleçeo, á melhor modo, e ordem da em que anda diuulgada»; e a forma como tal deve ser feito: «[…]
grauidade, honestidade, e authoridade: às quaes leis, e jugo a que ho stylo historico, está sugeito, e de que
com Razam nam pode sair». É interessante ainda observar que o cronista afirma que outras crónicas
antigas deveriam ser sujeitas a correcções para que pudessem traduzir melhor a verdade. Cfr. GÓIS,
Damião de – Crónica do Príncipe D. João, Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1977, pp. 9-10.
55 Cfr. RODRIGUES, Graça Almeida - «Edição crítica e comentada» in Crónica do príncipe D. João, de
Damião de Góis, Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1977, p. LXXXII.
56 Cfr. RODRIGUES - «Edição crítica e comentada», pp. LXXVII-LXXVIII. Para o problema da
legitimidade de D. Juana, Graça Almeida Rodrigues cita Gregório Marañon e o seu Ensayo biológico
sobre Enrique IV de Castilla y su tiempo, obra de 1969, dizendo que apesar de o autor ter feito um estudo
exaustivo, não se tem mais respostas na actualidade do que se tinha há cinco séculos atrás.
35
Cartagena, Frei Alonso de Venero, Lúcio Marineo Sículo, Paulo Emílio Veronês,
Commines, Diego Enríquez del Castillo e um autor «inçerto».
Por último, são interessantes os comentários pessoais de Góis, que caustica a
falta de intervenção de Sisto IV, com o intuito de pôr fim à guerra, bem como as
consequências económicas nefastas da dita guerra, devendo o assunto ter sido resolvido
através do direito e não da força das armas57
.
Passemos a Garcia de Resende. Nas palavras de Veríssimo Serrão, foi o
primeiro autor português de mudança, imbuído de valores característicos do tempo
medievo e do Renascimento58
, fruto das influências de monarcas, navegadores e
humanistas, entre outros. Cortesão do século XVI, esteve atento às mudanças operadas
na sociedade e no mundo, tais como: o fortalecimento do poder real (que já vinha de D.
João II); as grandes viagens de navegação e consequente alargamento do mundo
conhecido, o qual dará lugar à formação de grandes impérios ultramarinos; a ruptura
com o feudalismo, o comércio como garante dos novos-ricos e os novos valores de
individualismo.
Eborense, nasceu por volta de 1470, sendo criado da casa do bispo de Évora.
Nomeado moço de câmara de D. João II em 1491, foi, posteriormente, elevado à
condição de moço da escrevaninha, acabando por conhecer o monarca na intimidade,
sendo tal notório na sua obra. Verdadeiramente amigo do seu amo, Resende traça o
retrato psicológico do Príncipe Perfeito como tendo sido prudente, esforçado, corajoso,
inteligente, ambicioso, justo e piedoso, imagem esta que o cronista privado oferece ao
leitor quarenta anos após a morte do rei59
– e que, na quase totalidade das suas
componentes, mais não faz do que reflectir competentemente o estereótipo do bom
soberano.
57 Veja-se CPDJ, cap. CIII, p. 213.
58 Cfr. SERRÃO, Joaquim Veríssimo - «Prefácio» in Crónica de D. João II e Miscelânea, de Garcia de
Resende, Lisboa: INCM, 1973, pp. XI-XII.
59 Cfr. SERRÃO - «Prefácio», pp. XX e XXV-XXVI.
36
Serviu ainda D. Manuel, não tendo caído em desgraça devido à sua idoneidade,
não obstante o vínculo que o uniu a quem considerou «segundo em nome, mas a
ninguém segundo»60
, recebendo do monarca novas mercês.
De espírito sagaz e aberto às mudanças que ocorriam no mundo, as quais iam
destruindo os velhos paradigmas, acompanhou o monarca à corte dos Reis Católicos,
em 1498 e foi como secretário e tesoureiro numa embaixada a Roma, em 1514, servindo
estas viagens para conhecer e compreender novas formas de pensar.
Cavaleiro da Ordem de Cristo, em 1515, amigo do grande mestre Gil Vicente,
era tido como um homem culto e respeitado pelos seus pares.
A sua obra permite-nos traçar as diferenças para a crónica de Rui de Pina.
Enquanto Pina conhecera D. João II à distância, Garcia de Resende conheceu o homem
por detrás da figura régia. Diz Veríssimo Serrão que «o nosso autor não quis redigir a
história de um reinado, mas apenas a vida de um homem que fora príncipe e
monarca»61
; e se compararmos as crónicas de ambos, podemos ver que Resende não
plagiou Rui de Pina como no passado se afirmou62
, mas serviu-se dele, corrigindo e
completando os assuntos, o que apenas foi possível em virtude de ter presenciado
muitas das situações expostas.
Redigiu a Crónica na cidade natal, entre 1530 e 1533, baseando-se em notas e
apontamentos que coligiu ao longo da sua vida. Como tal, uma das críticas negativas
que se lhe pode apontar é a deficiente cronologia apresentada na obra. Por outro lado, a
história palaciana, de leitura atraente e com um estilo já afastado da aridez do cronista
oficial, quase suprime esse defeito com «a riqueza do seu livro para a história
60 A citação é extraída de Veríssimo Serrão, que quis dar força suficiente à ideia de que para Garcia de
Resende, D. João II tinha sido o maior rei que jamais vivera em Portugal. O original é de um soneto de
André de Resende – sobrinho do cronista, retirado do Lyuro das Obras, Évora, 1544. Veja-se SERRÃO -
«Prefácio», pp. XXVIII-XXIX e p. XXIX, nota 32, onde consta a referência à citação do mesmo soneto.
61 SERRÃO - «Prefácio», p. XXXII-XXXIII.
62 Anselmo Braamcamp Freire – Crítica e História, tomo I, Lisboa, 1910, pp. 53-55; Alberto Martins de
Carvalho, na introdução à 2ª edição da Croniqua delRey Dom Joham II, Coimbra, 1950, pp. XXXIX e
seguintes, por exemplo. Não esqueçamos ainda que, à época, os diversos cronistas trabalhavam para um
fim comum: a Crónica Geral do Reino. Portanto, presumimos que utilizar os dados coligidos pelos
antecessores era tido como natural e legítimo para o exercício da função de cronista-mor do reino, aspecto
que desvaloriza por anacronismo as suspeitas de plágio que recaíram sobre determinados cronistas, como
Rui de Pina. Cfr. DUARTE – «A crónica perdida de Vasco Fernandes de Lucena», p. 130.
37
psicológica do monarca, no registo original e pitoresco de muitos factos que, sem a pena
de Resende, se teriam perdido»63
. O homem poeta, músico, debuxador e cronista faleceu
em 1536, também em Évora.
b) Cronistas castelhanos:
Afonso de Palencia nasceu em Osma, no Verão 1423 – informação que nos
chegou através de uma carta sua. Viveu durante largos anos em Sevilha. A sua primeira
missão política ocorreu em 1441, portanto quando tinha dezoito anos, por ocasião do
cerco de Maqueda, para dirimir o conflito entre D. Álvaro de Luna e os Grandes. Desde
essa data até 1453 está em Itália, ao serviço do cardeal Besarión, recomendado pelo
bispo de Burgos. Em 1456 foi nomeado secretário e cronista de Enrique IV. Logo após
sete anos terem passado a sua influência deve ter crescido exponencialmente, pois
mediou o conflito entre os arcebispos Fonseca – tio e sobrinho, cujas querelas se deviam
essencialmente à ambição do mais velho. Não obstante, as relações do velho arcebispo
com Enrique IV não eram as melhores, pelo que o monarca o ameaçava com a prisão ou
a morte. Refugiado em Béjar, solicitou uma audiência com Palencia, a quem convenceu
a levar uma sua petição à corte pontifícia. Pouco depois, há mais uma reviravolta na
cena política castelhana, com a junta que os Grandes reuniram em Burgos. São estas
duas petições – a dos Grandes e a do arcebispo Fonseca, que Palencia apresenta ao
papa, não sem algum perigo, uma vez que o representante de Enrique IV na corte
pontifícia detinha um grande poder no interior desse círculo64
. Foi também no decorrer
desta viagem que Palencia escreveu o Tractatus de perfectione triumphi militaris, uma
alegoria escrita em latim, que versa o tema das armas e da tradição militar que tem a
63 SERRÃO - «Prefácio», p. XXXIV.
64 Para uma melhor profundidade acerca destes episódios e de outros, tais como a negociação da renúncia
do mestrado de Santiago por parte de Beltrán de la Cueva , em favor do infante D. Afonso - causa que
segue, veja-se PAZ y MELIÁ, Antonio - «Introducción» in Crónica de Enrique IV de Afonso de Palencia,
Madrid: Atlas, 1975, pp. XI a XII e TATE, Robert Brian - «Alfonso de Palencia y los preceptos de la
historiografía», in separata das Actas de la III academia literaria renascentista, Salamanca: Universidad
de Salamanca, 1983, pp. 37-51.
38
Península Ibérica, mas à qual sempre faltou a disciplina e a direcção necessária para
alcançar a glória65
.
Quando ocorre a “farsa de Ávila” em 146566
, Palencia estava de regresso a
Sevilha, tomando o partido do infante Afonso e assumindo a sua defesa perante os
regedores da cidade, convencendo o duque de Medina Sidónia, o qual presidia à
reunião, a proclamar Afonso como rei.
A sua crença em valores como a justiça e equidade transforma-o num oponente
natural do poder detido pela oligarquia dos Grandes e, como tal, defende o
restabelecimento da Hermandad em todas as províncias. Esteve em perigo de vida,
devido à perseguição a ele movida pelos nobres, mas o duque de Medina Sidónia
compadeceu-se e comutou-lhe a sentença para o desterro.
65 TATE, Robert Brian - «El tratado de la perfección del triunfo militar de Alfonso de Palencia, 1459: la
volta de discreción y la arquitectura humanista», separata de Essays on narrative fiction in the Iberian
Peninsula in honour of Frank Pierce, [s.l.]: The dolphin book co., ldt., 1982, p. 164. Tate dá-nos também
conta de outras duas obras do cronista que fogem à tradição literária peninsular vigente e também não
criam escola: La batalla entre los lobos y los perros e a elegia fúnebre à morte do bispo Alfonso de
Madrigal.
66 A “Farsa de Ávila” foi a reacção que a nobreza (leia-se, os “Grandes” ou a Liga entre Carrillo, Pacheco,
Girão, o almirante de Castela, o conde Alba de Liste, o conde de Paredes, apoiados pelo rei de Aragão)
encontrou para enfrentar o monarca, Enrique IV, e que configurou a segunda fase da guerra civil. Fruto da
ambição desmesurada da nobreza, Enrique IV é confrontado com um manifesto, datado de 28 de
Setembro de 1464. Este manifesto continha um conjunto de reivindicações que deveriam ser satisfeitas
pelo monarca: preservar a fé cristã, emendar a justiça, não favorecer validos tal como D. Beltrán de la
Cueva, a quem tinha sido concedido o mestrado de Santiago, que era parte da herança do infante Alfonso,
o qual queriam que fosse jurado príncipe herdeiro, etc. Começou a guerra civil, com revoltas em várias
cidades. Por abominar o recurso continuado à violência, o monarca encetou negociações com os Grandes,
conseguindo os nobres que Enrique entregasse a custódia de Afonso a Juan Pacheco, que fizesse D.
Beltrán renunciar ao mestrado de Santiago e atribuí-lo ao dito infante. Estas negociações conheceram um
segundo momento, entre Cigales (onde ficou a nobreza) e Cabezón (onde se instalou a corte de Enrique
IV). A demonstração de força por parte da nobreza arrancou do rei uma autêntica capitulação: a sucessão
de Castela a favor de Afonso, ao qual foi atribuído o mestrado de Santiago. Houve ainda uma terceira fase
de negociações, com ambos os partidos a serem representados por uma comissão, em Dezembro de 1464,
da qual sairá a sentença de Medina del Campo (16 de Janeiro de 1465). Na verdade, este documento
traduz, de novo, a ambição sem limites da nobreza, procurando reformar a monarquia a ponto de a
transformar num sistema representativo, no qual o rei seria apenas mais um entre pares. Como Enrique
rejeitasse a sentença, a nobreza depôs o rei, alçando o infante Alfonso por rei, num momento encenado e
com todos os símbolos necessários ao protocolo, no que ficou conhecida como a Farsa de Ávila (5 de
Junho de 1465). Cfr. AZCONA, Tarsicio de – Isabel la Catolica – estudio crítico de su vida y su reinado,
Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1993, pp. 94-104. Veja-se igualmente VAL VALDIVIESO,
Maria Isabel del – «La farsa de Ávila en las crónicas de la época», in Espacios de poder y formas sociales
en la Edad Media. Estudios dedicados a Ángel Barrios, editado por G. Del Ser Quijano e L. Martín Viso,
Salamanca: Universidad de Salamanca, 2007, pp. 355-367.
39
Com o acordo de Toros de Guisando, o qual reafirma os direitos de Enrique IV e
declara a princesa Isabel herdeira do trono, Palencia não se manifestou satisfeito. Ele
pretendia a proclamação de Isabel como rainha e não como princesa herdeira. Quando
se prepara o casamento desta com Fernando de Aragão, Palencia volta a arriscar a sua
vida na defesa deste matrimónio, já que a união com Aragão significava a derrota, ou
pelo menos um grande golpe, na oligarquia dos Grandes. De um casamento tão incerto,
há uma ilação que podemos retirar com relativa certeza, a qual nos é transmitida pelo
próprio cronista67
: Palencia empenhou-se até ao limite das suas forças em fazer com que
Isabel se casasse com Fernando. É este exímio negociador que medeia as relações entre
Juan II de Aragão e o arcebispo Alfonso Carrillo, nas quais se determinam os dotes de
ambos os partidos. Em 1469 Palencia assiste ao casamento dos príncipes, em Valladolid.
Não é por se ter consumado o casamento que cessam as missões de Palencia. O
cronista continua a actuar diligentemente na defesa dos interesses de Isabel e Fernando
e no dirimir de conflitos entre alguns dos nobres mais importantes do reino, ou no
mediar nas longas negociações para o titular do mestrado de Santiago, no ano de 1474,
mantendo-se fiel até ao fim, mesmo quando o seu amigo Carrillo abandonou o partido
dos jovens monarcas para se filiar no de Afonso V.
Podemos então traçar o retrato de um cronista equilibrado, historiador e letrado,
crente nas suas convicções e na justiça, que não só actuou mas também foi uma figura
proeminente na política interna e externa do reino de Castela na segunda metade do
século XV. Este é, portanto, o retrato psicológico que dele traça Paz y Meliá, que o
traduziu, o qual será, todavia, demasiado benevolente. Tate explica que Palencia nos
oferece uma verdade entre muitas, coerente em si mesma, mas que não tem a ver com
critérios de objectividade, fidelidade às fontes ou neutralidade do narrador, tendo este
cronista divergido das práticas tradicionais da cronística régia, para se aproximar do
estilo humanista italiano, não necessariamente de cariz historiador68
. Torres Fontes, no
estudo introdutório à Crónica de Enrique IV, de Galíndez Carvajal, adverte que
devemos ser prudentes ao ler as palavras de Paz y Meliá, já que o trabalho que o último
teve para com o seu objecto de estudo talvez Galíndez Carvajal lhe tenha diminuído a
67 Cfr PALENCIA, Afonso de – Crónica de Enrique IV, vol. 2, Madrid: Atlas, 1975, pp. 255-295.
68 TATE, Robert Brian - «Alfonso de Palencia y los preceptos de la historiografía», in separata das Actas
de la III academia literaria renascentista, Salamanca: Universidad de Salamanca, 1983, p. 51.
40
objectividade e o tenha levado para caminhos menos isentos. Continua reiterando que
numa altura em que ninguém era imparcial, o ódio de Palencia a Enrique IV era de tal
ordem, que da pena do cronista dardejaram farpas que causticaram a imagem do
monarca até mais não poder69
. Mais equilibrado será considerarmos o cronista como
alguém que elaborou uma obra cujo epicentro são os Reis Católicos, sendo o objectivo
principal do seu trabalho demonstrar o quão benéfico foi o seu reinado para Castela, por
ter acabado com o mal reinante e impor um clima de justiça e de bom governo. Porém,
no decorrer do seu trabalho, não mantém a mesma atitude perante ambos os monarcas,
manifestando clara preferência pelo rei e vendo com alguma dificuldade uma mulher a
exercer as rédeas do governo do reino.
O ano de 1477 é o último em que temos conhecimento da intervenção do
cronista na vida pública do reino vizinho. Mas com que se ocupou ele até 1492, ano em
que faleceu? Paz y Meliá conjectura70
, através de um documento, que era vizinho de
Málaga em 1488. Sabemos ainda que escreveu catorze obras, algumas das quais
fabuladas e com o seu duplo sentido a fazer alusão a episódios políticos e militares dos
reinados de Juan II e de Enrique IV. O último dos seus trabalhos, o Universal
vocabulario, foi acabado e publicado em 1491.
A obra de Palencia vem citada na bibliografia como Crónica de Enrique IV. Na
verdade, esse nome não está inteiramente correcto, embora tenha sido o adoptado por
Antonio Paz y Meliá, ao verter o trabalho original do cronista de latim para castelhano,
uma vez que grande parte das Décadas latinas, título pelo qual também é conhecida a
obra, dizem respeito ao reinado de Enrique IV71
. Estas terão sido escritas após 1477,
tendo o autor morrido antes que a obra tivesse chegado à imprensa – e parece que a obra
ficou inacabada, segundo informação que temos do prior do mosteiro de Cuevas de
Sevilha, em 1574. É de acreditar que tenha requerido ao cabido de Sevilha para ser
69 Cfr. TORRES FONTES - «Estudio sobre la Crónica de Enrique IV…», pp. 28-29.
70 PAZ y MELIÁ - «Introducción», pp. XXVI e XXVII.
71 Paz y Meliá explica que o título atribuído pelo autor é Alphonsi Palentini Gesta hispaniensia ex
annalibus suorum dierum colligentis, o que traduzido seria Sucessos de Espanha, recolhidos por Afonso
de Palencia dos anais de seu tempo (1440-1477). Cfr. PAZ y MELIÁ - «Introducción», p. XXXVII, nota
1.
41
enterrado na catedral da cidade e também para que as suas obras nela fossem
guardadas72
.
Fernando del Pulgar73
foi contemporâneo de Afonso de Palencia, embora não
se saiba exactamente a data em que nasceu; pode sugerir-se, contudo, os decénios de
vinte e de trinta de 1400 como possíveis para o seu nascimento. Teve, portanto, a
possibilidade de acompanhar presencialmente os reinados de Juan II, Enrique IV e dos
Reis Católicos. Apesar de o lugar de nascimento ser também meramente conjectural74
, é
tido como pacífico que Pulgar foi um cristão-novo, conclusão que se retira de passagens
das suas obras75
.
A sua formação técnica como escrivão, assim como as relações pessoais que
manteve com altos dignitários da nobreza, atestam a sua presença nos meios cortesãos,
nos quais tem uma relação de destaque com o cardeal Pedro González de Mendoza76
.
72 Além do exposto, gostaria de referenciar mais alguns títulos bibliográficos importantes para
compreender a obra de Palencia: GARCÍA LOZANO, Emilio «El cronista Alfonso de Palencia y su
relación con Isabel I de Castilla», in Revista de estudios colombinos, n.º 1, 2005, pp. 103-116; REAL
TORRES, Carolina - «Apuntes sobre el humanista Alfonso de Palencia y su obra», in Revista de filología
de la Universidad de La Laguna, n.º 17, 1999, pp. 657-670; TATE, Brian – «Las Décadas de Alfonso de
Palencia», in Estudios dedicados a James Leslie Brooks, coordenado por José Miguel VEINTEMILLA
RUIZ, 1984, pp. 223-242; ALEMANY FERRER, Rafael - «La aportación de Alfonso de Palencia a la
Historiografia peninsular del siglo XV», in Anales de la Universidad de Alicante, Historia Medieval, n.º
2, 1983, pp. 187-206.
73 Há toda uma problemática subjacente ao nome deste cronista, o qual pode aparecer como Hernando del
Pulgar ou Fernando de Pulgar. Seguirei a forma mais comum e a que aparece na documentação da época:
Fernando del Pulgar. Cfr. MATA CARRIAZO, Juan - «Estudio preliminar» in Crónica de los Reyes
Católicos, de Fernando del Pulgar, Madrid, 1943, p. XXXIII.
74 O estudo introdutório à crónica de que presentemente me ocupo resume as propostas já apresentadas,
entre as quais se destacam Madrid, Toledo e Pulgar. Não obstante, não há dados que nos permitam dar a
primazia a uma em detrimento das demais. Veja-se: MATA CARRIAZO - «Estudio premilinar», 1943, pp.
XXVIII-XXXI; PÉREZ PRIEGO, Miguel Ángel - «Introducción», in Claros varones de Castilla, Madrid:
Ediciones Cátedra, 2007, p.11.
75 Sobre este assunto veja-se PONTÓN, Gonzalo - «Estudio preliminar» in Crónica de los Reyes
Católicos, de Fernando del Pulgar, Madrid, 1943, pp. VIII-XIX, e em particular, p. VIII, nota 4. Já
Carriazo tinha indicado as origens de cristão-novo para Pulgar (MATA CARRIAZO - «Estudio
preliminar», 1943, pp. XXI-XXV e pp. XLIX-LI, onde o autor publica uma carta inédita de Pulgar, sobre
a execução dos cristãos-novos).
76 A relação entre o cronista e o prelado foi clarificada por Carriazo, explicando que ambos seguiam uma
mesma linha de pensamento político, tendo Pulgar um apoio sólido em Mendoza, afastando por completo
42
Há também quem creia77
que Pulgar tenha sido discípulo de Alonso de Cartagena – tal
como Alonso de Palencia, Rodrigo Sánchez de Arévalo e Diego Rodríguez de Almela o
foram.
Temos uma grande lacuna no conhecimento da sua infância e educação, apenas
colmatada por alguns dados que podemos obter no prólogo da obra Claros varones de
Castilla, mas supõe-se que devia já estar ao serviço da coroa castelhana a partir de
1440, serviço esse que desempenhou por mais quatro décadas.
Com várias missões desempenhadas em França, é de crer que Pulgar dominava o
francês, bem como o latim e possivelmente o árabe. Continuando no campo da
diplomacia, o cronista deslocou-se a França (1459 e 1464), como já disse acima, a
Roma (1473) como procurador de Enrique IV para concertar o casamento de Juana, a
Beltraneja e participou ainda em inúmeras embaixadas como mediador de assuntos de
importância na política interna castelhana, como as embaixadas enviadas ao arcebispo
Carrillo, para tentar negociar a paz.
Fernando del Pulgar acompanha com sucesso a transição de reinado de Enrique
IV para os Reis Católicos, possivelmente devido à sua imparcialidade (ao contrário de
Palencia), começando a escrever cartas em favor dos novos reis78
, em Abril de 1475.
Pouco depois foi enviado uma vez mais a França (1475), desta vez para comunicar a
Luís XI a morte de Enrique IV, o que apresentava um compromisso de continuidade, e
para dirimir o conflito do Rossilhão79
e evitar que o monarca francês se aliasse a
Portugal na guerra contra Castela que estava iminente.
a ideia de que a Crónica fosse do cardeal ao invés de ser dos Reis Católicos. Cfr. MATA CARRIAZO –
«Estudio premilinar», 1943, p. XVI.
77 TATE, Robert Brian; LAWRENCE, Jeremy - «Introducción» in Afonso de Palencia, Gesta
Hispaniensia ex annalibus suorum dierum collecta, Madrid: Real Academia de la Historia de la literatura
española, 1998, tomo 1, p. XXXV.
78 Podemos destacar a letra V, apologia de Isabel a Francisco de Santillana, bispo de Osma; a letra III,
dirigida ao arcebispo Alfonso Carrillo e a letra VII, enviada a Afonso V.
79 O território do Rossilhão era um problema complicado para a coroa castelhana. Estava em mãos
francesas desde que Juan II permitira a entrada de tropas estrangeiras na Catalunha para socorrer Gerona.
Como se isso não bastasse, podia verificar-se a aliança entre o reino de além-Pirenéus e o reino luso, o
que aumentaria as frentes armadas do conflito que ainda estava por acontecer.
43
As notícias sobre Pulgar conhecem um hiato desde 1475 até à primeira metade
de 1477, ou seja, durante o período em que o conflito político escala de tal forma que se
transforma numa guerra entre Castela e Portugal, não sendo de rejeitar que o secretário
se movimentasse pelo terreno, acompanhando os Reis Católicos no decurso do conflito
armado. Mata Carriazo avança a hipótese de Pulgar ter morrido em 149080
, já que a
narração da crónica se interrompe abruptamente nesse ano e com a campanha de Baza,
mas em virtude de haver uma referência ao cronista posterior, no Arquivo Geral de
Simancas, essa data tem de avançar para 1492.
Historiador na sua Crónica, biógrafo nos Claros Varones de Castilla, letrado e
político nas Letras, é a partir da análise das suas obras que se pode conjecturar que é um
letrado com formação bíblica81
e clássica. Gonzalo Pontón deixa bem claro que devido
às influências que colhe – modelos clássicos como por exemplo Cícero, Salústio e Tito
Lívio, Pulgar não está na vanguarda cultural do seu tempo, ao contrário de Alonso de
Palencia82
. Nunca cita os autores clássicos na crónica porque pouco os usa, embora,
como já referi, o seu estilo nos dê a percepção de que os conhece bem. Hoje em dia isto
pode parecer-nos estranho, mas era prática comum para os cronistas medievais. Assim,
o resultado da sua Crónica de los Reyes Católicos veicula o tradicional modelo
narrativo com a adição de «el color retórico y el pathos de los razonamientos a la
manera de Livio»83
. Porém, há outros elementos a considerar que são o carácter
biográfico e ensaístico da sua escrita, sendo neste último considerado um precursor84
.
Ainda relativamente à sua Crónica podemos constatar que, ao fazer o levantamento dos
feitos contemporâneos, não se baseia em outros autores, já que a sua posição de
80 Para uma cronologia da vida de Pulgar mais ao pormenor, veja-se MATA CARRIAZO - «Estudio
preliminar», 1943, pp. XVII-XVIII.
81 O autor do estudo preliminar desta crónica expõe o caso nestas palavras: «La presencia de referencias
bíblicas y cristianas concretas es ténue, pero el peso de las Escrituras como marco intelectual, doctrinal,
histórico e incluso léxico queda fuera de duda». Cfr. PONTÓN - «Estudio preliminar», 1943, p. LXII.
82 PONTÓN - «Estudio preliminar», p. XXXIII.
83 PONTÓN - «Estudio preliminar», p. XXXIII.
84 PONTÓN - «Estudio preliminar», pp. XLIX-L.
44
secretário lhe daria acesso a um manancial de informação oficial que o dispensaria de
ter de recorrer a terceiros85
.
Que dizer então sobre a Crónica? É uma narração oficial, logo condicionada à
vigilância régia, mas na qual o autor proclama, como não podia deixar de ser, desejar
contar «la verdad de las cosas» na narração e empreendê-la «depuesto todo odio o
afición de personas», mantendo, todavia, mesmo nos assuntos mais melindrosos, «toda
templanza». Parte da obra já estava escrita em 1482, dado que nessa altura Pulgar foi
convocado à corte dos Reis Católicos para dar conhecimento do trabalho que já tinha
realizado. Em 1490 o relato é interrompido.
É uma narração austera em termos de decoração literária, já que o que importa é
relatar os factos. Neste processo há uma lógica de continuidade que remete o leitor para
as crónicas passadas86
, podendo perceber-se pela leitura das obras de Pulgar que o papel
da história é salvar do esquecimento os feitos mais notórios, função que é colocada ao
serviço da política e dos monarcas, tal como costuma acontecer em toda a cronística
medieval.
Diego Enríquez del Castillo nasceu em Segóvia em 1443 e foi um cronista que
durante muito tempo foi preterido em função de Afonso de Palencia, uma vez que a sua
obra sempre foi considerada muito panegírica. Aureliano Sánchez Martín veio
demonstrar, no seu estudo crítico da crónica de Castillo, que, até ao momento, este autor
só tinha sido considerado como cronista e historiador, ficando olvidada a sua faceta de
tratadista político87
, o que lhe permite afirmar que «dado el acopio de ideas políticas que
85 Veja-se MATA CARRIAZO - «Estudio preliminar», 1943, pp. CL-CLI. O autor faz um levantamento
das cartas, memoriais, relações e avisos mais importantes que chegavam à corte e que Pulgar teve à sua
disposição e utilizou, de facto, na redacção da sua Crónica de los Reyes Católicos.
86 São exemplos as referências à morte do infante Alfonso (vol. I., p. 9), ao carácter pouco idóneo da
rainha Juana (vol. I, p. 16) e à deposição de Ávila (vol. I, p. 21), as quais dirigem o leitor para a crónica
de Enrique IV, provavelmente de Castillo. Da mesma maneira, é possível identificar outras crónicas
usadas por Pulgar, tais como a Crónica de Juan II e a Crónica del Halconero. Mata Carriazo provou que
não mais é possível atribuir a autoria de uma crónica de Enrique IV, hoje perdida, a Pulgar, apresentando
em defesa deste argumento numerosos casos em que o cronista se posiciona de uma forma alheia e
longínqua face a exemplos que seriam mais apropriados a essa crónica, negando assim a sua autoria.
Sobre este assunto, veja-se MATA CARRIAZO - «Estudio preliminar», 1943, pp. CI-CVI.
87 Acerca da vertente política de Castillo, considero importante citar uma passagem mais longa de Nieto
Soria: «el propio devenir político del reinado de Enrique IV, así como la condición de Diego Enríquez del
45
se observan en la Crónica, que la narración histórica está sobrepasada por el
razonamiento político, lo cual en sí mismo es un hecho de singular transcendencia, a la
par que innovador»88
. Daí que o mesmo autor conclua que, apesar do antagonismo que
separa Castillo de Palencia, nenhum deles tem de estar a mentir. Ambos contam a
verdade mas a partir de uma perspectiva pessoal e distinta. Tal só é possível porque a
partir do século XV, a história começa a ser cultivada em sectores sociais mais
abrangentes, afastando-se do modelo cronístico rígido que já vinha desde Afonso X.
Podemos situar tal charneira no reinado de Pedro I, com os seus acontecimentos sociais
e políticos. Desta maneira chegamos a um período, justamente com Enrique IV, em que
há dois cronistas oficiais89
, cada um representando um clã aristocrático e proclamando
como legítimas as suas opiniões. Também neste aspecto é flagrante o contraste com a
história política portuguesa, na qual os cronistas oficiais se sucederam ordenadamente, e
praticamente sem conflitos, na tarefa de elaborar a Crónica Geral do Reino. É esta a
situação que ocorre com Castillo e Palencia, uma vez que se baseiam numa concepção
diferente do poder real e nobiliário e que se apoiam numa documentação que usam em
função das suas perspectivas pessoais90
. Tanto assim que esta crónica de Enríquez del
Castillo vai muito mais além do que somente favorecer a figura do monarca. O seu
intuito é defender a monarquia enquanto instituição e, apesar de ter carta-branca no
acesso à documentação régia, apresenta menos aspectos cronológicos e documentais do
Castillo como capellán real, además de miembro del Consejo Real de este monarca, potenciarían un
interés por la dimensión político-didáctica-ejemplarizante que tanto contribuyó al éxito posterior de la
obra de este cronista. […]Desde el punto de vista formal, supone un aspecto particularmente rotundo de
esta crónica la amplísima presencia que en ella tienen los discursos y piezas oratorias, siendo
precisamente con tal motivo cómo se introduce una buena parte de sus reflexiones sobre los ideales
políticos que defendía el cronista. A ello se añade que muchos de estos discursos parecen bastante
sospechosos de ser resultado total o parcial, según el caso, de la propia invención del cronista, por lo que
bien puede plantearse la hipótesis de su utilización como una forma de introducir el mensaje político que
quería destacar en cada caso, conectándolo con circunstancias de conflicto concretas». NIETO SORIA,
José Manuel - «La oratória como speculum regum en la Crónica de Enrique IV de Diego Enríquez del
Castillo», in Memorabilia: boletín de literatura sapiencial, Nº. 7, 2003, p. 1. Disponível em
<http://parnaseo.uv.es/Memorabilia/Memorabilia7/Nieto.htm>, ISSN 1579-7341, [consultado em 2009-
10-21].
88 SÁNCHEZ MARTÍN, Aureliano - «Introducción» in Crónica de Enrique IV, Valladolid: Universidad
de Valladolid, 1984, p. 7.
89 O terceiro cronista oficial, tal como foi referido acima, é Martín de Ávila. Embora se saiba quem foram
os cronistas oficiais régios através das Quitaciones de corte, legs. 2, 3 e 4, contidas no ARCHIVO
GENERAL DE SIMANCAS, não se conhece a obra deste Martín de Ávila.
90 SÁNCHEZ MARTÍN - «Introducción», pp. 12 e 57-59.
46
que seria de esperar91
, razão suficiente para ser considerado como inovador92
. A sua
Crónica de Enrique IV desenvolve-se em torno de um personagem devidamente
moldado: «el rey, y tanto las ideas como los hechos sirven para corroborar el
planteamento que se pretende, de acuerdo a los princípios de la época. Así, pues, la
temática política de la Crónica queda condicionada por este princípio básico
enunciado»93
. Na verdade, Castillo fez plasmar na Crónica uma imagem da monarquia
que vai buscar as raízes hispano-godas94
, justificando assim, como se disse, a instituição
da monarquia ao longo da obra, fortalecendo-a, o que explica um prólogo e um primeiro
capítulo apologético de Enrique IV. Dito por outras palavras, o cronista pretende dar a
conhecer bons exemplos, formadores dos sucessos da monarquia. Por via disso, embora
favorável ao rei, não deixa de apontar os seus defeitos, nem de os censurar quando acha
necessário, o que o afasta da adulação própria de outros. A sua obra terá sido redigida
entre 1481 e 150295
.
Diego Enríquez acumulou com a sua função de cronista o cargo de conselheiro
régio. Por se viverem tempos de guerra civil, certo dia os seus aposentos foram
atacados, os seus escritos confiscados e o cronista foi preso e levado à presença do
Arcebispo de Toledo, tendo escapado à morte apenas pela sua condição de clérigo.
Contra ele evidenciava-se o facto de expressar posições muito duras face à alta nobreza,
a quem atacava, afirmando que rapidamente esquecia os seus princípios e juramentos96
.
Os seus «registros que tenía escritos de la Crónica del rey» foram dados a Palencia para
91 SÁNCHEZ MARTÍN - «Introducción», p. 21.
92 BERMEJO CABRERO - «Las ideas políticas de Enríquez del Castillo», in Revista de la Universidad
de Madrid, 22, 86, Madrid, 1973, pp. 61-78 e SÁNCHEZ MARTÍN - «Introducción», p. 36.
93 SÁNCHEZ MARTÍN - «Introducción», p. 36.
94 Aqui remeto o leitor para o capítulo «O Legado Godo como norteador da política castelhana».
95 SÁNCHEZ MARTÍN - «Introducción», p. 54.
96 No artigo de José Manuel Nieto Soria, já acima citado, estão bem demonstrados quais deveriam ser os
deveres dos nobres perante o rei, ao longo da sua crónica, isto é, Castillo servia-se da oratória para
veicular mensagens sobre os seguintes temas: os fundamentos de legitimidade do poder real; as
qualidades régias; os deveres dos oficiais e cavaleiros perante o rei; e os deveres dos vassalos perante o
rei, o que acabava por ser uma pedra no sapato; daí este cronista ter sido perseguido. Cfr. NIETO SORIA
- «La oratória como speculum regum…», pp. 1-6.
47
que os reescrevesse97
. Mais tarde compôs novamente o que já tinha redigido, o que pode
explicar a sua cronologia incorrecta, contrastando nesse aspecto com a exactidão de
Palencia. Em 1468 escreveu à cidade de Toledo por ordem do rei. Nesta missiva
aproveitou para demonstrar a sua teoria política, a qual se baseia em conceitos como
lealdade, traição, egoísmo, fama e providência98
. Entre várias missões diplomáticas que
desempenhou em Castela e no estrangeiro, em nome de Enrique IV99
, e alguma
correspondência que trocou com Diego de Valera100
, é designado pelo monarca para
receber o legado do papa, Rodrigo de Borja e para mediar as comunicações entre o
legado e o rei, em 1472. Com a morte de Enrique em 1474, a sua actividade esbateu-se e
as notícias sobre ele diminuíram drasticamente. Tem-se ainda conhecimento de uma
última actividade pública em 1503, conforme atesta uma carta de Isabel, no dirimir de
um problema entre o duque do Infantado e o marquês de Villena. Este cronista morreu
em Segóvia, possivelmente no mesmo ano.
Mosén Diego de Valera nasceu em 1412, presumivelmente em Cuenca e
assistiu aos reinados de Juan II, Enrique IV e Isabel e Fernando. O seu verdadeiro nome
era Diego Alonso, mas em 1452 foi autorizado a mudar de nome para Diego de Valera.
Junto de todos os monarcas mencionados desempenhou funções como por exemplo
conselheiro, procurador, economista, douto em leis e costumes cavaleirescos,
embaixador, historiador, etc101
. À medida que se ia tornando mais experiente, a sua
visão da política e do mundo tornou-se mais abrangente, para o que também devem ter
contribuído as viagens que empreendeu a vários países da Europa central e ocidental.
Como já notou Mata Carriazo, a sua vocação são os tratados ou dissertações sobre
temas morais, políticos, históricos e cavaleirescos, os quais dedica a personalidades da
época. Porém, ele não é inovador nem no campo da história, nem no campo da
97 CEIV-DEC, pp. 289-290. Sobre este episódio veja-se também PAZ y MELIÁ, «Introducción», pp.
XLIV-XLV.
98 CEIV-DEC, pp. 303-305.
99 Veja-se SÁNCHEZ MARTÍN - «Introducción», p. 30.
100 Cfr. SÁNCHEZ MARTÍN - «Introducción», p. 31.
101 Para uma lista completa e datada com as funções que exerceu Diego de Valera, veja-se MATA
CARRIAZO, Juan - «Estudio preliminar» in Crónica de los Reyes Católicos de Diego de Valera, Madrid,
1927, p. VIII.
48
literatura102
. O mesmo historiador vai mais longe afirmando que «Valera es,
exactamente, mejor do que Bernáldez, a quien propone Menéndez Pelayo, el último de
los cronistas castellanos de la Edad Media»103
.
Armado cavaleiro em 1435 por Fernán Alvaréz, ao demonstrar sagacidade e
bravura no assalto à vila de Huelma, não se mostrou satisfeito e pediu a dispensa régia
para se deslocar a França para se distinguir pelas armas. Fernando del Pulgar registou as
viagens de Valera não só a França, como também a outros reinos. Estas serviam o
propósito de obter a glória e a honra pelas armas, não apenas numa vertente pessoal,
mas também para os nobres de Castela em geral, ao serviço de Juan II.
Quando Juan II morreu, Diego de Valera seguiu Enrique IV, a quem serviu como
mestre-sala e como donzel em Segóvia. No entanto, na sua postura muito própria, não
se escusou de criticar o monarca acerca do que ia de mal no reino104
. A sua simpatia não
esteve com Enrique IV; e daí que não lhe tenha dedicado nenhuma obra. Escreveu para
D. Juana o Memorial de Diversas Hazañas, o qual serve como crónica de Enrique IV,
apresentando-se como um texto parcial a favor do bando rebelde ao rei e preconizava já
um apoio aos futuros Católicos105
. Enquanto vizinho de Cuenca, em 1458, contribuiu
com seis lanças para a guerra contra Granada e no conflito sucessório tomou o partido
dos futuros Reis Católicos.
É interessante fazer menção ao facto de Valera considerar que não havia príncipe
suficientemente digno em Castela a quem dedicar o seu Tratado de las armas. Quiçá a
sua obra de mais agradável e fluente leitura, havia de ser dedicada «al muy alto e muy
excelente e muy virtuoso príncipe don Alonso, quinto rrey deste nonbre de Portogal e
del Algarve, señor de Cepta e Alcáçar Çeguer»106
, a quem haveria de criticar
102 MATA CARRIAZO - «Estudio preliminar», 1927, pp. VIII-IX.
103 MATA CARRIAZO - «Estudio preliminar», 1927, p. IX.
104 Epístolas y Tratados de Diego de Valera, pp. 17-20, citado por MATA CARRIAZO, Juan - «Estudio
preliminar» in Crónica de los Reyes Católicos, Madrid, 1927, p. XLVI.
105 MATA CARRIAZO - «Estudio preliminar», 1927, p. LXXXIX. VAL VALDIVIESO, Maria Isabel del
- «La Reina en las crónicas de Diego de Valera y Alonso de Palencia», in Visión del reinado de Isabel la
Católica: desde los cronistas coetáneos hasta el presente: ponencias presentadas al IV Simposio sobre el
reinado de Isabel la Católica, coord. de Julio Valdeón Baruque. Valladolid: Ámbito, 2004, p. 71.
106 MATA CARRIAZO - «Estudio preliminar», 1927, p. XC. Por não ser uma obra de fácil consulta, não
me escuso de fazer uma citação mais alongada, a qual contém o elogio inicial a Afonso V: «Sy aquel
49
posteriormente na obra que utilizei amiúde neste trabalho – a Crónica de los Reyes
Católicos, escrita entre 1482 e 1488107
.
Com a morte de Enrique IV e a proclamação de Isabel, Valera seguiu os Reis
Católicos, com quem manteve boas relações (continuou a ser mestre-sala e a pertencer
ao conselho dos reis), das quais a correspondência trocada entre ambos é prova108
,
sendo que o ano de 1476 é o mais profícuo a nível de correspondência.
Em 1482 temos notícias de Valera na guerra com Granada, o qual apresentou
considerações que nos são bastante úteis no presente para o estudo da marinha de guerra
castelhana, embora tenha morrido antes de o reino ter sido completamente
reconquistado, tendo provavelmente o óbito ocorrido em 1488, com setenta e seis anos
de idade109
.
De todas as obras que lhe são atribuídas110
, decidi escolher a Crónica de los
Reyes Católicos, não só pela sua originalidade e valor histórico111
, como também
dicho de Sócrates, príncipe muy excelente, devemos crer que dize entonce la tierra ser bien aventurada
quando los príncipes della son sabios, quánto por tal la vuestra tener se pueda, la clara fama de vos por
todo el mundo lo divulga, como desde vuestra ynfancia, puerícia, adolecencia, e no menos agora en
vuestra juventud, vuestro muy claro y alto ingenio en diversas ciencias ayáis exercitado; no por esso en
cosa menguando vuestro oficio rreal, mas prudentemente dando las cosas a los tienpos, como la
oportunidad o caso lo rrequieren, que allá donde consejo conviene, por otro Salomón soys avidos; e
donde execución, esfuerço o veril osadía, no fazen mengua Cipión ny Aníbal; e donde liberalidad se
requiere, a Trajano e Alisandre sobráys».
107 MATA CARRIAZO - «Estudio preliminar», 1927, p. CXVIII.
108 Para uma breve descrição desta troca de correspondência veja-se MATA CARRIAZO - «Estudio
preliminar», 1927, pp. L-LVIII.
109 MATA CARRIAZO - «Estudio preliminar», 1927, pp. LXVIII-LXX.
110 Diego de Valera tem pelo menos dezassete obras, que podemos dividir por reinados e cujos títulos
indico. Reinado de Juan II: Arbol de las batallas; Espejo de verdadera nobleza; Defensa de virtuosas
mugeres; Exhortación de la paz. Reinado de Enrique IV: Tratado de las armas; Providencia contra
Fortuna; Ceremonial de príncipes; Breviloquio de virtudes; Origen de Roma y Troya; Carónica de la
casa de Estuñiga. Reinado dos Reis Católicos: Doctrinal de príncipes; Prehousinencias y cargos de los
oficiales de armas; Genealogia de los reyes de França; Tratado de los ilustres varones de España;
Crónica abreviada de España; Memorial de diversas hazañas e Crónica de los Reyes Católicos. Cfr
MATA CARRIAZO - «Estudio preliminar», 1927, p. X.
111 MATA CARRIAZO - «Estudio preliminar», 1927, p. CXXXV. Note-se que apesar de Valera ter bebido
informação em Enríquez del Castilo, não podemos esquecer que ele foi uma testemunha presencial em
grande parte dos acontecimentos que narra.
50
porque a primeira parte112
é inteiramente dedicada à guerra com Portugal (1474-1480).
Interessa-me, sobretudo, até ao capítulo XLIV. É uma obra que tem de ser estudada e
contraposta à Crónica de Enrique IV de Palencia113
, com a qual apresenta estreita
correspondência e à qual Valera adiciona «variantes, novedades y juicios que dan valor
personal a su relato»114
. O Memorial de Diversas Hazañas foi também preterido, uma
vez que Mosén Diego de Valera nos avisa da sua intenção no prólogo da sua obra, na
qual não se propõe narrar de forma seguida e completa os sucessos do reinado de
Enrique IV, mas sim fazer uma espécie de compilação dos feitos que mais se
destacaram, justificando-se que os mesmos já estão nas crónicas dos seus
contemporâneos Afonso de Palencia e Diego Enríquez del Castillo115
. Para além disso é
tendencioso. Vale a pena transcrever esta passagem de Sanchéz Martín, acerca do
cronista de que ora nos ocupamos: «Diego de Valera y Alonso de Palencia, lejanos
pronto de la facción real, nos presentan una crónica donde carecemos de inserción de
documentos oficiales, interpretando la historia en beneficio de una idea trazada por la
nobleza opositora a Enrique: desprestigiar al máximo la monarquia. Con ese afán llevan
a cabo su tarea, que se concita especialmente en cargar las tintas sobre la sucesión, dado
que es más dificil deponer al rey. Por lo tanto, más que historiar, interpretan la historia
desde una faceta eminentemente propagandística en favor de lo que creian»116
.
Estamos assim perante um homem de grande longevidade e de excepcional
valor, que assistiu às batalhas de Higueruela, Olmedo e Toro. Interveio na prisão do que
se tornou seu inimigo político – o contestável D. Álvaro de Luna e finalmente
assessorou D. Fernando na guerra contra o reino de Granada.
112
A Crónica de los Reyes Católicos divide-se em duas partes, sendo que a primeira parte diz respeito à
guerra com Portugal e a segunda à guerra com o reino de Granada.
113 Também conhecida por Décadas, por a sua obra estar dividida em décadas. A primeira década termina
com a morte do infante D. Afonso, a segunda com a morte de Enrique IV, a terceira década narra até 1477
e a quarta década diz respeito à conquista da Gran Canaria e à guerra com Granada.
114 MATA CARRIAZO - «Estudio preliminar», 1927, p. IX. Paz y Meliá, alguns anos antes, opinava da
mesma maneira, crendo que dos três autores que aqui considero (Palencia, Valera e Castillo), a obra de
Palencia seria a mais antiga e a mais original, seguindo-se a de Castillo e, por último e mais recente, a
obra de Valera. Cfr. PAZ y MELIÁ, «Introducción», pp. XL-XLIII.
115 VALERA, Mosén Diego de – Memorial de diversas hazañas, ed. de Juan de Mata Carriazo, Madrid:
Espasa-Calpe, 1941, p. XLVIII.
116 SÁNCHEZ MARTÍN, Aureliano - «Introducción», p. 21.
51
Lúcio Marineo Sículo ou Lucas da Sicília nasceu em 1460, em Bidino. Veio
para a Península Ibérica para trabalhar sob o mecenato do almirante de Castela, D.
Fradique Enriquez. Foi um homem tipicamente renascentista que uniu a sua formação
humanista clássica a um grande entusiasmo pelas glórias literárias e pelos grandes
governantes117
. Acolhido na corte de Fernando o Católico, foi nomeado seu capelão e
cronista, além de o ter acompanhado na sua grande viagem a Nápoles, em 1504, já
depois da morte de Isabel. Servirá ainda como capelão sob Carlos I, voltando
temporariamente à Sicília para ser nomeado cónego de Palermo, regressando à
Península Ibérica, onde morre em 1533. Trata-se, portanto, de um bom exemplo da
internacionalização e da troca de ideias que chegava à península, por parte de um
humanista italiano que muito estimou a Espanha.
Foi um cronista que aproveitou e valorizou positivamente a obra de Fernando
del Pulgar, acerca de quem escreve as seguintes palavras: «Scripsit et Hispano sermone
Ferdinandus Pulgarius, homo nimirum in suo genere scribendi satis eloquens, cuius
magnum volumen in latinum sermonem vertit Antonius Nebrissensis»118
.
A Vida y hechos de los Reyes Católicos não é uma obra por si só, mas trata-se de
um excerto da De rebus Hispaniae memorabilibus (Libri XXV), a qual foi composto em
prosa latina.
A visão que podemos encontrar neste seu trabalho é um cenário em que os Reis
Católicos representam o eixo vital do mesmo e no qual o autor exalta a política nacional
castelhana e elogia os valores transmitidos pelos monarcas, sendo o maior disseminador
da cultura renascentista em Espanha119
. Com as devidas reservas, além de informador,
este cronista assim como, por exemplo, Bernáldez ou Juan de Flores, autor da Crónica
117 HIDALGO, Jacinto - «Nota preliminar», in Vida y hechos de los Reyes Católicos, Madrid: Atlas, 1943,
p. 6.
118 Este excerto é retirado do livro XX do seu Opus de rebus Hispaniae memorabilibus, citado por
PONTÓN - «Estudio preliminar», p. XXXV. António Nebrija é um autor na mesma linha de João de
Lucena e de Afonso de Palencia e que podemos opor a Pulgar, culturamente menos inovador. Veja-se
igualmente TATE – Ensayos sobre la historiografia peninsular del siglo XV, pp. 183-211.
119 Cfr. IHRIE, Maureen - «Lúcio Marineo Sículo» in Dictionary of the literature of the Iberian
Peninsula, editado por BLEIBERG, Germán; IHRIE, Maureen e PÉREZ, Janet, Westport (Connecticut):
Greenwood Press, 1993, p. 1017-1018.
52
incompleta de los Reyes Católicos, é um porta-voz de opiniões, ideias e imagens sobre o
poder e a sua concretização por parte dos reis120
.
Andrés Bernáldez foi um autor que teve consciência de que o que escreveu era
manifestamente diferente dos escritos dos cronistas, daí que tenha chamado Memorias à
sua obra e não Crónica ou História, pedindo ajuda ao leitor que tenha presenciado uma
mesma situação que o corrija no caso de ele se ter enganado121
, já que o seu propósito é,
à partida, diferente: «escrevir las memorias de las cosas hazañosas que en mi tiempo
han acaescido, de que yo ove verdadera información»122
. No entanto, é preciso alguma
cautela, já que o que o Cura dos Palácios escreveu tem um carácter descontínuo e
subjectivo, levando a que o produto final seja como uma colecção de narrações
independentes123
. Após a morte de Fernando del Pulgar utilizou algumas obras deste
como fonte histórica, no início do século XVI124
, se bem que dois terços das suas
Memorias se referiam ao período compreendido entre 1491 e 1513125
. Temporalmente,
foram escritas depois de 1500. Para compor a sua obra, Bernáldez usa ainda outras
fontes – narrativas, poéticas, históricas, sejam elas escritas ou orais, que usa como
suporte para os seus comentários ou para delas retirar citações126
.
120 LADERO QUESADA - «La monarquía: las bases políticas del reinado»,pp. 145-146.
121 O mesmo autor afirma nas suas Memorias: «Y por este provecho que de aqui se seguirá, suplico que
ninguno me tenga a locura quererme meter a escrevir lo que es ageno de mi oficio; e a los que mejor
supieren lo que yo escribo, o cualquier parte dello, por lo aver visto e se aver acaecido en ello, suplico que
si algunos defectos o yerros hallaren en mi escrevir, los quieran emendar. A la corrección de los cuales, e
de toda verdad e buena razón, me someto en mi voluntad, no movida a ninguna defectuosa afición ni
vanagloria, ni para ello a nadie ofender; e pensando no ser yerro escrevir por memoria lo que tácito no
deve quedar». Cfr. BERNÁLDEZ, Andrés - Memorias del reinado de los Reyes Católicos, Madrid: Real
Academia de la Historia, 1962, p. 24.
122 BERNÁLDEZ, Andrés – Memorias…, p. 3.
123 GOMEZ-MORENO, Manuel; MATA CARRIAZO, Juan - «Introducción» in Memorias del reinado de
los Reyes Católicos, Madrid: Real Academia de la Historia, 1962, p. VI.
124 PONTÓN - «Estudio preliminar», p. XXXIV.
125 A questão da datação é importante aqui e justifica que, embora Bernáldez tenha utilizado os trabalhos
de Pulgar, a sua escrita seja maioritariamente da sua lavra.
126 Sobre as fontes utilizadas por Andrés Bernáldez veja-se GOMEZ MORENO, MATA CARRIAZO -
«Introducción», pp. XXVII-XXXVII.
53
A seu favor tem o facto de ter presenciado parte do que narrou e veicular as
opiniões e pontos de vista do povo, complementando as ideias expressas nas crónicas
oficiais. Deste modo, não há motivos para que exacerbe os aspectos negativos, nem para
que louve em excesso. Porém, no que diz respeito ao encómio da rainha, é muito mais
expressivo e providencialista do que Pulgar. Nas palavras de Ladero Quesada, dir-se-ia
que «frente a la sobriedad cortesana de Pulgar, Bernáldez expresa una emotividad
popular a favor de Isabel que debía estar muy extendida»127
.
Cristão velho (ao contrário de Pulgar), hostil aos conversos, nasceu em Fuentes
de León (na província de Badajoz) e formou-se em Sevilha, tendo passado grande parte
da sua vida como Cura dos Palácios (lugar que hoje se chama Vila Franca de Marisma).
Não teve qualquer relação com a corte régia128
, embora tivesse feito parte da casa do
marquês de Cádis, Rodrigo Ponce de León e do arcebispo de Sevilha.
Lourenço Galíndez Carvajal, filho bastardo, natural de Placência, nasceu a 23
de Dezembro de 1472. Com formação salamantina em leis, foi nomeado ouvidor da
chancelaria de Valladolid três anos antes de completar trinta anos de idade. A partir daí
sucede-se o outorgar de cargos por parte dos Reis Católicos, tendo sido, inclusivamente,
encarregado de ordenar as leis e pragmáticas dos monarcas anteriores. Este douto em
leis sempre esteve ligado à família régia, pertencendo ao conselho e câmara dos Reis
Católicos, da sua filha, D. Juana, e do seu neto, Carlos I. Acompanhou a última hora de
Fernando, o Católico, altura em que este lhe teria dito, no leito de morte, quem deveria
arcar com o peso do governo do reino. Do cronista dos Reis Católicos sabemos ainda
que foi nomeado para Correio-Mor das Índias e pertenceu à ordem de Calatrava. Não se
127 LADERO QUESADA, Miguel Ángel - «La Reina en las crónicas de Fernando del Pulgar y Andrés
Bernáldez», p. 16.
128 Até praticamente meados do século XIX houve quem tivesse defendido (Salazar de Mendoza em 1620,
Rodrigo Caro em 1634 e Quintana Dueñas em 1637) que Bernáldez teria conhecido pessoalmente
Colombo; que teria estado em contacto com os escritos do segundo, conhecendo os seus antecedentes;
foram avançadas várias datas distintas para a sua morte, etc. O médico cubano Filiberto Ramírez Corría
(Reconstrucción crítica del segundo viaje cubano de Colón: la ficción colombina del Cura de los
Palacios, Havana: Archivo Histórico Pinero: 1955 e em Excerta de una isla mágica ó biografia de un
latifúndio, México: Editorial Olimpo, 1959) abriu caminho para ultrapassar estas incorrecções e, por
último, Manuel Gomez Moreno e Mata Carriazo, no seu estudo crítico das Memorias de Bernáldez,
provaram-no magistralmente. Cfr. GOMEZ MORENO, MATA CARRIAZO - «Introducción», pp. VII-
XXXIX, em especial, pp. XX-XXI.
54
tem a certeza da data da sua morte mas devido a uma carta, datada de 1528, em que o
filho refere o seu pai já defunto, estima-se que possa ter sido esse o seu último ano de
vida.
Começa Torres Fontes no seu estudo sobre a crónica de Carvajal dizendo que
«es más completa que las restantes, pues toma de cada una de ellas lo más interessante y
real, visto com la imparcialidad y serenidad que se puede un quarto de siglo después de
ocorridos los sucesos»129
. Carlos V encarregou Carvajal de corrigir e publicar as
crónicas do século XV130
. É uma tarefa complexa, já que tem de reorganizar, rever e
censurar todos os relatos históricos já existentes, chegando, por vezes, a escrever de
raiz. É um esforço que pretende, no entanto, legitimar a facção isabelina e silenciar as
suas antagonistas. Concretamente, em relação à Crónica de Enrique IV, como já
reconheceu Aureliano Sánchez Martín, o seu relato um quarto de século depois de
transcorridos os acontecimentos é imparcial, salvo no caso da impotência de Enrique IV,
uma vez que seria impensável deixar uma dúvida, por mais pequena que fosse, acerca
da legitimidade de sucessão ao trono, dúvida essa que podia ser explorada pela oposição
ao partido de Isabel a Católica131
. Pelo exposto, é seguro afirmar que o resultado final é
uma crónica, dividida por anos, que se pretende o mais fiel possível e que apresenta
uma cronologia repensada e ligeiramente diferente face à avançada por Enríquez del
Castillo.
Carvajal baseou-se em múltiplos autores para compor a crónica acima citada. Na
verdade, é o primeiro autor que reconhece ter bebido informação em Diego Enríquez del
Castillo. Utiliza preferencialmente Palencia e Castillo, preferindo o segundo, mas não
deixa de aproveitar pontualmente informações já observadas por Valera e por Pulgar.
Mata Carriazo dá a conhecer, através de um manuscrito, o plano de Galíndez Carvajal.
Desta maneira, sabemos que o cronista utilizou a Crónica de Enrique IV de Diego
129 TORRES FONTES, Juan - «Estudio sobre la „Crónica de Enrique IV‟ del Dr. Galíndez de Carvajal»,
in Crónica de Enrique IV de Lorenzo Galíndez de Carvajal, Murcia: Suc. de Nogues, 1946, pp. 10-11.
130 A seguinte observação vem expressa no prólogo da crónica que compôs para Juan II: «cronistas que
este nombre queda a los auctores ya dichos, que fueron varones prudentes y graves y de grande
auctoridad y a otros que esto igualmente tenían por principal oficio. Mas si mis trabajos tal nombre
merecen, como censor de las otras crónicas destes Reyes y desta, porque asi me fue mandado que las
corrigiese y enmendase» (p. 274).
131 Cfr. SÁNCHEZ MARTÍN - «Introducción», p. 57 e TORRES FONTES - «Estudio sobre la „Crónica
de Enrique IV‟…», p. 11.
55
Enríquez del Castillo; Las coplas de Mingo Revulgo que se quitaran y las glosas de
Pulgar a ellas; Los claros varones de Castilla, de Fernando del Pulgar; a Crónica de los
Reyes Católicos também de Pulgar; os testamentos de Isabel e de Fernando e,
finalmente, a Crónica de Enrique IV de Afonso de Palencia132
. Como Torres Fontes já
habilmente notou133
, cada cronista mostra a lealdade para com o partido a que pertence,
do qual recebe favores e mercês: Palencia está ligado à cúria romana e ao reino de
Aragão, sendo também conselheiro de Fernando; Castillo inclina-se para o partido do
rei, sendo capelão, conselheiro e embaixador de Enrique IV; Valera foi pajem de Juan
II, corregedor no reinado de Enrique IV e mestre-sala dos Reis Católicos; finalmente,
Pulgar foi cronista de Isabel e Fernando. Desta forma, o estímulo e as motivações de
cada um são diferentes.
Este cronista atribuiu uma conotação menos favorável à obra de Pulgar, no seu
prefácio dos Anales breves. Embora reconheça que Pulgar escreveu a verdade e o
considere eloquente, Carvajal acusa-o de ser lacónico e de não estar à altura de feitos
tão importantes como os que se passaram nos últimos decénios do século XV,
apelidando-o de avaro. Chega ao ponto de considerar que o então falecido cronista tinha
composto uma história apagada e tendenciosa, «porque más fué coronista del cardenal
don Pero González de Mendoça que del rey ni de la reyna»134
, não havendo lugar
também à inclusão de episódios cortesãos.
Foi, de facto, um trabalho extenuante. Carvajal compilou a informação dos
cronistas que o precederam, suprimindo os argumentos que conferem favoritismo a
qualquer uma das partes, ou que são invenções cujo objectivo é denegrir a imagem de
alguém.
Desmistificando as opiniões adversas dos cronistas em que se baseia, a sua
temperança fá-lo veicular no prólogo a ideia de que os súbditos devem amar os
132 Cfr. MATA CARRIAZO - «Estudio preliminar», 1943, p. LIX; PAZ y MELIÁ - «Introducción», pp. LI
e LII e TORRES FONTES - «Estudio sobre la „Crónica de Enrique IV‟…», p. 12.
133 TORRES FONTES - «Estudio sobre la „Crónica de Enrique IV‟…», p. 12.
134 Esta citação de Carvajal foi retirada do manuscrito 79 da Biblioteca de Menéndez e Pelayo, de acordo
com MATA CARRIAZO - «Estudio preliminar», 1943, p. LIX. Veja-se também PONTÓN - «Estudio
preliminar», 1943, pp. XXXV e LXXI; MATA CARRIAZO - «Estudio preliminar», 1943, p. LXII.
56
soberanos, já que estes conquistam para a pátria as glórias, apresentando o reinado de
Enrique IV como ilustre135
.
O nosso cronista é também autor de originais, como diríamos hoje. Escreveu
uma Historia de Castilla e Anales de los Reyes Católicos, entre outros136
. Os seus pares
mais ou menos contemporâneos julgaram-no como grande autoridade e atribuíram-lhe o
máximo de crédito. Entre eles destaco Lúcio Marineo Sículo e Villalobos, o médico de
Carlos V.
c) Cronistas aragoneses:
Jerónimo Zurita é o único aragonês que utilizei neste trabalho. Foi um cronista
de cuja pena resultaram os Anales de la Corona de Aragón, os quais foram uma fonte
bastante importante para esta investigação. Zurita nasceu em 1512 em Saragoça e
iniciou os seus estudos em Alcalá de Henares, onde aprendeu as línguas clássicas mas
não só. Desde tenra idade que começou a desempenhar cargos públicos, tendo sido
meirinho de Barbastro e de Almodévar. Não obstante ter tido estas responsabilidades
públicas, não desistiu do seu gosto pela literatura clássica e trabalhou em várias
obras137
. Nas cortes aragonesas de 1548, em Monçon, foi nomeado primeiro cronista do
reino, tendo sido encarregado de escrever a crónica da coroa de Aragão em castelhano e
em latim. Como também foi secretário do Santo Ofício da Inquisição, teve necessidade
de viajar pelos Países Baixos e por várias das cidades italianas. Nestas não esteve ocioso
e aproveitou para fazer a recolha documental. Os documentos aí coligidos, juntamente
com os que estavam no arquivo real de Barcelona, foram incorporados no arquivo da
coroa de Castela, em Simancas, o que lhe permitiu elaborar a sua obra magna, os Anales
de la Corona de Aragón. Utilizou ainda as crónicas de Palencia – sobre quem afirma
que é «el historiador más veraz de España», Castillo, Pulgar e Bernáldez.
135 CEIV-LGC, p. 71.
136 Para uma listagem completa dos trabalhos que Galíndez compôs, corrigiu ou acrescentou, veja-se
TORRES FONTES - «Estudio sobre la Crónica de Enrique IV…», pp. 25 e 26, nota 59.
137 Algumas dessas obras em que Zurita trabalhou são o Memorial de las Casas antiguas de este Reyño;
cartas e poesias latinas; ilustrações aos sete livros de Comentários de Júlio César; nas notas a Claudiano;
nas observações a Plínio; na tradução de Severino Boécio, etc. Cfr. Jerónimo Zurita em Retratos de los
Españoles ilustres, con un epítome de sus vidas, Madrid: Imp. Real de Madrid, 1791.
57
Em 1566 Filipe II nomeia-o secretário do seu conselho e câmara. O expoente
máximo do seu trabalho foi, como já referi, a obra intitulada Anales de la Corona de
Aragon, na qual trabalhou trinta anos e cujo último volume foi publicado no ano da sua
morte138
. Nos Anales historiou os sucessos do reino de Aragão, diacronicamente, desde
o período islâmico até ao reinado de Fernando o Católico. Múltiplas críticas lhe
advieram devido ao seu estilo austero, de carácter absolutamente documental, cerebral e
longe das sensibilidades que não fluíam da massa documental e também pela sua
suposta subvalorização de Castela face a Aragão, mas, por outro lado, teve alguns
defensores139
. Independentemente de posições tomadas por outros, Zurita pretendeu
apresentar os seus Anales a partir das fontes, preterindo as obras já escritas, para que
fosse o mais fidedigno possível. Assim também se explica que o ponto de partida da sua
obra seja as invasões árabes, uma vez que para tempos mais recuados não haveria fontes
suficientes que Zurita pudesse usar. Isto não significa que o cronista não conhecesse
bem o passado ibérico, com todas as suas vicissitudes, e a sua organização enquanto
entidades políticas implantadas no território, na altura de mostrar o avanço nas
conquistas aos mouros por parte dos cristãos. Não invalida também que, a partir de uma
perspectiva moderada, defendesse os direitos de Isabel, explicando que ela era única
herdeira legítima à morte de Enrique IV140
.
Assumem-se como utilíssimas as viagens feitas ao estrangeiro, assim como as
consultas aos arquivos de Barcelona (1553), de Valência (1560) e ao arquivo de
Simancas (1567). Deste intenso labor e fruto de uma objectividade ímpar resulta uma
história nacional aragonesa e inclusivamente peninsular, já que os outros reinos da
Ibéria estão igualmente imbricados na obra.
138 Zurita morreu no dia 31 de Outubro de 1580.
139 O cosmógrafo Afonso de Santa Cruz punha em causa a parcialidade de Zurita no que a Aragão diz
respeito, chegando a qualificar o cronista de pedante porque alguns temas eram exagerados. Por outro
lado, Ambrósio de Morales negou esse suposto anti-castelhanismo, se bem que o grande advogado de
Zurita como historiador tenha sido Juan Páez de Castro. Actualmente, a crítica que podemos fazer a
Zurita é que tem um estilo algo tosco, resultante das soluções que teve de encontrar para unir todos os
temas que escreveu, uma vez que o único nexo nos seus Anales de la Corona de Aragón é o guiar-se pela
cronologia, o que pode tornar a leitura pouco agradável. No entanto, os ganhos acabam por superar essa
desvantagem, já que Zurita foi às fontes, citando muitas vezes o que consultou nos documentos, o que o
torna bastante fidedigno.
140 Cfr. VAL VALDIVIESO - «La Reina en las crónicas de Diego de Valera y Alonso de Palencia», 2004,
pp. 65.
58
Por fim, gostaria de assinalar que Zurita tomou uma posição diferente da de
Palencia e também de Valera, evidenciando a atitude de Isabel como tanto ou mais forte
do que a de Fernando, pois a rainha comandou tropas em mais do que uma ocasião,
recebeu a entrega de fortalezas e cidades e foi sobretudo ela quem visitou importantes
territórios, como é o caso da Andaluzia, entrando em Sevilha e moderando as
discrepâncias entre o duque de Medina-Sidónia e o marquês de Cádis. Além disto, teve
ainda um importante papel nas relações internacionais, negociando a paz com
Portugal141
.
A base documental extraordinária que reuniu, juntamente com o seu sentido
crítico, ponderação e compreensão das realidades aragonesas nos contextos ibérico e
europeu, atribuem a esta obra um valor importantíssimo e fazem com que ela seja uma
das primeiras histórias nacionais de monta de todos os tempos.
d) Crónicas castelhanas:
O Cronicón de Valladolid tem como possível autor o Doutor de Toledo. O texto
não abarca só a história da cidade, mas recolhe também notícias relativas à monarquia,
extravazando assim o espaço de Valladolid, ordenadas de uma forma cronológica
bastante abrangente, indo de 1333 a 1539. Comportando um espectro alargado de
sensivelmente 200 anos, podemos colocar a questão de quem o terá elaborado. Estas
notícias históricas terão sido recopiadas possivelmente até meados do século XVI e a
parte mais importante é a que diz respeito aos Reis Católicos, a qual parece poder
atribuir-se ao Doutor Juan (?) de Toledo, físico de Isabel e médico na Universidade de
Valladolid142
. Como este autor morre em 1497 e sendo que o manuscrito original se
141 BELENGUER, Ernest - «Isabel la Católica vista por Jerónimo Zurita», in Visión del reinado de Isabel
la Católica: desde los cronistas coetáneos hasta el presente: ponencias presentadas al IV Simposio sobre
el reinado de Isabel la Católica, coord. de Julio Valdeón Baruque. Valladolid: Ámbito, 2004, pp. 106 e
113.
142 FERNANDEZ, Celso Almuiña - «Prólogo», in Cronicón de Valladolid, Valladolid: Caja de ahorros
provincial de Valladolid, 1984, p. VII.
59
apresenta desordenado e com algumas contradições, é de crer que tenha havido mais do
que um autor. A obra só foi publicada no século XIX143
.
Como já notou Celso Almuiña Fernandez, o facto de ter provavelmente mais do
que um autor tem aspectos negativos e positivos, destacando como manifestamente
positivo o facto de a obra estar a ser continuamente ampliada e ter o destaque em pontos
distintos, consoante quem escrevia144
.
É com legitimidade que lhe foi atribuído o título de Cronicón de Valladolid, já
que o tipo de escrita aponta para que os autores tenham sido vizinhos da mesma cidade.
Posto isto e em virtude de parte da autoria se atribuir ao Doutor de Toledo, é normal que
os acontecimentos coligidos estejam ligados à mais alta sociedade, com algumas
excepções pontuais, já que esse autor fazia parte da corte.
A Crónica incompleta de los Reyes Católicos (1469-1476) tem por base um
códice do qual se conhece uma única versão manuscrita e que cujos onze primeiros
capítulos correspondem ao reinado de Enrique IV, chegando a história ao ano de 1477.
Embora Júlio Puyol considere que não seja um documento de capital importância
devido a lacunas, mas também por alguns relatos menos exactos, aduz que não deixa de
ser rico e vívido em pormenores e de contar com uma pena fiel à verdade145
, tratando
principalmente da guerra de Castela com Portugal; daí a importância da mesma para
este trabalho. Dado que trata um período muito específico, pela forma como o faz é
possível perceber que o seu autor é um partidário de Isabel a Católica, uma vez que
nessa altura havia uma sociedade tripartida a nível de simpatias – o partido isabelino, o
partido português e o partido aragonês, tecendo mais elogios e considerações positivas a
Isabel do que a Fernando, embora ele também seja apresentado como um modelo de
virtude. Deste panegírico resultam algumas incorrecções, atribuídas à rainha, que é
preciso assinalar, como sejam a restauração da Hermandad, os acordos secretos para
143 O manuscrito original não tinha título, o que aliás era frequente na época. O título foi-lhe atribuído por
Pedro Sáinz de Barata, após o ter estudado criticamente. FERNANDEZ - «Prólogo», in Cronicón de
Valladolid, p. VII.
144 FERNANDEZ - «Prólogo», in Cronicón de Valladolid, pp. VII-VIII.
145 PUYOL, Julio - «Prólogo», in Crónica incompleta de los Reyes Católicos (1469-1476), según un
manuscrito anónimo de la época, Madrid: Academia de la História, 1934. p. 6.
60
recuperar Toro e os cercos de Cantalapiedra, Castronuno e Sieteiglesias, não tratando
mal Enrique IV, mas julgando-o com alguma dureza. Quem não escapa também à sua
crítica são os cortesãos, “ambiciosos e velhacos” que alcovitam os mexericos que
ouvem, criando intrigas com facilidade. Por fim, o leque fica completo com a
desaprovação com que o cronista considera D. Joana, irmã de Afonso V146
.
Na actualidade, não há dados suficientes que permitam identificar quem tenha
sido o seu autor, embora Lourenço Carvajal, Alonso de Santa Cruz, Pinel y Monroy,
entre outros, afirmem que este manuscrito foi redigido por Juan de Flores, vizinho de
Salamanca. Este salamantino foi nomeado cronista pelos Reis Católicos em 1476147
.
Não obstante não ter a mesma importância de um Valera ou um Castillo, quem quer que
tenha escrito a crónica destaca-se por compilar algumas notícias que não se encontram
em mais obra coeva alguma148
.
Por último, uma vez que a Crónica anónima de Enrique IV149
, também
conhecida por Crónica Castellana, segue de perto Palencia, optei por não a utilizar no
elenco de fontes deste trabalho.
146 Crónica incompleta de los Reyes Católicos (1469-1476), según un manuscrito anónimo de la época,
Madrid: Academia de la História, 1934. pp. 54-63.
147 Sobre este cronista pode ver-se a obra de Carmen Parrilla - «Un cronista olvidado: Juan de Flores,
autor de la Crónica Incompleta de los Reyes Católicos», in The age of the Catholic Monarchs. Literary
studies in memory of Keith Whinnom, Liverpool: Liverpool University Press, 1989, pp. 123-133.
148 Reporto-me aos exemplos que Puyol identificou: o capítulo da falsificação da moeda no tempo de
Enrique IV; o capítulo da morte daquele monarca; o dedicado à entrada de D. Fernando em Segóvia; onde
se diz quais os castigos aplicados aos foragidos e malfeitores; a fisionomia de Afonso V, não sendo esta
encontrada em mais nenhum cronista castelhano, etc. Cfr. PUYOL - «Prólogo», pp. 20-21.
149 Crónica anónima de Enrique IV 1454-1474: (Crónica castellana), Tomo I, Estudo crítico e comentado
por María Pillar Sánchez-Parra, Madrid: Ediciones de la Torre, 1991.
61
5. DESENVOLVIMENTO POLÍTICO
a) A primeira década do reinado de Enrique IV150
(1454-64)
Morreu Juan II e sucedeu-lhe o filho, Enrique151
. É nos primeiros anos do meio
da centúria de Quatrocentos que iniciou o seu reinado Enrique IV, concretamente em
1454. Enrique era filho de Juan II e de Maria de Aragão, tendo como meios-irmãos os
infantes Isabel e Afonso, filhos do mesmo pai e de Isabel de Portugal. O novo monarca
subiu ao trono munido de ideais neogóticos que visavam conquistar toda a Península
Ibérica e ir mais além, atravessando o estreito de Gibraltar e conquistando terras no
Magreb. O começo do seu reinado foi auspicioso152
. Embora houvesse grupos
nobiliários e políticos que desde 1420 lutavam pelo domínio do governo e expressavam
a voz do partido aragonês153
, o reino está em paz permanente com Portugal desde 1431,
com o tratado de Almeirim. É então possível levar a guerra ao reino de Granada. Os
quatro primeiros anos desta guerra (1455-1458) foram-lhe venturosos e contaram com
expedições anuais contra o reino mouro que, na verdade, não mais tiveram como
objectivo arruinar as colheitas, sendo até interdito o abate de árvores. Não era a
150 Ao tentar esboçar uma resenha política de quase quarenta anos (1454-1480) vou socorrer-me de duas
grandes autoridades na matéria, a quem seguirei: Ramón Menéndez Pidal e Luis Suárez Fernández:
MENÉNDEZ PIDAL, Ramón - «Introducción», in História de España, dirigida por Ramón Menéndez
Pidal, T. XIV, Madrid: Espasa-Calpe, 1966, pp. X-CXVI e SUÁREZ FERNÁNDEZ, Luis - «La España
de los Reyes Católicos (1474-1516)», in História de España, dirigida por Ramón Menéndez Pidal, T.
XIV, Madrid: Espasa-Calpe, 1966, pp. 5-383; SUÁREZ FERNÁNDEZ, Luis – Los Reyes Católicos: La
conquista del trono, Madrid: Ediciones Rialp, 1989.
151 Palencia dá-nos o retrato físico do rei, aproximando-o de uma aberração. Cfr. CEIV-AP, I, pp. 11-12.
152 Cfr. LADERO QUESADA, Miguel Ángel - «Baja Edad Media», in Historia Militar de España, vol. 2,
coord. de Miguel Ángel Ladero Quesada, [s.l.]: Laberinto, 2010, p. 343; AZCONA, Tarsicio de - «Isabel
la Católica bajo el signo de la revolución y la guerra (1464-1479)», in Isabel la Católica y la política:
ponencias presentadas al I Simposio sobre el reinado de Isabel la Católica, coord. de Julio Valdeón
Baruque. Valladolid: Ámbito, 2001, p. 53.
153 Como partidários de Aragão temos os infantes João e Enrique, Sancho de Rojas, arcebispo de Toledo,
Diego Gomes de Sandoval, adiantado-mor de Castela e Juan Hurtado de Mendoza, que durante anos
dominaram o conselho régio, só lhes fazendo frente o condestável D. Álvaro de Luna que foi, aliás, um
dos responsáveis pela paz com Portugal. Cfr. ROMERO PORTILLA, Paz – Dos monarquías medievales
ante la modernidad - relaciones entre Portugal y Castilla, Corunha: Universidade da Corunha: 1999, pp.
77-79.
62
tradicional política da terra queimada, é certo, mas a justificação foi que essas terras
haveriam de ser novamente castelhanas, recorrendo-se para isso ao cerco e à
consequente fome. Mais estranho foi o facto de terem sido proibidos os combates e as
escaramuças. Uma vez mais, o motivo avançado para esta imposição foi que as vidas
dos cristãos eram demasiado caras para se perderem em vã escaramuça. Porém, também
já foi levantada a hipótese por José Luís Martín que estas expedições se destinavam a
receber páreas, sendo também uma forma de reconhecer a sua soberania enquanto rei de
Castela.
Na verdade, perceberam os seus contemporâneos mais informados, assim como
percebemos nós, que o verdadeiro objectivo dessas campanhas era a obtenção de fundos
sob a forma de indulgências. A esse propósito foram enviadas à cidade de S. Pedro
embaixadas para solicitar essas concessões a Calisto III. Sucedeu porém, que as
indulgências concedidas pelo papa não recaíram sobre a cruzada hispânica, mas foram
desviadas para uso particular: para o arcebispo de Sevilha, para a amante de Enrique IV,
a portuguesa D. Guiomar e para o próprio monarca. Pagavam os senhores e,
principalmente, os concelhos fronteiriços por estas guerras de ocasião154
. No dizer de
Menéndez Pidal, «ellas resultaban más gravosas para los castellanos que dañosas para
los granadinos»155
.
A personalidade do rei, que primava pela timidez, era agravada pela falta de
visão clara dos seus interesses e dos interesses do reino. Isso reflectiu-se ao longo do
seu reinado, tendo levado Enrique a depender dos seus privados e a pactuar com aqueles
que exigiam dele os maiores sacrifícios, tendo transparecido dele a imagem de um rei
pouco constante, o que nos permite traçar alguns paralelos com D. Fernando de um
século antes.
Também pela mesma altura (1455-56), a ideia de cruzada inflamou o espírito do
Africano, por iniciativa do papa156
. O nosso soberano, entusiasta defensor deste
projecto, armou uma frota157
que deveria juntar-se à armada internacional para combater
154 CEIV-AP, I, pp. 86-89.
155 MENÉNDEZ PIDAL - «Introducción», p. XVII. Veja-se também a descrição de Palencia: CEIV-AP, I,
pp. 70-73.
156 CEIV-AP, I, pp. 152-153.
157 ACA-JZ, Livro XVI, cap. XXXIX.
63
os turcos no Mediterrâneo Oriental, não sem antes se terem realizado cortes para obter
dinheiro e amnistiado homens para conseguir efectivos militares. Estes preparos
possibilitavam a Afonso V o reconhecimento entre os consortes europeus, mas também
se traduziam num conjunto de regalias papais, confirmadas sob a forma de bulas, com
inúmeros privilégios para Portugal, o que servia como suporte para as conquistas
portuguesas no Norte de África. Como o eco da cruzada tardasse em fazer-se ouvir em
outros reinos da cristandade, nomeadamente, em Aragão158
, França e Borgonha, e
apesar de de alguns barcos portugueses terem estado no cenário de guerra no
Mediterrâneo Oriental, o rei determinou, em 1457, que esses recursos seriam melhor
aproveitados em Marrocos, na conquista de novas praças militares – agradando tal facto
à nobreza ávida de recompensas, do que numa grande cruzada, cujo ímpeto foi
esmorecendo, especialmente a partir da partir da morte de Calisto III. O resultado foram
as conquistas das praças norte-africanas. Porém, mesmo no auge da presença portuguesa
em Marrocos nunca se dominou um território contíguo, no interior do qual a guarnição
pudesse viver em paz relativa. Apenas com o advento da década de Setenta e as
conquistas de Arzila e Tânger permitem atenuar a memória do maldito biénio de 1463-
64, em que os portugueses sofreram sucessivas derrotas em Marrocos.
Desde cedo que Enrique IV quis destinar a sua meia-irmã a um casamento que
lhe conviesse. Como as princesas eram altamente valorizadas – especialmente quando
tinham alguma hipótese na linha de sucessão, entabulou negociações para esse efeito.
Dos encontros ocorridos a 20 de Maio de 1457 com Juan de Navarra, resultou o acordo
de casamento entre Isabel e Fernando159
. Não era um plano altamente ambicioso. Servia
o propósito de cessar as antigas inimizades entre ambos e não visava qualquer união dos
reinos porque nenhum dos príncipes era herdeiro do trono. Pretendia-se assim
exclusivamente a aproximação das famílias. O acordo, que foi formalizado um ano
depois, tinha grandes hipóteses de não vingar, uma vez que Isabel tinha cinco anos e
Fernando tinha apenas dois, o casamento estava ainda a onze anos de distância e não foi
dada qualquer garantia para a sua realização.
158 CDAV, pp. 772-8.
159 Fernando era filho de Juan de Navarra e de Juana Enriquez (filha do almirante de Castela),
pertencendo ao ramo bastardo dos Trastâmaras e meio-irmão de Carlos, príncipe de Viana, esse sim, o
primogénito, filho de Branca de Navarra. Cfr. ACA-JZ, Livro XVI, cap. XLVI.
64
O príncipe de Viana, Carlos, que já há anos se vinha sentindo preterido face ao
meio-irmão, aliou-se ao condestável de Castela, D. Álvaro de Luna, trazendo a lume
uma vez mais as desavenças entre os reinos. Travada a batalha de Aibar a 23 de Outubro
de 1451, que opõe pai e filho, Carlos é capturado e deserdado. Pazes feitas com o pai,
jogou, no entanto, um jogo duplo, procurando a amizade paterna, mas buscando
também a aliança com Enrique IV, afirmando-se como pretendente de Isabel, em 1459.
Quando Afonso V de Aragão morreu – tio de Carlos, tinha deixado estipulado em
testamento que Aragão seria o reino a herdar pelo sobrinho, quando o seu pai morresse.
Juan, que tudo perdoou ao filho, sugeriu-lhe que se casasse com a infanta portuguesa
Catarina, irmã de Afonso V160
. O príncipe continuou o seu jogo duplo: assentiu ao
conselho paterno, mas propôs ao monarca castelhano Isabel, em troca de uma aliança
contra a confederação de nobres a ele contrária161
. Carlos valia então mais do que no
princípio, mas não deixava de ser um joguete nas mãos do partido de Enrique IV, uma
vez que este percebeu que o podia usar para contrabalançar o poder que o rei Juan tinha
adquirido com o reino de Aragão162
. Nenhum destes incidentes políticos surtiu efeito,
porque o príncipe acabou por morrer de tuberculose em Setembro de 1461163
. Como
consequência, Fernando é jurado como herdeiro, um mês depois164
. Este é o Fernando
que mais tarde iria ser apodado de Católico.
Ao mesmo tempo a situação que os camponeses catalães viviam era dramática,
estando sujeitos a abusos permanentes. Surge aqui a primeira oportunidade que Enrique
tem de unir Castela a Aragão. Na verdade, os camponeses, fartos do jugo a que se
encontravam sujeitos, em vez de pensarem em independência em relação a Juan, elegem
o monarca castelhano como seu senhor165
. Em Agosto de 1462 Enrique IV aceita e
envia 2500 homens de armas para fazer a guerra em Aragão, enquanto os camponeses
160 ACA-JZ, Livro XVI, caps. LIV, LX e LXIII.
161 Esta confederação dos Grandes de Castela era composta pelo almirante de Castela, marquês de
Santillana, arcebispo de Toledo – Alfonso Carrillo, pelo conde de Paredes, entre outros, e visava remediar
o caos no desgoverno de Enrique IV. Foi criada em 1460 e nela se integrou também o rei Juan de Navarra
e Aragão, embora numa altura posterior. Cfr. ACA-JZ, Livro XVI, caps. LIII-LV e LXIV.
162 CEIV-AP, I, p. 85; ACA-JZ, Livro XVI, cap. XLVII.
163 ACA-JZ, Livro XVII, cap. XXIV.
164 ACA-JZ, Livro XVII, cap. XXV.
165 CVC-FP, p. 16.
65
alçam pendão por ele166
. Porém, no seguimento de uma embaixada onde foram
invocados argumentos em como Juan era injustamente rei de Aragão e se prometia uma
farta recompensa monetária se Enrique aceitasse ser rei de Aragão e conde de
Barcelona, o arcebispo Carrillo e Luís XI de França convenceram-no a não aceitar167
.
Os motivos são fáceis de perceber. Estes nobres tiveram medo que o crescimento do
poder real que se traduzisse num rei com muitos reinos ameaçasse os seus próprios
estados, não tendo percebido, na verdade, que as suas dignidades, terras e jurisdição
emanavam do poder real. A pouco e pouco ia-se perdendo o ideal medieval no qual o rei
criava o nobre, correspondendo este com o seu amor, fidelidade e vida, se preciso. Por
outro lado, é importante sublinhar que isto também não conviria ao reino lusitano por se
tratar de um crescimento desmesurado de Castela. É possível que Afonso V tivesse em
mente uma manobra que limitasse o poder de Aragão (não esqueçamos que, embora por
pouco tempo, o condestável D. Pedro foi rei da Catalunha, desembarcando em
Barcelona em Janeiro de 1464), aproximando os dois reinos ibéricos mais ocidentais
através do seguimento da sistemática política de casamentos entre as casas reais168
.
Não obstante algumas falhas a que já fiz menção, os dez primeiros anos do
reinado de Enrique IV podem ser considerados felizes. Conquistaram-se cidades aos
mouros169
, Enrique é tido em alta conta pelo papado, pelas entidades políticas de
Nápoles, Génova e Veneza e, por fim, e superando todas as expectativas, ia finalmente
ter descendência da sua segunda esposa, D. Joana, irmã de Afonso V de Portugal170
.
Perdiam grande parte da sua importância os infantes Afonso e Isabel, os quais, no
entanto, era preciso salvaguardar e proteger, não fosse alguma coisa correr mal171
. A
166 CEIV-DEC, cap. 44, pp. 192-193; ACA-JZ, Livro XVII, cap. LXII.
167 CEIV-DEC, cap. 46 a 51, pp. 195-204; CEIV-AP, I, pp. 128-131; ACA-JZ, Livro XVII, cap. L.
168 FONSECA, Luís Adão da – «Uma elegía inédita sobre la familia de Avis. Un aspecto de la propaganda
política en la península Ibérica a mediados del siglo XIV», in Anuario de estudios medievales, n.º 16,
Barcelona, 1986, pp. 458-461.
169 CVC-FP, p. 17.
170 Desde a morte do condestável D. Álvaro de Luna que Enrique IV se converteu no paladino castelhano
de aproximação a Portugal e para isso muito contribui o casamento com D. Juana. Embora Enrique IV
não pretendesse a coroa portuguesa, conseguia o apoio e a estabilidade que lhe faltavam para lidar com os
seus problemas internos. Sobre este assunto veja-se ROMERO PORTILLA – Dos monarquías medievales
ante la modernidad…, pp. 126-128.
171 CEIV-DEC, cap. 37, p. 183.
66
gravidez de D. Joana deixara, contudo, a corte perplexa. E por dois motivos. Primeiro
porque a rainha era tida como leviana, demonstrando comportamentos pouco
púdicos172
, tal como o seu séquito português, contrários à conservadora corte
castelhana; e segundo porque o rei era tido como enfermo, depravado, homossexual173
e
impotente174
. Trata-se, portanto, de propaganda negativa contra a rainha e rei, lançada
pelo partido dos Grandes, o qual pretende ganhar poder à custa da Monarquia.
Semelhante “má imprensa” já havia ocorrido com Leonor Teles. Para fazer face à sua
impotência, faz alardo dos seus amores extra-conjugais, nomeando, por exemplo, D.
Guiomar de Castro175
, assim como numerosas prostitutas da cidade. Porém, mesmo
tendo deixado a corte perplexa, as grandes críticas e dúvidas acerca da paternidade de
Juana não ocorrem aquando do seu nascimento, mas sim a partir do momento em que
Juan Pacheco lança esse boato e os Grandes castelhanos o usam e dele fazem alardo
para enfrentarem Enrique IV.
172 Acerca do comportamento da rainha veja-se: CRC-FP, cap. III, pp. 16-17.
173 Há bastantes referências de Palencia acerca de Enrique IV, algumas das quais devemos interpretar com
prudência pelas razões que já expus. Fernando del Pulgar expõe o seguinte sobre Enrique: «Estouo en
aquella ciudad [Segóvia] apartado del rey su padre los más días de su menor hedad, en los cuales se dió a
algunos deleites que la mocedad suele demandar e a onestad deue negar» (p. 10); «Casó, seyendo
príncipe, con la princesa doña Blanca […], con la cual estouo casado por espacio de dies años, e al fin
ouo diuorcio entre ellos por el defeto de la generación, que él imputaua a ella e ella imputó a él» (p.11) –
PULGAR, Fernando – Claros varones de Castilla, Madrid: Espasa-Calpe, 1965.
174 Vale a pena ler a curiosa sentença de divórcio, publicada no quase centenário SITGES, J. B. – Enrique
IV y la Excelente Señora, 1912, pp. 48-56. Se se quiser ir mais além, a condição clínica relacionada com a
suposta impotência de Enrique foi abordada de forma de decisiva por G. Marañón – Ensayo biológico
sobre Enrique IV de Castilla y su tiempo, Madrid, 1930, tendo sido posteriormente reeditado e ampliado.
Marañón chega à conclusão que Enrique IV era um “eunucóide com displasias”. Efectuadas então as
análises possíveis aos testemunhos que chegaram até nós, chegou-se à conclusão de que a impotência de
Enrique, certa e comprovada, podia não ser total. Dado que se carece de dados para afiançar num ou
noutro sentido, Juana pôde ou não ter sido filha biológica de Enrique. Ainda no que diz respeito ao estudo
de Marañón, foi também feita uma análise posterior a esta obra por varios especialistas, da qual resultou
Gregorio Marañón y Enrique IV, Valladolid, 2000. Veja-se também ACA-JZ, Livro XVII, cap. LX.
Todavia, um outro problema presente nesta sensível questão passa pela ilegitimidade do casamento entre
Enrique e Joana. Como já advertiu Isabel del Val, devido à mãe da noiva ser tia de Enrique, havia um
problema de consanguinidade, o qual embora se tivessem tomado diligências, nunca foi efectivamente
resolvido. Deste raciocínio resulta que mesmo que Juana seja filha legítima dos reis, ela é ilegítima, uma
vez que o casamento de seus pais também o é. Cfr. VAL VALDIVIESO – Isabel la Catolica, princesa, pp.
44-52.
175 CEIV-DEC, cap. 23, pp. 167-168; CEIV-AP, I, pp. 82-83.
67
b) Turbationes Castellae: o caminho conducente à guerra civil (1462-
65)
O mês de Janeiro de 1462 marca o nascimento de Juana, amplamente apelidada
de Beltraneja, por rumores maledicentes dizerem que ela era filha de um privado do rei
– D. Beltrán de la Cueva176
. Para tal ocorrência contribuíram alguns factores, a saber: o
facto de Joana só ter engravidado passados seis anos; a atitude de, aquando do
nascimento de Juana, Enrique IV ter ordenado que se assistisse ao parto e, portanto,
dispondo o monarca que o mesmo fosse solene e público177
; finalmente, a promoção de
homens novos a altas dignidades, tal como Miguel Lucas de Iranzo e Beltrán de la
Cueva178
, o qual obteve a dignidade de conde de Ledesma – o que se pode explicar por
ele ter casado com uma filha do marquês de Santillana, incluindo-o na casa de
Mendoza; foi-lhe dado Gibraltar e arrecadou o mestrado de Santiago, abrindo um
contencioso nos dois últimos casos: o de Gibraltar com o duque de Medina-Sidónia,
enquanto o mestrado pertencia por direito ao infante Alfonso, uma vez ter sido último
desejo de Juan II de Aragão que ele tivesse o mestrado de Santiago e que fosse
condestável de Castela.
176 CEIV-AP, I, pp. 132-134; CRC-FP, cap. III, pp. 16-17. Como bem assinalou Luis Suárez, Palencia – o
cronista inimigo de Enrique IV, faz partir a ilegitimidade de Juana a partir das condições prévias inerentes
ao casamento. (SUÁREZ FERNÁNDEZ, Luis – Isabel I, Reina (1451-1504), Barcelona: Editorial Ariel,
2000, p. 15). Como provas de legitimidade da princesa, Tarsicio de Azcona faz menção a um mestre
Samaya, ginecologista, o qual tratou o rei e a rainha da “infertilidade” que os afectou durante seis anos,
até porque quer a impotência masculina, quer a feminina, podiam curar-se, de acordo com o que estava na
lei das Partidas, «por maestrias que les fagan, sin peligro grande dellos» (Partida 4, t. 9, l. 2). Por altura do
baptismo e de ser jurada em cortes, o conde de Tendilla rechaçou as alegações anti-Juana proferidas pelo
marquês de Villena. Um último aspecto diz respeito ao juramento de Juana por parte da fina flor da
nobreza de Castela, reconhecendo-a como filha dos reis e princesa. Cfr. AZCONA, Tarsicio - «La
revolución castellana y la geopolítica, agentes de la sucesión de Isabel I de Castilla, la Católica (1451-
1479), in Isabel la Católica y su época. Actas del congresso internacional, Coord. de Luis Ribot et al.,
Vol. I, Valladolid: Universidad de Valladolid, 2007, pp. 92-93.
177 SUÁREZ FERNÁNDEZ – Isabel I, Reina, p. 13.
178 Vejam-se alguns dos numerosos exemplos da promoção de Beltrán de la Cueva e de Miguel Lucas de
Iranzo: CEIV-AP, I, pp. 149-152; ACA-JZ, Livro XVII, cap. LIV; CEIV-DEC, p. 185. Na verdade,
podemos ler estes actos como manifestações de alegria e não como pagamento de favores, como certos
cronistas quiseram fazer acreditar. Cfr. VAL VALDIVIESO – Isabel la Catolica, princesa, pp. 49-50.
68
Foram convocadas cortes em Madrid (1462), para jurar Juana como herdeira, o
que efectivamente veio a acontecer179
, mas não sem que alguns dos Grandes
protestassem previamente, em segredo, com receio do poder de Enrique180
, não obstante
ele relegar as decisões importantes para a responsabilidade de Beltrán, olvidando os
Grandes. A contestação dos Grandes, prévia ao juramento e consubstanciada num
documento escrito secreto181
, carecia de razão que explicasse por que Juana não tinha
direito ao trono. Várias hipóteses são então possíveis: a primeira é porque Afonso,
infante varão, não podia ser preterido em função de uma mulher. Na verdade, já havia
um precedente com Maria, filha de Enrique III e rainha de Aragão, o que invalida esta
hipótese. Outra possibilidade é por Juana ter sido ilegítima, mas este seria um entrave
com resolução por parte do papado, caso a tal instância se achasse necessário recorrer.
Na verdade, o ambicioso Juan Pacheco, o mentor desta operação, pretendia afastar o
partido aragonês, estreitar os laços com Portugal e submeter o rei e os seus
descendentes, na medida do possível, à sua influência182
.
179 CEIV-DEC, p. 186. VAL VALDIVIESO – Isabel la Catolica, princesa, pp. 48-49.
180 ACA-JZ, Livro XVII, cap. LVI; CRC-FP, cap. I, p. 6. Pulgar identifica alguns dos Grandes que
contestaram este juramento: Alfonso Carrillo (arcebispo de Toledo), D. Fradique Enriquez (almirante-mor
de Castela), Juan Pacheco (marquês de Villena), Pedro Girón (mestre de Calatrava), Gomes de Cáceres
(mestre de Alcântara), Álvaro de Stuñiga (conde de Placência), Rodrigo Afonso Pimentel (conde de
Benavente), Rodrigo Manrique (conde de Paredes), Gabriel Manrique (conde de Osorno e comendador-
mor de Castela). Na verdade, delineavam-se aqui dois partidos: o dos Grandes, a quem já fiz referência, e
que defendia o aumento do poder da nobreza, e o partido que secundava o fortalecimento do poder da
monarquia, composto pelo próprio monarca, pelo condestável D. Álvaro de Luna e pelo bispo, seu
cunhado. Os Grandes pretendiam e obrigaram Enrique IV a jurar o infante Alfonso herdeiro, por ele ser
varão e filho de Juan II. Não obstante, o episódio foi levado às últimas consequências, Enrique IV foi
declarado inapto para reinar; o infante foi alçado rei e começou a guerra civil, no ano de 1465, como se
verá mais adiante.
181 Cfr. MENÉNDEZ PIDAL - «Introducción», p. XXXI. Acrescenta ainda o historiador que este tipo de
protesto secreto era habitual na época, uma vez que na sua génese estava a coação e o medo.
182 É fácil de perceber que disposta a sucessão numa nova ordem, quem controlasse os infantes Isabel e
Afonso podia utilizá-los para criar vínculos em função de uma ou outra facção, na bipolarizada sociedade
castelhana. Esta bipolaridade reflecte-se quer na política interna, quer na política externa, com os pólos a
serem Portugal e Aragão. Torna-se então mais perceptível a quantidade de pretendentes que Isabel teve.
Tomemos em consideração dois momentos distintos: em 1457 havia uma clara aproximação a Aragão
com o duplo matrimónio concertado. Os Infantes Afonso e Isabel de Castela com os infantes Juana e
Fernando de Aragão. Três anos mais tarde, Enrique IV utilizou Isabel para atrair o conde de Viana,
projecto que apenas soçobrou devido à morte do mesmo. Posteriormente, e fruto da condução da política
interna castelhana, com Juana a ser jurada herdeira e com o marquês de Villena e os outros grandes,
incluindo Juan II de Aragão, a oporem-se ao modo como o reino era conduzido por Enrique IV, há uma
aproximação a Portugal e nos “encontros de Gibraltar”, concerta-se o outro duplo casamento: de Isabel
69
Juan II de Aragão não pôde ter estado mais em desacordo com o caminho que
tomava a política castelhana: a sua filha Branca tinha sido preterida em função de Juana
e agora via afastada a possibilidade de o casamento de Fernando com Isabel ser
frutífero.
Agitavam-se os nobres confederados com o rei de Aragão183
e o reino acusava o
mal-estar, que é patente nas cortes de Toledo de 1462, nas quais se protestou contra a
arbitrariedade na administração da justiça, os actos de violência a que estavam sujeitos
os procuradores dos concelhos, os assaltos nos caminhos e a suposta falsificação da
linhagem real com o juramento da princesa Juana184
.
Pressionados pelo marquês de Villena – Juan Pacheco, reuniu-se a Liga185
, em
Alcalá de Henares, onde redigiu uma petição186
em que se suplicava ao rei que afastasse
do seu séquito os mouros da guarda real; que corrigisse as arbitrariedades ao cobrar os
impostos; que não alterasse o valor da moeda sem razão; que banisse D. Beltrán da
com Afonso V e Juana com o futuro D. João II; e a confederação de ambos os monarcas como oposição à
confederação dos Grandes com Juan II de Aragão, tio de Enrique IV.
183 Esta confederação existia desde 1460 e a partir de 1464 passa a contar com o apoio de Juan II de
Aragão, na sua qualidade de nobre de Castela. Cria-se assim a Liga. Veja-se os seus membros na nota
180.
184 Menéndez Pidal refere-se a esta transição como o «fin de los años felices y el comienzo de los años de
infortunio». MENÉNDEZ PIDAL - «Introducción», p. XXXII; Alías, nas palavras deste autor, lê-se
expressivamente que «la falsificación de ese linaje, manifiesta para todos, constituía el más irritante
atropelo del derecho público». Veja-se também CRC-FP, pp. 17-18.
185 De acordo com múltiplos autores como por exemplo M. AURELL, L. SUÁREZ FERNÁNDEZ, M.C.
GERBET, Mª I. del VAL VALDIVIESO, Mª C. QUINTANILLA, por Liga, Liga nobiliária ou bando
devemos entender os nobres mais poderosos do reino, embora bando, no caso castelhano, possa designar
também ramificações confederadas de âmbito regional ou local. As ligas nobiliárias confederavam-se e
adquiriam dimensão nacional, fruto da dispersão dos senhorios dos confederados. É errado associar estes
bandos a partidos políticos. Proliferaram especialmente em meados do séc. XV. Os seus interesses
passavam pela aquisição e defesa das suas terras, privilégios, mercês, etc. Numa perspectiva defensiva, os
confederados comprometiam-se a ajudarem-se mutuamente e conservar e proteger os bens respectivos e,
também na vertente ofensiva, apoiavam-se entre si contra os seus inimigos, embora este aspecto fosse
menos frequente. Estas ligas nobiliárias que existiram um pouco por toda a Cristandade ocidental nos
séculos XIV e XV. Em Castela, foram sendo dissolvidas devido à política dos Reis Católicos, os quais
agiam como mediadores entre as várias facções dos contendentes. Veja-se DÍAZ DE DURANA, José
Ramon - «Las luchas de bandos: ligas nobiliarias y enfrentamientos banderizos en el nordeste de la
corona de Castilla», in Conflictos sociales, políticos e intelectuales en la España de los siglos XIV y XV
(XIV semana de estudios medievales - Nájera 2003), Logroño: Gobierno de La Rioja e Instituto de
Estudios Riojianos, 2004, pp. 82-105.
186 CEIV-AP, I, pp. 149-152.
70
corte; e que libertasse o infante Alfonso, o qual tinha à sua guarda em Segóvia. Os reis
de Aragão prometeram ajuda (que se traduzia em ajuda militar) para restabelecer a
ordem pública, para reconquistar o reino de Granada e para libertar os infantes, que
representavam o poder legítimo em Castela. Estava em causa a linha fundamental de
governo do reino. É de manifesta importância destacar que o protesto por parte destes
nobres não faz qualquer menção à Beltraneja, fosse ou não D. Juana filha de Enrique
IV187
. Sem embargo, o rei não fez caso desta petição.
É também por esta altura (Janeiro de 1464) que Enrique IV concerta um
encontro com Afonso V, em Gibraltar, nas quais se determina o casamento do rei
português com a meia-irmã de Enrique, assunto que, evidentemente, não tem o apoio
dos Grandes188
. É aqui que está o embrião de uma estreita aproximação entre Castela e
Portugal e que terá altos e baixos. O monarca castelhano não só oferecia Isabel a Afonso
V, como também propunha que D. Juana, sua filha, casasse com o Príncipe Perfeito.
Deste modo, esperava ele ter Portugal como aliado na guerra civil que se vinha
desenhando no horizonte castelhano, com os Grandes a quererem alçar o infante
Alfonso por rei. Rui de Pina é taxativo ao referir que esses acordos não se realizaram
devido à inconstância de Enrique IV189
. Em Abril de 1464 voltaram a encontrar-se os
monarcas na Ponte do Arcebispo, sobre o rio Tejo, não muito longe do mosteiro de
Santa Maria de Guadalupe, onde Afonso V tinha ido em romaria. O intuito deste
encontro era retomar os contratos de casamento190
(e consequente aproximação de
Castela a Portugal). Os Grandes reagiram não para defender a liberdade de Isabel
187 Veja-se SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: La conquista del trono, p. 15; SUÁREZ
FERNÁNDEZ – Isabel I, Reina, p. 17.
188 CEIV-DEC, pp. 208-211; ACA-JZ, CEIV-AP, I, pp. 145-146. Nas palavras de Tarsicio de Azcona,
1464 foi o ano mais conflituoso da revolução social e política que se vinha já fomentando. Por tal, os
“contratos matrimoniais” de Isabel com Afonso V seriam, no seu modo de ver, uma boa maneira de
superar a dita revolução. Por outro lado, do contacto permanente que Enrique IV desenvolveu com o
papado, culminando com a Alegación jurídica que foi enviada a Paulo II, em Julho de 1465, resultou o
apoio da Santa Sé à coroa de Enrique. Podemos dar como exemplo a bula Sane desiderantes, enviada de
Roma e datada de 15 de Maio de 1467, na qual a revolução é qualificada como “dissensão pestilenta,
discórdia e divisão execráveis, criação do inimigo do género humano, danosa para os reinos de Castela e
Leão e reinos circunvizinhos, impregnada de danos presentes e mais formidáveis do que se esperam”.
Veja-se AZCONA - «La revolución castellana y la geopolítica…», p. 89 e p. 95.
189 CDAV, pp. 808-9; ACA-JZ, Livro XVII, cap. LVI.
190 CDAV, p.814; CEIV-AP, I, cap. X, p.146.
71
perante a suposta tirania do seu meio-irmão, mas para evitar uma manobra política de
consolidação191
.
Assim os Grandes acreditam que têm razões para levarem a cabo dois atentados
no palácio real, à pessoa de Enrique IV, os quais também tinham por objectivo capturar
Beltrán de la Cueva. Porém, ambos foram gorados. O monarca teve uma chance de
aniquilar os inimigos políticos, mas não a aproveitou. Enquanto uns viram este
comportamento como fraqueza, outros referiram que isso era prova de um rei bondoso e
com capacidade de perdoar192
. Os seus inimigos fugiram para Burgos, onde teve lugar
191 As especificidades de cada reino criam cenários próprios, de acordo com os seus intervenientes.
Porém, há implicações mais graves e que extravazam fronteiras. Adão da Fonseca sintetiza o problema:
«[…] são os problemas internos criados pela luta entre a nobreza e a monarquia, e são os problemas
externos derivados da pacificação atlântica, da progressiva importância dada ao mundo mediterrâneo, e os
derivados do desequilíbrio económico nas transações entre o Norte e o Sul». (FONSECA, Luís Adão da –
«Horizonte castelhano no debate político em Portugal no final da Idade Média», in Jornadas de cultura
hispano-portuguesa, Madrid: Universidad Autonoma de Madrid, 1999, p. 157).
192 O próprio cronista oficial reprova o comportamento do rei: «fue rremiso, quando deviera ser secutivo,
y mostro flaqueza, quando deviera tener esfuerço, sus desleales cobraran osadía y él quedó más
amedrentado que con denuedo» (CEIV-DEC, caps. 60, 62-64); Diz assim Pulgar, não especificamente
sobre este episódio, mas sobre a personalidade do rei: «[…] a quien no comunicaua sus consejos, ni la
gouernación de sus reinos, e pensauan que de razón les deuía ser comunicado, concibieron tan dañado
concebto, que algumas vezes coniuraron contra él para lo prender o matar. Pero como este rey era
piadoso, bien así usó Dios con él de piedad, e le libró de la prisión e de los otros males que contra sua
persona se imaginaram» (CVC-FP, p. 13). Porém, mais adiante, Pulgar parece ter noção de que é
necessário passar uma ideia mais real: «La cual [disensión], porque al principio no fué castigada segun
deuía, cresció entre ellos [outros] tanto, que fizo descrecer el estado del rey, e el temor e obediencia que
los grandes de sus reinos le auían» (CVC-FP, p. 18). Carvajal consegue uma descrição que corresponde a
um meio termo. Se, por um lado, critica a atitude de Enrique desde novo: «los mas dias de su menor edad,
en los quales se dio a algunos deleites, que la mocedad suele demandar y la honestidad deve negar. Hiço
abito dellos, porque ni la edad flaca los sabia refrenar, ni la libertad que ténia los sufria castigar»; por
outro lado, como que travando este seu discurso em que caracteriza o rei negativamente, acrescenta: «era
hombe piadoso, y no tenia animo de hacer mal, ni ver padescer a ninguno» (CEIV-LGC, cap. I, p. 73).
Não obstante, Enrique IV foi tido como um rei benevolente e que soube perdoar. Isabel del Val, após ter
estudado a guerra sucessória, conclui que Enrique, a partir do momento em que foi rei, tentou por todos
os meios governar idoneamente e ser respeitado pelos três estados e estabelecer a paz, que já desde o
reinado de seu pai vinha sendo perturbada. Todavia, as dinâmicas de mudança que afectam a sociedade,
protagonizadas quer pela nobreza, quer pelas cidades, causaram a Enrique um problema com a forma de
espiral, ao outorgar doações a todos. Isto produziu uma imagem negativa do poder do monarca, pondo
inclusivamente em causa a sua autonomia em detrimento do poder nobiliário, conflito recorrente no
século XIV, por toda a Cristandade e ao qual já me reportei várias vezes. Estes nobres não procuram
somente a redistribuição da riqueza em seu benefício. Estão também interessados em ter uma participação
mais activa nas deliberações políticas. No que diz respeito aos poderes urbanos, estes procuram afastar-se
das ingerências da coroa, mas por outro lado não estão dispostos a ficar à mercê do poder crescente do
regime senhorial. Conclui a autora com uma passagem que quero destacar: «a pesar de su buena
intención, la política seguida por Enrique IV desde el comienzo de su reinado no parece la más adecuada
para atraerse la voluntad del reino y evitar disturbios. Sin duda su comportamiento responde a un intento
de afianzar su posición, ganarse la voluntad nobiliaria, y controlar las diversas esferas del poder existentes
72
outra junta. A 28 de Setembro de 1464, foi então redigido um documento não assinado,
logo propagandístico, enumerando delitos alegadamente perpetrados por Enrique IV:
heresias, blasfémias e homossexualidade por parte do rei e do seu valido mais querido –
D. Béltran; parcialidades na atribuição dos bispados e atribuição dos mesmos a pessoas
não qualificadas para tal; guerra titubeante contra os mouros, que mais prejudica os
vizinhos de Castela do que os sarracenos; emprego de mouros na guarda real;
administração da justiça confiada a homens iníquos; a falta de administração da justiça,
não concedendo o rei audiências para dirimir pleitos. Na parte final do documento estão
as acusações mais graves: o conde de Ledesma, mestre de Santiago, oprime Enrique IV;
D. Juana foi jurada, não tendo direito a tal; e, por fim, os legítimos infantes na linha da
sucessão estão indevidamente em cativeiro. Ficou no ar a ameaça de que se estas
exigências não fossem satisfeitas, os seus constituintes pediriam ajuda ao resto do reino
e dos príncipes da Cristandade para remediar estes males193
. O próprio Palencia levou
uma cópia deste documento para apresentar na cúria papal.
Enrique, com espírito apaziguador (temeroso, nas palavras de Zurita194
),
negociou com a Liga e libertou o infante Alfonso. Por outras palavras, capitulou, o que,
na verdade, colocava em cheque D. Juana. Sem embargo, um dos seus conselheiros – o
bispo de Cuenca, Lope Barrientos, admoestou-o, dizendo-lhe que caso não eliminasse
os seus inimigos, «quedareis por el más abatido rey que jamás hubo en España y
arrepentiros heis, señor, cuando no aprovechare»195
. O resultado traduziu-se nas “vistas
de Cigales” (25 de Outubro de 1464), nas quais se determinou que Afonso casaria com
Juana, ambos jurados reis de Castela. Outras mudanças passaram pela restituição do
mestrado de Santiago ao meio-irmão do rei, não deixando este de compensar D. Beltrán
de la Cueva, fazendo-o duque de Albuquerque. Ao mesmo tempo, o infante Alfonso
passou a ser controlado pelo engenhoso marquês de Villena.
en el reino, pero los resultados son outros: la división interna, la crisis sucesoria, la guerra civil». VAL
VALDIVIESO, Maria Isabel del – Isabel la Católica y su tiempo, Granada: Universidade de Granada,
2005, pp. 121-127.
193 CEIV-DEC, pp. 220-222; CEIV-AP, I, pp. 154-157; ACA-JZ, Livro XVII, cap. LX.
194 «[…] el rey con gran temor de su vida y estado mandó sacar del alcázar de Segovia al infante don
Alonso y le entregó en poder del marqués de Villena, creyendo que por aquel camino se remediaría tanta
infamia» ACA-JZ, Livro XVII, cap. LX.
195 CEIV-DEC, cap. 65, p. 224.
73
Ainda não satisfeitos com a solução, os inimigos impuseram a Enrique IV a
nomeação de uma comissão, cujo intuito seria reformar a Monarquia. Isto ditou a
sentença de Medina del Campo, a 16 de Janeiro de 1465, que se traduziria, na prática,
num sistema representativo, com procuradores nobres, eclesiásticos e concelhios,
reservando-se ao rei certas funções de carácter executivo.
c) Guerra civil (1465-74)
Num raro momento de firmeza, Enrique rechaçou o memorando de Medina del
Campo, concluindo (acertadamente) que isso seria colocar o seu poder em risco. Perante
isto, Pacheco e o seu grupo consideraram ser o momento ideal para depor o rei,
proclamando Afonso, com apenas onze anos, em Ávila196
. Para tal, levantou-se um
estrado, onde sentaram um estafermo com as insígnias reais e ao qual chamaram
Enrique, rei. Simulando um julgamento, formularam acusações, ao mesmo tempo que o
foram acusando de tirano e de querer dar a sucessão a quem não pertencia, despojando-
o das próprias insígnias. Em seguida, alçaram Afonso por rei. Este episódio, que ficou
conhecido como a Farsa de Ávila (5 de Junho de 1465), estava carregado de
simbolismo, manuseando o boneco como se do próprio rei se tratasse, retirando-lhe a
sua dignidade real (ceptro, coroa, trono) e ultrajando-o197
. Com o destronar de Enrique
IV e a eleição do infante Alfonso pelos Grandes, pretendia-se constitucionalizar um
sistema pactista, cujo intuito era limitar a autoridade régia e consolidar o poder da
oligarquia nobiliária. Isto era possível porque o “antirrei” tinha apenas onze anos e era,
196 CEIV-AP, I, pp. 167-171; ACA-JZ, Livro XVIII, cap. II.
197 Relativamente a este assunto é imprescindível a leitura de MACKAY, A. «Ritual and propaganda in
the fifteenth-century Castille», in Past and Present, 107, 1985, pp. 4-43 e das obras de CARRASCO
MANCHADO que já fui citando. Para que o processo seja válido e legal, além do ritual de entronização
quando o novo rei é alçado. Neste ritual o soberano jura as leis do reino e é jurado por todos. Porém, esta
cerimónia era precedida das exéquias pelo monarca defunto, o que não se podia verificar porque Enrique
IV ainda vivia. Há também o ritual de obediência, o qual recorre a um itinerário circular que começa na
pessoa do rei entronizado e que termina novamente na sua pessoa. O reconhecimento e a obediência de
todos os estados transmitem-se pela reiteração de gestos, palavras e símbolos relativos ao acatamento do
novo monarca, não bastando alçar pendões, dado que é preciso a presença do soberano. Cfr. CARRASCO
MANCHADO - Isabel I de Castilla y la sombra de la ilegitimidad…, pp. 42 e 59 e VAL VALDIVIESO,
Maria Isabel del - «La Farsa de Ávila en las crónicas de la época», in Espacios de poder e formas sociales
en la Edad Media. Estudios dedicados a Ángel Barrios García, Gregorio del Ser Quijano, Iñaki Martín
Viso, Universidad de Salamanca, 2007, pp. 355-367.
74
portanto, manipulável, em particular pelos irmãos Juan Pacheco e Pedro Girão e por
Fernando Carrillo. Era preciso ainda dotar o seu reinado com todos os elementos
próprios do poder, entre eles o cunhar de moeda. Estas moedas cunhadas durante o
brevíssimo reinado de Afonso tinham mais valor político e menos valor económico,
embora Castela fosse uma manta de retalhos política, houvesse escassez na circulação
de moeda (principalmente as dobras de ouro) e a falsificação fosse muita, especialmente
a partir da reforma monetária de 1462. Porém, pretendia-se afirmar a legalidade de
Afonso acima de qualquer outro objectivo198
.
Mapa 1 – Conflitos sociais e nobiliários no século XV
Fonte: AZCONA, Tarsicio de – Isabel la Católica. Vida y Reino, Madrid: La Esfera de los Libros, 2002,
p. 94.
198 CASTILLO CÁCERES, Fernando – «Las monedas del príncipe Alfonso: 1465-1467», in Estudios
sobre cultura, guerra y política en la corona de Castilla (siglos XIV-XVII), Madrid: Consejo Superior de
Investigaciones Científicas, 2007, pp. 291-294 e 303-304. É ainda indispensável a consulta de
MORALES MUÑIZ, Dolores Carmen – Significación e historiografía de Alfonso XII de Castilla: nuevas
vías de investigacíon, in Medievalismo, n.º 6, 1996, pp. 213-237 e, da mesma autora, El reinado de
Alfonso XII de Castilla, Universidad Autonoma de Madrid, 1985.
75
A guerra civil era cada vez menos um fantasma e mais uma realidade. Não
obstante uma boa parte da nobreza ser rebelde, Enrique contava com fortes apoios nos
outros grupos sociais.
A rainha ainda se deslocou à Guarda para pedir auxílio a Afonso V199
, o qual
reuniu cortes, mas o resultado não foi favorável à intervenção portuguesa no reino
vizinho, uma vez que era sobejamente conhecida a volatilidade de Enrique IV e também
porque o reinado do “antirrei” foi bastante efémero200
.
Nesta altura conturbada, porém, Isabel permaneceu sem se manifestar e, no
início de 1466, percebeu-se que nenhum dos partidos estava capaz de clamar a vitória,
pelo que duas saídas se apresentavam. A primeira veio de Juan Pacheco, sempre
desdenhoso e insurrecto face ao poder do rei. Pacheco ofereceu ao segundo uma soma
em dinheiro e três mil ginetes, o que desequilibraria as forças contendentes a favor de
Enrique. Em troca deveria dar Isabel, a qual casaria com Pedro Girão, seu irmão e
mestre de Calatrava. O soberano caía em mais uma cilada, de conveniência, desejoso de
que estava que atrair os dois irmãos para a sua esfera de influência. Porém, o quarto
pretendente de Isabel morreu antes que se pudesse celebrar o matrimónio201
. Isabel ia
percebendo os perigos a que estava sujeita: as conveniências políticas do irmão e de um
punhado de nobres, especialmente Juan Pacheco e Alfonso Carrillo. A segunda saída
surge da percepção do conflito castelhano, que extravasa as fronteiras peninsulares.
Assim, tanto Juan II de Aragão, que era o principal interessado na resolução do conflito
com o desfecho matrimonial a pender para o seu filho Fernando, como o papa Paulo II
enviam legados com amplos poderes para conseguir desbloquear a situação. António de
Veneris – o enviado da cúria romana, após ter avaliado a situação ibérica in loco,
chegou à conclusão que devia respeitar-se a legitimidade henriquina, devendo as coisas
voltar à situação de 1464, ou seja, ao acordo saído das “vistas de Cigales”. Todos
deveriam acatar a autoridade de Enrique, o qual teria como sucessor o infante Alfonso.
199 TORRE, Antonio de la; SUÁREZ FERNÁNDEZ, Luis - Documentos referentes a las relaciones con
Portugal durante el reinado de los Reyes Catolicos, volume I, Valladolid: 1963, docs. 9 e 10, pp. 43-57;
CEIV-DEC, cap. 75, p. 239.
200 CDAV, cap. 158, p. 814.
201 CEIV-DEC, cap. 85º, p. 257.
76
Como as negociações foram infrutíferas, Pacheco tomou de assalto Segóvia. O
seu plano consistia em apoderar-se da rainha, da infanta e do tesouro. Apenas logrou a
custódia de Isabel, que se reuniu ao seu irmão, em Arévalo, onde passou a dispor de
património seu. O arcebispo Fonseca – um dos três clérigos que anos antes tinha
recebido o encargo de analisar o projecto do segundo casamento de Enrique IV,
colaborava com António Veneris na mediação do conflito; decidiu salvaguardar-se da
inconstância da conveniência momentânea do rei e exigiu reféns, tendo-lhe sido
entregue a rainha. Deste exílio forçado resultaram dois filhos bastardos de Joana com
Pedro de Castela, sobrinho do arcebispo de Sevilha. Esta conduta “pouco decorosa” fez
com que Enrique cedesse e reconhecesse os direitos sucessórios de Isabel, prescindindo
dos de Juana. Um pouco antes, inesperadamente, o pequeno “rei” Afonso morreu (5 de
Julho de 1468). Palencia é o único que nos fala de veneno, não sendo por isso verosímil
semelhante notícia202
. O quadro fica completo se se disser que os Mendoza detiveram
Juana, a qual fizeram por proteger203
, para que esta tivesse algum peso político.
Muito embora Isabel tenha mostrado um espírito conciliador como direi adiante,
há, actualmente, duas provas que demonstram que ela se considerava sucessora de
Afonso. A primeira é uma carta às cidades, datada de 4 de Julho (véspera da morte de
Afonso), que diz: «ya vosotros sabéis que en la hora que Nuestro Señor de su vida outra
cosa dispusiese, la sucesión de estos reinos y señorios de Castilla y León, pertenezcan a
mí como su legítima heredera y sucesora que soy»204
. Note-se, porém, que deter a
sucessão não significa que se detenha o poder real efectivo, em todas as vertentes que o
compõem. A segunda prova data de 8 de Julho, logo, posterior à morte de Afonso, e foi
uma mensagem despachada aos principais concelhos, relembrando que era a legítima
herdeira e sucessora dos reinos e pedindo às cidades que lhe enviassem os seus
202 Com efeito, Sículo diz o seguinte acerca deste assunto: «Y lo que se dice de la manera de su muerte, ni
lo afirmo, ni lo niego. Algunos piensan que murió no sin sospecha de ponzoña que le fué dada». VHRC-
LMS, pp. 23-24. Do lado português, Garcia de Resende, na sua Miscelânea, afirma: «Vijmos seu irmão
mais moço § por ser rey alleuantado § dos grades muy agoardado § todo o reyno ẽ aluoroço § & el Rey
mal acatado § vijmos este grande estado § muy asinha derribado § & sem porque, sem vergonha § ho
mataram com peçonha § antes de hũo ano acabado».
203 Pode ler-se a apelação para a cúria romana contra o acordo de reconhecer Isabel como herdeira de
Castela, feita em nome de D. Juana, por Iñigo López de Mendoza, conde de Tendilla e tutor da mesma,
em TORRE; SUÁREZ FERNÁNDEZ - Documentos referentes a las relaciones con Portugal durante el
reinado de los Reyes Catolicos, vol. I, doc. 13, pp. 59-65.
204 Cfr. SUARÉZ FERNANDÉZ – Isabel I, Reina, p. 36.
77
procuradores a Ávila, onde ela estava com os representantes da nobreza, clerezia e
povo, para que prestassem obediência205
. É importante destacar a responsabilidade que
ela quis assumir ao proclamar-se legítima, o que a colocava na esfera oposta a D. Juana.
Para tal, devia proceder dentro dos trâmites estipulados: aceitar a obediência ao rei,
rejeitando com argumentos quaisquer hipóteses de sucessão de Juana e ser aceite pelo
reino.
Com o intuito de acabar com as querelas que os Grandes e os do partido régio
vinham tendo – leia-se guerra civil, Isabel renunciou ao título de rainha206
, enquanto
Enrique reinasse, contentando-se com o título de princesa207
, mas sem perder de vista a
coroa. Esta decisão abria as portas a uma franca negociação da qual saiu um acordo
aceitável para ambas as partes, conseguido a 18 de Setembro de 1468, que consistiu em:
a Joana rainha e a Juana filha deveriam ser exiladas para Portugal208
, a obediência seria
novamente prestada a Enrique, mas confirmava-se que Isabel era a natural herdeira dos
reinos. Estes estatutos foram tão graves quanto os efeitos que produziram, uma vez que
mesmo Enrique tendo voltado com a palavra atrás, Isabel sempre se bateu por eles,
assentando aqui a pedra basilar em como o soberano negava o direito sucessório a
Juana209
.
205 SUARÉZ FERNANDÉZ – Isabel I, Reina, pp. 36-37. Isabel del Val realça que este chamamento deve
ter sido pouco eficaz, já que Isabel era praticamente desconhecida no reino. Cfr. VAL VALDIVIESO –
Isabel la Catolica, princesa, pp. 59-66.
206 A necessidade que temos de datar e de querermos traçar contornos definidos em contextos históricos
apresenta algumas dificuldades. Isabel renunciou ao título de rainha, mas os historiadores consideram,
actualmente, que o reinado da Católica se inicia com a morte do seu irmão Afonso. Isto processa-se em
duas etapas, a da sucessão e a do exercício do poder. Cfr. SUÁREZ FERNÁNDEZ – Isabel I, Reina, p.
35.
207 Num documento do arquivo municipal de Ávila, na carta de despedida de Ávila, estiveram presentes
Isabel e alguns Grandes. Considero oportuno citar um trecho em que a princesa diz: «su claro é
manifiesto derecho que tenía de heredar estos Reinos de Castilla é de León». (SITGES, J.B. – Enrique IV
y la Excelente Señora, p. 172).
208 Veja-se o documento apresentado por SITGES – Enrique IV y la Excelente Señora, p. 185, no qual se
estatui que ambas seriam enviadas para o reino luso. Esta notícia é diferente da que apresenta Pulgar,
talvez para amenizar a dureza da separação do rei e da rainha e sua filha. Cfr. CRC-FP, cap. V, pp. 23-25.
209 O acordo «concordado y asentado» ficou estipulado em dez cláusulas, as quais podem ser consultadas
em SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: La conquista del trono, pp. 25-26. É ainda provável
que Enrique acreditasse que poderia, no futuro, furtar-se a este compromisso, não passando, por isso, a
sua actuação de uma manobra política.
78
O acordo foi confirmado numa concórdia, em Toros de Guisando210
, a 19 de
Setembro de 1468. Nas “vistas” que se celebraram neste lugar, acompanharam o rei o
legado do papa, e nobres e prelados da corte, totalizando 1.300 homens de armas, entre
eles, Juan Pacheco, que tinha mudado uma vez mais de bando. Do lado isabelino apenas
havia duzentas lanças das mesnadas de Alfonso Carrillo. Este tentou convencer Isabel
da conveniência de regressar a Ávila, interrompendo as negociações e para que «no
diese su mano sino al rey de Portugal, viudo y com hijos legítimos, proponiéndose así él
como la reina privarla com tal consejo de toda la prerrogativa en los reinos de Castilla y
León y estorbar el venturoso y excelso matrimónio com el príncipe de Aragón, don
Fernando, legítimo heredero de tantos reinos, unión feliz y única ventajosa para España
toda»211
. Sem embargo, Isabel compareceu e foi jurada herdeira e toda a comitiva do rei
oficializou a situação com o tradicional beija-mão, na presença de populares ali
reunidos. Como o acordo incluía a restauração de obediência a Enrique, o bando
isabelino também procedeu ao beija-mão ao monarca. Isabel passou a integrar a corte.
O clã Mendoza212
não compareceu. Afinal, eles eram os detentores da guarda de
Juana, “peça” que agora perdia todo o seu valor. A rainha apelou ao papa para que
anulasse o juramento e, ao mesmo tempo, o conde de Tendilla recusou reconhecer Isabel
como herdeira213
.
210 A concórdia de Toros de Guisando foi já bem estudada e pode ser conhecida em pormenor em
TORRES FONTES, Juan - «La contratación de Guisando», in Anuario de Estudos Medievales, 2,
Barcelona, 1965, pp. 399-428 e ainda em VAL VALDIVIESO, Maria Isabel del – Isabel la Católica
princesa, pp. 73-115. Recentemente, o investigador Tarsicio de Azcona comenta que, embora o estudo de
Isabel del Val acerca deste problema seja muito importante, em virtude de não ser ter encontrado ainda a
acta notarial original do encontro de dia 19, as várias cópias encontradas «no satisfacen a la investigación
crítica». Veja-se AZCONA - «La revolución castellana y la geopolítica…», pp. 96-97.
211 CEIV-AP, I, p. 262. Outra prova de que as negociações para o casamento entre Afonso V e Isabel e o
príncipe D. João e Juana continuavam consta na CPDJ, cap. XXXVIII, pp. 95-96 e na ACA-JZ, Livro
XVIII, cap. XX. Veja-se ainda SANTARÉM, Visconde de – Quadro elementar das relações políticas e
diplomáticas de Portugal com as diversas potências do mundo, desde o princípio da monarchia
portugueza atè aos nossos dias, tomo I, Paris: Officina Typographica de Fain e Thunot, 1842, pp. 366-
367.
212 Compunham esta família o marquês de Santillana, o novo – Diego Hurtado de Mendoza, o conde de
Tendilla – Iñigo López de Mendoza e o bispo de Sigüenza e futuro cardeal Pedro González de Mendoza.
Não esqueçamos que o marquês era sogro de Beltrán de la Cueva. Este clã acolhia também a rainha e o
seu amante, Pedro de Castilla.
213 Este acto ocorreu mais de um mês depois do acordo de Guisando, a 24 de Outubro de 1468. Veja-se
CRC-FP, cap. I, p. 23.
79
Enrique declarou Isabel como herdeira, renegando Juana, não obstante no
passado a sua filha ter sido jurado herdeira pelos Grandes e pelo povo, acto este que
declara nulo.
Apesar disso, Isabel detinha uma posição de destaque e as negociações para o
seu casamento – algumas antigas, outras novas, foram reactivadas. A proposta mais
antiga vinha de Aragão. Fernando era agora príncipe e as duas casas reinantes tinham
uma ascendência comum, razão que Isabel invocou aquando da escolha. Afonso V era o
candidato apoiado pelo monarca castelhano, pelo seu privado Beltrán de la Cueva e por
Pacheco, os quais relembraram o grande poder e prestígio do monarca português. No
entanto, aos olhos dos apoiantes de Isabel, este era detraído por ser viúvo e demasiado
velho para a princesa e por ter já um herdeiro varão. Para além disso, outras
possibilidades passavam por um irmão de Eduardo IV de Inglaterra – Ricardo de
Gloucester, e Carlos, duque de Berry. No primeiro caso fortalecia-se a aliança entre as
duas coroas e, no segundo caso, o irmão do rei de França tinha sérias hipóteses de
herdar o trono, uma vez que Luís XI não tinha filhos varões, ao mesmo tempo que
afastava Castela da influência inglesa.
Porém, as cortes que deveriam jurar Isabel tardaram em ser convocadas. Pensa-
se que o mestre de Santiago estaria a negociar favoravelmente a dispensa para o
casamento de Isabel com Afonso V, a qual é concedida a 23 de Junho de 1469,
bloqueando a pretensão de Fernando de Aragão214
. Antes da dita dispensa, os
embaixadores portugueses liderados pelo arcebispo de Lisboa, D. Jorge da Costa,
receberam um não rotundo da princesa, o que provocou um certo desinteresse em
Afonso V. Enrique prosseguiu então numa política de jogo duplo. Ao fim de quatro
meses ainda não tinha enviado a rainha nem Juana para Portugal. As cidades que o
monarca deveria ter entregue à meia-irmã, não foram entregues. Celebraram-se as
cortes, por fim, em Ocaña, no início de Abril de 1469. Nestas procurou-se a recuperação
económica, pretendeu-se reforçar as relações com a França e travar as concessões aos
fidalgos mas Isabel não foi jurada como herdeira, em jeito de retaliação à sua negativa
214 CEIV-AP, I, pp. 269-271; TORRE; SUÁREZ FERNÁNDEZ - Documentos referentes a las relaciones
con Portugal durante el reinado de los Reyes Catolicos, vol. I, doc. 15, pp. 66-67; SUÁREZ
FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: La conquista del trono, pp. 29-30.
80
ao casamento. Acontece que esta negativa não era desobediência, posto que o casamento
deveria ser acordado com a vontade da infanta215
.
Isabel, praticamente prisioneira em Ocaña e vigiada por Juan Pacheco, decidiu-
se por Fernando, tendo em atenção a vontade dos nobres, prelados, cidades e vilas. Este
casamento já vinha sendo preparado pelo condestável navarro, Pierres de Peralta, desde
Setembro de 1468, tendo como apoiante Alfonso Carrillo. Porém, a alta nobreza (com
excepção daqueles que tinham laços de parentesco com Juan II) tinha algum receio de
que quando Fernando fosse rei, os aragoneses reclamassem as terras das quais tinham
sido expropriados. Luís XI de França também viu com receio esta união, uma vez que
dela nasceria uma potência que rivalizaria com o seu reino216
. Mesmo assim, a boda
ainda comportava um risco acrescido. Uma vez que os nubentes eram filhos de primos,
havia que conseguir a respectiva dispensa sob pena de o casamento ser declarado
inválido. O papa Paulo II, porém, estava a favor do casamento com Afonso V e não ia
mudar de opinião217
. A seu favor a princesa tinha o juramento de Fernando, o qual se
comprometia a pôr ordem no caos causado por Enrique, relativamente à justiça, à
liberdade eclesiástica, à guerra contra os “inimigos da fé” e ainda oferecia 4.000 lanças
aragonesas em caso de guerra, podendo Isabel intitular-se princesa e rainha da Sicília.
Em Fernando residia ainda a vantagem de ser o varão mais próximo do tronco comum,
isto se pensarmos que em Castela as mulheres não podiam reinar – a não ser que não
existisse um homem do mesmo nível, embora transmitissem a legitimidade. Isabel vai
215 SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: La conquista del trono, p. 26. Veja-se também VAL
VALDIVIESO – Isabel la Catolica, princesa, pp. 91-92. Relativamente ao agudizar das relações entre
Enrique e Isabel no seguimento da concórdia de Guisando, remata Tarsicio de Azcona: «antes de volver a
la guerra civil, Enrique IV pasó por todo, incluso consintió en nombrar a Isabel Princesa heredera, pero
sin darle un documento escrito [vide supra nota 210] y sellado sobre la concesión de semejante título.
Tampoco tal nombramiento fue sometido a las cortes del reino. Tanto el Rey como su hermana Isabel
quebrantaron en días sucesivos diversos pactos establecidos. Isabel aparece reconocida Princesa en
documentos globales, pero sin haber conseguido un nombramiento específico y solemne. Se trató de una
negociación complicada, poco afinada y situada en los linderos del derecho». AZCONA - «La revolución
castellana y la geopolítica…», p. 98.
216 Cfr. ARAÚJO, Julieta Maria - Portugal e Castela (1431-1475): ritmos de uma paz vigilante,
(policopiado), vol. I, dissertação de doutoramento apresentada à Universidade de Lisboa, 2003, p. 408.
217 Note-se que Paulo II recebeu a opinião de António de Veneris, o qual afirmava que a união de Isabel
com Fernando sanaria as lutas intestinas nas quais o reino estava mergulhado. Porém, o papa não quis
tornar-se inimigo das duas coroas ibéricas (Portugal e Castela) ao mesmo tempo e deixou o tempo correr.
Para ultrapassar este obstáculo, o arcebispo Carrillo forjou uma bula que confirmava a dispensa para
Isabel e Fernando, uma vez que Isabel tinha como mais alto valor a legitimidade. Sobre esta matéria veja-
se SITGES – Enrique IV y la excelente Señora, pp. 198-204.
81
rejeitar este ponto, exercendo o poder de facto. O único modo de resolver de uma vez
por todas o problema de um enfrentamento entre ramos distintos das dinastia
Trastâmara consistiu em contrair matrimónio com Fernando. Como afirmou Luis
Suárez, «no hay una historia de amor, hay una historia de deber político que ella
expressa en esta frase tan clara: “me caso com Fernando y com ningún outro, porque,
eso es lo conveniente para el reino”»218
. Já estavam estes contratos secretas firmadas em
Março e ainda três meses depois recebia Enrique uma embaixada cujo intuito era
apresentar o supra mencionado duque de Berry, tendo havido uma aproximação à esfera
de influência francesa, como de costume, saindo da órbita inglesa. Andava então o
soberano pela Andaluzia, pacificando-a, quando a princesa decidiu deixar Ocaña,
evitando por pouco um confronto armado que visava mantê-la aprisionada. Entrou em
Valladolid em finais de Agosto de 1469, tendo pouco tempo antes rejeitado uma vez
mais o pretendente francês – agora duque de Guiana também, baseada na consulta aos
três estados219
, mas também porque receava que, no futuro, Castela ficasse submetida ao
domínio francês.
A 8 de Setembro, Isabel escreveu uma carta ao meio-irmão220
, tratando-o com
deferência, mas sendo firme nos seus propósitos: era ela a legítima herdeira e sucessora
dos reinos e Enrique estava em falta com o estipulado no compromisso de Cadalso-
Cebreros. Enrique ficou assim a conhecer a intenção de Isabel casar com Fernando e,
pela mesma altura, o príncipe e rei da Sicília fazia a perigosa viagem de Aragão até
Castela. O futuro de Castela, mas principalmente de Aragão, estavam em jogo, mas em
correndo bem, a contrapartida teria um valor incomensurável, o que explica que Juan II
tivesse efectivamente mandado o filho empreender tal jornada. A Enrique, Isabel só
pedia que aceitasse Fernando, o qual o reconheceria e lhe faria menagem como senhor e
rei.
Como o rei não respondesse a nenhuma missiva que Isabel lhe mandava, Carrillo
redigiu um documento que traduzia um plano de acção para os dias seguintes. O
218 SUÁREZ FERNANDEZ, Luis - «Isabel la Católica, la imagen de un reinado», in Visión del reinado de
Isabel la Católica: desde los cronistas coetáneos hasta el presente: ponencias presentadas al IV Simposio
sobre el reinado de Isabel la Católica, coord. de Julio Valdeón Baruque. Valladolid: Ámbito, 2004, p.
295.
219 CRC-FP, caps. V e IX.
220 O cronista oficial Castillo inclui esta carta, embora com data errada de 12 de Outubro, no cap. 136.
82
arcebispo esperava atingir o protagonismo suficiente que lhe garantisse a condução do
governo do reino, à semelhança do que Álvaro de Luna e Juan Pacheco já tinham
lucrado. O gorar destes planos fez com que, posteriormente, Carrillo mudasse de bando,
apoiando no futuro Afonso V.
Prestados os juramentos, celebrou-se a boda entre Isabel e Fernando, a 19 de
Outubro de 1469, a qual não contou com a autorização de Enrique IV. No dia seguinte,
foram expedidas cartas para as cidades, as quais davam a conhecer o incumprimento do
acordo de Cadalso-Cebreros. Porém, a tónica assentava em não mostrar qualquer revolta
por parte dos príncipes na aceitação de Enrique como soberano. Juridicamente eles
tinham uma posição inexpugnável. Economicamente, a balança não era tão favorável.
Fernando era um príncipe depauperado e não podia recorrer ao pai porque este se
encontrava a braços com as eternas sublevações na Catalunha. Ademais, Carrillo
começava a mostrar-se dominador. Um ano depois tinham-se inimizado221
.
Pacheco exortou o rei a responder às cartas que lhe foram enviadas. Enrique
acusou os príncipes de estarem à margem dos acordos estipulados e retirou o título de
princesa a Isabel. O monarca baseou-se em princípios jurídicos consignados na lei222
.
Uma donzela com menos de vinte e cinco anos não podia casar-se sem a permissão dos
pais, sob pena de ser deserdada. O valido esperava assim que os futuros reis tomassem
as armas, empurrando-os para fora do legalmente admissível. Como isto não aconteceu,
verificou-se ainda uma nova tentativa de aproximação à França. O pretendente era o
mesmo – Carlos, duque de Guiana, mas desta vez a noiva seria Juana. Jurídica e
formalmente inconsequente223
, não teve o apoio do papado; Carlos morreria em 1471. O
raciocínio não estaria completo se não evidenciasse que Enrique IV restaurou Juana na
221 ACA-JZ, livro XIX, cap. IV.
222 Fuero Real, libro 3, t. 1, l. 5 e Partida 4, t. 1, l. 10, nota 4. Isabel rebateu isto argumentando que estas
leis tinham sido revogadas pelos sacros cânones e que os nubentes deviam ter total liberdade de escolha.
Porém, ela tinha estado sob a tutela de sua mãe.
223 Embora Juana tenha sido novamente jurada pelos nobres presentes, nas cortes de Segóvia de 1471 isso
não aconteceu devido à maior parte das opiniões ser contra este propósito. Cfr. MENÉNDEZ PIDAL -
«Introducción», pp. XCIII-XCIV, e também nota 274 na p. XCIV; SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes
Católicos: la conquista del trono, p. 43 e nota 133 na p. 50.
83
condição de legítima herdeira224
. Este é conhecido como o episódio de Valdelozoya, o
qual revogou o pacto de Guisando.
Isabel reagiu, elaborando uma carta que remeteu aos concelhos do reino, a 1 de
Março de 1471. Além de se continuar a intitular princesa das Astúrias225
, defendeu-se,
através da dita missiva, em estilo pessoal, contra as acusações que lhe foram feitas de
não cumprir com o pacto de Guisando, argumentando que o rei foi o primeiro a
desrespeitar o acordado, não enviando a rainha e Juana a Portugal, que também não lhe
foram entregues as cidades prometidas nove meses antes e que ela não prometeu esperar
em Ocaña, afirmando também que a liberdade estava consignada nos cânones sagrados
do casamento. A única fraqueza no raciocínio da princesa foi a ilegalidade no seu
casamento, devido à dispensa ter sido forjada. Na verdade, mesmo após o rude golpe de
Valdelozoya é muito interessante como Isabel fez tábua rasa de alguns aspectos e estava
resoluta em alcançar a sucessão do reino. Para tal, baseou-se em dois argumentos: a
defesa do reino e dos reguengos relativamente ao abuso nas doações régias e o princípio
da legitimidade. Porém, em ambos os aspectos a futura rainha apresentou uma postura
contraditória. Embora declare que a sua atitude é norteada pelo bem do reino e tal é
patente pela carta que redigiu ao irmão, a quem tentou convencer, antes do seu
casamento com Fernando, que era preferível uma aliança aragonesa, às vezes parece
colocar o seu próprio interesse à frente dos outros. Tal sucedeu nas cartas de Julho de
1468, nas quais fez referência aquilo que deve fazer-se em «serviçio de Dios e mio e
bien e provecho e paz y sosiego destos reynos e señorios» (dia 4) e às «cosas que se
devem fazer segund convenga a serviçio de Dios e mio e bien destos regnos» (dia 8).
Relativamente aos reguengos, Isabel faz escassas doações, o que é compreensível pela
falta de recursos, não obstante defender as vilas e cidades que resistiam a ser entregues
pelo rei a um qualquer nobre226
. Já referi anteriormente como Isabel se dirigiu às
224 Veja-se a “minuta de Simancas”, publicada em TORRE, Antonio de la, MENÉNDEZ PIDAL, Ramon
– Documentos referentes a las relaciones con Portugal, vol. I, doc. 16, pp. 67-72; SITGES – Enrique IV y
la Excelente Señora, pp. 212-216 e SUÁREZ FERNANDEZ – Los Reyes Católicos: la conquista del
trono, pp. 41-42; CEIV-DEC, cap. 124, pp. 315-316.
225 Relativamente à actuação de Isabel enquanto princesa das Astúrias, veja-se VAL VALDIVIESO –
Isabel la Católica y su tiempo, pp. 108-118.
226 Cfr. VAL VALDIVIESO, Maria Isabel del – «Isabel, princesa de Asturias», in Isabel la Católica y su
época. Actas del congresso internacional, Coord. de Luis Ribot et al., Vol. I, Valladolid: Universidad de
Valladolid, 2007, pp. 78-80. Relativamente ainda às doações, no fim da vida, Isabel intercalou no seu
testamento que consentiu o favorecimento de oficiais e concedeu mercês por «algunas necesidades e
84
cidades, apresentando-se como herdeira de Afonso. Porém, em momento algum Isabel
condenou o reinado do irmão pela sua rebeldia face ao rei, nem tampouco o considerou
ilegítimo, reconhecendo-o sempre como rei e prometendo confirmar e acrescentar as
doações feitas pelo jovem rei. Todavia, de acordo com o seu raciocínio, urgia, de facto,
conseguir uma dispensa verdadeira. A fortuna esteve do lado de Isabel, uma vez que a
obtenção da mesma só foi possível porque Sisto IV sucedeu a Paulo II, no fim de 1471,
concedendo a verdadeira dispensa a 1 de Dezembro desse ano. A segurança de Isabel
baseava-se no facto de o acordo de Guisando ter sido bilateral e confirmado pelas cortes
de Ocaña, não podendo ser invalidado unilateralmente.
O novo papa, zeloso em pacificar os reinos ibéricos e pensando na cruzada anti-
islâmica, deliberou a favor dos príncipes227
, os quais, apesar de terem apenas vinte anos,
davam já sinais de maturidade e de estabilidade. Tinham ainda a seu favor uma filha228
.
Registaram-se também melhorias no partido de Isabel e Fernando. Se por um
lado Juan II conseguiu pacificar Barcelona, o que lhe proporcionou um certo desafogo a
nível económico, por outro lado, a nível interno, algumas casas nobres começaram a
pender para o lado dos príncipes229
, em parte por causa da política cobiçosa de Juan
Pacheco, o qual ao favorecer algumas linhagens, empurrou necessariamente outras para
a esfera de influência dos príncipes; mas também por causa da inércia de Enrique IV, o
qual já não se opunha às constantes petições de doação que o mestre-marquês lhe fazia.
causas» na altura da sua sucessão, repetindo-se estas alusões nas cláusulas 11, 12 e 13, o que faz com que
não sejam fortuitas e explicam que a rainha reconhecia pouco antes da sua morte que a “revolução” e
“ilegalidade” se impuseram em diversas ocasiões, sobretudo no círculo de nobres mais influentes do seu
bando. Veja-se AZCONA, Tarsicio - «La revolución castellana y la geopolítica…», pp. 89-90.
227 Para o que contribuíram decisivamente dois factores: o facto de o legado que o papa enviou à
Península Ibérica, Rodrigo Borja, ser aragonês e a responsabilidade que o rei da Sicília evidenciou desde
cedo em defender a Cristandade ameaçada pelos turcos nos Balcãs.
228 Outra situação em que podemos aferir a estabilidade e o trabalhar para o mesmo fim por parte dos reis
da Sicília foi quando se travou uma guerra entre França e Aragão. Fernando, por chamamento do pai,
acudiu-lhe e Isabel decidiu apoiar o marido, enviando 400 lanças. Este reforço foi decisivo e na concórdia
entre os dois reinos, o Rossilhão e a Sardenha foram devolvidos a Aragão. Cfr. ACA-JZ, Livro XVIII,
cap. XL.
229 Cfr. MENÉNDEZ PIDAL - «Introducción», pp. XCVIII-CI; SUÁREZ FERNÁNDEZ – Isabel I, reina,
p. 78; VAL VALDIVIESO – Isabel la Católica y su tiempo, pp. 144-146.
85
Por último, muitos centros urbanos se apresentam como defensores de Isabel, para
contrariar a política de atribuição de mercês praticada pelo monarca230
.
A situação quase desesperada de Isabel, em 1471, torna-se mais favorável, em
1474. Talvez por isso, Enrique acedeu a encontrar-se com Isabel231
em Segóvia, sendo
este encontro facilitado por Andres Cabrera, alcaide da cidade. No encontro tido em
segredo (se dele tivesse tido conhecimento Juan Pacheco, tê-lo-ia certamente gorado
com as suas intrigas), Isabel lembrou ao irmão as súplicas que lhe escreveu, pedindo-lhe
para evitar mais conflitos no reino232
, só tendo ele de manter o juramento no qual a tinha
designado como legítima herdeira. Enrique, muito contente por voltar a ver a irmã após
cinco anos, retorquiu, contudo, que responderia depois, tentando ganhar tempo233
. O
soberano, que conheceu inclusivamente o cunhado, conseguiu estabelecer uma relação
amistosa com os príncipes, mas nem ele estava disposto a ceder no que a Juana diz
respeito, nem Isabel e Fernando desistiram do que consideram legitimamente deles.
Pacheco e o seu bando cuidaram que a vitória dos reis da Sicília seria funesta para os
seus interesses e maquinaram um plano para aprisionar Isabel, Fernando e Andres de
Cabrera. As negociações falharam.
À medida que mais nobres e comunidades municipais iam aderindo à causa dos
futuros Católicos234
, só Pacheco permanecia irredutível, embora ele não fosse obstáculo
230 Veja-se a nota 192.
231 Ao mesmo tempo, há registo de diversas embaixadas, nas quais Enrique procurou com afinco obter a
aliança portuguesa por meio do casamento de Juana com Afonso V. Os vários cronistas castelhanos, assim
como Zurita, dão-nos conta destas embaixadas. Embora em alguns momentos o monarca português se
tenha desinterassado de um matrimónio castelhano (tanto com Isabel, como também posteriormente com
Juana), acabou por aceitar o casamento com Juana, condicionando isso a sua política externa, com a
intervenção portuguesa em Castela, após a morte de Enrique IV. Cfr. SANTARÉM – Quadro
elementar…, pp. 367-368.
232 Duas zonas muito evidentes são as Astúrias e a Andaluzia. Cfr. VAL VALDIVIESO – Isabel la
Católica y su tiempo, pp. 153-155.
233 CEIV-DEC, cap. 164, pp. 390-392.
234 Posso indicar como motivos principais a desvalorização da moeda e a atribuição excessiva de mercês
aos seus partidários, as quais já fui oportunamente referindo. Na verdade, Isabel e Fernando tinham um
plano de governo que era atractivo para a alta nobreza. Eles ofereciam o fim dos bandos; a restauração
plena da autoridade monárquica como garante de uma estabilidade que respeitaria a situação e os
interesses económicos, sociais e de poder aristocráticos sem as peripécias, às vezes humilhantes e
violentas, das pugnas por ganhar a privança do rei ou por combater o opressor poder de alguns sectores da
nobreza, até porque o programa de governo do marquês de Villena havia demonstrado ser funesto –
devido à atribuição desmesurada de mercês, para os equilíbrios sociais, políticos e económicos do reino
86
por muito mais tempo, uma vez que faleceu a 4 de Outubro de 1474. Assim que se ia
percebendo que os príncipes tinham vantagem e com o marquês de Santillana a prestar
pública homenagem a Fernando como sucessor legítimo, desencadeia-se um conjunto
de adesões ao partido do último. Diego Hurtado de Mendoza ia tendo cada vez mais
influência sobre os jovens príncipes, facto que muito irritou Alfonso Carrillo. Afinal,
tinha sido ele quem forjou os futuros reis. Como a intransigência de Isabel e Fernando
mostrou que não estavam dispostos a pactuar com o antigo regime e que a concepção de
poder que defendiam apontava para o fortalecimento da monarquia, o arcebispo de
Toledo desenvolveu contactos com o marquês de Villena e demais partidários de Juana,
para a tornar na próxima rainha.
Entretanto, a saúde de Enrique, que vinha declinando desde Janeiro de 1474,
agravou-se de tal forma que o monarca conhece o fim a 12 de Dezembro do mesmo ano,
tendo cinquenta anos235
. Acompanharam-no na hora da morte o cardeal Mendoza, o
condestável, o marquês de Villena, o conde de Benavente e o confessor frei Pedro
Mazuelo. Menéndez Pidal, Ladero Quesada e outros são peremptórios ao afirmar que
Enrique faleceu sem deixar testamento236
. Dentro da fronteira lusa, David Martelo,
de Castela. Sobre este assunto veja-se LADERO QUESADA, Miguel Ángel – La España de los Reyes
Católicos, Madrid: Alianza editorial, 1999, pp. 47-48.
235 Não obstante muitos autores acreditarem que a tese de envenenamento do monarca é pura propaganda,
uma vez que no último ano de vida a sua saúde degradou-se substancialmente, sofrendo de vómitos de
febres, o que os seus contemporâneos consideravam ser um problema do foro alimentar e que nós
podemos conjecturar como sendo algum problema relacionado com o fígado, esta tese servirá os
interesses de Juana. Porém, na última edição do trabalho de Marañón (a qual citei na nota 174) inclui-se, a
cargo da Academia de la Historia Española, que foram descobertos os restos de Enrique IV em
Guadalupe. Da análise da mesma, concluiu o patologista que os sintomas descritos por Diego Enríquez
del Castillo podem coincidir com os de envenenamento com arsénico. Na mesma linha de pensamento,
afirma Ana Isabel Carrasco Manchado que não se pode desdenhar a importância dos rumores de
envenenamento que circularam em Castela, nem a certeza que Juana tinha que o pai tinha sido
envenenado. Para suportar a sua afirmação, baseia-se numa carta de Guterres de Cárdenas, partidário de
Isabel, aquando da morte de João Pacheco, meses antes, a qual predestinava já a morte de Enrique (se
assim o quisermos entender): «Todo el mundo está prenyado acá, según la prisa de todos por parir, que no
esperan a los nueve meses; creo que abrá de aber cosas muy grandes e nuevas en estos reinos, donde
spero en nuestro Senyor que vuestra alteza e la senoyra prinçesa serán servidos». Seria este um indício
que confirmaria as suspeitas de Juana? Em qualquer caso, continua como sendo um ponto inquietante
para partidários de um e de outro bando. (A carta pode ler-se em PAZ y MELIÁ – El cronista Alonso de
Palencia, Madrid, 1914, doc. 69, p. 169). Suspeitas de veneno semelhantes e não comprovadas recaíram
sobre o D. João II, o Príncipe Perfeito.
236 O testamento de Enrique é uma questão sensível, até porque influi na legitimidade de Isabel. Miguel
Ángel Ladero é o mais taxativo, dizendo que não há testamento. (LADERO QUESADA – La España de
los Reyes Católicos, p. 48); Pidal é mais cuidadoso e diz que os cronistas contemporâneos estão de acordo
87
Humberto Baquero Moreno e Manuela Mendonça contrariam a opinião dos
historiadores citados237
, asseverando que o monarca castelhano deixou testamento,
provavelmente baseando-se na cronística portuguesa. Porém, não partilho da leitura de
Baquero Moreno, porque penso ser demasiado ambiciosa quando, citando o Cura dos
Palácios, afirmar ser essa uma prova da existência do testamento do defunto monarca.
«Muchas embaxadas fueron e vinieron de los cavalleros de Castilla de la
liga de la señora doña Juana, particulares y generales, al rey don Alonso de
Portogal, convidándole con ella para casar e con Castilla para reinar, afirmando le
venir los reinos por sucessión del rey don Enrrique su padre»238.
Vejamos agora o que dizem as fontes, seguindo a lógica com que foram
apresentadas no capítulo correspondente:
Rui de Pina:
relativamente à ausência de testamento do rei, inclusivamente – diz, o do rei português. (MENÉNDEZ
PIDAL - «Introducción», T. XIV, p. CXIII); Luís Suárez também é prudente, afirmando que não se
conservou nenhum testamento, nem os partidários de Juana aludiram a ele, ficando a sucessão regulada
somente pelo acordo de Guisando. (SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: La conquista del
trono, p. 75). Por outro lado, embora pareça ter existido uma declaração original que legitimaria a
Beltraneja, com assinaturas, selos e juramentos de Enrique IV e da rainha Joana, confirmada ainda por
nove dos Grandes, esse documento desapareceu. Cfr. AZCONA, Tarsicio – Juana de Castilla mal
llamada La Beltraneja, 1462-1530, Madrid: La esfera de los libros, 2007, p. 49. Shima Ohara, baseando-
se em Rui de Pina, fala num testamento secreto (OHARA, Shima - «Las relaciones en torno al conflicto
sucesorio de Enrique IV» in Isabel la Católica y su época - actas del congreso internacional, Vol. I,
coord. de Luis Ribot, Valladolid: Universidad de Valladolid, 2007, pp. 397).
237 MORENO, Humberto Baquero - «Os confrontos fronteiriços entre D. Afonso V e os Reis Católicos»,
in Revista da Faculdade de Letras, II Série, vol. X, Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto,
1993, p. 104; MENDONÇA, Manuela – D. João II – um percurso humano e político nas origens da
modernidade em Portugal, Lisboa: ed. Estampa, 1991, pp. 102-103. Vejam-se também os trabalhos de
MARTELO, David – A dinastia de Avis e a construção da União Ibérica, Lisboa: edições sílabo, 2005, p.
45; SOUSA, Armindo - «1325-1480», in História de Portugal: a monarquia feudal (1096-1480), vol. II,
Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p. 506. Quem também parece comungar da opinião de que o monarca
deixou testamento é Paz Romero: ROMERO PORTILLA – Dos monarquías medievales…, p. 139.
238 MRC-AB, cap. XIV, p. 47. Embora à primeira vista as palavras de Bernáldez pareçam apontar para a
possível existência de um testamento, não obstante este nunca ser referido explicitamente, é preciso
alertar uma vez mais para o carácter descontínuo da sua obra. O excerto do capítulo XVI que aqui
transcrevo é bastante posterior – quer na organização da obra, quer temporalmente falando, ao capítulo no
qual o Cura dos Palácios narra a morte de Enrique IV. Esta última situação ocorre no capítulo X. Se
tivermos em conta que Enrique faleceu a 12 de Dezembro de 1474 e a presente citação vem no capítulo
em que o Africano decidiu entrar em Castela, então temos um hiato de cinco meses, depois de o soberano
português ter notificado os Reis Católicos e de estes terem respondido, já que Afonso V invadiu Castela
em meados de Maio de 1475.
88
«Fez ElRei Dom Anrryque seu sollene e acordado Testamento, em que
declarou a Pryncesa Dona Joana por sua Fylha, e por Raynha erdeira dos Reynos
de Castella e a ElRey dom Afonso por Governador delles, pedindo-lhe fynalmente
que aceitasse a dita governança, e casasse com ella, o qual Testamento foy logo
trazido a ElRey dom Afonso, que estava em Estremoz no mes de Dezembro do
dito ano de mil e quatrocentos e setenta e quatro, sobre ho qual ElRey logo teve
grande e geral conselho, pera que foram ally juntos com ElRey e com o Pryncepe,
todollos grandes e pryncipaaes do Reyno»239.
Uma vez mais tenho de alertar para a prudência na leitura das fontes,
especialmente de Rui de Pina, uma vez que a sua argumentação se tornava numa arma
para defender o Africano.
Damião de Góis:
«E andando jà de muitos dias mal desposto, se veo a Madril, onde estando
em seu inteiro juízo fez solemne testamento, no qual declarou ha Prinçesa donna
Ioanna por sua filha legitima, e vnica herdeira, pedindo ha elRei dom Afonso, que
açeptasse ho gouerno dos Regnos de Castella, e hos defendesse, e quisesse casar
com há prinçesa. Hos da parte delRei dom Fernando dizem isto doutra maneira,
que elRei dom Anrrique nam fez outro testamento saluo algũas palauras que dixe
jà no extremo da vida, has quaes screueo hum seu secretairo per nome Ioam de
Vueda, pessoa de quem elle confiaua muito, e a sustançia destas palauras foi que
elle daua poder aho Cardeal de Castella, e aho Marques de Villena pera fazerem
seu testamento, e ordenarem do modo que ho entendessem, e que assi ho
exercitassem; e quanto ha Prinçesa donna Ioanna, que elles ordenassem della
segundo suas conçiençias, com conselho, e pareçer do Marques de Santilhena, e do
Duque d‟Areuallo, e do Condestabre, e do Conde de Benauente»240.
Ao cronista do príncipe pareceu estranho que um rei sabendo, o que estava em
jogo e andando já há algum tempo doente, não tivesse feito testamento, o que os
cronistas castelhanos divulgavam:
«Mas isto nam tras fundamento, nem se pode crer que hum Rei que em
tantos trabalhos andaua, e que muĩ bem entendia quantos estauam aparelhados
239 CDAV, cap. CLXXIII, p. 829.
240 CPDJ, cap. XLI, pp. 100-101.
89
depois de sua morte se nam fezesse testamento, em que declarasse sua vontade,
andando já de muitos dias mal desposto»241.
Mas sublinha que num aspecto os cronistas castelhanos têm razão:
«[…] nam faça duuida ho que dizem hos historiadores Castelhanos, que
se nam achou em Castella ho testamento que elRei dom Anrrique fez, porque elles
dizem verdade, e foi desta maneira: tanto que elRei dom Anrrique faleçeo no
Alcaçer delRei em Madril, […] ho Cardeal de Castella, e ho duque d‟Areuallo, e o
marques de Villena, e ho conde de Benauente, que elRei deixou por seus
testamenteiros, vendo quomo elRei declaraua em seu testamento ha Prinçesa
donna Ioanna por sua filha, e herdeira vnica de todos seus Regnos, e senhorios, e
elRei dom Afonso por gouernador delles, com lhe pedir muito que tomasse esta
gouernança a cargo, e fosse tutor da Prinçesa donna Ioanna, e casasse com ella, no
mesmo instante, per pessoas de confiança mandaram ho testamento a elRei dom
Afonso, que neste tempo staua em Eluas – e esta he a causa porque se nam achou
em Castella»242.
Alonso de Palencia:
«[…] ni pidió los sacramentos como católico, ni se acordó de hacer
testamento o codicilo, según universal costumbre. […] aunque no me consta con
certeza, se dice que como uno de ellos [dos Grandes presentes] le preguntase a
quién declaraba heredera de los reinos, si a su hermana o a D.ª Juana cuya
legitimidad era dudosa, había contestado: - “Eso pregúntaselo a mi capellán Juan
González, depositario de mi voluntad.” Lo que sí consta es que cuando fray Juan
de Mazuelo, por indicación del Cardenal, le rogó que declarase solemnemente a
cuál de las Princesas reconocía por heredera, contestó: – “Declaro a mi hija
heredera de los reinos”»243.
Fernando del Pulgar:
«E no fallamos que en su vida, ni al tienpo de su fin, fiziese testamento:
créese que lo dexó de fazer, porque no penso morir tan presto. Lo que fallamos que
fizo al tienpo de su fin y muerte, escrito de la mano de vn su secretario que se
llamaua Juan de Oviedo, de quien él mucho confiaua, es lo siguiente: <En Madrid,
onze días del mes de diciembre, año del Señor de mill y quatroçientos e setenta y
quatro años, a las doze oras de la noche, el rrey nuestro señor dexó por suas
241 CPDJ, cap. XLI, p. 101.
242 CPDJ, cap. XLI, p. 101.
243 CEIV-AP, I, p 153.
90
albaçeas de su ánima al cardenal de España y al marqués de Villena; y mandó que
de la prinçesa su hija se fiziese lo que el cardenal, y el marqués de Santillana su
hermano, y el duque de Arévalo, y el condestable, y el conde de Benauente, y el
marqués de Villena, acordasen que se debía hazer>»244
.
Diego Enríquez del Castillo:
«El rrey rrespondió sosegadamente que dexava por sus testamentarios e
albaçeas al cardenal de España, al duque de Arévalo, al marqués de Villena y al
conde de Venavente, e les encomendava sus cosas e mandava que su cuerpo fuese
llevado a Santa María de Guadalupe»245.
Diego de Valera nada diz, mas o começo da sua crónica - «Muerto assí el rey
don Enrique»246
parece remeter para o último capítulo do seu Memorial de Diversas
Hazañas, no qual conta a morte do rei. Também Lúcio Marineo Sículo e Andrés
Bernáldez nada dizem sobre este assunto247
.
Lourenço Galíndez de Carvajal:
«E como conociese ser cercano su fin con temor ordeno de se confesar y
recivir los sacramentos y hacer testamento. […] Tambien dicen que como algunos
de los que alli estaban le preguntasen a quien dexava por heredera destos reinos, si
a sua hermana o a su hija, dubdosamente respondió que Joan Gonçalez su capellán
sabia en esto su intención»248.
Jerónimo Zurita:
«El testamento del rey don Enrique [de Castilla] fue llevado al rey de
Portugal. Estaba el rey don Alonso de Portugal en Estremoz cuando le llegó la
nueva de la muerte del rey don Enrique y que ordenó su testamento en el que
instituyó a la princesa doña Juana su hija por heredera y sucesora de aquellos
reinos y a él por gobernador dellos, y le pidía muy caramente que aceptase la
gobernación y casase con la princesa. Y afirmase por memorias de Portugal que
244 CRC-FP, cap. XX, pp. 63-64.
245 CEIV-DEC, cap. 168, p. 399.
246 CRC-DV, p. 2.
247 Ver nota 237.
248 CEIV-LGC, pp. 458-459. Torres Fontes afirma em nota de rodapé que esta frase foi retirada de Valera
mas Carvajal atribuiu-lhe um sentido afirmativo, ao invés do negativo que o primeiro lhe dá.
91
este testamento se llevó al rey de Portugal estando en Estremoz por el mes de
deciembre»249
.
O Cronicón de Valladolid e a Crónica Incompleta de los Reyes Católicos nada
referem acerca da possibilidade de ter havido ou não um testamento.
Perante o exposto, tenho de concluir que o assunto do testamento do rei de
Castela apresenta tantas dificuldades quanto a impotência de que foi acusado. Se por um
lado me parece pouco credível que o monarca não tenha feito testamento, o que era
costume na época e, em especial, ao sofrer de doença prolongada – recordo que D.
Afonso V fez três testamentos a partir do momento que decidiu entrar em Castela250
para fazer a guerra a Isabel e a Fernando251
, por outro lado também reconheço que os
cronistas contemporâneos, não obstante as diferentes convicções, estão de acordo e não
referem nenhum testamento. Como se pode ver pelos excertos citados, Pulgar e Castillo
são os que mais se aproximam, anotando, contudo, que Enrique IV deixou a sua última
vontade a cargo dos Grandes que compunham o seu partido, o que também não nos
deve admirar, já que em outros episódios, o rei oscilou entre uma posição de fraqueza e
de perdão perante os seus inimigos políticos, tais como o volátil Juan Pacheco. Alvo de
pasmo é o testemunho de Palencia que, sempre tão averso ao soberano, em declaração
ao prelado Mazuelo, anota que Enrique indicou Juana como sua legítima herdeira.
Menéndez Pidal recorda que muitos anos depois Carvajal «acoge la historieta
novelesca» de um testamento que Juan de Oviedo entregou a um clérigo, o qual o
enterrou num cofre, próximo de Almeida, que foi descoberto passado trinta anos e que
consta que Fernando terá mandado queimar252
. O seu raciocínio estará provavelmente
correcto, embora possamos nunca vir a sabê-lo com segurança. Primeiro porque Pulgar,
249 ACA-JZ, Livro XIX, cap. XVIII.
250 A 12 de Maio de 1475, em Arronches, a 5 de Janeiro de 1476, em Toro e a 8 de Março de 1476, já
depois da derrota em Castro Queimado, decretando nas três ocasiões que a sucessão do reino luso deveria
pertencer ao infante Afonso, seu neto.
251 Assim que sentiu algum perigo, o monarca testou. Num documento precioso porque espelha o seu
pensamento político, no início da guerra de sucessão (Julho de 1475), Fernando apresentou-se como o
paladino da esposa, a qual declarou como legítima herdeira dos reinos, afastando-se assim do problema
sucessório. O testamento está publicado em SESMA MUÑOZ, José Ángel – Fernando de Aragón.
Hispaniarum Rex, Zaragoza: Gobierno de Aragón, 1992, pp. 260-263.
252 MENÉNDEZ PIDAL - «Introducción», T. XIV, p. CXIII, nota 329. O ilustre historiador menciona
como fonte a Biblioteca de Autores Españoles (BAE), LXX, pp. 539-540.
92
coevo, regista o mesmo episódio deste Juan de Oviedo. Depois porque numa conjuntura
em que os Grandes presentes na hora final do rei moribundo são partidários de D. Juana,
com a excepção do cardeal Mendoza. Isto deixa alguma possibilidade de levar o
testamento (se este realmente existiu) a D. Afonso V, como forma de lhe provar que tem
a legitimidade para entrar em Castela, demonstrando que possui os apoios necessários e
de maneira a exortá-lo para que o faça. Obviamente que, dado o fracasso político que
foi para Portugal a guerra da sucessão castelhana, o que a nossa cronística registou pode
servir como elemento legitimador de uma acção falhada. Ainda assim, não é de
descartar a possibilidade da existência de um testamento, o qual terá sido
posteriormente destruído, para que não manchasse o início do reinado dos Católicos.
Perante o panorama apresentado, creio que é mais seguro afirmar que o testamento não
existiu, do que o contrário. Proferidas estas apreciações, há apenas mais um aspecto que
é preciso ter em conta: o local onde o testamento terá supostamente sido entregue ao
monarca luso. Rui de Pina refere que Afonso V estava em Estremoz, Damião de Góis
fala em Elvas, Carvajal em Almeida e Zurita também em Estremoz253
. Não é a falta de
concordância entre os cronistas que é sumamente importante. Na verdade, podia ser
uma questão de pormenor. Porém, o que é necessário reconhecer é que Afonso V se
sentiu no direito de reclamar algo que lhe pertencia, logo, quer tenha havido testamento
ou não. Ao acrescentarmos as diversas entrevistas que houve entre ambos os monarcas,
assim como as embaixadas que os reinos enviaram um ao outro, a conjuntura forneceu o
efeito legitimador para que o Africano tenha decidido fazer a guerra a Isabel e a
Fernando, ignorando o veto do seu Conselho, apenas recolhendo o apoio do príncipe D.
João.
Isabel pouco se preocupou com quem Enrique nomeou antes de sucumbir ao
sono da morte. Na verdade, o rei já tinha jurado a gosto de uns e outros, mas o
juramento de Guisando e das cortes de Ocaña não podia ser invalidado sem a anuência
253 Saul Gomes, ao escrever a biografia de D. Afonso V, compilou também os seus itinerários. Porém, sem
serem os locais que os cronistas supracitados mencionam, o que podemos referir com certeza é que a 16 e
23 de Dezembro de 1474, o monarca português estava em Sousel, deslocando-se depois para Estremoz,
onde se encontra a 24 do mesmo mês. Através das tabelas apresentadas pelo mesmo investigador, Afonso
V apenas esteve em Elvas pelo primeiro trimestre de 1473, o que nos leva a concluir que tenha sido
confusão de Damião de Góis. Não há registos de paragem da comitiva régia em Almeida para o biénio
1474-75. Cfr. GOMES – D. Afonso V, p. 305. Relativamente ao assunto do testamento, este autor
apresenta uma posição intermédia, afirmando apenas que o marquês de Villena foi testamenteiro de
Enrique IV e que, em seguida, o dito marquês escreveu a Afonso V para o incitar a receber Juana por
esposa e a reclamar o título de rei de Castela (p. 202).
93
das cortes. Aquela que estava a poucas horas de se tornar rainha foi uma das principais
intervenientes na união dos dois maiores reinos da Península Ibérica, renovando as
ligações matrimoniais com os reis aragoneses. Além disso, houve uma das cláusulas
relativamente ao testamento de Juan II, seu pai, que Enrique não respeitou. O monarca
sempre votou a sua madrasta ao desprezo254
.
Tal ascensão ao trono foi tornada real através da declaração de Segóvia, a 15 de
Janeiro de 1475, tomando-se todas as precauções para impedir a apropriação do poder
por parte dos aragoneses. Salvo algumas excepções, separaram-se as instituições,
havendo unidade unicamente no poder central255
. Isto não invalida que, por terem de
atender a diferentes focos do conflito civil, Isabel conceda poderes plenos a Fernando, a
28 de Abril do mesmo ano. O rei correspondia, nomeando Isabel co-regente, tutora e
governadora dos seus estados patrimoniais, em 1481. Tinha sido alcançada a forma
definitiva de governo conjunto256
.
Não havia decorrido um dia desde que Isabel tomou conhecimento da morte de
Enrique quando foi alçada rainha257
, em Segóvia. Segóvia não é apenas uma cidade
qualquer. Continha o tesouro real, o qual lhe foi disponibilizado por Andrés Cabrera.
Isabel exigiu o juramento de fidelidade das cidades e enviou uma mensagem a
Fernando, ausente em Aragão, para que regressassse. As cidades estavam, de um modo
geral, por Isabel258
, salvo excepções como Madrid e Plasencia. Embora tenha havido
diferentes prazos para que as várias cidades do reino se decidissem por uma ou outra
254 E por outro lado, os infantes também não cumpriram o estipulado no dito testamento e sublevaram-se
contra o rei legítimo. Cfr. VAL VALDIVIESO – Isabel la Catolica, princesa, pp. 40-41.
255 Relativamente a este assunto, refere Miguel Ángel Ladero que as ideias sobre a realidade hispânica
que existiam no fim da Idade Média não traduziam uma política unitária imediata, mas sim muitas noções
de pátria, natureza e estrangeiros que se aplicavam em cada reino, próprias da organização político-
administrativa de cada um e resultantes da sua história específica. Cfr. LADERO QUESADA - «La
monarquía: las bases políticas del reinado», p. 152.
256 SUÁREZ FERNÁNDEZ, Luis - «La España de los Reyes Católicos (1474-1516)», in História de
España, dirigida por Ramón Menéndez Pidal, T. XIV, Madrid: Espasa-Calpe, 1966, pp. 7-13.
257 CV, p. 87.
258 Isabel deu particular importância a Sevilha porque era relativamente próxima de Portugal, densamente
povoada, centro abastecedor de trigo e era o elo entre as rotas atlânticas e mediterrânicas e, como tal, um
foco de investimento genovês. Toda esta riqueza era disputada por duas poderosas linhagens: Guzmán e
Ponce de León. Para este caso e Zamora, desenvolvidos ao pormenor, deve consultar-se SUÁREZ
FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: La conquista del trono, pp. 76-79.
94
princesa – o que evidencia bem o peso, mas também as dissenções dentro das
oligarquias municipais, facto é que nenhuma cidade proclamou Juana. Ao nível da
nobreza, e num momento inicial, manteve-se a bipolarização com uma certa
especificidade: o partido composto pelo segundo marquês de Villena (que continuou a
política do pai, embora menos habilmente) e pelo duque de Arévalo, o qual defendia a
concepção de uma nobreza forte em detrimento do poder da realeza259
; na mesma linha
de orientação política, isto é, de fortalecimento das oligarquias nobres, temos o
arcebispo de Toledo e a família Manrique, os quais se apresentam como aragoneses e
são isabelinos; por último, a facção da nobreza fiel a Enrique e à concepção régia do
poder, composta por Beltrán de la Cueva e pela poderosa família Mendoza260
.
A 24 de Dezembro de 1474, os grandes presentes em Segóvia (cardeal Mendoza
à cabeça, o condestável, o almirante Enriquez e o conde de Benavente), firmaram um
pacto de protecção aos jovens reis.
Só um mês depois da morte do meio-irmão é que as coisas começaram a
melhorar para Isabel, com a sentença arbitral ou concórdia de Segóvia. Nela, a 15 de
Janeiro de 1475, se estabeleceu a repartição de competências entre ambos os monarcas:
Isabel é «legítima subçesora y proprietária destos rreynos» e Fernando, seu esposo,
recebe o título de rei, num governo de cariz dual261
.
259 Não esqueçamos que esta política de intriga e de não deixar haver um vencedor absoluto foi praticada
durante décadas por Juan Pacheco, provocando grandes querelas no reino, debilitando o poder e o
prestígio de Enrique IV. Sobre este assunto veja-se VAL VALDIVIESO, Maria Isabel del - «Los bandos
nobiliários durante el reinado de Enrique IV», in Hispania, 130, 1975, pp. 249-294.
260 Esta família consegue estender a sua influência aos Alvarez de Toledo (duques de Alba), Enriquez
(almirantes e condes de Alba de Liste), Pimentéis (condes de Benavente) e Velascos, os quais estavam
dispostos a seguir a posição dos Mendoza.
261 Houve, na verdade, um conjunto de disposições emanado desta concórdia. Este documento foi
necessário para demarcar as competências de Fernando, uma vez que havia o receio que o poder
soçobrasse para o reino de Aragão. Tal disputa entre Isabel e Fernando ficou sanada, ao fim de doze dias,
por via de um diploma (a dita sentença arbitral), elaborada pelos representantes de cada partido. O cardeal
Mendoza representou Isabel e o arcebispo Carrillo representou Fernando. O resultado é tido como
favorável a Isabel. Este foi o derradeiro golpe para Alfonso Carrillo, que a partir daqui, sentindo-se
injustiçado e trocado pelo cardeal, será um firme apoiante de Juana e do partido português. Podem
consultar-se as cláusulas deste acordo em SUARÉZ FERNANDÉZ - Los Reyes Católicos: La conquista
del trono, p. 85. Foi tanto o empenho que o cronista oficial que, Fernando del Pulgar, colocou na sua
crónica que, para não separar e distinguir um monarca do outro, incluiu a frase «El rey e la reyna en tal
dia parieron un fija», para se referir ao nascimento de Juana. Veja-se também VAL VALDIVIESO, Maria
Isabel del - «Fernando II de Aragón, rey de Castilla», in Fernando II de Aragón, el rey Católico,
Zaragoza, Instituto Fernando el Católico del C.S.I.C., 1996, pp. 29-46, assunto que a mesma autora volta
95
Havia que atrair os nobres ao seu partido. Com efeito, Isabel precisava de
garantir apoios dos Grandes, de maneira a que o seu partido ganhasse força. Assim, ao
legitimar as aquisições de muitos262
através da contrapartida de rendas, lucrava dois
objectivos: a fidelização de nobres e o amealhar de dinheiro. Por outras palavras, este
processo consistia em legitimar aos nobres as terras de que se tinham apropriado
indevidamente, conseguindo assim mantê-los sob a sua esfera de influência e amealhar
algum dinheiro, o que, especialmente nos primeiros temos, foi uma das maiores
dificuldades do partido isabelino. Em Fevereiro de 1475 só as famílias Stuñiga e
Pacheco-Girão eram dissidentes, juntamente com o arcebispo Carrillo.
Geograficamente, estes clãs compreendiam uma parte muito significativa do território
castelhano. Todavia, as linhagens não são unânimes e há quem ostente o nome de
família mas seja partidário de Isabel e Fernando263
. Apesar do poder e do prestígio, estes
nobres perceberam que sem o apoio de D. Afonso V não teriam possibilidades de
vencer. Além disso, quanto mais tempo passasse, mais se divulgava a ideia de que os
reis eram os pacificadores, angariando desta forma adeptos para a sua causa. Não
perdendo de vista este panorama, há que ter em conta que os senhores não tomaram uma
posição uniforme, apesar da sua importância económica e política que vem já do séc.
XIV e continua durante o séc. XV, porque lhes faltava uma meta colectiva,
fragmentando-se assim em bandos, cujos partidários reflectiam o tradicional
enfrentamento das diversas casas nobres, oscilando entre a aproximação ao monarca,
devido às promessas que dele recebiam, e a sua postura antagónica face ao rei,
proveniente da ideologia de pertença de grupo264
.
Na sequência dos conflituosos anos de 1465-68, também entre 1475-79, teve
enorme importância o uso de acusações de nascimentos ilegítimos, práticas sodomitas,
desvios sexuais e outras denigrações de índole variada, as quais atingiram o expoente
máximo com Alonso de Palencia, autor que atribuiu a Isabel o título de magistra
a tratar, com o mesmo título, mas na sua obra Isabel la Católica y su tiempo, Granada: Universidade de
Granada, 2005, pp. 287-306.
262 Em Castela havia o problema das terras que tinham sido dos infantes de Aragão, as quais, com o
regresso de Fernando, corriam o perigo de mudar de dono. Vejam-se alguns exemplos de atracção de
nobres em SUARÉZ FERNANDÉZ - Los Reyes Católicos: La conquista del trono, p. 93, nota 68.
263 Pedro da Cunha, irmão de Alfonso Carrillo e um filho de Beltrán de la Cueva, duque de Arévalo.
264 VAL VALDIVIESO, Maria Isabel del – Isabel la Catolica, princesa (1468-1474), Valladolid: Instituto
“Isabel la Catolica” de Historia Eclesiastica, 1974, p. 19.
96
dissimulationum, no sentido de utilizar a mentira contra os interesses de D. Juana265
.
Deste modo, o contexto de crise de legitimidade de onde se partia, uma sucessão
discutida e um início de reinado que implicava o recurso ao conflito armado para a
segurança da coroa requeriam um esforço na formulação de princípios ideológicos
justificadores, com fins propagandísticos e apresentando características simbólicas e
cerimoniais. Porém, é necessário ter em conta que no séc. XV não havia os conceitos de
propaganda, opinião pública e ideologia tal como nós os compreendemos hoje, o que
apenas se atinge a partir da Revolução Francesa. Porém, isso não invalida que
existissem esforços de persuasão e manipulação como forma de atingir determinados
fins266
.
d) Da questão sucessória ao conflito internacional: a guerra Peninsular
(1475-76)
Desde o início da década de setenta de Quatrocentos que as conquistas norte-
africanas corriam pelo melhor. O plano de domínio marroquino posto em prática pelos
portugueses, bem como as campanhas postas em acção para a conquista de Granada por
Enrique IV de Castela (com diferentes graus de determinação e sucesso como foi
possível aferir), no fundo, são expressão da aliança luso-castelhana que dominou a
diplomacia peninsular no segundo e terceiro quartéis do século XV267
. Devido, todavia,
265 NIETO SORIA, José Manuel - «La imagen y los instrumentos ideológicos de exaltación del poder
regio», in Isabel la Católica y su época. Actas del congresso internacional, Coord. de Luis Ribot et al.,
Vol. I, Valladolid: Universidad de Valladolid, 2007, pp. 173-174. Veja-se também CARRASCO
MANCHADO, Ana Isabel - «Enrique IV de Castilla: esbozo de una representación de la propaganda
política», Orientaciones. Revista de homosexualidades, 2 (2001), pp. 55-72.
266 Sobre este assunto veja-se BURKE, P. - The fabrication of Louis XIV, London, 1992, p. 42. Com
efeito, o conceito de propaganda era proveniente dos círculos da Companhia de Jesus e forma parte do
nome da Congregatio de propaganda fidei. O Diccionario de la Lengua española, Madrid, 1970, p. 1072,
define propaganda em três acepções: «1. Congregación de cardenales nominada para difundir la religión
católica. 2. Por extensión asociación cuyo fin es propagar doctrinas, opiniones. 3. Acción o efecto de dar a
conocer una cosa com el fin de atraer adeptos o compradores». Cfr. GONZÁLEZ MEZQUITA, María
Luz - «Propaganda y legitimación en las crónicas de dos reinados: Isabel I y Felipe V», in Isabel la
Católica y su época. Actas del congresso internacional, Coord. de Luis Ribot et al., Vol. I, Valladolid:
Universidad de Valladolid, 2007, p. 380.
267 FONSECA, Luís Adão da – «Horizonte castelhano no debate político em Portugal no final da Idade
Média», p. 157.
97
a desenvolvimentos no reino vizinho, D. Afonso V retoma a ideia (que já vinha desde
1465) de unir os dois reinos sob a mesma Coroa, não só após os apelos que Enrique IV
lhe fez, mas também e em especial, com a morte deste em Dezembro de 1474, com os
pedidos do segundo marquês de Villena. Para dar seguimento às condições estipuladas
no suposto testamento (sobre o qual já teci considerações atrás), D. Juana deveria casar
com o seu tio, o rei português (lembro que Joana, a mulher de Enrique IV era irmã de
Afonso V), ficando o Africano como regente. Foi então com esta motivação e achando-
se em pleno direito, que Afonso V convocou cortes. Com os apoios assegurados – não
sem antes ter encontrado resistência ao projecto de invasão de Castela268
, mas
confirmado o apoio do príncipe D. João (não esquecer que este foi um entusiasta deste
projecto numa fase inicial269
), o soberano deu o próximo passo. Escreveu de Estremoz, a
27 de Dezembro de 1474, em nome de D. Juana, dirigindo-se aos nobres e cidades
castelhanas e defendendo os direitos da sobrinha-princesa270
.
O rei português, crendo que contava com o apoio de grande parte do reino
vizinho, na verdade, não tinha assim tantas forças coadjuvantes. Embora tenha contado,
sem dúvida, com grande poder, Afonso V tinha uma visão muito optimista que não
correspondia à realidade. Tinha o apoio de catorze cidades271
, mas o marquesado de
Villena foi desintegrado (e daí também o pedido de ajuda a Portugal) e as rendas do
arcebispo Carrillo estavam em franco declínio. Não queiramos ver o cenário à luz de
quem conhece como se desenrolaram os acontecimentos. Na verdade, os partidários de
268 Não olvidemos a rivalidade existente entre a Casa de Bragança e o príncipe D. João e também o facto
de Isabel ter igualmente relações de parentesco com a Casa de Bragança. Por consequência, os nobres
portugueses pediram cartas de segurança em como teriam apoio dos seus congéneres castelhanos assim
que passassem a fronteira. Só a partir do momento em que essas cartas chegaram é que a campanha se
decidiu. CEIV-AP, II, pp. 169 e 184.
269 MENDONÇA – D. João II – um percurso humano e político nas origens da modernidade em
Portugal, p. 102. Diz ainda Rui de Pina: «o Pryncepe desejando que El Rey seu padre com esperança de
acrecentar seus Reynos de Portugal, aceitasse, e nom se escusasse ao casamento e empresa de Castela,
tinha suas fallas e maneyras com esses pryncipaaes, a que revellava seu desejo, com que os commovia,
pera que conselhassem El Rey seu Padre, e o esforçassem pera ysso» (CDAV, cap. CLXXIII, p. 829).
270 «[…] el Rey, su padre […] la pronunçió e declaró por su verdadera heredera e subçesora de sus
Reynos […] Nos deliberamos de esto asy todo notificar e vos rogamos que querays muy bien guardar la
obligación e fieldad que a ella, como a verdadera Reyna desos Regnos deués e asy la obedescaes e
Reconoscaes, tomando su Bos e non de outra alguna persona». (Archivo Histórico Nacional de Toledo,
Sección Nobleza, legajo 419, citado por ARAÚJO - Portugal e Castela (1431-1475): ritmos de uma paz
vigilante, (policopiado), vol. I, p. 428.
271 CPDJ, cap. XLII, pp. 103-105.
98
Afonso detinham bastante poder, como já referi acima272
. Além disso, devido à
conjuntura que se foi criando durante o reinado de Enrique IV, juntamente com a
concepção de poder de acordo com a qual a realeza deveria ter um papel menos
interventivo, os Reis Católicos tinham ainda com que se preocupar com aquelas
linhagens que ambicionassem ter uma rainha mais fraca. Seria necessariamente Juana,
uma vez que Isabel vinha dando provas de autoritarismo e centralismo273
. Outras
instâncias que inspiravam cuidado eram as casas nobres que esperavam para ver quem
sairia vencedor do conflito. Pode ainda equacionar-se a sombra da batalha de
Aljubarrota, que pairou durante muito tempo no imaginário colectivo castelhano, cujos
ecos se chegaram a repercutir além fronteiras ibéricas274
.
272
Podemos analisar a questão à luz do controlo efectivo que os nobres tinham sobre os seus senhorios.
Deter o senhorio não significava, neste tempo, controlá-lo. Daí que observar somente o nome de famílias
como Pacheco, Portocarrero, Stuñiga, Monroy, Trejo, Carvajal, Orellana podem não traduzir, na verdade,
um retrato fiel dos apoios à causa de Juana. Para uma listagem exaustiva das terras e cidades controladas
por ambos os partidos, veja-se SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: La conquista del trono,
pp. 98-101. LORA SERRANO também apresenta a lista de partidários de Isabel e de Juana, em particular
na região da Extremadura. Veja-se LORA SERRANO, Gloria – «La nobleza extremeña ante la guerra
luso-castellana de sucesión», in Revista da Faculdade de Letras: História, série II, vol. 15, n.º 1, Porto:
Universidade do Porto, 1998, pp. 383-410. Bernáldez é um dos cronistas que apresenta a extensa lista de
apoiantes do soberano português: «... ellos eran en aquel tiempo los más grandes e más poderosos de
toda Castilla. E el duque de Arévalo, conde de Béjar, señor de Plasencia, don Alvaro de Stuñiga, puesto
que era muy viejo, tenía a Arévalo e su tierra y tenía a Burgos e el maestrado de Alcántara, e poco menos
que toda la tierra de Estremadura; e todas sus tierras e senhorios e otras cosas harto bien pacíficas e a su
servicio e mandar. E no es duda estar el mayor de los cavalleros de Castilla, en lo susodicho e con sus
hijos e parientes. E el arçobispo de Toledo don Alonso Carrillo, que era el mayor prelado de España, que
es la segunda casa de renta de Castilla, tenía muchas tierras, cibdades e villas e castillos, suyos e de la
corona real. E el marqués de Villena, a quien avía quedado en guarda la señora doña Juana, tenía a su
mandar más villas e castillos que ningún grande de todo el reino, e no avía otro mayor que él, e se titulava
estonces maestre de Santiago e duque de Truxillo. E el maestre de Calatrava, que era muy gran señor, y el
duque de Ureña, su Hermano, esso mesmo; e destos pendia la mayor parte de Castilla. E ovo otros
muchos que se aclararon antes que el rey don Alonso entrasse; assí como Alonso Carrillo, señor de
Maqueda; e Castañeda, señor de Portillejo e de las Calañas; e Pareja, adelantado de Galicia; e Juan de
Ulloa, alcaide de Toro e mariscal de Zamora; el conde de Valencia y otros muchos, dexando los que
estavan de calada con los que le facían parcialidade al rey don Alonso. E él pensó que con ellos sojuzgaría
a Castilla», MRC-AB, cap. XVII, pp. 49-50.
273 Leiam-se as expressivas palavras do cronista Palencia, mesmo antes do primeiro cerco a que Fernando
submete a cidade de Toro: «[…] si D. Fernando vencia al Rey de Portugal, como ello había de granjearle
extraordinário poderio, el peligro para los Grandes aumentaria considerablemente, ya porque se acusaria a
algunos de haber apoyado la resolución del rey D. Enrique en el asunto del matrimonio de D.ª Juana, y de
haber pactado alianza sobre este punto com el enemigo portugués, ya porque el vencedor revindicaría la
antigua posesión de las villas arrancadas por la laudable diligencia de los Grandes a la violencia de
malvados que abusaban del favor real», CEIV-AP, Livro III, cap. II, p. 207.
274 Múltiplos são os exemplos passíveis de serem destacados. Escolho apenas alguns que se distanciam do
acontecimento bélico de Trezentos. Enrique III, à morte do pai, em 1390, prescindiu do título de rei de
99
O último foco de preocupações foi o monarca francês, que invadiu o Rossilhão
ainda em vida de Enrique IV. Estranho movimento esse de França, aliada de Castela
desde 1368, tem Perpinhão cercada275
e como tal não há qualquer reacção oficial da
monarquia da flor-de-lis aquando da mudança de reinado. Como sabemos, Luís XI não
Portugal nos documentos emanados pela sua chancelaria, mas não renunciou aos direitos que lhe
assistiam. Na crónica de Juan II de Castela, na altura de assinar a paz definitiva com Portugal, em 1431,
afirmou-se o seguinte em conselho: «algunos desplacía mucho esta paz, porque habían perdido sus
abuelos e padres e tios e parientes en la batalla de Aljubarrota, e deseaban vengarse del grande daño que
entonce habían rescebido» (Fernán Pérez de Gusmán – «Crónica de Juan II», in Crónicas de los reyes de
Castilla, edição de Cayetano Rosell, Madrid, Rivadeneyra [Biblioteca de Autores Españoles, LXVIII],
1953, cap. XXV de 1431). Podemos também ler na Crónica Incompleta referências à Batalha Real: «los
portugueses […] pensauan com aquel su rey conquistar el mundo, y com el vençimiento que avian ávido
sus anteçesores en la batalla de Aljubarrota, de que los bisnietos heredaron la soberuia, y aquella gran
ventura de aquel tiempo y la de este presente, hazia al rey y vasallos tomar empresas más altas que
sostener podian». (CIRC, XXI, p. 171). O último episódio que aqui destaco aconteceu quando Diego de
Valera visitou a corte de Alberto V da Áustria, rei da Boémia e Hungria, em 1437. Durante um jantar, um
cavaleiro alemão, o conde Ulrico de Cilli, sobrinho do imperador Segismundo, interrogou-se acerca da
legitimidade do rei castelhano, posto que tinha perdido a sua bandeira na batalha Real: « [o conde] dixo al
Rey que había visto en Portugal en una Iglesia que llaman santa María de la Batalla, la vandera de
Castilla colgada, e que le fuera dicho que la habían ganado los Portogueses en una batalla que ovieram
com el Rey de Castilla, concluyendo de aqui que el Rey de Castila no podía traer la vandera real de sus
armas» («Crónica de Juan II», cap. II de 1437), ao que Valera, além de dar uma eloquente justificação em
latim, prontamente se preparou para defender a dignidade do seu soberano por via das armas. Veja-se
também o artigo de OLIVERA SERRANO, César - «La memoria de Aljubarrota en Castilla», in A guerra
e a sociedade na Idade Média – actas das VI jornadas luso-espanholas de estudos medievais, Vol. II,
coord. de COELHO, Maria Helena da Cruz et al., Batalha, 2009, pp. 277-294. Na perspectiva oposta, não
posso deixar de apontar que se tinham passado quase 100 anos desde a batalha real e mais de trinta desde
que se tinha assinado a paz perpétua entre ambos os reinos. As relações e a convivência, especialmente ao
nível de fronteira, processavam-se com normalidade e sem estigmas da batalha. Paz Romero partilha
desta opinião e, de alguma forma, é também a visão que nos transmite Luís Miguel Duarte. Cfr.
ROMERO PORTILLA – Dos monarquías medievales…, p. 143 e DUARTE, Luís Miguel - «O gado, a
fronteira, os alcaides das sacas e os pastores castelhanos», in Jornadas de cultura hispano-portuguesa,
Madrid: Universidad Autonoma de Madrid, 1999, pp. 125-146. Um último apontamento que defende as
boas relações entre os países vizinhos pode ser inferida se recordarmos a expedição portuguesa a Sevilha,
no ano de 1444, a qual salvou a monarquia castelhana – já aí com graves problemas de instabilidade e em
conflito aberto com a nobreza, especialmente na região andaluza, do golpe de estado perpetrado pelos
infantes de Aragão, com D. Enrique de Aragão no comando e em nome do rei, e o almirante D. Fadrique
Enríquez, o conde de Benavente D. Alonso de Pimentel, D. Diego Gómez de Sandoval e o futuro Enrique
IV, que aquiesceu na prisão de seu pai, Juan II. Este bando, que se foi apoderando de diversas cidades na
Andaluzia, esbarrou na oposição sevilhana, cidade que pediu ajuda ao reino português. O regente
português, vendo satisfeitas as condições impostas para prestar auxílio a esta cidade andaluza, destacou
cerca de 1000 homens de armas. Sobre este assunto veja-se MORENO, Humberto Baquero – A batalha
de Alfarrobeira, p. 222 e «Um contestário da acção governativa do Infante D. Pedro», in Revista de
Ciências do Homem, VI, Série A, 1974, p. 7 e BENITO RUANO, Elloy - «La expedición portuguesa de
1444 en socorro de Sevilla», in Actas das II jornadas luso-espanholas de história medieval, vol. I, Porto:
Instituto Nacional de Investigação Científica, 1987, pp. 333-355.
275 ACA-JZ, Livro XIX, cap. XX.
100
quis abrir mão do Rossilhão, que permaneceu em disputa diplomática e armada até ao
reinado dos Reis Católicos.
O tempo é o principal aliado dos jovens monarcas, que assentam a primeira fase
do seu reinado em três aspectos fundamentais: restabelecer a ordem nas cidades,
estabilizar o valor da moeda cunhada e convocar cortes276
, as quais não se puderam
reunir por causa da invasão portuguesa. Não obstante, a legitimação impôs-se como
necessidade prioritária que invadiu todas as actividades e manifestações públicas,
gerando uma experiência de dimensões inéditas e fazendo uso da imprensa para
divulgar as suas ideias277
. Entretanto, Afonso V solicitou ajuda a Luís XI, a 25 de
Fevereiro de 1475. Este pedido visava a cooperação política e militar do monarca
francês278
. A primeira intervenção francesa espelhava-se junto da cúria papal, na
obtenção da dispensa para o casamento entre tio e sobrinha e a segunda no conflito
militar que estava para acontecer. Luís XI hesitava apoiar Afonso V porque Juan II de
Aragão também lhe oferecia a garantia da manutenção da paz na fronteira do Rossilhão
e o soberano luso não tinha ainda evidenciado provas definitivas da sua situação face a
Inglaterra e da futura política de Castela279
. O rei de além-Pirenéus mostrou assim uma
grande cautela nas suas relações internacionais, como vou ter oportunidade de
demonstrar.
O Africano preparou-se para invadir e tomar o “seu” reino, o qual estava
indevidamente ocupado por usurpadores, sendo para isso apoiado pelas gentes locais.
Para isso, tomou todas diligências necessárias: informou, por intermédio do embaixador
276 SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: La conquista del trono, pp. 89-90.
277 GONZÁLEZ MEZQUITA - «Propaganda y legitimación en las crónicas de dos reinados: Isabel I y
Felipe V», p. 381.
278 Luís Suárez dá conta de um manuscrito que foi enviado por Diego Pacheco a Luís XI, solicitando
também a ajuda do monarca francês e informando-o de que o partido de D. Juana tinha um exército de 20
000 homens de armas e 12 000 infantes. SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: La conquista
del trono, p. 122, nota 46. A embaixada que Afonso V envia a Luís XI serve para lhe pedir ajuda também
na qualidade de rei castelhano, fazendo reavivar a antiga aliança franco-castelhana. O monarca francês
exigiu como preço que Afonso V cancelasse a aproximação à Inglaterra, facto que tinha consumado com
a renovação das antigas pazes, em 30 de Agosto de 1472. A embaixada, assim como as cartas que Afonso
V mandou ao monarca francês no mês anterior (8 e 30 de Janeiro), são mais uma evidência da pretensa
legitimidade de Afonso V no combate a Isabel e Fernando, naquilo que cria ser seu por direito: o reino
vizinho.
279 SERRÃO, Joaquim Veríssimo - Relações históricas entre Portugal e a França : (1430-1481), Paris:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1975, pp. 97-98.
101
Rui de Sousa, os Reis Católicos das suas intenções280
, o que legitimaria a sua
intervenção militar, nomeou fronteiros, convocou cortes em Évora para pedir dinheiro
para o exército, ratificou a nomeação de D. João como regente do reino de Portugal281
(25 de Abril), testou três dias depois e partiu para Castela, passando de Arronches para
Codiceira, a 25 de Maio.
Castela, vendo-se ameaçada por três frentes de guerra (Granada, Navarra, que
contava com o apoio francês, e agora Portugal282
), pediu diplomaticamente a Afonso V
que reconsiderasse283
. Prevendo a negativa do reino português, Isabel e Fernando
concedem vilas portuguesas como presa a quem as tomasse284
. Estas mercês serviam
para aliciar os súbditos para o confronto que se avizinhava, estimulando a iniciativa
privada285
, ao mesmo tempo que confiscavam os bens dos nobres que se declararam por
Afonso V. Por outro lado, fizeram um alardo geral a 15 de Março de 1475. Cavaleiros,
peões e marinheiros estavam em estado de alerta. A maioria das cidades apoiou o
280 CDAV, cap. CLXXIV, p. 830.
281 CPDJ, pp. 112-113.
282 Estas frentes não estavam todas activas. Eram potenciais. Para tal, foi reconfirmada a trégua com o
reino de Granada, a 30 de Janeiro de 1475, sendo as situações mais graves Navarra, a qual contava com o
apoio de Luís XI e Portugal, que começava a desenhar-se no horizonte. O pedido a Portugal foi levado a
cabo pelo doutor Villalón, no mês de Fevereiro.
283 CRC-FP, cap. XXX, pp. 96-98; CPDJ, cap. XLIV, pp. 112-113; CDAV, cap. CLXXIV, p. 830, TORRE;
SUÁREZ FERNÁNDEZ - Documentos referentes a las relaciones con Portugal durante el reinado de los
Reyes Catolicos, vol. I, doc. 18, pp. 73-74. Este documento não tem data, mas dado que os reis
permaneceram em Segóvia até 22 de Fevereiro de 1475, depreende-se que tenha sido emitido até essa
data. Há também sete cartas trocadas entre Afonso V e Fernando, três do primeiro e quatro do último.
Foram escritas entre 21 de Julho e 4 de Agosto de 1475. Esta correspondência tinha como objectivo evitar
as hostilidades.Afonso V não respondeu à última carta de Fernando. Cfr. SESMA MUNÕZ, A. «Carteles
de batalla cruzados entre Alfonso V de Portugal e Fernando V de Castilla (1475)», in Revista Portuguesa
de História, tomo XVI, vol. I, 1976, pp. 277-295.
284 TORRE; SUÁREZ FERNÁNDEZ - Documentos referentes a las relaciones con Portugal durante el
reinado de los Reyes Catolicos, vol. I, docs. 20 e 21, pp. 75-82. Há ainda dois documentos de Abril e
Maio de 1475, lavrados em Valladolid, que vale a pena considerar. No primeiro, os Reis Católicos
convocam todos os Grandes e cavaleiros dos seus reinos e concedem-lhes um perdão geral, com algumas
excepções, aos que servirem na guerra contra Portugal durante seis meses (Archivo General de Simancas
R.S., Tomo I, nº 464). No segundo, D. Fernando concede a Rodrigo Cortês, vizinho de Ávila, a vila de
Almeida, quando esta fosse conquistada (Archivo General de Simancas R.S., Tomo I, nº 478), citados por
ROMERO PORTILLA – Dos monarquías medievales…, p. 141.
285 Noutro trabalho já tive oportunidade de me dedicar ao estudo da iniciativa privada, pelo que remeto
para o mesmo. Veja-se ENCARNAÇÃO – A guerra vista do chão: os conflitos militares em Portugal nos
reinados fernandino e joanino observados numa perspectiva local, em especial, pp. 31-46 e 82-105.
102
esforço de guerra dos Reis Católicos e, em contrapartida, viram confirmados os seus
privilégios, o que favoreceu as oligarquias. Isabel e Fernando conseguiram ainda ganhar
tempo num aspecto muito importante: no plano diplomático. Tentaram negociar o
casamento do filho de Luís XI, Carlos, com a princesa das Astúrias, Isabel, o qual,
supostamente, asseguraria a concórdia entre Castela e França. Era um plano pouco
realista, mas o seu objectivo principal foi logrado. Os Reis Católicos ganharam tempo.
Outras medidas pragmáticas, como a comutação de penas para o alistamento e a
concessão de poderes para que os nobres pudessem actuar localmente, estimularam a
defesa isabelina.
Ao mesmo tempo ocorrem rebeliões de senhorios, como é o caso de Alcaraz, o
qual quer recuperar a sua condição de reguengo. A terra do marquês de Villena acabaria
confiscada por Fernando (a quem Isabel já tinha concedido amplos poderes para poder
também governar), não obstante estar em inferioridade numérica em termos de efectivos
militares. Assim, enquanto os Reis Católicos enviaram 300 lanças comandadas por
Alfonso Fonseca, bispo de Ávila, às quais se juntaram mais meio milhar lideradas por
Rodrigo Manrique, acudindo desde Ciudad Real, Diego Pacheco dispunha de
aproximadamente 2 000 lanças, contando com as ajudas que os seus parentes e clientela
lhe enviaram desde a Andaluzia. Porém, mesmo com este número elevado de
combatentes, não se produziram mais do que algumas escaramuças, uma vez que o
marquês de Villena não se atreveu a atacar.
Exortada pelo sogro, após as negociações terem falhado, Isabel dispôs-se a falar
pessoalmente com o arcebispo Carrillo, indo acompanhada de uma forte escolta, mas
semelhante empresa também não teve sucesso, tendo daí passado a Toledo (20 de
Maio), onde, em consonância com Fernando, conjecturou organizar a defesa do
território em profundidade. Esta estratégia foi necessária devido à debilidade de forças
leais aos Reis Católicos. Concentrando a defesa em certos pontos, como Badajoz e
Ciudad Rodrigo, não inviabilizava a invasão portuguesa, mas conseguia um elemento
dissuasor uma vez que lhe podia cortar a retaguarda.
Uma vez em território inimigo, Afonso V avançou até Plasencia286
, protegido
por um exército de 5 600 homens e 14 000 peões, «todos bem armados e encavalgados e
286 Ao entrar em território inimigo, o rei tinha duas hipóteses. Ou avançava para norte, onde se encontrava
a maior parte dos seus apoios, uma vez que a casa de Stuñiga oferecia as bases de Plasencia, Béjar,
103
provydos d‟artelharias, armas e tendas e de todo ho mais que pera guerra pertencia e
tudo em grande perfeiçam»287
. Isto não é de estranhar, uma vez que o monarca
português detinha já uma longa experiência em teatros de guerra africanos. Juana
chegou ao ponto de encontro, protegida pelo duque de Arévalo e pelo marquês de
Villena, onde desposou o tio, nos últimos dias de Maio, sendo reconhecida como
sucessora de Enrique IV por um pequeno grupo. Afonso V intitulou-se rei de Portugal e
de Castela, títulos que passam a fazer parte dos seus documentos oficiais (documentos,
selos e moeda). Em resposta, Isabel e Fernando assumem-se como reis de Portugal288
e
disputam abertamente as navegações africanas. Porém, o casamento do rei português
nunca chegaria a ser consumado, uma vez que a requerida dispensa pontifícia nunca
chegou. Estava, todavia, justificada a intervenção portuguesa do ponto de vista legal
neste cenário de fricção com Castela. Por intermédio da mesma, Juana reivindicava o
trono castelhano e Afonso V era o seu marido e senhor. Foram então expedidas cartas
para as principais cidades do reino, para que se reconhecesse Juana como legítima
rainha289
. Esta era então a missão de Afonso V, tal como ele a encarava. Defender a
honra e os direitos da parente (e agora mulher) D. Juana. O soberano português
penetrava assim num cenário de guerra europeu, depois de ter angariado experiência no
Peñaranda e Arévalo, ou rumava para sul, aproveitando-se da instabilidade andaluza. Escolheu a primeira
opção.
287 CDAV, cap. CLXXVII, p. 832.
288 Podemos ver provas disso em TORRE; SUÁREZ FERNÁNDEZ - Documentos referentes a las
relaciones con Portugal durante el reinado de los Reyes Catolicos, vol. I, pp. 84-85 e ainda em duas
cartas que Isabel escreveu em Ávila, a 16 e a 20 de Junho de 1475: AGS. Sello 1475-VI, fols. 510-2º e
496, citado por SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos. La conquista del trono, p. 125, nota 135.
289 ACA-JZ, Livro, XIX, cap. XXVII. Neste longo capítulo podemos ler o manifesto que D. Juana enviou
à cidade de Madrid. Como outros já apreciaram (AZCONA – Isabel la Catolica – estudio crítico de su
vida y su reinado, p. 258; SUÁREZ FERNÁNDEZ - «La España de los Reyes Católicos (1474-1516)», p.
127), este documento, dividido em três partes, é confuso e apresenta-se mais como uma defesa pessoal
dos ataques dos Católicos relativamente aos direitos de Juana, chegando inclusivamente a acusar
Fernando e Isabel de ter envenenado Enrique IV, e menos um programa sólido de governação. Neste
manifesto resume-se toda a questão sucessória para demonstrar a legitimidade de Juana. Pede-se a
nulidade do pacto de Toros de Guisando, declara-se que as “vistas de Segóvia”, no início de 1474, não
tiveram validade devido a o monarca ter sido coagido e precisa-se que Afonso V descende da casa real de
Castela e assegura-se que os portugueses não são inimigos dos castelhanos, devendo sim evitar-se o
perigo procedente da coroa de Aragão. No fim, o enunciado indica os apoiantes da Beltraneja: marquês de
Villena, duque de Arévalo, mestre de Alcântara (João de Stuñiga), mestre de Calatrava (Rodrigo Telles de
Girão), conde de Miranda, Pedro Portocarrero, bispo de Plasencia, Diego López Stuñiga, prior de S.
Marcos de Leão, Fernando de Monroy, Gonçalo Saavedra, licenciado Antão Nunes, Enrique Figueiredo,
Afonso de Herrera, João de Oviedo (o notário que guardou a última vontade de Enrique IV) e João de
Salcedo.
104
norte de África, acalentando o sonho de alargar as fronteiras há muito estabelecidas.
Temos, portanto, dois motivos muito fortes, que impeliram o monarca luso a intervir em
Castela. O conteúdo da carta que o rei escreveu a Gonçalo Vaz de Castelo Branco
parece transmitir preocupações no sentido de defesa da honra e da justiça: «Vós melhor
que outrem sabeis quanto eu deste feito de Castela sempre arreceei. […] Com verdade
ouso de dizer que empero aceitei este Auto nosso S.or
o sabe não por prazer que
esperasse de ver, só o desejo de mt.º servir e receando que se o não fizesse que ante Ele
fosse digno de culpa»290
. Não sabemos se foram estas as palavras proferidas pelo
monarca, mas é normal que o cronista as pusesse na boca de Afonso V, uma vez que não
havia outra justificação dado o desfecho da campanha.
Não creio que possamos considerar a questão da união ibérica como uma
certeza. Não sem antes, pelo menos, considerarmos alguns factores que se lhe opõem.
Afonso V atribuiu a si próprio o título de rei de Portugal e Castela e Leão (na versão
simplificada), deixando transparecer uma aparente normalidade, através dos seus
instrumentos e prerrogativas (documentos, moeda, etc.), como já vimos. Imaginando
que o casamento entre tio e sobrinha se consumasse e que o partido de ambos derrotasse
o isabelino, com o nomear o príncipe João regente do reino (25 de Abril), garantiu-lhe
posteriormente a sucessão do trono (12 de Maio, em Arronches) e, mais tarde,
confirmou a sucessão para o seu neto, o infante Afonso, nascido alguns meses atrás, (16
de Fevereiro de 1476, duas semanas antes da batalha de Toro), decisão que manteve
através de novo diploma lavrado em Toro, a 5 de Junho. Concebamos e aceitemos como
normal que do matrimónio com D. Juana resultasse pelo menos um filho; não é legítimo
supor que esse príncipe fosse preterido em função do filho de D. João. Portanto, é lícito
concluir que os sucessores de D. João e de Afonso V seriam príncipes diferentes, o que
faz lembrar a estratégia dos infantes de Aragão, de quase um século antes. Perante o
exposto e baseado na carta supracitada, creio que a missão de Afonso V era tipicamente
medieval, de alguém que se batia pela honra e pela glória291
, já que a unificação dos
290 Biblioteca Nacional, Códice 6963, citada por Elaine Sanceau – D. João II, Porto: Livraria Civilização,
1959, p. 90.
291 Rui de Pina dá-nos a sua visão laudatória, no último capítulo da Crónica, no qual apresenta o monarca
como «zellador de emprender cousas arduas, e prosseguyllas por armas como cavaleiro, mais que de
entender como Rey no Regimento Civel e Polytico de Reynos» (CDAV, cap. CCXIII, p. 881).
Relativamente a esta problemática, David Martelo sugere ainda a possibilidade de Afonso V querer
somente inviabilizar a influência crescente da coroa de Aragão nos domínios ibéricos, o que conferiria a
Afonso V uma reputação geoestratégica muito significativa. Cfr. MARTELO – A dinastia de Avis e a
105
reinos sob a égide da mesma coroa, devido a haver potencialmente herdeiros diferentes,
ficava inviabilizada conforme expliquei acima. Acredito ainda que não seria somente a
ambição e o desejo de concretizar o sonho antigo de unir as coroas. Não é de descartar o
sentido de justiça e de fazer o que está certo e isso, na visão do monarca, passava por
retirar das mãos de Isabel e Fernando o que por direito devia ser seu.
Se, por um lado, este enfrentamento não configurou uma típica guerra entre dois
reinos, uma vez que Portugal se imiscui na guerra civil castelhana apoiando um dos
bandos, por outro lado, as relações luso-castelhanas foram suspensas.
Entretanto, sucedeu algo muito importante. Burgos revoltou-se, tomando voz por
D. Juana. Os desenvolvimentos nesta cidade importantíssima do reino fizeram com que
Fernando se deslocasse ao local, montando cerco ao castelo. Zamora tinha também
tomado o partido do Africano.
As posições são difíceis para ambos os partidos: Afonso V não pode contar com
os homens e o dinheiro que lhe prometeram e os isabelinos têm apoios mas não têm
dinheiro. Tendo o primeiro chegado a Arévalo saído de Plasencia, no mês de Junho,
estudou as opções possíveis: ou marchar e levantar o cerco de Burgos, opinião
secundada por Álvaro de Stuñiga, por cuja linhagem estava o castelo, ou flanquear pelo
Douro. Enquanto Afonso V perdia tempo precioso a preparar as operações futuras,
Fernando reunia homens em Valladolid. Como pela mesma altura João de Ulloa
ofereceu ao Africano a submissão de Toro, este esqueceu as suas pretensões sobre
Burgos. Na verdade, Afonso V não queria ser um mero instrumento da nobreza
castelhana, como fora Enrique IV. Para esta, não importava quem fosse a cabeça do
partido, desde que fizesse frente aos Reis Católicos e, por conseguinte, à sua concepção
de poder. Caso tivesse seguido até Burgos, ou Valência, quiçá a estratégia de Luís XI
tivesse seguido outro curso.
D. Fernando tomou providências e mandou chamar a sua infantaria biscainha e
as mesnadas nobres para decidir tudo numa só batalha292
. O seu exército era
construção da União Ibérica, p. 51. Não creio que este raciocínio geoestratégico de David Martelo seja
válido para esta situação concreta. Como procurei demonstrar ao longo deste trabalho, o Africano invadiu
Castela para ser rei e com o objectivo de reinar de facto e não anular a influência de Juan II em Castela.
292 A Crónica incompleta apresenta-nos Fernando como cauteloso e Isabel impaciente por ganhar numa
campanha relâmpago a batalha de Toro, em Julho de 1475: «Dad, señora, a las anxias del coraçon
reposo… ¡Grand tabajo tenemos con vos de aqui adelante! Mas siempre las mugeres, aunque los hombres
106
inexperiente não só a nível de comando, como também por via da heterogeneidade das
tropas; era indisciplinado e mal armado, uma vez que Fernando tinha graves
dificuldades económicas. Para complicar ainda mais a situação, estes homem não
tinham o apoio de máquinas de guerra, não tinham víveres suficientes, nem transportes
adequados. Desta forma, a eficácia destas tropas foi muito reduzida, acabando por
consumir recursos monetários preciosos do tesouro segoviano. Chegado a Toro a 22 de
Julho, após uma marcha lentíssima, D. Afonso V remetido à cidade (uma vez que o
castelo lhe era hostil), recusou-se a dar batalha. A solução encontrada foi fazer dispersar
o exército. A ordália entre Toro e Zamora só se daria no ano seguinte, tendo o soberano
português procedido com cautela, vacilando em internar-se num país onde havia muito
menos vozes amigas do que aquelas com que contara.
Considerando-se que o destroçar das tropas fernandinas foi uma vitória táctica
de Afonso V, estava livre o rei português para socorrer Burgos e esperar o tão almejado
apoio francês, numa operação em forma de tenaz. Só em finais de Agosto de 1475
conheceu Luís XI um aliviar na pressão que lhe era imposta pela Inglaterra e pelos
ducados da Bretanha e da Borgonha, ao assinar a trégua de Picquigny, o que explica que
apenas a 26 de Setembro tenha enviado Jean Merlin a Sisto IV, com o fim de acelerar a
dispensa necessária para o casamento de Afonso V com Juana. O conselheiro deveria
argumentar que se deviam ter em conta os dotes militares do monarca português e os
serviços que este prestara à Igreja na conquista das praças marroquinas, garantindo
assim que Afonso V, ao ser senhor de Castela, lutaria com todas as suas forças para
expulsar os inimigos da fé das terras ibéricas293
. Dado o seu calculismo, poder-se-ia
pensar que Luís estaria apenas a ser cortês, mas há provas em como estava, pelo menos
naquele momento, a ser verdadeiro e a apoiar Afonso V, como atesta o tratado de 23 de
Setembro294
. Como explica Veríssimo Serrão, os emissários portugueses não
sean dispuestos, hazedores y graçiosos, son de mal contentamiento. Especialmente vos, señora, que por
nascer está quien contentar os pueda» (CIRC, pp. 238-247).
293 SERRÃO - Relações históricas entre Portugal e a França: (1430-1481), pp. 99-100.
294 Neste acordo foram confirmados vários tratados anteriores. Na prática, o rei francês reconhecia Afonso
e Juana como monarcas de Leão e Castela e, nos termos do mesmo contrato, as terras conquistadas por
Portugal nas conquistas da Catalunha e do Rossilhão e nas ilhas da Sardenha e das Baleares seriam
entregues ao rei de França como pertença desta Coroa. Relativamente às cidades e vilas de que Luís XI
viesse a apoderar-se nos reinos de Aragão e Valência, seriam remetidas ao rei português. Cfr. SERRÃO -
Relações históricas entre Portugal e a França: (1430-1481), pp. 100-101.
107
compreenderam que a atitude que Luís XI tomasse dependeria da subjugação do partido
castelhano-aragonês, tendo julgado o seu apoio incondicional. Tal não pode ser
considerado, até porque o arguto monarca tinha assinado pouco tempo antes outro
tratado, no qual se estipulava uma trégua com Fernando de Aragão, até 1 de Julho de
1476. Assim sendo, deram como incondicional o apoio de Luís, confundindo a palavra
do monarca com o êxito da missão295
.
Para o partido isabelino a estratégia da guerra teve, necessariamente, de mudar.
Dividiram-se os esforços: Isabel ficou a vigiar Afonso V e Fernando partiu novamente
para Burgos. É muito provável que o Rei Católico tivesse tido uma imagem mais
fidedigna da realidade do que o monarca português. Efectivamente, o bastião burgalês
não só era um ícone na paisagem, de elevada importância geo-estratégica, como
também, a cidade era um importantíssimo centro mercantil, que exportava lã e gado. Por
outro lado, foi necessário fortalecer a disciplina do exército, por via da eliminação das
unidades de infantaria, onde esta era dispensável, tendo a cavalaria e a artilharia a
primazia296
. Duas soluções se apresentaram para financiar o exército: através da recolha
da prata das igrejas297
e por via do quinto das navegações africanas, uma vez que se
juridicamente Fernando e Isabel se intitulavam reis de Portugal, então julgaram-se no
direito de permitir as navegações privadas ao sul do cabo Bojador.
A recolha de metal precioso nas igrejas diocesanas, ou de religiosos e sinagogas,
ocorreu também em Portugal. Esta recolha foi ordenada pelo príncipe D. João, a 15 de
Dezembro de 1475, quando Afonso V estava ausente em Castela. Foi uma medida
cumulativa com a concessão, pelas Cortes de Évora, do subsídio de pedido e meio, a
receber durante dois anos e com o contrair de empréstimos junto dos almoxarifados298
,
295 SERRÃO - Relações históricas entre Portugal e a França: (1430-1481), pp. 101-102. Não
esqueçamos que entre Março e Junho de 1476, os franceses tinham lançado três grandes ataques contra
Fuenterrabia, os quais, por falta de víveres e domínio do mar, não tiveram sucesso.
296 Fenando contratou um mestre artilheiro italiano para esse efeito, chamado Domingo Zacarias, em
Julho de 1475; estes aspectos de cariz militar serão desenvolvidos na segunda parte desta dissertação.
Veja-se ainda SUARÉZ FERNANDÉZ - Los Reyes Católicos: La conquista del trono, p. 135.
297 CRC-FP, cap. XL, pp. 143-146.
298 Cfr. GONÇALVES, Iria – O empréstimo concedido a D. Afonso V nos anos de 1475 e 1476 pelo
almoxarifado de Évora, Lisboa: Direcção-Geral das Contribuições e Impostos, 1964, em especial, pp. 9-
16. Mesmo assim, estes pedidos não foram suficientes e em 1478 foi requerido um novo empréstimo. Cfr.
Livro antigo de cartas e provisões dos senhores reis D. Afonso V, João II e Manuel I do Arquivo
108
uma vez que estas medidas iniciais se revelaram insuficientes para fazer face às
despesas inerentes à campanha. Naturalmente que houve uma oposição generalizada dos
cabidos das sés, das colegiadas, dos mosteiros e das igrejas espalhadas pelas dioceses,
ao que o príncipe respondeu permitindo o uso da força na recolha dos objectos. Não
obstante, D. João ordenou que a entrega deveria ser inventariada e avaliada, em vista de
um hipotético pagamento futuro299
.
Em Julho de 1475, Afonso V via-se privado dos apoios de Rodrigo Téllez Girón,
já que este estava a ser assediado nas suas próprias terras, ao passo que Isabel e
Fernando conseguem uma trégua com o reino de Granada e tem início o contra-ataque
castelhano, incidindo sobre a retaguarda portuguesa, em Ouguela, especialmente por
acção de Francisco de Solis, o eleito da Ordem de Alcântara300
. O príncipe D. João
conseguiu recuperar esta fortaleza na primeira quinzena de Agosto, quebrando o ímpeto
de Sólis, que morreu numa refrega. Além da Extremadura castelhana, a costa africana
foi também alvo de depredações por parte dos ambiciosos armadores do reino vizinho.
Municipal do Porto, prefácio e notas de Artur Magalhães Basto, Porto: Câmara Municipal do Porto, [s.d.],
doc. XXIV, p. 41.
299 Embora Damião de Góis afirme que o Príncipe, uma vez subido ao trono «como bom, e Chatholico
Christão depois do falecimento de El Rey seu pay [a] pagou», a documentação disponível obriga a que
leiamos o cronista com reservas. Sobre este assunto veja-se o artigo de MARQUES, José – «O príncipe
D. João (II) e a recolha das pratas das igrejas para custear a guerra com Castela», in Actas do Congresso
Internacional Bartolomeu Dias e a sua época, vol. I: D. João II e a política Quatrocentista, Porto:
Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1989, pp. 205-212.
300 Francisco de Solís, o eleito auto-intitulava-se mestre de Alcântara. Capitulou em 1474 para casar com
D. Maria Enriquéz, filha dos primeiros duques de Alba. É senhor de Uguela.
109
Figura 1 - Vista norte da fortaleza de Ouguela, Alentejo
Fonte: Livro das Fortalezas de Duarte de Armas, Lisboa: Arquivo Nacional da Torre do Tombo e Edições
Inapa, 2006
De Arévalo, o rei português pensou inicialmente em fazer levantar o cerco a
Burgos, cuja situação a partir do final de Agosto passou a ser desesperada. Esta
importante cidade tinha sido cercada por Fernando, o qual antes de a sitiar, tomou o
importante posto avançado dos defensores – a igreja de Santa Maria de la Blanca, a 30
de Agosto.
A hoste afonsina saiu de Arévalo reforçada com os homens de Alfonso Carrillo e
Álvaro de Stúñiga e, não obstante ter sido atacada, saiu triunfante. Isabel segue esta
marcha a partir de Palencia. O monarca português passou por Peñafiel, evitando mais
confrontos e devia reunir-se em Baltanás ao conde de Penamacor. Porém, o esforço não
foi correctamente coordenado e só num segundo assalto foi possível rechaçar as 400
lanças do conde de Benavente, que opuseram uma feroz resistência e graças também à
grande superioridade numérica afonsina. Embora o sucesso militar, não obstante as
avultadas perdas, tivesse motivado o rei, estando somente a sessenta quilómetros de
Burgos, não se compreende bem, hoje, porque é que Afonso V regressou a Peñafiel e
daí partiu para Arévalo novamente. Teria sido aconselhado a que não marchasse até
Burgos. Conjectura-se que o escasso êxito na captação de partidários que tiveram o
marquês de Villena e o conde de Urueña, aliado à hostilidade demonstrada à causa
afonsina sentida pelas terras por onde o rei português passou, teria levado o soberano a
110
tomar esta decisão. É ainda de aceitar que notícias de sedição em Zamora lhe tenham
chegado ao conhecimento. Fosse como fosse, ao ter deixado o bastião de Burgos à sua
sorte, Afonso V perdia o seu aliado mais importante e condenou definitivamente a
quimérica ajuda de Luís XI, embora a aliança estabelecida entre os reinos luso e francês
pudesse supor o adiamento do ataque da flor-de-lis na Primavera de 1476.
A onda de adesões ao partido dos jovens reis aumentou consideravelmente,
deixando depauperadas as terras do marquesado de Villena e da ordem de Calatrava.
Afonso V determinou que iria fortificar o médio Douro, o que lhe daria bases
para nunca ficar demasiado internado em território inimigo e perder as comunicações,
fazendo o seu quartel-general em Zamora. Por outro lado, as negociações para a
libertação do conde de Benavente renderam ao partido português as praças de Portillo,
Mayorga e Villalba, o que juntamente com a conquista de Cantalapiedra permitia
alguma segurança para a invernia em terras castelhanas.
É evidente que as crises económicas e financeiras por via da guerra – no caso
português por se travar uma guerra no estrangeiro e no caso de Castela por estar em
constante conflito desde a década de sessenta do século XV, empobreceram e
fragilizaram as monarquias ibéricas. Castela via-se ainda assolada por problemas de
banditagem. Assim, além das tradicionais medidas de pedir dinheiro em cortes, assim
como as requisições de prata às igrejas que ambos os reinos levaram a cabo, Fernando e
Isabel reactivaram a Hermandad301
nas cortes de Madrigal, em Abril de 1476. Fernando
podia assim dar atenção ao cerco de Cantalapiedra ao mesmo tempo. Todavia,
restabelecer este corpo exigia mais sacrifícios monetários e causava potencialmente más
relações com a fina flor da nobreza (foi bem aceite em Castela e Leão, mas mal aceite
na Andaluzia). Serviu igualmente como forma de atrair homens para fazer a guerra, uma
301 Com origem no século XIII, a Hermandad General ou Santa Hermandad, distinguindo-se da
Hermandad Vieja, tem na sua raiz uma motivação económica, a de proteger o comércio de lã de Burgos,
Palencia, Medina del Campo, Olmedo, Ávila, Segóvia, Salamanca e Zamora com a Flandres. Devido ao
ónus que acarreta, criou-se um novo imposto em forma de sisa e a conscrição tornou-se obrigatória,
limitando-se a actuação desta instituição até 15 de Agosto de 1478, prazo este que foi prorrogado mais
três anos e caso as vilas e cidades se negassem, seriam novamente instituídos os antigos pedidos e
moedas. Sobre este assunto debe consultar-se SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: La
conquista del trono, pp. 238-250.
111
vez que quem se alistasse, ver-se-ia elevado à condição de fidalgo302
. Esta instituição
servia os interesses sociais, uma vez que acabava com os salteadores e era útil do ponto
de vista político-militar, pondo fim à resistência por D. Juana e dotando os Reis
Católicos de um corpo militar do qual podiam dispor.
Porém, o partido português carecia de um sólido apoio do povo castelhano e em
Dezembro de 1475 foi a vez de Zamora se revoltar. Em Janeiro do ano seguinte, tanto
Zamora como Burgos passavam para o partido Isabelino. O facto de estes nobres não
serem punidos por Isabel nem Fernando mas, ao invés, recompensados pelas perdas, foi
um argumento demolidor e potenciou ainda mais a transição de grandes nobres de um
partido para o outro.
Não obstante ter chamado o príncipe D. João, seu pai incorreu numa cilada, fruto
de maquinação de Pedro de Mazaregos. A tentativa de recuperar a ponte de Zamora foi
bastante sangrenta, tendo causado muitas baixas entre os nobres lusos.
Afonso V fez uma tentativa de recobrar Zamora, na qual estava Fernando,
lançando cerco à cidade, com os apoios de Medina, Segóvia, Ávila e Villalpando.
Porém, as frígidas condições climatéricas e os reforços que estavam prestes a socorrer o
castelo levaram Afonso V a retirar-se até Toro, enquanto aguardava reforços do filho.
Esta traição levantou o clima de desconfiança entre portugueses e castelhanos. Mesmo
assim, o castelo ainda resistiu algum tempo. Foi com a conquista de Zamora que acabou
a ideia de um Inverno calmo e pacífico. Perdeu-se definitivamente Burgos, cidade que
resistiu quatro meses, tendo apenas sido vencida pela poliorcética de Alfonso de
Aragão: minas, muralhas derrubadas e assalto às mesmas. Com ela perdeu-se também o
apoio dos Stuñiga e Afonso V achou por bem fortificar Toro. Ao contrário do que seria
de esperar, Isabel não exerceu represálias sobre os Stuñiga, tendo-os compensado ao
invés. Esta foi a estratégia adoptada por Isabel e Fernando: inspirar confiança e
conquistar os Grandes. Creio que é possível afirmar que os reis têm clara noção de
como chamar a si os nobres, percebendo que é uma questão de tempo até atrair os
núcleos mais importantes e que uma vez conquistados esses para a sua esfera de
influência, os outros seguir-se-ão. Baseio esta minha afirmação na ambição que alguns
302 Este corpo tinha como normativa régia a inclusão de um ginete por cada cem vizinhos ou um homem
de armas montado por cada 150 vizinhos. SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: La conquista
del trono, p. 239.
112
nobres demonstraram para conseguir aumentar os seus cargos, dignidades e terras,
sendo o seu expoente máximo Juan Pacheco, o qual ao longo da sua vida pediu
recompensas a Enrique IV. A sua ambição não conhecia limites, chegando mesmo a
mudar de partido e a fazer frente ao rei. Isso confere aos Grandes um elevado grau de
volatilidade. Conforme darei conta mais abaixo, na terceira carta de desafio trocada
entre Fernando e Afonso V, em frente a Toro, mas ainda em 1475, o primeiro relembra
ao rei luso que o facto de ter havido deserção de nobres para o bando Afonsino se devia
ao interesse pessoal dos mesmos, por não terem obtido de Isabel uma série de
privilégios que lhe exigiam: «todos los que vos truxieron a stos reynos agora, quando
fallescio el dicho senyor rey don Enriqeu iuraron a la alteza suya e de la reyna nuestra
senyora si les otorgaran algunas iniustas demandas que le fazian»303
. Estas petições
eram provavelmente as apresentadas por Pacheco – Diego Pacheco, o filho de Juan
Pacheco, que solicitava para si o mestrado de Santiago; as de D. Álvaro de Stúñiga, que
queria a confirmação do ducado de Arévalo; e a do arcebispo de Toledo, que reclamava
sete dos ofícios principais da corte para ele e seus familiares.
No plano prático, cada vez mais os reis têm ar de vencedores, o que faz os
nobres pender para o seu partido. Os Reis Católicos também obtêm fundos mais
facilmente do que Afonso V, que ao fim de oito meses em território inimigo começou a
ficar em grandes dificuldades económicas e com falta de efectivos militares, aguardando
reforços de Portugal. Ocorre ainda outra alteração estrutural na sociedade castelhana
que passa pela adesão ao partido dos Reis Católicos, como já mostrei, mas também a
repulsa do governo senhorial, o que colocava grandes senhores como Diego Pacheco em
apuros e incapazes de socorrer Afonso V.
Parecia certo que o destino da guerra se ia decidir entre Toro e Zamora. A 16 de
Fevereiro o príncipe D. João encontra-se em Toro, mas entre 16 e 28 está em Zamora,
juntamente com o pai. O exército português tinha falta de víveres e sofria problemas nas
comunicações, estando, portanto, desgastado. A posição do exército castelhano em
Zamora era excelente, o que conduziu a negociações, que tiveram lugar numa ilha no
meio do Douro, as quais foram infrutíferas304
.
303 Cfr. VICENS VIVES, J. - Fernando II de Aragón, Zaragoza, 1962, p. 403.
304 CDAV, caps. CLXXXVII-CLXXXIX, pp. 841-843, SANTARÉM – Quadro elementar…, pp. 377-378.
113
Foi devido a este impasse e porque o exército português estava em perigo de
sofrer uma acção em tenaz por parte dos homens de Fernando, bloqueando-o contra o
rio Douro, que Afonso V deu ordem para levantar o arraial e partiu para Toro, na
madrugada de 1 de Março, esperando que o exército de D. Fernando o seguisse.
Destruiu parte da ponte e deixou um corpo de 500 cavaleiros a guardar a retirada305
. No
decorrer da marcha forçada, o exército português assimiu uma estrutura bicéfala. O
grosso das tropas seguia com o rei; o outro núcleo era composto por 800 lanças e por
espingardeiros. Ambos os corpos foram seguidos de perto pela cavalaria ligeira
castelhana comandada por Álvaro de Mendoza, por ordem de Fernando, acção que
desencadearia a batalha de Toro.
O capitão castelhano alcançou o inimigo por volta do meio-dia.
Consequentemente, o Africano dispôs os seus homens para dar batalha, tendo esta
começado ao fim da tarde. Cerca de três horas depois foi impossível continuar devido à
escuridão e à intensa chuva que caía. O príncipe D. João desbaratou a az castelhana que
se lhe opôs, ao mesmo tempo que o seu pai foi desbaratado pela elite do exército
castelhano. D. João, porém, foi o único a permanecer em campo. Afonso V retirou até
Castronuño e D. Fernando para Zamora. Ao início da manhã, o príncipe vencedor
marchou até Toro, onde ainda se viviam momentos pouco serenos devido à incerteza do
resultado da refrega. A batalha de Toro representou assim um fim inconclusivo no plano
armado, mas o início do fim para as aspirações afonsinas, as quais haveriam de terminar
com a queda das fortalezas estremenhas de Sieteiglesias, Cubillas, Cantalapiedra y
Castronuño, que tinham voz por Portugal e da fracassada viagem a França, enquanto
Isabel e Fernando levaram a cabo a pacificação interior.
Se, para o lado dos monarcas castelhanos, o desfecho deste episódio militar
limpava as dúvidas quanto à sucessão, para o lado português tratava-se ainda de um
assunto pendente, para o qual era preciso reagrupar e retaliar. A estratégia portuguesa
passou pela consolidação das fortalezas que detinha306
, lançando alguns ataques de
guerrilha e montando ciladas aos castelhanos, embora evidenciando uma posição
claramente mais defensiva.
305 CEIV-AP, II, livro XXV, cap. VIII, p. 269.
306 Estas fortalezas resumiam-se a Cantalapiedra, Castonuño, Cubillas, Sieteiglesias, Villalonso, la Mota
del Marqués, Portillo, Villalba e Toro.
114
A Páscoa trouxe o regresso do príncipe D. João ao reino, tendo D. Juana
regressado com ele. O herdeiro português vinha munido de um documento307
, no qual
seu pai se comprometia a não outorgar vilas ou rendas da Coroa sem o seu
consentimento, o que, na verdade, protegia o erário e património régios. Afonso V corria
este risco de enfrentar exigências dos nobres, uma vez que o grosso da fidalguia
portuguesa continuou a apoiá-lo em terras zamoranas e, face ao insucesso militar, não
mais era possível garantir compensações em território castelhano.
Em virtude de a estratégica praça de Cantalapiedra ter sido cercada, o monarca
português e D. Fernando negociaram a restituição ao segundo de três fortalezas do
conde de Benavente, pela liberdade do conde de Penamacor, de Lopo de Albuquerque e
outros prisioneiros, juntamente com bens confiscados a Antão Nunes de Ciudad
Rodrigo. Castela estava claramente na ofensiva, conseguindo conquistar Portalegre,
Arronches e Alegrete nos primeiros meses de 1476.
e) A ameaça francesa e a paz armada308
(1477-1479)
Isabel e Fernando iniciaram as compensações a quatro grandes famílias: os
Stúñiga e os Portocarrero, partidários de Juana; os Ponce de Léon, neutros; e os
Manrique, partidários de Isabel. Os territórios eram, de facto, bastante sensíveis para a
coroa: Biscaia, Cádiz, Arévalo e Mérida. A generosidade mostrada pelos reis para com
os nobres, mas também para com as cidades como Zamora, não deve ser tida como sinal
de fraqueza. Pelo contrário, era uma mostra de força política; uma determinada
linhagem, ao cumprir uma função imprescindível, devia manter o seu poderio
económico. Era uma forma de governar que aceitava o senhorio como forma desejável
de administração e reconhecia nele um serviço público309
. Mais morosos e difíceis de
negociar foram os perdões outorgados a Diego Pacheco e ao arcebispo Carrillo, os quais
307 Este documento foi promulgado em Toro, a 14 de Março de 1476. ANTT, gaveta 13, maço 10, n.º 4.
308 “Paz armada” é uma expressão da autoria de B.A. Pocquet du Haut-Jussé, historiador bretão do início
do séc. XX, para designar o período que vai de 1477 a 1479 e que pode ser aplicada a todo o ocidente
europeu, e particularmente às relações entre França e Castela.
309 SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: La conquista del trono, p. 163.
115
só foram conseguidos no mês de Setembro e não sem ter havido recontros militares pelo
meio. Uma vez mais permitiu-se que os nobres que voltavam à obediência dos reis
fossem recompensados economicamente, mas punha-se um travão no poder político que
detinham. Embora este processo negocial se tenha arrastado até às cortes de Toledo,
realizadas em 1480, a oposição aos Reis Católicos, na Primavera de 1476, cingia-se a
alguns castelos do marquesado de Villena, alguns soldados da ordem de Calatrava e
algumas vilas do arcebispo de Toledo.
Crendo que o sucesso da sua missão em Castela passaria pela ajuda de Luís XI,
Afonso V decidiu empreender pessoalmente uma viagem a França para convencer Luís
XI da importância estratégica de um ataque conjunto às forças de Isabel e Fernando.
Regressou, assim, a Portugal, encontrando-se em Junho de 1476 em Miranda do Douro,
tomando a direcção do Porto e lá permanecendo cerca de um mês, na companhia do
príncipe e de D. Beatriz. Do Porto deveria embarcar em direcção à Bretanha, mas como
Fernando patrulhava as águas costeiras da Galiza, acabou o monarca português por
fazer um caminho mais longo, desembarcando na Provença. Contudo, antes de partir,
deixou uma procuração a D. João para o governo dos reinos de Castela310
. Acolhido de
forma diferente pelas cidades onde ia passando311
, após um longo percurso sem
encontrar Luís XI312
, o Africano apenas encontra a corte francesa em Tours, no mês
Novembro. Embora não saibamos ao certo o que se passou na entrevista, podemos
conjecturar algumas ideias através do testemunho dos cronistas313
e dos documentos314
.
Afonso V compreendeu que não haveria qualquer ajuda do monarca da flor-de-lis
310 ANTT, Gavetas, XIII-10-8. Também publicado por SERRÃO - Relações históricas entre Portugal e a França: (1430-1481), pp. 159-161. Veríssimo Serrão chamou a atenção para as questões jurídicas
inerentes a esta viagem: como Afonso V antes de partir para França não informou o reino, nem convocou
cortes, é necessário concluir que se verifica o «exercício do Poder abstracto por um Rei ausente e do
Poder real por um Príncipe sem procuração para o exercer». SERRÃO - Relações históricas entre
Portugal e a França: (1430-1481), p. 108.
311 SERRÃO - Relações históricas entre Portugal e a França: (1430-1481), pp. 111-113.
312 É de crer que o rei francês evitou propositadamente o encontro com Afonso V, de forma a colocá-lo na
posição de mediador na luta que travava o primeiro com o duque da Borgonha. Considerava Luís XI que
era necessário resolver primeiro a ameaça militar da Borgonha. Cfr. SERRÃO - Relações históricas entre
Portugal e a França: (1430-1481), pp. 114-115.
313 Rui de Pina e Philippe de Commines (Les memoires de Philippe de Commines, chevalier, seigneur
d’Argenson, sur les principaux facts & gestes de Loys et Charles VIII son fils, Roy de France…, Paris,
1916).
314 Relação do recebimento que ElRey de França, Biblioteca Pública de Évora, códice CV1-2, fol. 143v,
doc. XII.
116
enquanto pairasse sobre esse reino a ameaça do Temerário. Sabemos que o nosso
soberano mediou este conflito que opunha a estratégia centralizadora de Luís XI à
desobediência feudal de Carlos. O que não sabemos é se essa terá sido uma iniciativa
sua devido às boas relações que Portugal mantinha com a Borgonha ou se terá sido uma
imposição do monarca francês. Se a empresa fosse bem sucedida, o rei francês, a juntar
à diligência a que se comprometeu em interceder junto do Papado para a concessão da
dispensa apostólica para o casamento de Afonso V com D. Juana, ficaria liberto para
atacar as posições biscainhas e navarras de D. Fernando.
No início de Dezembro de 1476, os Reis Católicos tiveram conhecimento de que
França não voltaria a atacar, dado o desastre de Fuenterrabia. Essa notícia chegou a Toro
por intermédio de fr. Bernardo Boil, um dos diplomatas castelhanos que se encontrava
em Tours no momento em que os monarcas luso e gaulês se entrevistavam. Assim, pôde
o Prudente negociar com Fernando, em Baiona, no mês seguinte, acerca do
problemático Rossilhão, território que nem Castela pretendia alienar, nem França queria
ter apenas direito de ocupação315
. Não tendo logrado a paz, todavia, manteve-se a trégua
entre os dois países316
.
Com efeito, a missão do Africano protelaria a sua estadia fora de Portugal até ao
ano seguinte e, embora tenha sido bem recebido pelo seu primo, acabou por ser ele o
derrotado, já que não conseguiu ajuda de nenhum para impor os seus direitos ao trono
de Castela. Ademais, no regresso das cercanias de Nancy para Paris, Afonso V não se
pôde encontrar logo com Luís XI, uma vez que este andava ausente pela região da
Picardia, que tentava submeter. Permaneceu em Paris até Maio de 1477, em profundo
desalento e na vã esperança de que o soberano gaulês lhe desse resposta positiva, tendo
entretanto recebido missivas de Portugal, do príncipe e demais conselheiros do reino,
315 Os problemas nos condados do Rossilhão e da Cerdenha remontam à rebelião da Catalunha contra
Juan II de Aragão, em 1462. Assim, para conseguir a ajuda de Luís XI de França, o monarca aragonês
empenhou os ditos condados aos franceses, a quem se permitia o direito de ocupação em troca de dinheiro
e armas francesas. Em 1463 Luís XI ocupou os condados, mas quando a guerra terminou, um decénio
após o seu início, começou o repúdio dos habitantes à presença francesa. É nesse contexto que Juan II
cercou Perpinhão, envolvendo-se em acções armadas contra os franceses, prolongando-se a animosidade
contra os franceses, expressa em conflitos militares, até 1493, data em que foi assinado o Tratado de
Barcelona. Este tratado estabelecia a restituição do Rossilhão e Cerdenha a Fernando, o Católico, por
parte de Carlos VIII de França.
316 Esta trégua firmou-se de mútuo acordo, devido ao facto de ser insustentável continuar a fazer a guerra.
Acordou-se a dita cessação de hostilidades a 7 de Setembro e teria uma duração de três meses.
117
que o aconselhavam a regressar, até porque o encargo financeiro tornava-se bastante
pesado, devido ao numeroso séquito real. O monarca vai também evidenciando a
vontade de servir a Deus, uma vez que percebe que esta viagem a França lhe foi
sugerida por adeptos de Castela, não tendo em conta os riscos para a sua pessoa.
Apesar da insistência dos Reis Católicos junto da cúria papal, com a morte do
Temerário, Sisto IV exigiu como garantia a aliança entre França e Portugal, a fim de ser
concedida a dispensa de casamento solicitada por Afonso V. Nesse sentido, o Africano
despachou para Arras o conde de Penamacor, havendo também lugar a um encontro
entre os soberanos português e francês em Julho de 1477. Porém, como é fácil de
entender, o Prudente tinhas outras prioridades a nível da política interna, pelo que do
encontro de Arras nada saiu a favor do rei lusitano, até porque o eixo da política
francesa tinha mudado para a região da Flandres e os Pirenéus não mais eram uma
ameaça aos planos centralizadores de Luís XI. Uma vez mais se sobrepunham os
interesses nacionais franceses face ao prometido a Afonso V, sendo que o rei francês não
iria comprometer uma política em curso por uma aliança sem futuro317
. A consternação
era evidente no espírito do rei e enquanto aguardava em Honfleur a frota que o
transportaria de volta a Portugal, tomara duas decisões. Renunciaria à coroa em favor do
príncipe, ordenando-lhe que se fizesse aclamar e partiria como peregrino para
Jerusalém, onde entraria em religião, cumprindo um voto feito em 1456, a sua mulher,
D. Isabel. Como consequência, o príncipe é aclamado rei, a 10 de Novembro de 1477318
.
Afonso V escreveu ao rei francês, dando-lhe a conhecer os seus planos e partiu apenas
com alguns validos merecedores da maior confiança319
. Os esforços feitos para
encontrar o soberano peregrino deram resultados e Afonso V foi encontrado a dois dias
de distância, numa pousada. Entretanto, a determinação do conde de Penamacor, assim
como uma carta de Luís XI, convenceram-no a regressar a Portugal, desembarcando em
Cascais, a 15 de Novembro320
. D. João II prontamente devolveu a Coroa ao pai. Afonso
V gizou novamente um plano, pouco real, que consistiu em deixar o reino luso ao filho,
ficando ele com os reinos de Castela, mas aparentemente D. João não aceitou essa ideia:
317 SERRÃO - Relações históricas entre Portugal e a França: (1430-1481), p. 134.
318 CDAV, cap. CCII, p. 862.
319 GOMES – D. Afonso V…, p. 227.
320 CDAV, cap. CCII, p. 862.
118
«E como quer que a bem dos fectos meus de Castella que hé a principal
cousa que me a mym pertecee, nem em que me mais compre de entender, nam
contradissesse elle dicto princepe meu filho teer o titullo de rei destes reinos de
Portugual, antes a mym e a muitos outros paraceu proveitoso nem asy meesmo por
o que pertecee a estes reinos de Purtugual, porque sem titollo e com elle, elle e eu
hûa cousa somos e a mym muito prouguera pera hûua cousa e pera a outra elle teer
o titollo de rei destes dictos reinos de Portugual e a mim ficar soomente o de
Castela, eu jamais pude com elle acabar de lhe aver de ficar titollo de rei de
Portugual, nem de parte nehuua delle senam de princepe como dantes era dizendo
que se avia por muito honrado de nome de princepe por seer meu filho que de rei
da mais parte do mundo nem de diante de mym se quis nunqua alevantar atee que
lho eu assy outorguey»321.
Daí que, mais uma vez, tenha mandado nova embaixada para tentar obter o
apoio do rei de França; uma vez mais a percepção do Africano não compreendeu que o
eixo em que se movimentava Luís XI era completamente diferente do seu, portanto, e
sem grandes surpresas, a resposta veio negativa, até porque, no Outono de 1478, o rei
gaulês assinou o tratado de Saint-Jean de Luz, no qual se estabelecia a paz entre França
e Castela322
. O príncipe, que começara a ficar calejado nos feitos da guerra e da política,
tendo tido conhecimento do dito tratado, percebeu que o caminho da guerra era uma
direcção que já não fazia sentido seguir e orientou a política externa do país tendo em
vista a obtenção das pazes com os reis de Castela323
.
Na Península Ibérica, entretanto, os Reis Católicos tendo tido conhecimento da
partida de Afonso V para França324
, deram atenção a duas frentes. Fernando vigiava a
321 GAVETAS, I, p. 926.
322 SANTARÉM – Quadro elementar…, T. III, pp. 154-156.
323 CDAV, cap. CCIII, pp. 864-865. Com efeito, em 27 de Fevereiro de 1479, ainda Afonso V assinava
cartas reais com o castelhanismo «Yo El Rey», o que prova o seu desejo de obter o controlo de Castela
(GOMES – D. Afonso V..., p. 232); e já o Verão principiava, e Afonso V era uma vez mais incitado por
Alfonso de Monroy para que se fosse pessoalmente levantar o cerco de Montánchez, toda a Extremadura
se revoltaria em seu nome (SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: La conquista del trono, p.
324).
324 Fernando, em Logroño, pede à armada castelhana para seguir e tentar capturar o monarca português. Cf. Archivo Municipal de Sevilla, Tumbo de los Reyes Católicos, livro 1, fol. 67v.; publicado em
Descobrimentos Portugueses, vol. III, Lisboa, 1971, p. 169, n.º 128.
119
fronteira francesa e Isabel consolidava a sua posição no Douro. No início do Outono de
1476 a rainha controlava já as praças de San Felices de los Gallegos, Toro e Segóvia,
ficando apenas alguns pontos de resistência: Castronuño e Cubillas (que seriam
entregues aos monarcas através de uma pequena trégua local, em Março de 1477) e
Sieteiglesias. Deste modo, começaria uma nova etapa para os Reis Católicos, pois finda
assim a guerra civil, não obstante haver ainda hostilidade externa. Fernando e Isabel
consolidavam o seu poder e homogeneizavam a alta nobreza325
, através de uma
aproximação aos grupos privilegiados como um todo, procurando fazer convergir os
interesses públicos da Coroa com os interesses privados, pacificando as querelas
intestinas, principalmente às linhagens andaluzas.
No plano externo, a monarquia deu um passo muito importante com a
reactivação da Grande Aliança Ocidental. Para tal contribuiu a morte de Carlos, o
Temerário. Castela tinha de se preocupar com a fronteira portuguesa, ao mesmo tempo
que vigiava a fronteira francesa. Com o estalar da guerra na Flandres e com a Inglaterra,
a Bretanha e os Habsburgo a quererem reactivar com Castela a Grande Aliança
Ocidental, a França via-se numa posição em que podia ser submetida pela força. Aragão
era favorável à guerra, mas Fernando, também ele prudente e com os interesses
castelhanos em mente, percebeu que a Casa da Áustria pretendia apenas aliviar as suas
fronteiras, esperando que Castela pressionasse a sul. Além disso havia que considerar os
reforços que Afonso V reunia em Portugal, assim como novos apoios à causa
portuguesa descobertos no seio do partido castelhano326
. Também o Católico não podia
olvidar a importância comercial que as boas relações com França significavam para os
mercadores biscaínhos327
. Perante o fantasma da coligação, Luís XI foi obrigado a
negociar a paz com Castela, no final de 1477, a qual passou a definitiva, um ano depois,
com o tratado de Saint-Jean da Luz, que já citei acima328
.
325 SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: La conquista del trono, p. 175.
326 SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: La conquista del trono, p. 216 e p. 229, nota 179.
327 SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: La conquista del trono, p. 211.
328 Este tratado tinha três alíneas principais: 1) voltava-se às condições de 1408 e declaravam-se nulas as
alianças entre Luís XI e Afonso V e entre os Católicos e Maximiliano; 2) a disputa pelos condados seria
tratada por uma comissão de quatro pessoas, dois franceses e dois castelhanos e 3) se Juan II recusasse
integrar a aliança, Fernando só estaria autorizado a ajudar o seu pai se fossem os franceses os agressores.
Além disto, ficava a porta aberta para negociações posteriores para a questão do Rossilhão. O tratado foi
120
Por fim, pacificado o reino externamente, através de diversas embaixadas bem
sucedidas, que trataram de assuntos como a Inquisição, a nomeação episcopal, a
revogação da dispensa matrimonial de D. Juana – a qual tinha sido solicitada ao papa
por Luís XI aquando da sua aliança com Portugal, em Setembro de 1475, entre outros,
foi possível restabelecer as boas relações com o Papa329
.
f) O rescaldo e a obtenção da paz
A guerra ainda afectava a zona da Galiza e da Estremadura espanhola. Pedro de
Monroy, por não lhe ter sido atribuído o mestrado de Santiago, passara-se para Portugal
e detinha as fortalezas de Zagalla e de Piedra Buena em nome de Afonso V, em 1477.
Noudar ainda em 6 de Março de 1478 era posse do duque de Arévalo330
. Moura fôra
recuperada pelo príncipe D. João a Lopo Vaz de Castelo Branco e foi entregue a D.
Beatriz, acabando por ser, meses mais tarde, sede das Terçarias331
.
ratificado em Janeiro de 1479, em Stª Maria de Guadalupe. Cfr. SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes
Católicos: La conquista del trono, pp. 217-218.
329 Cfr. SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: La conquista del trono, pp. 218-222.
330 TORRE; SUÁREZ FERNÁNDEZ - Documentos referentes a las relaciones con Portugal durante el
reinado de los Reyes Catolicos, vol. I, doc. 91 , pp. 149-150.
331 CDAV, caps. CCI e CCV, pp. 860-861 e 866.
121
Figura 2 - Vista norte da fortaleza de Noudar, no Alentejo
Fonte: Livro das Fortalezas de Duarte de Armas, Lisboa: Arquivo Nacional da Torre do Tombo e Edições
Inapa, 2006
Em meados de 1477, a rivalidade pelas descobertas e pelo comércio africano
remeteu para segundo plano as reivindicações de D. Juana, havendo conflito nos
cenários marítimos das Canárias e da Guiné, tendo por objectivo a obtenção do saque.
Não obstante estes conflitos mais localizados, era tempo de Castela procurar a
paz com Portugal. No fim do Verão de 1477, Isabel acorda uma trégua com Portugal na
fronteira que vai de Albuquerque até à Andaluzia332
. A violência tornara-se mais pontual
e localizada. O último episódio bélico produziu-se quase três anos depois da batalha de
Toro, em Fevereiro de 1479333
. O exército português comandado pelo bispo de Évora,
D. Garcia de Meneses, e que marchava em auxílio de Mérida e de D. Beatriz Pacheco,
irmã do marquês de Villena, condessa de Medellín, foi desbaratado por Afonso de
Cardenas, na batalha de Albuera334
. A partir daqui houve negociações mediadas por D.
Beatriz, da casa de Bragança.
332 TORRE; SUÁREZ FERNÁNDEZ - Documentos referentes a las relaciones con Portugal durante el
reinado de los Reyes Catolicos, vol. I, doc. 63 , pp. 134-135.
333 CDAV, caps. CCVI, pp. 866-867.
334 CRC-FP, vol. I, pp. 370-375; MRC-AB, p. 80.
122
É neste contexto que chegam a Cáceres mensageiros de D. Beatriz, duquesa de
Bragança e tia de Isabel, propondo-lhe a negociação de mulher para mulher. Ambas
encontrar-se-ão em Alcântara, a 23 de Março, para tratar a paz. D. Beatriz propunha à
sobrinha que Juana se casasse com o príncipe herdeiro de Castela, podendo intitular-se
princesa; que os dois reinos se aliassem, por via do casamento da primogénita dos Reis
Católicos com o infante Afonso, filho do príncipe D. João; que os nobres dissidentes
fossem perdoados e os seus bens lhes fossem restituídos; e que Isabel e Fernando
pagassem as custas de guerra335
. Isabel contrapôs, salvaguardando o que já vinha desde
Guisando, ou seja, que D. Juana não tinha quaisquer direitos adquiridos e que podia
entrar para um convento ou casar-se com alguém que conviesse aos Reis Católicos; e
opôs-se ao casamento da primogénita porque esta já estava prometida ao herdeiro de
Nápoles. Nada mais foi tratado porque as negociações foram interrompidas dada a hora
avançada, sendo retomadas no dia seguinte. Nesse momento, como pareceu a Isabel que
Beatriz cedia no que toca à custódia e ao casamento de D. Juana, concordou com o
casamento com o príncipe. Quanto à indemnização de guerra, Isabel, por uma questão
de princípio, negou-a, mas permitiu que determinada soma fosse incluída no dote dos
príncipes herdeiros. A terceira e última sessão destas “vistas” trouxe um recuar nas
posições de D. Beatriz, no que à titulatura de Juana dizia respeito, indemnizações de
guerra e na entrega de Badajoz ou Trujillo. Estes termos, inaceitáveis por parte de
Isabel, põem um ponto final às negociações, terminando as mesmas como um
intercâmbio de pontos de vista somente, e dando tempo para a duquesa de Bragança
consultar o príncipe D. João336
.
O passo seguinte das negociações foi o envio do procurador Rui Gomes, o qual
já não encontrou Isabel em Alcântara, devido à demora da resposta. Isabel, pelo seu
lado, envia uma resposta em tom ameaçador337
, pressionando nas negociações e tendo
em vista a obtenção da paz, pois temia-se que estas acordos servissem apenas para
ganhar tempo para recrudescer a guerra. Aroche e Cortegana foram palco de
335 TORRE; SUÁREZ FERNÁNDEZ - Documentos referentes a las relaciones con Portugal durante el
reinado de los Reyes Catolicos, vol. I, doc. 127, pp. 179-183; CDAV, cap. CCVI, pp. 867-870.
336 Neste processo, Afonso V já se encontrava desvinculado dos assuntos da governação, ocupando-se
com o cargo de protector da Universidade. Cfr. GOMES – D. Afonso V..., p. 232.
337 TORRE; SUÁREZ FERNÁNDEZ - Documentos referentes a las relaciones con Portugal durante el
reinado de los Reyes Catolicos, vol. I, doc. 128 , pp. 183-185
123
escaramuças no início de Maio de 1479 e as fortalezas de Mérida, Medellin, La
Deleitosa, Azagala, Castilnovo e Piedrabuena ofereciam resistência aos Monarcas
Católicos338
.
Entrara-se na segunda fase das negociações, a qual partia do pré-definido em
Alcântara. Rodrigo Maldonaldo de Talavera, Ouvidor da Audiência e membro do
Conselho Real de Castela, acompanhara D. Beatriz a Portugal. Homem da plena
confiança de Isabel, estava autorizado a representar os interesses castelhanos. Do lado
português, as conversações eram conduzidas pelo doutor João da Silveira, barão de
Alvito, apoiado por Pêro Botelho. Nestas estabelecia-se que o príncipe D. João de
Castela casaria com D. Juana (porque, relembro, o casamento não foi consumado), boda
que deveria ser confirmada quando o príncipe atingisse os sete anos e consumada com
catorze anos. Caso este se negasse, estava prevista uma larga indemnização. Ainda
ocorrendo este último cenário, D. Juana manter-se-ia em terçaria, até que optasse pela
clausura monástica. A terçaria era, pois, um elemento essencial no tratado de paz e
conferia alguma tranquilidade a Isabel. Para que o acordo fosse justo, os príncipes
deveriam ser postos também em terçaria, bem como os futuros filhos dos Reis
Católicos, ou do príncipe D. João e de D. Leonor de Lencastre, sua mulher. Por esta
custódia ficaria responsável D. Beatriz339
, pessoa da linhagem de Isabel e equidistante
de ambos os partidos. Na prática, a antiga bandeira da resistência aos Reis Católicos
tinha a hipótese de se converter na futura rainha de Castela. A Excelente Senhora,
porém, decidiu renunciar a uma custódia de treze anos, para casar-se com alguém
dezasseis anos mais novo do que ela, e afirmou a sua intenção de ingressar num
mosteiro. Esta decisão implicava um novo atraso nas negociações, pois Isabel ficou
preocupada com a possibilidade de D. Juana poder estar um ano sem votos que a
ligassem à vida religiosa e ainda por cima, em Portugal. Isabel designou que a sobrinha
de Afonso V entraria em clausura nas Clarissas de Santa Clara de Coimbra.
338 Cfr. SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: La conquista del trono, pp. 324.
339 A qual também teve de apresentar garantias a Isabel. Inicialmente seria o seu filho, D. Diogo, duque de
Viseu a entrar em terçaria, mas em virtude de se encontrar doente, foi substituído por D. Manuel e
entregue a Afonso de Cárdenas e aos bispos de Palencia e Ávila. TORRE; SUÁREZ FERNÁNDEZ -
Documentos referentes a las relaciones con Portugal durante el reinado de los Reyes Catolicos, vol. II,
doc. 285, pp. 140-142.
124
Os capítulos seguintes das negociações incidem em dar garantia aos castelhanos
seguidores do partido de Afonso V, em geral e, em particular, à condessa de Medellin e
a Alonso de Monroy, que desde que jurem obediência a Isabel e Fernando, possam reter
os seus bens e restante património. Num outro plano, ambos os monarcas deviam
entregar as cidades, vilas e lugares ao reino a que legitimamente pertenciam e deviam
abdicar de reivindicar e usar os títulos dessas dignidades. Passava também a ser
interdito navegar e comerciar nas áreas de influência exclusivas de cada país. Portugal
não poderia ir às Canárias e Castela comprometia-se a não navegar até à Guiné.
Convém não esquecer que, tal como afirmei acima, se mantinham alguns focos
de tensão, como foi o facto de Isabel ter mandando armar uma carraca e duas galeras
para atacar as posições portuguesas340
, em Julho, e os reforços que são enviados para
conquistar Medellin, ainda em Agosto341
, não deixando assim dúvidas à afirmação da
soberania Católica sobre quaisquer pretensões lusas.
Definido todo o clausulado, podiam então ser assinados os tratados definidos nas
terçarias de Moura, uma vez que houve quatro acordos342
, assinados e confirmados em
Alcáçovas, a 4 de Setembro de 1479 e, posteriormente, em Trujillo, a 27 de Setembro.
Estes tratados pretendiam estabelecer sólidas e duradouras relações de amizade entre
Portugal e Castela 343
. Na prática, nestes tratados, tratou-se da revisão e actualização do
tratado das pazes de Almeirim, de 1432, tentando criar laços de sangue para fomentar
uma aliança eficaz, continuando a velha política de D. Álvaro de Luna; e Juana,
340 Cfr. TORRE; SUÁREZ FERNÁNDEZ - Documentos referentes a las relaciones con Portugal durante
el reinado de los Reyes Catolicos, vol. I, doc. 139, pp. 212-213. Trata-se de uma licença concedida por
Isabel a Alfonso de Salvatierra, dada em a 9 de Julho de 1479, em Trujillo. Este vassalo da rainha devia
tomar navios, bens e mercadorias que conseguisse capturar aos inimigos portugueses, sem especificar
qualquer origem geográfica em Portugal onde esses bens deviam ser apresados. Isabel apenas exige
receber o quinto de uma eventual captura na Mina ou nas Canárias.
341 SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: La conquista del trono, p. 329.
342 Os reis de Castela, ao redigirem a relação de documentos que entregaram ao embaixador Fernando da
Silva, o qual se deslocou a Toledo, enquanto os monarcas celebravam as cortes mais importantes do seu
reinado, assinalaram a existência de sete tratados e não de quatro, porque consideraram como acordos
independentes a arbitragem de D. Beatriz sobre os conflitos fronteiriços, a entrada dos infantes em
terçaria e o perdão concedido aos exilados. Podemos ver a enumeração dos sete tratados no documento de
15 de Março em TORRE; SUÁREZ FERNÁNDEZ - Documentos referentes a las relaciones con
Portugal durante el reinado de los Reyes Catolicos, vol. II, doc. 215 , pp. 31-32.
343 TORRE; SUÁREZ FERNÁNDEZ - Documentos referentes a las relaciones con Portugal durante el
reinado de los Reyes Catolicos, vol. I, doc. 166, pp. 284-327.
125
enquanto semente da discórdia, teve ser “eliminada”, de forma a não constituir nenhuma
ameaça ao governo de Isabel e Fernando. Entrou para o noviciado a 5 de Novembro de
1479344
; o casamento dos infantes Afonso e da castelhana Isabel foi também alvo de
detalhes minuciosos, sendo antecipados todos os cenários possíveis e ficando ambos em
terçaria, o que dava segurança e permitia o convívio; foram também abordadas as
questões relativas à navegação; por último, outorgaram-se perdões aos nobres
dissidentes: Alfonso de Monroy, Alfonso de Portocarrero, Pedro de Baeza, Antonio
Sarmiento e a condessa de Medellin, entre outros345
.
No cômputo geral podemos definir a obra de Isabel e Fernando como orientada
para a reorganização do regime monárquico, fixando os limites de poder da alta
nobreza, tornando-se Castela novamente numa grande potência a partir de 1479,
utilizando a Hermandad para eliminar os últimos focos de resistência.
A paz entre os reinos foi firmada por óbvias razões de falta de apoios ao partido
português, mas também por uma forte pressão interna, em Portugal. Os custos
financeiros para a campanha de Castela foram exorbitantes, começando logo em 1475
com a contribuição do almoxarifado de Évora em cerca de dois milhões de reais346
.
Posteriormente foi recolhida a prata das igrejas, ao passo que se deteriorava a boa saúde
económica e social do reino. A viagem de Afonso V a França agravou o problema, já
que foi bastante longa e teve de prover uma grande comitiva. Logo, foi pedido um novo
empréstimo, no valor de sessenta milhões – o maior empréstimo pedido na Idade
Média347
. Tentou Afonso V remediar esta situação com o disposto na carta régia de 14
344 CV, p. 144. A Excelente Senhora proferiu posteriormente os votos solenes da ordem, a 15 de
Novembro de 1480. Archivo General del Sello – Patronato Real, leg. 49, fol. 72, citado por SUÁREZ
FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: La conquista del trono, p. 344. Foram também entregues a Isabel
os documentos de Juana que conferiam a validade do acto. TORRE; SUÁREZ FERNÁNDEZ -
Documentos referentes a las relaciones con Portugal durante el reinado de los Reyes Catolicos, vol. II,
docs. 277 e 279, pp. 129-130 e 131-35 respectivamente.
345 SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: La conquista del trono, p. 335.
346 GONÇALVES, Iria – O empréstimo concedido a D. Afonso V nos anos de 1475 e 1476 pelo
almoxarifado de Évora, Lisboa, 1964.
347 GONÇALVES, Iria – Pedidos e empréstimos públicos em Portugal durante a Idade Média, Lisboa,
1964, p. 172. Veja-se também COELHO, Maria Helena da Cruz; DUARTE, Luís Miguel – «A fiscalidade
em exercício: o pedido dos 60 milhões no almoxarifado de Loulé», in Revista da Faculdade de Letras:
História, II série, vol. XIII, Porto: Universidade do Porto, 1996, pp. 205-229.
126
de Maio de 1480, em que foi determinada a isenção de foros, rendas e obrigações a
todos os povos raianos da Beira e Alentejo que tivessem sido impedidos de tomar conta
das suas terras por causa das campanhas militares348
.
Não obstante Juana estar em Portugal, ela foi sempre uma peça importante no
xadrez político ibérico, uma vez que Isabel e Fernando temiam que ela reivindicasse os
seus direitos ao trono de Castela. Logo, é com alguma apreensão que os Reis Católicos
vêem Afonso V outorgar o título de infanta em Portugal, a 21 de Outubro de 1480.
Daqui em diante, Juana será conhecida como a Excelente Senhora349
. Não obstante,
ambos os reinos canalizam os seus esforços para a obtenção e consolidação da paz e das
boas relações enquanto reinos amigos, findando o processo com Sisto IV a emanar uma
bula que permitia a anulação quaisquer juramentos por parte dos antigos inimigos e que
pudesse abrir novas contendas e opor-se ao restabelecimento da paz350
.
348 Podemos ver as localidades afectadas em MORENO, Humberto Baquero – «A contenda entre D.
Afonso V e os Reis Católicos: incursões castelhanas no solo português de 1475 a 1478», in Separata dos
«Anais», II série, vol. 25, Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1979, pp. 315-316.
349 TORRE; SUÁREZ FERNÁNDEZ - Documentos referentes a las relaciones con Portugal durante el
reinado de los Reyes Catolicos, vol. II, doc. 262, p. 98. D. Isabel queixa-se em 1481, sabendo que Juana
vivia fora do convento onde professara. Não se conhecem bem essas circunstâncias, mas por algum
motivo, ela não terá conseguido ou podido respeitar o voto de clausura. D. João II permitiu-lhe que
vivesse fora de clausura, recebendo o título de Excelente Senhora, em Portugal, casa e estado como se
fosse rainha. CPDJ, p. 214.
350 Bula de 8 de Março. Archivo General del Sello – Patronato Real, leg. 50, fols. 17 e 18, citado por
SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: La conquista del trono, p. 345.
127
6. A CAMPANHA MILITAR: DA PREPARAÇÃO AO CHOQUE
É responsabilidade do historiador não se deixar deslumbrar pelas suas fontes e
evitar ver-se arrastado pelo entusiasmo do vencedor e pelo olhar não isento e
deformador dos contemporâneos. Tento assim, uma vez mais, justificar o projecto que
me propus levar a cabo: fazer a análise militar da campanha portuguesa em Castela, no
contexto da guerra de sucessão castelhana e cujo ponto áureo se atinge na batalha de
Toro. Assume então importância capital a dissecação de um conjunto de fontes, relativas
aos dois partidos contendentes no conflito, exposto no início do trabalho, de modo a ter
uma visão mais próxima do que foi a realidade do último quartel do séc. XV, não
obstante o especial cuidado necessário a ter na análise de crónicas, as quais podem
pecar por serem exageradas e pouco objectivas por alterar excessivamente a realidade.
O facto de às vezes os cronistas relatarem episódios em que dão pouco a conhecer o que
realmente se passou na batalha, não significa que as fontes literárias não sejam de
valorizar para um estudo militar. Como já demonstrou o especialista em história militar
Kelly DeVries, as crónicas e outras fontes análogas podem ser usadas, com cuidado,
para reconstruir a história militar medieval. Na maior parte dos casos, estas crónicas,
quando comparadas umas com as outras, independentemente da nacionalidade do autor,
podem ser testemunhas bastante fiáveis de história militar. Para além disso, estas fontes
narrativas também mostram as acções dramáticas da guerra, mesmo que os autores
tenham suavizado o texto devido à sua fidelidade e agenda351
. Se bem que tenhamos de
ter em conta os condicionalismos que afectam os cronistas, tais como terem ou não
vivido o momento que estão a relatar; quais os seus motivos e preparação, os quais
advêm da sua nacionalidade, vocação, educação, interesse, estatuto social e ofício que
desempenham, fontes e entidade para quem estava a ser escrita a obra. Mesmo que os
cronistas tenham estado presentes na batalha é preciso perceber qual a sua função. Eram
cronistas oficiais ou teriam outra ocupação? Eram próximos do rei? Seus secretários ou
criados? Ou de algum destacado fidalgo ou eclesiástico? Eram religiosos? Eram
combatentes? A carga que a formação de cada um exercia sobre as suas observações era
notória, pois um soldado não veria a batalha com os mesmos olhos de um rei de armas.
351 DeVRIES, Kelly - «The use of chronicles in recreating medieval military history», in Journal of
medieval military history, Woodbridge: The Boydell Press, 2004, p. 5; CURRY, Anne – The battle of
Agincourt: sources and interpretations, Woodbridge: The Boydell Press, 2009, p. 9-22.
128
Teriam necessariamente prioridades diferentes. Ainda que tivessem estado presentes na
batalha, seria demasiado complexo apreenderem toda a acção da batalha ao mesmo
tempo. Seria avassalador escrever uma narrativa que tratasse várias acções em
simultâneo, logo essas pessoas teriam de se basear em relatos que tivessem ouvido,
como forma de complementar a crónica. Podiam ainda alguns cronistas ter acesso a
bibliotecas monásticas contendo fontes clássicas e bíblicas, estando o texto recheado
com alusões à religião, a prodígios, etc. É o caso de Afonso de Palencia por exemplo.
Não obstante, com algum cuidado, a história militar em toda a sua multiplicidade de
episódios (cercos, batalhas, cavalgadas, escaramuças, razzias, etc.) pode ser
razoavelmente reconstituída comparando as várias fontes e, em última análise,
interpolando a prática tradicional. Conseguindo isso, é possível aferir a veracidade das
coisas mais improváveis relatadas pelos cronistas352
. Porém, as crónicas não estão
isentas de problemas. Frequentemente, não se consegue apurar com certeza o número de
efectivos em campo, ou a quantidade de baixas tão díspares e inverosímeis são as
quantias apontadas. Verifica-se, contudo, o oposto, isto é, a consistência entre os vários
cronistas em outros aspectos. Tomemos como exemplo os efeitos devastadores
resultantes da divisão política em Castela; ou a importância dos muitos conselhos de
guerra que antecedem as escaramuças e batalhas antes de elas ocorrerem.
Neste estudo, não tenciono considerar exclusivamente as batalhas ou, melhor
dizendo, a batalha, isto é, Toro. Creio que, com a renovação historiográfica que se deu
nas últimas décadas, levada a cabo por autores tais como John Gillingham, David
Nicolle, Stephen Morillo, John France, Francisco García Fitz e João Gouveia
Monteiro353
, entre outros, não mais faria sentido dar a primazia a uma batalha, por mais
importante que tenha sido, não obstante o facto de ter sido provocada pelo exército de
D. Fernando.
Vejamos rapidamente como evoluiu a historiografia militar. Autores como
Charles Oman, H. Delbruck, J.F.C. Fuller, F. Lot, H. Nickerson, entre outros, são
352 DeVRIES, Kelly - «The use of chronicles...», p. 15.
353 Embora estes autores surjam em referências ao longo deste trabalho, não posso deixar de salientar a
contribuição de Francisco García Fitz, em cujo artigo vem listada bibliografia básica para reflexão sobre a
batalha medieval, compreendendo autores de todas as escolas que menciono em seguida: GARCÍA FITZ,
F. – «La batalla en la Edad Media. Algunas reflexiones», in Revista de Historia Militar, año L, n.º 100:
Ministerio de Defensa – Secretaría General Técnica, 2006, pp. 105-108.
129
exemplos de uma perspectiva, na qual se dá importância excessiva à batalha,
considerando-a per se, simplificando o panorama militar da época e distorcendo a
imagem de conjunto. Algumas destas concepções vinham ainda do final do séc. XIX.
Na década de 1950 aparecem perspectivas diferentes pelas mãos de J.F.
Verbruggen, R.C. Smail, Warren Hollister, H.J. Hewitt, Philippe Contamine ou
Christopher Allmand. Influenciados pela escola dos “Annales” e pela ”nova História
Militar”, reduziram a importância da batalha e enfatizaram a história militar
institucional baseada nas fontes, argumentando que operações como o recrutamento, o
aprovisionamento, o equipamento e o financiamento da guerra eram muito mais
importantes para perceber as estruturas económicas, políticas, sociais e culturais da
sociedade medieval, do que estudar batalhas isoladas.
Durante as últimas décadas do séc. XX deu-se uma importante renovação desta
linha de pensamento, sublinhando o carácter excepcional e a raridade destas batalhas,
devendo-se esse facto ao risco que a mesma apresentava, tal como advogava Vegécio354
,
preferindo-se destruir o inimigo pela fome e dando, por outro lado, importância a outro
tipo de operações militares que a primeira escola de historiadores medievais e militares
ignorava: cavalgadas, algaras, assédios de destruição, desgaste e fustigação do
adversário, assédios de castelos, bloqueios de cidades. Falo de autores como J.
Gillingham, J. Bradbury, M. Strickland, G. Duby, D. Nicolle, S. Morillo, J. France, F.
García Fitz, etc. Esta orientação foi realçada recentemente por John Gillingham, pelo
que ficou conhecida pelo paradigma de Gillingham355
. Com esta mudança de paradigma
acreditou-se que, em virtude de haver relativamente poucas batalhas campais no
Ocidente entre os séculos VI a XV, isso seria prova da ausência de estratégia militar. No
entanto, é necessário ter em conta que a nossa perspectiva da guerra é influenciada pela
experiência moderna, na qual a batalha é um elemento central. Este mito da falta de
estratégia caiu por terra quando os estudos de R.C. Smail, Christopher Marshall e David
354 Para o conhecimento detalhado da obra magna de Vegécio, é obrigatório consultar o estudo de João
Gouveia Monteiro e José Eduardo Braga – Vegécio: compêndio da arte militar, com tradução dos
mesmos autores, Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2009.
355 Cfr. ROGERS, Clifford J. - «The Vegetian “science of warfare” in the Middle Ages», in Journal of
medieval military history, Woodbridge: The Boydell Press, 2002, pp. 2-3 e MONTEIRO - «Estratégia e
risco em Aljubarrota: a decisão de dar batalha à luz do paradigma Gillinham», in A guerra e a sociedade
na Idade Média – actas das VI jornadas luso-espanholas de estudos medievais, Vol. I, coord. de
COELHO, Maria Helena da Cruz et al., Batalha, 2009, p. 78
130
Nicolle sobre os exércitos dos cruzados vieram mostrar como a condução da guerra
medieval não era assim tão primitiva, nem os comandantes medievais deixavam de
imprimir às suas campanhas uma orientação estratégica inteligente e profícua pelo
simples facto de não as fazerem desembocar necessariamente numa batalha campal356
.
Esta segunda vaga de autores anglo-saxónicos, em conjunto, ajudou a formar uma nova
imagem da guerra medieval, reinstalando a batalha num contexto teórico e operacional
muito mais amplo e provando que a guerra medieval é muito mais do que uma sucessão
de batalhas357
.
Um exemplo prático disso pode ser colhido na argumentação de García Fitz, que
deixou bem claro que do séc. XI ao séc. XIII, apesar da escassez de grandes combates
em campo aberto, existiu no mundo castelhano-leonês uma verdadeira estratégia de
expansão territorial, planificada, coerente e bem sucedida, que combinou os
instrumentos políticos, económicos e militares necessários à consecução de objectivos
polítcios ambiciosos bem definidos a priori e prosseguidos ao longo de várias
gerações358
.
Os enormes riscos (estratégicos, políticos e físicos), a impossibilidade de
controlar todos os imponderáveis (militares, anímicos ou outros) de um combate a partir
do momento em que se estabelecia o contacto com as linhas adversárias e os ganhos
limitados de uma vitória são as três grandes razões avançadas pela “nova ortodoxia”
356 SMAIL - Crusading warfare, 1097-1193, Cambridge: Cambridge University Press, 1995, com
introdução de Christopher Marshall (ed. original de 1956); MARSHALL - Warfare in the latin east, 1192-
1291, Cambridge, Cambridge University Press, 1992; NICOLLE - Crusader warfare: volume I:
Byzantium, western Europe and the battle for the holy land; volume two: muslims, mongols and the
struggle against the crusades, Londres-Nova Iorque: Hambledon Continuum, 2007. Além dos autores
citados, veja-se uma boa resenha da evolução historiográfica militar em MONTEIRO, João Gouveia -
«Estratégia e risco em Aljubarrota: a decisão de dar batalha à luz do paradigma Gillingham», in A guerra
e a sociedade na Idade Média – actas das VI jornadas luso-espanholas de estudos medievais, Vol. I,
coord. de COELHO, Maria Helena da Cruz et al., Batalha, 2009, pp. 75-107.
357 BRADBURY - The medieval siege, Woodbridge, The Boydell Press, 1992; GILLINGHAM – "Richard
I and the science of war in the middle ages", in M. Strickland, Anglo-norman warfare, Woodbridge: The
Boydell Press, 1992, pp. 194-207 e "William the Bastard at war", in ibidem, pp. 143-160; MORILLO –
Warfare under the anglo-norman kings, Woodbrigge: The Boydell Press, 1994; STRICKLAND - War and
chivalry. The conduct and perception of war in England and Normandy, 1066-1217, Cambridge,
Cambrigde University Press, 1996; FRANCE - Western warfare in the age of the crusades, 1000-1300,
Ithaca-Nova Iorque, Cornell University Press, 1999.
358 GARCÍA FITZ, Francisco – Castilla y León frente al Islam. Estrategias de expansión y tácticas
militares (siglos XI-XIII), Sevilha: Universidad de Sevilla, 1998, p. 56.
131
para não dar batalha. Como alternativa estava a devastação do território inimigo, uma
vez que destruindo os seus recursos económicos e logísticos, capturando cidades,
sabotando o abastecimento e enfraquecendo os recursos humanos (capturando e
matando pessoas) se frustravam muitas vezes os planos do atacante.
Rogers e Morillo rebatem estes argumentos, procurando igualmente refutar a
ideia de Strickland, segundo a qual os comandantes se furtavam a dar batalha sempre
que possível, baseando-se no postulado que a mesma batalha não pode ser benéfica para
os dois contendores. Chegam, portanto, à conclusão de que a batalha campal não é um
recurso de segunda categoria face a outras operações militares como o cerco. Vitórias
em batalha permitem grandes triunfos. Por outro lado, uma vitória expressiva de um
exército defensor sobre um invasor em batalha campal podia travar uma invasão e
adquirir uma importância política e militar muito especial. Posso desde já encaixar o
caso de estudo em questão neste raciocínio: muitas das grandes batalhas do mundo
medieval foram travadas por soberanos que reclamavam o trono ou o tinham usurpado e
Afonso V ou Isabel precisavam de uma vitória decisiva que afastasse qualquer dúvida
quanto à legitimidade da sua sucessão. A Rainha Católica por laços de sangue e
disposições jurídicas, e o monarca português por ter desposado a sobrinha, filha de
Enrique IV de Castela. Dessa forma, a vitória ficaria selada pela concordância divina,
que teria proporcionado aquele resultado ao vencedor.
Nestes termos, o “Paradigma de Vegécio modificado”, na nomenclatura de
Morillo, passou a reconhecer a importância corrente à batalha campal359
, embora para
isso seja necessário estabelecer os limites do conceito de batalha campal. É imperativa a
distinção entre a „planificação estratégica‟ das operações e as „oportunidades tácticas‟
que podem surgir pontualmente no decurso de uma campanha (conduzindo de forma
algo fortuita a uma batalha campal), ou seja, há que separar uma atitude de „busca
deliberada de batalha‟ e outra de mera „ameaça de batalha‟, enquanto expressão de um
jogo psicológico360
.
Fica então explicado o tema da raridade das batalhas medievais. Esta raridade
resulta não do risco elevado que comportam, mas de que ambas as partes a queiram ou,
359 MORILLO - “Battle seeking…”, p. 28.
360 MONTEIRO – «Estratégia e risco em Aljubarrota...», p. 90.
132
pelo menos, a aceitem. Rogers sintetizou a questão desta forma: “era habitual na guerra
medieval o lado que mais ardentemente desejava a batalha ver facultada esta
possibilidade pelo seu opositor, mas apenas em circunstâncias tácticas profundamente
desfavoráveis”; portanto, contrariamente à visão ortodoxa do problema, “era muito
comum na guerra medieval ambos os lados desejarem oferecer batalha […] apesar de
nenhuma das partes pretender atacar o inimigo no terreno escolhido pelos defensores. E
se ambos os lados desejavam travar batalha em terreno por si escolhido, mas nenhum se
dispunha a combater no terreno escolhido pelo inimigo, então o mais provável era não
haver lugar a batalha nenhuma, o que em grande medida ajuda a explicar a frequência
de campanhas militares sem batalha campal nos finais da Idade Média”361
.
Gillingham, ao ver o seu nome associado a uma escola da sua autoria e ainda por
cima de forma negativa, veio em defesa de alguns dos seus pontos de vista, rebatendo
argumentos esgrimidos por Rogers e por Morillo e dizendo que a nova ortodoxia devia
ser chamada paradigma de Smail e não paradigma de Gillingham362
. O autor enumera
três aspectos que sustentam a sua argumentação, e afirma que, em geral, a Idade Média
foi aversa à batalha campal: a estratégia defensiva vegeciana, quando imposta
correctamente, foi extremamente eficaz porque se baseava num papel activo da defesa,
ou seja, era uma estratégia que não defendia apenas pontos fortes, mas também
ameaçava o apoio logístico do invasor. Neste tipo de guerra, pequenos corpos de
cavalaria desempenhavam um papel vital, particularmente quando em reconhecimento
ou a escoltar e a guardar grupos recolectores. Outros dois aspectos que Gillingham
susteve foram relativamente à capacidade de dar ou de forçar batalha e no que aos
ganhos que uma vitória traria. Para este autor, um exército capaz de oferecer batalha é
uma coisa; um exército no campo procurando oferecer batalha é outra, reconhecendo,
por fim, que algumas vitórias em batalha trazem ganhos decisivos. Isto contraria a visão
de Rogers, quando este afirma que a batalha pode ser desastrosa mesmo que traga a
361 ROGERS - «The Vegetian “science of warfare” in the Middle Ages», p. 15.
362 Toda esta importante discussão pode ser vista principalmente nos seguintes artigos: ROGERS, Clifford
J. - «The Vegetian “science of warfare” in the Middle Ages», in Journal of medieval military history,
Woodbridge: The Boydell Press, 2002, pp. 1-19; MORILLO, Stephen – «Battle seeking: the contexts and
limits of Vegetian strategy», in Journal of medieval military history, Woodbridge: The Boydell Press,
2002, pp. 21-41; GILLINGHAM, John - «”Up with orthodoxy!” In defense of Vegetian warfare», in
Journal of medieval military history, Woodbridge: The Boydell Press, 2004, pp. 149-158.
133
vitória363
. Argumenta o segundo que o defensor derrotado podia sempre esconder-se
atrás das muralhas e aí permanecer, não tendo os atacantes, por vezes, capacidade para
pagar os custos de guerra, se bem que com o advento da pólvora, nomeadamente a partir
de 1420, a protecção oferecida pelos panos de muralhas começou a diminuir.
Face ao panorama medieval, nos finais da Idade Média muita da mensagem de
Vegécio permanecia actual para as monarquias em crescimento: a apologia de um
exército disciplinado e treinado, ao serviço do poder central; a desconfiança
relativamente aos mercenários; a importância das fortificações; a valorização da guerra
de desgaste e da logística, em estreita articulação com a defesa da terra e dos elementos
naturais; e ainda, claro, a convicção de que uma vitória completa assentava no resultado
de uma batalha campal (não obstante os avisos de prudência), com o tratadista a
aconselhar o general a não desperdiçar uma boa oportunidade para travar batalha em
campo aberto.
Sem prejuízo do disposto acima, como resenhou Gouveia Monteiro, existe um
conjunto de factores que pesam aquando da decisão de dar batalha: superioridade
numérica, (in)existência de caminho de fuga, desespero de um dos candidatos;
fragilidade política, lealdade e condição anímica das fortalezas de apoio, custos da
destruição do próprio território, dificuldades em manter homens mobilizados durante
muito tempo e a importância da honra364
.
* * *
O lapso temporal do nosso estudo em questão está compreendido no período da
denominada revolução militar. A revolução militar - termo definido por Michael Roberts
em meados do séc. XX, foi um processo complexo, o qual teve a sua origem na
introdução maciça das armas de fogo, tanto pessoais, como armas pesadas. Estas dão
origem a novas técnicas de combate e a uma organização militar diferente, com tropas
pagas a soldo; e na relação da guerra com a sociedade. Esta transição começa a delinear-
363 GILLINGHAM - «”Up with orthodoxy!”», pp. 152-157.
364 MONTEIRO, João Gouveia - «Estratégia e risco em Aljubarrota: a decisão de dar batalha à luz do
paradigma Gillingham», in A guerra e a sociedade na Idade Média – actas das VI jornadas luso-
espanholas de estudos medievais, Vol. I, coord. de COELHO, Maria Helena da Cruz et al., Batalha, 2009,
p. 107.
134
se no contexto da Guerra dos Cem anos, com o aparecimento do arco longo, logo
seguido pelo aparecimento dos primeiros canhões, por meados de Trezentos. Não
obstante, não apresentou logo vantagens sobre as máquinas poliorcéticas tradicionais,
devido à sua lentidão, custos inerentes à sua construção e manutenção e mesmo devido
à sua quase nula eficácia. Foi somente por volta dos anos oitenta do séc. XIV que se
verificou uma importante renovação ao nível da melhoria da pólvora, dos vários calibres
envolvidos e com a generalização da produção em massa de projécteis de ferro
fundido365
. Este cenário de renovação, no qual se vão inserir as campanhas que vou
analisar, mas que se desenvolverá plenamente na transição para o séc. XVI, apresenta
quatro características: a primeira constitui uma renovação táctica, comportada pela
substituição da lança pelo pique e do arco pelo mosquete, anulando potencialmente as
cargas de cavalaria; em segundo lugar evidencia-se o crescimento do número de
efectivos militares. Estes passam a ser maioritariamente infantes, ou cavalaria
desmontada – neste último caso montando apenas para perseguir o inimigo desbaratado,
ou para bater em retirada. Claro que a composição social do exército muda, como Ayton
e Price chamaram a atenção366
, tornando-se o soldo torna-se menos oneroso, mas isso,
por sua vez, é anulado pelo aumento do número de soldados, como já referi; por outro
lado, adoptaram-se estratégias apropriadas para poder dispor estes corpos militares
muito maiores em campo de batalha; e, finalmente, cresce brutalmente o impacto da
guerra na sociedade, devido aos custos impressionantes para manter viva a máquina de
guerra, sendo criados novos impostos para fazer face às despesas militares. Esta
consequência colocava os estados à beira da banca rota para poderem fazer a guerra. É
evidente que nem todos sobreviveram a este período conturbado. A França absolutista
sobreviveu; as Províncias Unidas que formaram a República Holandesa andaram
também em contraciclo, não obstante estarem no centro de múltiplos conflitos, desde a
independência, no final do século XVI, às guerras com Luís XIV de França, até 1713.
Menos sorte teve a república aristocrática da Polónia-Lituânia. O grau de destruição
aumenta exponencialmente com exércitos maiores. O tipo de fortaleza teve
365 LADERO QUESADA, Miguel Ángel - «Guerra y paz: teoría y prática en Europa occidental. 1289-
1480», in Actas da XXXI Semana de Estudios Medievales, Pamplona: Gobierno de Navarra, 2005b, p. 31.
Veja-se ainda MONTEIRO, João Gouveia - «De Afonso IV (1325) à batalha de Alfarrobeira (1449) – Os
desafíos da maturidade», in Nova História Militar de Portugal, Dir. de Manuel Themudo Barata e Nuno
Severiano Teixeira, Vol. 1, Coord. de José Mattoso. Lisboa: Círculo de Leitores, 2003, pp. 180-181.
366 AYTON, Andrew; PRICE, J. L. - «Introduction», in The Medieval Military Revolution: state, society
and militar change in medieval and early modern Europe, Nova Iorque: St Martin‟s Press, 1995, p. 9.
135
necessariamente de mudar para poder responder à grande eficácia das armas de fogo,
cada vez mais potentes e rápidas. Assistiu-se à transição da edificação de muralhas na
vertical para a traça italiana, com um perfil mais oblíquo. Neste jogo do gato e do rato
em que ora tem a primazia a vertente ofensiva, ora leva a melhor a arquitectura
defensiva, o factor tempo é de primordial importância. Maiores baluartes fazem com
que sejam necessários maiores exércitos para que o cerco possa ser efectivo,
aumentando exponencialmente o tempo da campanha e todos os problemas inerentes,
tais como os fundos necessários para pagar a um exército de grande dimensão durante
um período prolongado. Um último aspecto que também foi sendo consistentemente
notório nas campanhas militares foi a formação teórica dos comandantes367
.
Muito embora as actividades bélicas reflictam a prática à qual se davam os
guerreiros – cavaleiros e peões – em exercícios como as justas, torneios, exercícios
equestres, fazer barreira ao domingo, alardos ou mesmo a própria guerra, pelo menos a
nível do comando havia algum conhecimento teórico da arte da guerra. O conhecimento
militar foi teorizado na Europa primeiramente no clássico Epitoma rei militaris, escrito
no séc. IV por Flávio Vegécio, que conheceu uma grande difusão entre os pensadores
medievais como Isidoro de Sevilha, Beda, João de Salisbury, em meados do séc. XII;
surge também pela mão de autores do séc. XIII como Vincent de Beauvais, Brunetto
Latini, Afonso X e Egídio Romano; Teodoro Paleólogo, Honoré Bovet e Jean de Bueil
compunham parte do importante legado do séc. XIV; e ainda por teóricos de
Quatrocentos como Cristina de Pisano e Alfonso de Cartagena. Outros pensadores
367 Apresentando este estudo alguns aspectos que caracterizaram a revolução militar, considerei
importante dar uma perspectiva sumária do que consistiu a mesma. Porém, não tenciono desenvolver o
tema, deixando-o para a consulta da bibliografia especializada, citando, ao invés, alguns títulos que me
parecem pertinentes: HALE, J.R. - Guerra y sociedad en la Europa del Renacimiento. 1450-1620,
Madrid: Ministerio de Defensa, Secretaría General Técnica, 1990; PARKER, G – La revolución militar.
Las innovaciones militares y el apogeo de Occidente, Madrid: Critica, 1990 e Empire, war and faith in
Early Modern Europe, Londres: Allen Lane, 2003; BLACK, J. - A military revolution? Military change
and European society, 1550-1800, Londres: Palgrave Macmillan, 1991, War and the World. Military
power and the fate of continents, 1450-2000, Londres: Yale University Press, 1998 e La guerra: del
Renacimiento a la revolución. 1492-1792, Madrid: Akal Ediciones, 2003; ROGERS, C.J. (ed.) - The
military revolution debate. Reading on the military transformation of Early Modern Europe, San
Francisco: Westview Press, 1995; AYTON, Andrew, PRICE, J.L. (ed.) – The medieval military revolution:
state, society and military change in medieval and early modern Europe, Londres, Nova Iorque: I. B.
Tauris, 1995; CORVISIER, A. - Armées et societés en Europe de 1494 à 1789, Paris: Presses
Universitaires de France, 1976; ROBERTS, M. - The military revolution, 1560-1660, Belfast, 1956;
PUDDU, R. - Eserciti e monarchie nazionali nei secoli XV-XVI, Florença: La Nuova Italia 1975;
QUATREFAGES, R. - La revolución militar moderna: el crisol español, Madrid: Ministerio de Defensa,
1996.
136
clássicos lidos foram Xenofonte, César, Tito Lívio e Virgílio. Relativamente à teoria
militar coeva houve alguns pensadores castelhanos que gostaria de destacar: Rodrigo
Sánchez de Arévalo, Diego de Valera, Alfonso de Palencia, Diego Rodríguez de
Almela368
, havendo também tratados de cavalaria em Portugal e na Catalunha, o que
prova que a preocupação pela cavalaria e pela milícia não foi um fenómeno isolado.
Esta miscelânea de clássicos latinos e gregos, crónicas, poemas épicos e novelas de
cavalaria, cartas de batalha, tratados sobre torneios e escritos sobre as técnicas da guerra
e ideais éticos do guerreiro formava a mentalidade militar do final da Idade Média,
mesmo que esta bagagem cultural mais abrangente apenas se verificasse ao nível dos
grandes senhores, quer laicos, quer eclesiásticos.
No topo desta mentalidade cavaleiresca não posso deixar de fazer menção às
ordens de cavalaria, em geral, e à ordem da Jarreteira, em particular. Esta ordem com
origem em Inglaterra, no reinado de Eduardo III, em 1348, era uma sociedade com
estatutos, realizava reuniões capitulares, tinha um numerus clausus restrito e exigia
dedicação exclusiva, ou seja, o dignatário não podia pertencer a nenhuma outra ordem
de cavalaria. Tal como todas as ordens de cavalaria que estavam ainda associadas a
cultos religiosos e festivais, a Jarreteira não é excepção e associa-se a S. Jorge369
.
Sabemos que esta dignidade foi atribuída a D. Afonso V, em 1447, embora apenas nove
anos depois tenha aceite fazer parte desta sociedade. De acesso bastante restrito, foram
vários os monarcas portugueses (e alguns nobres também) a quem foi atribuída esta
distinção, a qual serve de barómetro para a política externa, o que explica o aparente
desinteresse do soberano português pela Jarreteira durante quase uma década370
. Dos
368 LADERO QUESADA, Miguel Ángel - «Guerra y paz: teoría y prática en Europa occidental. 1289-
1480», in Actas da XXXI Semana de Estudios Medievales, Pamplona: Gobierno de Navarra, 2005b, pp.
48-52.
369 Note-se a coincidência de S. Jorge ser o patrono da Ordem, assim como também é o patrono de
Portugal e da coroa de Aragão. Este é um assunto que ainda não está suficientemente estudado, mas
parece ter havido influência inglesa no patrono da casa de Avis.
370 Embora não caiba no âmbito deste trabalho desenvolver este assunto, é importante fazer-lhe uma breve referência, uma vez que está potencialmente relacionado com a condução da guerra. Assim, para este
assunto, faço referência a alguns autores incontornáveis para o estudo do tema: VALE, J. – Edward III
and Chivalry: Chivalric Society and Its Context, 1270-1350. Woodbridge: The Boydell Press, 1982,
JEFFERSON, L. – The most noble Order of the Garter – 650 years, London: Spink, 1999 e COLLINS,
H.E.L. – The Order of the Garter, 1348-1461: chivalry and politics in late medieval England. Oxford:
Oxford University Press, 2000. Pela especificidade portuguesa, cito ainda FARIA, Tiago Viúla de – «Pela
“Santa Garrotea”: ofício cavaleiresco nas vésperas de Alfarrobeira», in separata das Actas do XIV
Colóquio de História Militar – Portugal e os conflitos militares internacionais, Lisboa, 22-25 de
Novembro de 2004, pp. 61-86. Não posso também deixar de agradecer a preciosa ajuda do meu colega e
137
membros portugueses que possuíam o manto e empunhavam o garrote ou liga,
juntamente com a importantíssima cópia dos estatutos da Ordem, aqueles que detinham
laços estreitos com Inglaterra também são vistos como les plus souffisans chevaliers
sans reprouche371
, o que significava que não era qualquer um que integrava a Ordem.
Mais ainda, estes ilustres cavaleiros estavam obrigados a seguir um conjunto de
procedimentos emanados dos estatutos, entre os quais se incluíam, por exemplo, o facto
de não poderem tomar armas contra outros membros da Ordem, a não ser em condições
muito especiais372
, assim como também não poderem fugir do campo de batalha. A fuga
ao combate, para um companheiro da Jarreteira, era uma desonra e implicava a
vergonhosa demissão da Ordem. É certo que as noções de valor e de cobardia
transparecem na cultura cavaleiresca medieval, mas nas crónicas que norteiam este
trabalho foi possível encontrar exemplos directamente relacionados com as obrigações
expressas nos estatutos da Ordem373
.
amigo, Tiago Viúla de Faria, o qual prontamente partilhou comigo os resultados do seu estudo ainda não publicado relativamente à Ordem da Jarreteira. No que diz respeito aos agraciados lusos da primeira
metade do séc. XV, foram seis os portugueses com lugar no cadeiral da Ordem, na capela da Jarreteira,
sita na capela de Windsor: D. João I (1416) e os seus filhos Pedro (1427), Duarte (1435) e Henrique
(cerca de 1442-43), D. Álvaro Vaz de Almada, o único nobre português fora da família real e D. Afonso V
(1447). Embora seja de duvidar que alguma vez algum monarca português lá se tenha sentado, o
simbolismo demonstra bem os laços políticos e históricos que aproximavam Portugal a Inglaterra e que,
aliás, levou Afonso V, mesmo quando procurava o apoio de Luís XI de França, a não renegar a amizade
aos ingleses, tal como o rei gaulês lhe havia exigido.
371 Cfr. JEFFERSON – «MS Arundel 48 and the Earliest Statutes», p. 380, citado por FARIA, Tiago Viúla
– «Pela “Santa Garrotea”: ofício cavaleiresco nas vésperas de Alfarrobeira», p. 83.
372 Diz o artigo 31º «que nul dudit ordre soit armé l’un contre l’autre, s’il ne soit en guerre de son
souverain seigneur ou en son droit et just querelle». Cfr. JEFFERSON – «MS Arundel 48 and the Earliest
Statutes», p. 383, citado por FARIA, Tiago Viúla – «Pela “Santa Garrotea”: ofício cavaleiresco nas
vésperas de Alfarrobeira», p. 81.
373 Em Rui de Pina há amplas referências, não tanto para a guerra com Castela, mas mais para a batalha de
Alfarrobeira. CDAV, cap. XXXI, p. 621, cap. LXX, p. 671, cap. CIX, p. 729, etc.; não resisto a citar
também esta passagem de Diego de Valera (CRC-DV, cap. IX, pp. 27-28): «Como el rey don Alonso
toviese la devisa de la Jarretera del rey de Inglaterra, cuya condiçión es por mechedunbre de enemigos no
recusar la batalla, ni nunca della retraherse, ni se meter en lugar cercado tanto que en el canpo oviese con
quien pelear»; veja-se também cap. IX, p. 30 e cap. XX, p. 71. O cronista Afonso de Palencia também lhe
faz menção: «D. Alfonso, por estar condecorado com la Jarretiera, tenía la superstición militar de no
rehusar batalla por numeroso que fuera el enemigo, no retroceder en el combate y, mientras hubiese
proporción de pelear, no permanecer trás los muros de ciudades o villas, sino en los campamentos»
(CEIV-AP, II, p. 208). Igualmente a Zurita não passa despercebida esta dignidade de Afonso V: «también
el rey de portugal traía la empresa de los reyes de inglaterra de la jarretera que, según decían, obligaba a
cualquier príncipe que la tuviese que no rehusase de pelear con el enemigo porque tuviese más gente,
cosa muy vana y de reír si así lo entendían en aquel tiempo los ingleses». Em seguida, com Fernando às
138
D. Fernando de Aragão, consorte da rainha, também terá sido nomeado para
companheiro da Ordem, por volta de 1479-80, mas por razões que desconhecemos, crê-
se que terá declinado a oferta374
.
Deste modo, é num cenário de charneira e no meio de uma crise dinástica e de
sucessão que Castela dá mais um passo no sentido da Modernidade, aproximando-se de
França – a qual já tinha instituído as Companhias da Grande Ordenança, entre 1445-
1447, com a criação de um corpo militar permanente. Esta obra deveu-se aos Reis
Católicos, a partir de 1476. Isabel e Fernando aumentaram as capitanias de cavalo das
Guardas Reais e pagaram outras com recursos advindos da Hermandad das cidades, até
reunir ambos os corpos, a partir de 1498375
. Portanto, o conflito que opôs o partido de
Juana ao da sua tia está no epicentro da renovação militar castelhana, sendo visíveis as
primeiras medidas de renovação. Mais tarde foram criados parques de artilharia e foram
ensaiados uniformes e divisas de marcha, entre outros elementos376
. De notar que até
1500 só França e Castela possuíam um exército permanente. Deste modo, conclui-se
que o exército castelhano só se profissionalizou parcialmente no final do século XV e
com as campanhas contra Granada. Até esse momento, permaneceu um exército
tipicamente medieval, sem se modernizar. Ainda entre 1481-88 a guerra segue
directrizes medievais, uma vez que os contingentes são recrutados maioritariamente de
acordo com o sistema das mesnadas nobiliárias e concelhias. A cavalaria alcança 40%
portas de Toro, Zurita afirma que Afonso V não deu batalha, o que contradizia os princípos da dita ordem
(ACA-JZ, livro XIX, cap. XXX).
374 JEFFERSON – The most noble Order..., p. 313.
375 Pelo exposto, conclui-se que a Hermandad teve uma importância crucial para estabelecer um exército
de carácter permanente, que dependia de um poder permanente – o do estado, ainda que houvesse
vestígios de uma concepção senhorial do exército. A sua origem deve ser procurada na relação
estabelecida entre as formas políticas e as formas militares, sendo este fenómeno mais notório em
Espanha do que em outros países. Cfr. MARAVALL, J.A. - «Ejército y estado en el Renacimiento», in
Revista de estúdios políticos, n.ºs 117-118, 1961.
376 LADERO QUESADA, Miguel Ángel - «Guerra y paz: teoría y prática en Europa occidental. 1289-
1480», in Actas da XXXI Semana de Estudios Medievales, Pamplona: Gobierno de Navarra, 2005b, pp.
38-39. Em relação à uniformização do exército, LADERO QUESADA veio rever o autor que citei na nota
anterior (MARAVALL, J.A. - «Ejército y estado en el Renacimiento», 1961), o qual afirmou que embora
se introduza o conceito de uniformização, não é neste primeiro momento que se introduzem os uniformes.
Veja-se ainda LADERO QUESADA, Miguel Ángel – «Recursos militares y guerras de los Reyes
Católicos», in LADERO QUESADA, M.A. (coord.): Los recursos militares de la Edad Media Hispánica,
Madrid, 2001b.
139
dos efectivos e utilizam-se as cavalgadas e algaras377
. As novidades chegam com a
década de noventa. A 2 de Maio de 1493 criaram-se as Guardias Viejas de Castilla,
primeiro corpo verdadeiramente profissional e base para posteriormente organizar a
cavalaria. Dois anos e meio depois, a 5 de Outubro de 1495, determinou-se o
armamento que cada pessoa chamada ao exército devia ter segundo a sua classe e
condição económica378
. As razões para isso podem ser explicadas facilmente. Com a
morte de Enrique III, o foco de tensão passa uma vez mais para o reino de Granada, o
que, pela sua especificiade, explica a necessidade de manutenção, ao nível regional pelo
menos, da cavalaria ligeira como corpo predominante, enquanto em outros cenários
europeus a cavalaria ia perdendo a sua preponderância face à importância crescente da
infantaria.
* * *
No capítulo anterior, numa breve referência, mencionei os preparativos que
Afonso V colocou em marcha para atacar o reino vizinho. É precisamente por aí,
desenvolvendo esse aspecto, que vou começar a minha análise militar.
a) A decisão de entrar em Castela
«E na fym do ano de myl e quatrocentos setenta e quatro, ElRey Dom Anrrique de Castella
faleceo na Vylla de Madryd. […] Fez ElRey Dom Anrryque seu sollene e acordado Testamento,
em que declarou a Pryncesa Dona Joana por sua Fylha, e por Raynha erdeira dos Reynos de
377 Embora sejam ambas ataques de cavalaria, a cavalgada distingue-se da algara ou algarada por ser uma
incursão mais profunda ao território inimigo e por ter duração e envergadura maiores.
378 MAS CHAO, Andrés - «La formación militar del Rey Católico», in Actas de las jornadas nacionales
de historia militar, Sevilla: Cátedra General Castaños, 1993, pp. 379-380. Em Portugal, pelo menos desde
o início do séc. XIV e até ao final da centúria seguinte, é utilizado o sistema dos “aquantiados”, ou seja, a
escolha dos moradores do reino que mantinham casa própria independentemente de serem casados ou
solteiros, ou mesmo clérigos de ordens menores, com excepção dos clérigos beneficiados, de ordens
sacras ou religiosas; os cavaleiros; os escudeiros vassalos do rei; e os escudeiros que, ainda que não
vassalos, fossem homens fidalgos de pai e de mãe, reconhecidos como tal por carta régia. Esta escolha era
feita com base em critérios económicos, configurando seis categorias: «cavallos arnesados»; «cavallos
singelos»; «besta de guarrucha»; «besta de pollee»; «homees de pee lanceiros»; e «scudos». Cfr.
MONTEIRO, João Goveia – A guerra em Portugal nos finais da Idade Média, pp. 43-79.
140
Castella. E a ElRey dom Affonso por Governador delles, pedindo-lhe fynalmente que aceitasse a
dita governança, e casasse com ella, o qual Testamento foy logo trazido a ElRey Dom Afonso,
que estava em Estremoz no mês de Dezembro do dito ano de mil e quatrocentos e setenta e
quatro, sobre ho qual ElRey logo teve grande e jeral conselho, pera que foram ally juntos com
ElRey e com o Pryncepe, todollos grandes e pryncipaaes do Reyno. E o Pryncepe desejando que
ElRey seu Padre com esperança de acrecentar seus Reynos de Portugal, aceitasse, e nom se
escusasse do casamento e empresa de Castela, tinha suas fallas e maneyras com esses
pryncipaaes, a que revellava seu desejo com que os commovia, pera que conselhassem ElRey
seu Padre, e o esforçassem pera ysso […]. E porém o conselho do Arcebispo de Lixboa, que
despois foy Cardeal, e do Duque Marques de Vylla Vyçosa por causas muytas que allegaram, foy
que ElRey em tempos de tanta devisam, e com tamanho pendor contrairo como tynha, nom devia
entrar em Castela nem aceitar a empresa dela, e leixalla aos naturaaes que a quisessem favorecer
e soster. Pello qual ante de se tomar fynal assento, acordou ElRey de envyar prymeiro como
envyou a Castella Lopo d‟Albuquerque Camareyro Moor, que despois foi Conde de Penamacor,
a saber quantors e quaaes eram os cavaleiros da vallia da Raynha Dona Joana, e concertarse com
elles, e tomar delles certydam d‟obediencia, pera em sua segurança se parecesse rezam, ElRey
entrar em Castella. E o dito Lopo d‟Albuquerque, que foy principalmente aderençado a Dom
Afonso Carrilho Arcebispo de Toledo, e ao Marques de Vilhena, e ao Duque do Ifantado, que
entam era Marques de Santilhana, e ao Duque e Duquesa d‟Arevallo. E a outros muytos de sua
parentella e valia. Os quaaes a este tempo eram todos declarados por a dita Raynha Dona Joana,
de que trouxe a ElRey autentycas certydooẽs; e promessas de casando com ella o servirem, e
obedecerem como a propryo Rey de Castella». (CDAV, cap. CLXXIII, pp. 829-830)
«[…] dió osadía al rey don Alonso de Portugal de pensar entrar en Castilla. Para lo qual quiso
aver consejo de los grande de sus reynos, a los quales mostró la fee e sellos que tenía de algunos
de los grande de Castilla, por los quales se le ofresçían en serviçio siete mil lanças de gente
escogida, con grand muchedumbre de çidades e villas e fortalezas; de los quales, algunos que
discretamente lo miravan, le dieron muchas evidentes razones porque no le convenía tomar
empresa tan peligrosa.» (CRC-DV, cap. III, p. 8)
Temos aqui o ponto de partida para a extensão da guerra civil castelhana a toda a
Península Ibérica. Em conjunto com o Conselho, o rei ponderou bem relativamente à
orientação a dar à política externa portuguesa, optando por direccionar a sua atenção
para o reino vizinho, em detrimento das conquistas marroquinas, as quais seguiam
muito favoravelmente a Portugal. A oferta da regência do reino de Castela através do
casamento com a sobrinha Juana foi um assunto tão importante para o futuro do reino
que teve de ter apoiantes, quer no contexto interno, que o príncipe D. João se esforçou
por conseguir, sendo ele próprio o principal apoiante e que Afonso V, quer no contexto
externo, tratando de conseguir através de cartas de garantia que lhe chegaram pela mão
de Lopo de Albuquerque. É notório que houve vozes discordantes379
, mas prevaleceu a
vondade régia. Configurar-se-ia, nos quatro anos seguintes, uma Península Ibérica
379 Ver nota 268.
141
dividida entre um eixo Castelhano-Português e outro Castelhano-Aragonês. Por fim,
existiam ainda conflitos no território navarro. Parte tomava a voz por Aragão, ao passo
que a outra parte contava com o apoio da coroa francesa.
«Dicho que hubo este el Rey de Portugal, outro día se inituló Rey de Castilla y de León.
Asimismo envió por embajador a los Reyes Católicos a Ruy de Sosa, caballero de su casa, en
quien él mucho fiaba, para que les dijese que él no dudaba que Doña Juana, a la cual su hermana
había parido, era hija de Don Enrique, Rey de Castillaa, y que por muerte de su padre, de
derecho, le pertenecía el reino de Castilla y de León. Porque ella sola, como heredera legítima,
sucedía en los bienes de su padre. Y que fuese hija del Rey Don Enrique, había testigos muchos,
y Grandes del reino, y muchas ciudades y pueblos, los cuales antes que el Rey Don Enrique
muriese juraron a Doña Juana, su hija, por Reina, después de su muerte. Y porque él se quería
casar legítimamente con ella y ser heredero legítimo de su reino, les rogaba y requería que le
dejasen libre y desembarazada la posesión de su reino, que injustamente poseían». (VHMC-
LMS, p.41)
«E allí en Valladolid estouieron algunos días, y fizieron grandes fiestas e justas, e rreçibieron
omenages de muchos caualleros y çidades y villas del rreyno que fincauan de rreçebir». (CRC-
AP, cap. XXVII, p. 83)
Desta maneira, preparando-se para a guerra, Afonso V ordenou «repairar tudo o
que for necessário de se fazer e correger nos castellos della [de cada comarca], que elles
de qua loguo leuarão em escrito, e o dito repairo e corregimento delles por aguora Seia
de muros, torres, barreiras, portas, cisternas»380
, excluindo as peças de artilharia, as
quais «El Rej assj repairará do seu almazem segundo a cada hum pertencer e for
compridoiro»381
. Afonso V apercebeu-se da dimensão que o conflito poderia vir a
atingir, concluindo assim que para ter o ofício das armas pronto para qualquer
eventualidade era necessário que «tambem haja e mande uir de Italia hum mestre ou
dous de guarnecer e fazer cubertas que haião tença, sua, e estem em seu almazem para
repairar as ditas cubertas e fazerem de nouo outras se comprir, e emsenarem qua algũs
ao officio»382
. Portugal não tinha capacidade para responder às necessidades da guerra
e, por isso, além dos armeiros especialistas que viriam de Itália, foi igualmente
380 CHAVES, Álvaro Lopes de – Livro de apontamentos (1438-1489) – Códice 443 da Colecção
Pombalina da B.N.L., Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, p. 52.
381 CHAVES – Livro de apontamentos (1438-1489)…, p. 52.
382 CHAVES – Livro de apontamentos (1438-1489)…, p. 55.
142
necessário prover a armaria régia com «arnezes branquos compridos, (…) cubertas, (…)
e couraças de Genoa»383
, bem como duzentas bombardas, «cento que se faz fundamento
que se hauerão mister pera os castellos, e outras cento pera estarem no almazem del
Rej»384
e «tiros quinhentos – a saber – duzentos e sinquoenta pera castellos e duzentos e
sinquenta pera fiquarem no almazem». As armas não foram esquecidas e foram
encomendadas 200 bestas da garrucha e 200 lanças. Havia também falta de munições,
entre as quais se incluía a pólvora, encomendando o monarca 160 quintais e 1.000.000
de virotões. Estas compras levam-nos a crer uma de duas coisas: que o monarca admitia
que o conflito se poderia arrastaria ou que cenário de guerra podia abranger grande parte
do território português, nomeadamente nos tradicionais pontos de penetração no
território português: Minho, Beira e Alentejo, não esquecendo as fronteiras
marítimas385
. A hipótese de se verificarem ambas também não é de descartar.
Compreende-se então que num clima de guerra iminente se tenham aberto as portas do
reino à compra de armas, abolindo os direitos de importação e venda sobre as
mesmas386
.
Para que uma guerra não fosse considerada injusta e não afectasse o prestígio
político de quem a ordenava, era fulcral que quem a declarasse a considerasse justa e
que apenas se avançasse para ela havendo esgotado todos os outros meios, avisando-se
antecipadamente o adversário das intenções de fazer a guerra387
. Na verdade, já St.º
Agostinho e S. Tomás de Aquino haviam preconizado que existiam três fundamentos
para a guerra justa. Sem querer entrar no complicado debate e na importância que os
pensadores medievais atribuíram a esta questão, passo a enunciá-los: a legítima
383 CHAVES – Livro de apontamentos (1438-1489)…, p. 54. Vemos, portanto, a importância do
armamento defensivo, aqui expresso em três categorias: arneses, cobertas e couraças. Sobre este tipo de
armamento, veja-se MONTEIRO – A guerra em Portugal nos finais da Idade Média, pp. 531-538.
384 CHAVES – Livro de apontamentos (1438-1489)…, p. 55.
385 Afonso V mandou também comprar uma nau e dois barinéis para a defesa marítima de Portugal. Cfr.
CHAVES – Livro de apontamentos (1438-1489)…, pp. 59-60.
386 «Pera no Rejno poder hauer armas de uenda pera quando caso sobreuiesse e os que as então de seu
nom tiuesse as poderem achar e hauer que deue quitar todos direitos de entrada e uenda e compra das
ditas armas que de fora uierem, e de seguro real a quaesquer que as assj de fora trouxerem – a saber – que
nellas nem as bestas ou nauio em que uierem lhe nom Seia feito embarguo nem represarea por caso algum
que Seia». (CHAVES – Livro de apontamentos (1438-1489)…, p. 56)
387 GARCÍA FITZ, Francisco – Edad media: guerra e ideologia – justificaciones jurídicas y religiosas,
Madrid: Sílex, 2003, p. 30.
143
autoridade do soberano, pelo qual a guerra é ordenada; a existência de um motivo ou
causa justa que justifique a acção militar; e a intenção correcta. Desta forma, a guerra
com recta intentio e iusta causa, a qual só podia ser declarada pelo príncipe legítimo,
afastava-se de outros tipos de violência, como as lutas de bandos, sedições e outros
conflitos individuais, até porque o objectivo último era a obtenção da paz388
. É muito
provável que o soberano português se tenha baseado no corpus de St.º Agostinho,
vendo-se lesado no que considerava ser seu por direito, legitimando assim, do ponto de
vista jurídico, a invasão que levaria a cabo em Castela. No seguimento destes
acontecimentos, Fernando já havia enviado uma embaixada ao Africano, antes de o
português entrar em Castela e casar com D. Juana389
. A esta missão respondeu Afonso V
com o envio de Rui de Sousa390
aos Reis Católicos, para que tivessem conhecimento das
suas intenções, propondo a mediação neutra por parte do papa.
Sentindo-se, assim, salvaguardado pelas “formalidades legais”, o monarca
português ultima os preparativos para entrar em Castela. Tudo no reino tem de ficar em
ordem e, desse modo, foi determinante a renovação das nomeações dos fronteiros-mores
para o Entre-Douro-e-Minho (marechal Fernando Coutinho), para o Entre-Tejo-e-
Guadiana (D. Garcia de Meneses, bispo de Évora), bem como outros fronteiros que
cobriam o território transmontano, beirão e alentejano, particularmente, para Portalegre
e Alegrete (Pedro Tavares, alcaide das ditas vilas), Castelo Melhor e Valhelhas (Vasco
Fernandes de Gouveia), Mogadouro, Miranda do Corvo, Mirandela, Penarroias, São
João da Pesqueira, Alfândega e Castro Vicente (Pedro Lourenço de Távora), Castelo
Branco (D. Pedro Anes Brandão, alcaide) e Alpalhão e Montalvão (Luís de Sousa, do
Conselho Real e cavaleiro da Ordem de Cristo)391
. D. Afonso V não se esqueceu de
legitimar a acção do príncipe, transferindo o poder da sua real pessoa para o filho,
enquanto estivesse fora392
.
388 GARCÍA FITZ, Francisco – Edad media: guerra e ideologia – justificaciones jurídicas y religiosas,
Madrid: Sílex, 2003, pp. 32-34; LADERO QUESADA, Miguel Ángel - «Guerra y paz: teoría y prática en
Europa occidental. 1289-1480», in Actas da XXXI Semana de Estudios Medievales, Pamplona: Gobierno
de Navarra, 2005b, pp. 55.
389 CRC-DV, cap. IV, pp. 10-14.
390 CDAV, cap. CLXXIV, p. 830.
391 GOMES – D. Afonso V…, p. 204.
392 CPDJ, cap. XLVII, pp. 112-113.
144
b) O recrutamento militar e a formação do exército
«[…]vinda ha mor parte da gente que speraua, ordenou sua partida pera Castella, da qual ha
tardança era sospeitosa, ahos que quomo a seu Rei e senhor ho stauam sperando». (CPDJ, caps.
XLIX e L, pp. 116-117)
«El duque de Arévalo, conde de Béjar, señor de Plasencia, don Alvaro de Stuñiga, […] tenía a
Arévalo e sua tierra y tenía a Burgos e el maestrazgo de Alcántara, e poco menos que toda la
tierra de Estremadura; e com todas sus tierras e señoríos e outras cosas harto bien pacíficas e a su
servicio mandar. E no es duda estar el mayor de los caballeros de Castilla, en lo susodicho e con
sus hijos e parientes. E el arçobispo de Toledo don Alonso Carrillo, que era el mayor prelado de
España, que es la segunda casa de renta de Castilla, tenía muchas tierras, cibdades e villas e
castillos, syuos e de la corona real. E el marqués de Villena, a quien avía quedado en guarda la
señora doña Juana, tenía a sua mandar más villas e castillos que ningún grande de todo el reino,
e no avía otro mayor que él, e se titulava entonces maestre de Santiago e duque de Truxillo. E el
maestre de Calatrava, que era muy gran señor, y el duque de Ureña, su hermano, esso mesmo; e
destos pendía la mayor parte de Castilla. E ovo muchos que se aclararon antes que el rey don
Alonso entrasse; assí como Alonso Carrillo, señor de Maqueda; e Castañeda, señor de Portillejo
e de las Calañas; e Pareja, adelantado de Galicia; e Juan de Ulloa, alcaide de Toro e mariscal de
Zamora; el conde de Valencia e otros muchos, dexando los que estaban de callada con los que le
facían parcialidad al rey don Alonso. E él pensó que con ellos sojuzgaría a Castilla». (MRC-AB,
cap. XVII, pp. 49-50)
D. Afonso V esteve à espera que os homens respondessem ao chamamento,
durante o mês de Maio de 1475, em Arronches, sendo esse o ponto escolhido para a
concentração dos soldados. Um primeiro alardo podia ter sido feito alguns meses antes,
quando o monarca reuniu o seu Conselho em Estremoz. Porém, nesta assembleia,
depois de decidido que se faria a guerra a Castela, Afonso V preocupou-se
principalmente com o provimento das fortalezas e dos homens, a nível de armamento
(defensivo e ofensivo) e de cavalos. Deve ter considerado que fazer um levantamento de
soldados tão precoce seria uma perda de tempo393
. O soberano aproveitou a estadia na
localidade alentejana para ir despachando assuntos de estado, incluindo a confirmação
do neto – o infante Afonso, o qual havia nascido a 18 de Maio, como sucessor legítimo
do trono; e o recebimento dos procuradores das cidades e vilas para que estes
reconhecessem o regimento da regência atribuído ao Príncipe Perfeito.
393 «Que acerqua de se saber a gente que há no Rejno e que anda e como quer que se soberem pode sse
horçar ou saber nom perderia empero que por grande rumor e atroamento que seria de se emquirir e
escreuer, e saber por mandado constrangimento delRey, e assj mesmo por a incertidão que della fiquaria
por os casos de mortes pestelenças, desterros e homisios que cada dia sobreuem, se nom faça nisso
deligencia nem cousa por mandado nem constrangimento del Rej por hagora». (CHAVES – Livro de
apontamentos (1438-1489)…, p. 54)
145
Olhando para um mapa, as forças até estavam equilibradas. Isabel e Fernando
dominavam a meseta setentrional e uma ampla faixa marítima das Astúrias até Navarra,
com excepção de Burgos – que estava dividida entre o duque de Arévalo e o bispo Luís
de Acuña, Peñafiel, Arévalo, Urueña e a comarca do baixo Douro, que era dominada a
partir de Castronuño.
À partida, com um poderoso e experiente exército português e com possantes
apoios do outro lado da fronteira, tudo indicava que Afonso V tinha boas perspectivas
de se impor aos seus inimigos políticos, os quais careciam, pelo menos inicialmente, de
apoios e de dinheiro.
O Africano tinha então três opções de entrada no território inimigo. Ou através
da Galiza394
, ou através da Andaluzia, a qual estava muito dividida, havendo
importantes bastiões que seguiam a casa de Stuñiga, ou então através da Extremadura
espanhola, a qual acabou por ser a opção escolhida, rumando depois para nordeste, para
chegar a Plasencia, contando assim com a segurança do arcebispado de Toledo e dos
apoios de Calatrava.
Todavia, como não era prudente ter tantos homens juntos durante muito tempo,
não só por questões de saúde395
, como também por motivos económicos396
, o rei
atravessou a fronteira, passando pela Codiceira e chegando a Piedrabuena, onde fez
394 A Galiza, tal como as Astúrias e os “territórios bascos”, ou seja, Biscaia e Guipúzcoa, eram locais com
uma acentuada presença de bandos, nos quais nenhum grande senhor se conseguiu impor. Porém,
relativamente às Astúrias e ao País Basco, os Reis Católicos conseguiram apaziguar a situação. Já na
Galiza, Fernando Pareja, adiantado-mor do reino e homem de confiança de Enrique IV, declarou-se a
favor de D. Juana. Além disso, a guerra civil que grassava entre o arcebispo de Santiago – Alfonso de
Fonseca e Diego de Muros, os quais estavam coligados para derrotar Pedro Álvarez de Sotomayor –
conde de Caminha, e Lope Sánchez de Moscoso, produziu os efeitos de Isabel e Fernando permitirem aos
primeiros apresentarem-se como defensores da legalidade e de o segundo, o conde de Caminha, oferecer
entrada a Afonso V pelo Minho. Cfr. SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: La conquista del
trono, pp. 98-99.
395 Veja-se, ainda que de forma breve, as considerações que Luís Miguel Duarte teceu acerca da higiene
nos arraiais medievais. Como conclusões, e tomando como exemplo os números da cronística portuguesa
para o exército luso na batalha de Toro, estimou-se que fossem necessários 67 200 quilos de comida e 168
000 litros de água por dia, apenas para os cavalos de guerra, os quais produziriam 112 000 quilos e litros
de fezes e urina por dia. No que diz respeito aos soldados, avaliou-se em 9 000 a 10 000 quilos de
excrementos e cerca de 30 000 litros de urina. Cfr. DUARTE, Luís Miguel - «1449-1495: O triunfo da
pólvora», p. 377.
396 Não esqueçamos que D. Fernando passou pelas mesmas dificuldades quando cercou Toro pela
primeira vez, em cujo cerco esteve apenas quatro dias, em Julho de 1475.
146
alardo, até porque as forças do duque de Guimarães, do conde de Marialva e de Rui
Pereira atravessaram a Beira e se juntaram ao rei já em Castela. Estes esquadrões
marchavam com as bandeiras desfraldadas, vinham providos de artilharias, as quais não
sabemos exactamente quais e em que quantidade, e tendas, bem ordenados e na
completa perfeição, ou seja, é uma logística sólida e madura, fruto da experiência que
alguns destes homens e respectivos comandos haviam adquirido com a batalha de
Alfarrobeira e com as guerras mouras.
c) Primeira contagem de efectivos
«Iunta a mor parte da gente que elrei dom Afonso hauia de leuar consigo, partio d‟Arronches, e
ha primeira stançia que fez com seu arraial, foi na Codiçeira, já em Castella, e dali foi ter a Pedra
boa, donde despedio ho Prinçipe […]. No qual lugar de Pedra boa fez elRei alardo da gente que
consigo tinha. […] se achou, que hauia em seu arraial cinquo mil, e seis çentos homens de
cauallo, e quatorze mil de pé, afora outra gente de seruiço, pages, e gente auentureira, com ha
qual seguio seu caminho pera Plasença». (CPDJ, caps. XLIX e L, pp. 116-117)
«Para la qual entrada, así él [D. Afonso V] como los que con él venían fizieron muchos gastos e
costas, por se forneçer de arreos de guerra lo mejor que cada vno pudo. Par lo qual vnos
vendieron sus patrimonios, otros enpeñaron sus rentas; de tal manera que todo quanto pudieron
truxieron a Castilla, para servir al rey de Portogal en la prosecución de aquesta requesta. Y ellos
mismos, vistos sus arreos e guarniçiones de guerra, e la multitud de gente de cauallos y de pie
que les pareçía quel rey de Portogal traya en su hueste, ovieron tan grande orgullo, que no podían
creer que el Rey y la Reyna osasen esperar en Castilla; porque no tenían dinero ninguno ni rentas
donde lo aver, que es la principal cosa y más neçesaria para sostener guerra». (CRC-FP, cap.
XXXVII, p. 120)
Tendo reunido vários contingentes de homens, Afonso V deteve-se em
Piedrabuena para fazer o tradicional alardo, operação que consistia em passar revista às
tropas no que diz respeito ao estado anímico e respectivo armamento e em avaliar o
número real de efectivos que compunha o exército. Vejamos o que dizem os cronistas
acerca da capacidade militar portuguesa. Valera avança que D. Afonso V entrou no reino
de Castela com 5 000 lanças e 15 000 peões (CRC-DV, cap. III, p. 9). Já Bernáldez
afirma que o rei português invadiu Castela com 3 500 cavaleiros e muitos peões (MRC-
AB, cap. XVII, p. 48). O Cronicón de Valladolid não faz nenhuma referência a este
acontecimento. No que diz respeito à Crónica Incompleta de los Reyes Católicos é
bastante parcimoniosa, dizendo apenas que Afonso V entrou em Castela, embora dê o
relato de uma lenda, na qual o soberano português se faria passar por el rei
147
encubierto397
. Afonso V viria assim à cabeça de um exército que mais parecia apto para
uma procissão, do que para invadir o reino vizinho, ideia esta que vai ao encontro do
pensamento de Palencia, já que os cavalos «de la brida como de la gineta, veniam tan
luzidos y ricos, que a marauilla se mirauan, y, asimesmo, todos los grandes de su Reyno
y los hidalgos de él venian tan ricos y las tendas y alfaneques de su real tan galanas y
costosas» (pp. 182-183). Curiosamente, quantifica os efectivos militares do duque de
Guimarães, acompanhado pelo conde de Marialva, em 1 500 lanças. Pulgar não refere
números, mas indica todos os nobres que acompanharam Afonso V nesta entrada em
Castela. Assim, a hoste era composta pelo duque de Guimarães, conde de Faro, conde
de Vila Real, condestável, conde de Loulé, conde de Penela, conde de Marialva,
arcebispo de Lisboa, bispo de Coimbra e pelo bispo de Évora (CRC-FP, cap. XXXVII,
p. 120). Sículo menciona somente que entra Afonso V em Castela com todo o seu
exército (p. 44). Palencia, por seu lado, é bastante completo no relato, e refere que ao
contrário do que os castelhanos esperavam, Afonso V reuniu não 3 000 lanças, mas 5
000, deixando 500 nas guarnições e levando consigo 15 000 infantes. Com o exército, a
acreditar nas palavras de Palencia, seguia também artilharia, máquinas de guerra e
madeira para fazer paliçadas (CEIV-AP, II, p. 184). O cronista aragonês coloca a entrada
de Afonso V em Castela no início do mês de Maio, evidenciando que o soberano levaria
consigo 5 000 cavaleiros e 14 000 peões, todos muito bem armados (ACA-JZ, Livro
XIX, cap. XXIII).
397 A profecia do Rey Encubierto é uma profecia que já vem de St.º Isidoro de Sevilha e seria por altura de
finais do séc. XV amplamente conhecida em Castela. Em breves palavras, constava que o “rei encoberto”
viria a Espanha, montando um cavalo de madeira, ou finjindo-se doente, sendo detestado por muitos.
Porém, domaria os fortes e os arrogantes, não havendo forças que igualassem as suas, governaria e tiraria
a Espanha do caos, devolvendo-lhe a antiga glória. Esta lenda teria sido invocada por Afonso V e pelos
seus apoiantes castelhanos com o fim de ganhar partidários para a sua empresa, especialmente entre as
gentes humildes. Isto é uma prova de que a superstição popular teria bastante peso no quotidiano das
populações e posso reforçar esta ideia com os múltiplos exemplos de prodígios que Afonso de Palencia
conta ao longo da sua crónica. Embora outros cronistas não refiram semelhante entrada de Afonso V, a
carta que D. Fernando escreveu a seu pai, Juan II de Aragão, refere que o rei de Portugal entró a X del
presente en estos Reynos por la parte de Albuquerque con fasta tres mil de cauallo, y del Duque de
Guimaraes y del Conde de Marialua por la parte de Coria con seyscientos o setecientos de cauallo...
Tendo desto nueua cierta cómo el Rey es adolecido de dolor de yjada, y de almorranas, y que le trahen
en andas. Lenda semelhante terá Portugal no séc. XVI, após o desastre de D. Sebastião em Alcácer
Quibir, provavelmente importada de Espanha. Cfr. PYOL, Julio – «Prologo», in Crónica Incompleta de
los Reyes Católicos: (1469-1476): según un manuscrito anónimo de la época, Madrid: Academia de la
Historia, 1934, pp. 30-40.
148
Todos os cronistas portugueses afirmam que o Africano entrou em Castela com 5
600 cavaleiros e 14 000 peões (CPDJ, cap. L, p. 117, CDJII, cap. IX, p. 7, CDAV, cap.
CLXXVII, p. 832). Destes, tendo Rui de Pina, como Damião de Góis são bastante
completos ao indicar pormenorizadamente a ordem de marcha do exército. O Visconde
de Santarém, ao contrário de Zurita que afirma que Afonso V entrou em Castela no dia
10 de Maio, situa a entrada do monarca português no dia 25 de Maio. Coloquei estes
dados numa tabela para uma visualização mais fácil.
Efectivos militares portugueses aquando da entrada em Castela
Efectivos Capítulo e páginas
Rui de PINA 5 600 lanças; 14 000 peões CDAV, cap. CLXXVII, p. 832
Damião de GÓIS 5 600 lanças; 14 000 peões CPDJ, cap. L, p. 117
Garcia de RESENDE 5 600 lanças; 14 000 peões CDJII, cap. IX, p. 7
Fernando del
PULGAR
--- ---
Afonso de PALENCIA 5 000 lanças; 15 000 peões CEIV-AP, II, p. 184
Diego de VALERA 5 000 lanças; 15 000 peões CRC-DV, cap. III, p. 9
Andres BERNÁLDEZ 3 500 lanças; muitos peões MRC-AB, cap. XVII, p. 48
Lúcio Marineo
SÍCULO
--- ---
Jerónimo ZURITA 5 000 lanças; 14 000 peões ACA-JZ, Livro XIX, cap. XXIII
Crónica incompleta... 1 500 lanças (refere somente as forças do duque de Guimarães)
pp. 182-183
Cronicón de
Valladolid...
--- ---
Tabela 1 – Efectivos militares portugueses aquando da entrada em Castela
Podemos então concluir que, salvo os números avançados pela Crónica
incompleta, que refere cifras parciais, apenas Bernáldez peca por defeito e que todos os
outros autores nos dão estimativas bastante aproximadas, o que me leva a crer que os
números não andassem longe da realidade. Por outro lado, os militares portugueses mais
abastados viriam equipados a rigor e, a julgar pelas fontes cronísticas, mais facilmente
os imaginaríamos a participar em justas e torneios, do que numa campanha militar de
verdade398
. A reunião desta grande hoste foi tornada possível apenas através da
aprovação, nas cortes de Évora, em Fevereiro de 1475, da concessão de um pedido e
398 Isto não invalida que não se jogasse a sério nos torneios e que não houvesse violência nos mesmos,
fortuita ou deliberada. Cfr. CROUCH, David – Tournament, London: Hambledon and Continuum, 2006,
pp. 98-103.
149
meio em dois anos. Além disso, o financiamento do exército passou também por outras
rendas da Coroa e do comércio ultramarino, como aconteceu, segundo carta de 17 de
Abril do dito ano, com os 28 000 reais anuais do contrato de arrendamento do resgate
concessionado a João Gonçalves Ribeiro, de Lagos, das pescas do cabo Bojador até à
Pedra da Galé, mais outros 10 000 reais que o mesmo armador emprestava «pera esta
yda de Castella que entregou no Algarve ao Recebedor dos emprestimos em o dicto
Regno»399
.
Todavia, há perguntas que ficam sem resposta. Sabemos que o exército ia
munido de um comboio de abastecimento e de artilharias. Com este vago vocábulo
medieval, nada podemos saber acerca do tipo e quantidade das mesmas. Também não
temos qualquer ideia acerca dos homens específicos que irão manobrar estas armas, isto
é, artilheiros, bombardeiros, espingardeiros. Tampouco sabemos o tipo e o calibre de
munições que alimentariam estas armas. Aproveito o ensejo para fazer um pequeno
parêntese relativamente aos espingardeiros, corpo armado que configura, juntamente
com outros sinais, uma prova de modernidade. “Espingardeiro” trata-se de uma
designação genérica para os soldados que combatiam com as primeiras armas de fogo –
espingardas de mecha ou bombardas de mão, por exemplo – sendo, na verdade, peças
de artilharia ligeira e não ainda verdadeiramente armas de fogo individuais400
. O
primeiro registo acerca deste corpo diz respeito ao ataque falhado a Tânger, em 1437. A
partir daí, vai apostar-se nos espingardeiros. Para quê? Para provocar à cavalaria o
efeito que esta causava nos outros, ou seja, o desorganizar o inimigo a tal ponto que ele
se torne ineficaz. A evolução do espingardeiro passa primeiro pela criação de um corpo
próprio – os espingardeiros, os quais estão submetidos à autoridade do anadel-mor dos
espingardeiros. Foram, deste modo, tão importantes – quer para os castelhanos, quer
para os portugueses, na campanha em questão e, em particular, na batalha de Toro, que
D. João II, logo a partir do início do seu reinado, foi outorgando cartas de espingardeiro,
totalizando cerca de 400 destas autorizações em 1490, sendo este recrutamento
intencional e destinado a criar um corpo sólido401
.
399 GOMES – D. Afonso V…, p. 204.
400 Cfr. MATOS, Gastão Melo de - «Espingardeiros», in Dicionário de História de Portugal, vol. II, pp.
450-451.
401 DUARTE - «1449-1495: O triunfo da pólvora», pp. 371-372.
150
d) O exército em marcha: estrutura e comandos
«E a Ordenança da Oste e batalhas d‟ElRey hiam nesta maneira, diante hia logo Diogo de
Bayrros Adayl Moor com certos ginetes por decobridores. E após elle o Marychal Dom
Fernando Coutynho, com guias e outra jente ordenada, por apousentador e assentador do arrayal.
E logo Vasco Martyns de Sousa Chichorro, Capitam dos genetes d‟ElRey em sua batalha. Aquem
logo seguia o Conde de Penamacor Capitam da avamguarda d‟ElRey, após o qual seguia logo a
carryagem. E a batalha Real com suas Reaaes bandeiras tendidas hiam no meo, na qual ElRey o
mais do tempo hia. E porém aas vezes com certos genetes andava provendo de batalha em
batalha […]. E na reguarda hia o Duque por Condestabre; porque em caso que Dom Joam seu
Irmaaõ tevesse o nome e servise o ofycio nas Vyllas e causas judiciaaes, porém sempre no
campo a priminencia do offycio ficou ao Duque. E aallem destas batalhas eram outras ordenadas
aas allas da batalha d‟ElRey, em que huma de cada parte, Dom Affonso Conde de Faram, e Dom
Anrrique de Meneses Conde de Loulee, e Dom Afonso de Vasconcellos Conde de Penella, e o
Conde de Monsanto, e outros». (CDAV, cap. XLXXVII, p. 832)
«El rey de Portogal, visto lo que el marqués de Villena le escruió, luego entró en Castilla con
aquella gente que avemos dicho. E venían con él de su reyno el duque de Guimaranes, fijo
mayor del duque de Bergança, y el condestable de Portogal, y el conde de Leule, y el conde de
Pinela, y el conde de Marialua, e el conde de Penamacor, e el arzobispo [de Lisboa, y el obispo
de Coimbra, y el obispo de] Évora, e Ruy Pereyra, e el mariscal de Portogal, e don Áluaro, fijo
del duque de Bergança, e todos los más caualleros y gente de guerra que avía en su reyno».
(CRC-FP, cap. XXXVII, p. 120)
Pulgar consegue retratar com bastante precisão a composição da hoste
portuguesa e depois, através do recurso à cronística nacional, ficamos a perceber que na
frente ia o adail-mor, com alguns ginetes como batedores, logo seguido do marechal D.
Fernando Coutinho, cuja função era arranjar o local mais apropriado para montar o
arraial. Atrás destes homens seguia o capitão dos ginetes do rei, Vasco Martins de Sousa
Chichorro, logo seguido do conde de Penamacor, Lopo de Albuquerque, que comandava
a vanguarda real. A carriagem vinha protegida entre a vanguarda e a batalha real. No
centro do exército ia o monarca, que ora ocupava a sua posição, ora acompanhado de
alguns ginetes verificava pessoalmente a boa ordem das tropas. No comando da
retaguarda seguia o duque de Bragança, Fernando Coutinho, por condestável (embora
esse cargo apenas lhe pertencesse no campo de batalha, uma vez que o verdadeiro titular
era o seu irmão mais novo D. João, futuro marquês de Montemor). No que diz respeito
às alas da batalha real, os comandos pertenciam a D. Afonso, conde de Faro; D.
Henrique de Meneses, conde de Loulé; a D. Afonso de Vasconcelos, conde de Penela; e
ao conde de Monsanto. Coloquei estes dados num esquema para uma melhor
visualização.
151
Figura 3 – Dispositivo táctico português em marcha. Nota: o esquema não está à escala
e) O percurso
«Moveo ElRey logo com a Raynha em arrayal camino d‟Arevalo, em que foram sempre de noite
e de dia com grandes resguardos de segurança, especialmente atravesando per terra d‟Alva, onde com
muita jente d‟armas era o Duque, que por obrygaçam de sangue que antresy tinham, sempre seguio a
parte d‟ElRey Dom Fernando. Em Arevalo esteveram poucos dias, donde ElRey se foy aa cidade de
Touro, per concerto que tinha de lhe dar como deu Joham d‟Ulhoa, dentro da qual ElRey com toda sua
jente se allojou». (CDAV, cap. CLXXIX, pp. 833-834)
Vanguarda
Batalha Real
R
A A
Carriagem
Ginetes
Aposentador do
arraial
Batedores
152
«E con su exérçito [Afonso V] pasó a un lugar llamado Baños, que es a tres leguas de Bejar,
donde estovo quatro días, dexando su exército çerca del río llamado Cuerpo de Hombre, que passa çerca
de Plasencia. E como la trayción de Salamanca no sucediese como el Rey on Alonso pensaba, a la villa de
Arévalo determinó de yr». (CRC-DV, cap. VIII, p. 21)
«Partió de Avila la Señora Reyna Doña Isabel para venir á la guerra [28/Jun/1475]. Vino á
Madrigal jueves siguiente [29/Jun]. E á Medina domingo siguiente ij de julio. Partió el Rey nuestro Sr. É
fué á sentar real cerca de Simancas, miércoles cerca de puesto el sol 5 de jullio. Partió (la Señora Reyna
Doña Isabel de Medina) sábado á viij de jullio, é vino á sentar real cerca de S. Miguel del Pino en monte
de Labadesa, é fuese á dormir esa noche á Tordesillas. Partió (el Rey nuestro Sr.) del real de Simancas,
domingo viiij de jullio é fue á sentar real al dicho monte con el real de la dicha Señora Reyna, que ende
estaba, do vino la Señora Reyna sobredicha ese mesmo dia domingo de Tordesillas despues de comer.
Partió el Rey nuestro Señor del real cerca de Tordesillas, é fue á sentar real de la otra parte de Herreros,
domingo xvj de jullio: tomó el dicho dia á Herreros. Partió el real de Herreros, martes xviij de jullio, é fue
á sentarse entre Cubillas é Castonuño. Otro dia miércoles siguiente partió dende é fue á sentar real de la
otra parte de Castronuño. Partió otro dia jueves dende el Rey para Toro y estovo todo el dia en el campo
cerca de Toro casi media legua, esperando si saldría el Rey de Portugal á dar batalla; é quando no salió,
fue á sentar real ende á par del rio en una ribera, que se llama Muros. Estovo ende fasta el lúnes siguiente,
que fueron xxiiij de jullio». (CV, pp. 98-100)
«D. Fernando y D.ª Isabel se detuvieron mucho en Valladolid, […] pasando el tiempo inútil e
imprudentemente, y muy en daño suyo si el enemigo a su vez y con igual desidia no hubiese consumido
muchos días en infructuosa consultas. […] Cuando D. Fernando supo que el enemigo había entrado por
fin en Plasencia con grandes fuerzas, mientras D.ª Isabel visitaba las provincias de Castilla la Nueva,
marchó el 28 de mayo a Salamanca. […] Desde Salamanca pasó a Zamora […]. Para madurar sus planes
marchó a Valladolid, adonde también se dirigió la Reina, de regresso de Avila, a fin de tratar juntos de
reunir ejército contra el enemigo». (CEIV-AP, II, livro II, cap. VIII, pp. 195-196)
Entrando em Castela a 25 de Maio, como se viu, Afonso V celebrou o seu
casamento a 29 ou 30 de Maio, em Plasencia, embora este nunca tenha sido consumado
por falta da devida dispensa papal, necessária devido ao grau de consaguinidade que
unia os nubentes402
. Deve ter sido uma marcha com um ritmo exigente, não obstante os
portugueses envergarem os seus melhores trajes, de tal forma que Rui de Pina afirma
que foram sempre de noite e de dia. Desta cidade, o soberano partiu acompanhado de D.
Juana para Toro, atravessando as terras do duque de Alba, a quem Palencia não deixa de
classificar como tirânico e detentor de uma ambição excessiva, podendo inclinar-se para
um ou para outro partido (cap. VIII). O destino não foi casual. Como nos diz Diego de
Valera, Salamanca não se passou para o partido de D. Afonso V, como este esperava, o
que pode ser interpretado como um primeiro sinal de alarme para o rei português.
Entretanto, João de Ulloa havia oferecido a cidade de Toro a D. Afonso V. O soberano
402 Sobre este assunto não pode deixar de ser consultada a obra de AZCONA, Tarsicio de – Juana de
Castilla mal llamada La Beltraneja, 1462-1530, Madrid: La esfera de los libros, 2007.
153
cercou assim a fortaleza, que se revelou adversa, pelo comando da mulher de Rodrigo
de Ulloa, em cujo nome capitaneava a praça, mas acabou por ter de ceder. São notícias
que Fernando recebe com alguma apreensão, já que o bastião de Toro era estratégico e
relativamente perto da fronteira portuguesa para servir de posto avançado. A hoste
portuguesa havia percorrido já cerca de 400 quilómetros desde que havia atravessado a
fronteira, no Alentejo, até Toro, no Douro. Se a área em questão e as movimentações
dos homens forem cuidadosamente analisadas, percebemos que os exércitos andaram às
voltas na mesma região, gastando tempo e preciosos recursos e sem obter resultados
práticos.
154
Mapa 2 – Movimentações bélicas portuguesas na guerra da sucessão castelhana
(1475-1479). Embora o mapa não tenha orientação e apresente os percursos sempre em
linha recta, serve para dar uma ideia do percurso seguido pelos portugueses.
Fonte: João José Alves Dias (coord.), Portugal do Renascimento à crise dinástica, Presença, 1998, p. 692.
As crónicas deixam também perceber a preocupação dos monarcas castelhanos
em, senão antecipar a movimentação de tropas portuguesas403
, pelo menos em seguir de
403 Embora fosse comum os vários partidos terem espias e informadores infiltrados no seio dos inimigos,
nem sempre era possível prever o que o adversário ia fazer. Esta citação de Valera demonstra-o bem: «En
este tienpo todos los del rey don Fernando estavan muy dudosos para donde el rey de Portugal desde
Arévalo yría, si por ventura yría a çercar el rey don Fernando, el qual no estaba tan aparejado como
cumplía, o si yría a tomar la villa de Medina del Campo, o por fazer daño en la gente del rey don
Fernando, que en los lugares çercanos a Valladolid estaba aposentada» (CRC-DV, cap. IX, p. 25). Veja-se
155
perto os seus movimentos. Recorriam para isso a batedores, como seria normal. Em
função do que Isabel e Fernando consideram prioritário, tanto podemos observar
Fernando a trabalhar de perto com Isabel, como cada um numa cidade distinta provendo
aos assuntos de guerra. Embora muitas vezes os cronistas tenham desvalorizado o
protagonismo de Isabel, certo é que a rainha teve sempre um papel preponderante
durante a guerra da sucessão, chegando a mostrar-se desapontada ou mesmo a
repreender a conduta de Fernando, quando a considerou pouco esforçada e imprópria404
.
Isto aconteceu aquando do levantamento do cerco de Toro por parte do marido,
chegando mesmo a convocar novamente os soldados para os obrigar a voltar ao cerco,
apontamento que extraímos ao ler a Crónica Incompleta. Isabel destacou-se igualmente
não só a reunir tropas para o cerco de Cantalapiedra, em Abril de 1476, como também a
organizar a tomada de Toro, a qual foi rechaçada pelos habitantes da cidade, entretanto
exortados por Maria Sarmiento, dando assim lugar ao cerco. Este produziria resultados
frutíferos no Outono do mesmo ano.
Deste modo, com Toro sitiado pelo adversário, D. Fernando chamará uma
grande hoste em termos numéricos, mas os seus soldados são demasiado heterogéneos
para manter a coesão. Refiro-me à origem étnico-cultural das tropas; ao seu nível de
armamento; ao seu grau de apoio aos Reis Católicos; e aos seus interesses particulares.
Porém, convocar um contingente tão significativo apenas foi possível porque Isabel
um apontamento semelhante no cronista Afonso de Palencia: «Los de D. Fernando, conociendo por los
exploradores la marcha de los portugueses desde Arévalo, se detenían inciertos del punto sobre que iria
aquél turbión a descragar su furia: si el portugués habría resuelto sitiar a D. Fernando a la sazón
desprevenido para el combate: si se pronodria ocupar a Medina del Campo desguarnecida, o acometer a
los puestos enemigos establecidos cerca de la ciudad en puntos estratégicos». (CEIV-AP, II, livro III, cap.
I, p. 204)
404 Diz Valera: «Estas cosas así pasadas, al rey don Fernando fué neçario volver a la villa de Tordesillas,
donde la reyna su muger estava, la cual ovo grand sentimiento en saber las formas que con el rey se avían
tenido estando sobre la çidade de Toro, que no pudo aver paciencia e salió a reçebir en la venida, donde
muchas cosas dixo contra los que al rey tanto tienpo le avían fecho de balde despender». Cfr. CRC-DV,
cap, X, p. 36. Outro exemplo pode ler-se em Damião de Góis: «Ha rainha donna Isabel no tempo que elrei
dom Afonso mandou desafiar elrei dom Fernando perà batalha campal, era ida de Tordesilhas a Valledolid
e negoçios que lhe muito comprião, onde soube quomo elrei seu marido nam quisera sair aho desafio que
lhe elrei dom Afonso mandara, pelo que mouida de seu baroil, e animoso coração, teue isto por grande
afronta, por saber que fora mais por couardia dos que stauam com elRei, que falta que teuessem de gente,
porque elrei há tinha muita, e muĩ boa consigo. E reçeandosse que hũa tal afronta poderia ser muito
perjudiçial a seus negoçios, screueo loguo a elRei cartas em que assi a elle, quomo ahos do seu conselho,
daua a entender quam mal o fezeram, e ho desgosto que disso tinha, pedindolhe que logo se fezesse
prestes pera ir buscar el rei dom Afonso a Touro, e que pera ho mehor fazer lhe mandaria há mais gente
que podesse ajuntar». (CPDJ, cap. LXXIII, pp. 153-154)
156
conseguiu assegurar o tesouro de Segóvia, mantido por Andrés de Cabrera e sua mulher,
Beatriz de Bobadilla, contra a entrega da sua filha como refém405
. Mesmo assim o
dinheiro era escasso. Palencia afirma que, em faltando o estipêndio à cavalaria, «para
pagar algo a los soldados había sido preciso reducir a pequeñisimos fragmentos los
vasos de plata traídos del tesoro de Segovia, y distribuirselos individualmente»406
.
Fernando fez então um alardo muito importante. Neste reuniu entre os 40 000 e
os 42 000 soldados a julgar pelas penas de Góis, Valera, Palencia, Bernáldez e Zurita.
Pulgar, por seu lado, situa os efectivos na ordem dos 45 000. Não obstante a
proeminência e a grandiosidade do alardo, números desta grandeza podem sugerir
algum exagero, até porque seriam o dobro das forças portuguesas. Já a Crónica
incompleta, que detalha minuciosamente as forças de D. Fernando, totaliza 17 500
lanças. No partido adversário, são menos os cronistas que estimam os soldados, mas o
número parece corresponder nas fontes a cerca de 25 000 homens. Havendo os homens
de armas comparecido, hesitavam os Grandes em partir, uma vez que quanto mais
tempo esperassem, mais soldo receberiam, podendo ainda mudar de partido de forma a
aumentar os seus estados; mas também se esperavam novos apoios, nomeadamente o
marquês de Santillana, D. Diego Hurtado de Mendoza, o qual traria mais 300 ginetes e
200 homens de armas, assim como os reforços da cavalaria andaluza, comandados por
Pedro Enríquez, tio do rei, com 200 ginetes. Assim que o primeiro chegou, já não
puderam os Grandes impedir a marcha do exército, o qual demorou dois meses a
formar-se407
. Além disto, Valera assinalou que seguimento destes acontecimentos,
reuniram-se os nobres, em segredo e na ausência do rei, para decidir o que aconselhar a
D. Fernando. O local escolhido foi o mosteiro de St.º Domingo (Palencia fala numa
ermida), do outro lado da ponte sobre o Douro, próximo de Tordesilhas. Integraram este
conselho o cardeal, Pedro González de Mendoza, o marquês de Santillana, seu irmão, o
duque de Alba de Tormes, o almirante Alonso Enríquez, o conde de Haro, Pedro de
Velasco, o duque de Albuquerque, Beltrán de la Cueva, o conde de Benavente, Rodrigo
Pimentel, o conde da Coruña, Lorenzo de Figueroa, o conde de Treviño, Pedro
405 CEIV-AP, II, libro II, cap. X, p. 199.
406 CEIV-AP, II, libro III, cap. II, p. 206.
407 CRC-FP, cap. XLII, p. 132.
157
Manrique e o conde de Salinas, Diego Sarmiento408
. Na verdade, estes Grandes tinham
medo de perder muito do seu poder através da política centralizadora dos jovens reis409
.
Fosse como fosse, avançou a hoste de Fernando para cercar o inimigo, enviando
um destacamento de vinte batedores para que observassem os portugueses. A primeira
paragem que fez, em caminho, foi em Herreros, para tomar as azenhas. Valera pinta-nos
um quadro de violência, uma vez que «los vizcaynos, com grand voluntad de servir al
rey, passaron el rio a grand peligro e començaron a conbatir la fortaleza, e los honbres
de armas com ellos; de los quales tanta sangre se derramo que el rio yva della teñido»
(p. 28). Depois de tomadas as azenhas, pensou fazer-se o mesmo a Cubillas, mas os
Grandes opuseram-se «alegando que aquel retraso seria muy peligroso para la campaña,
por más que, en opinión de algunos, conforme com los dictados de la ciencia militar era
probable que aquella corta demora ahorrase grandes penalidades a ejército tan
numeroso» (CEIV-AP, II, livro III, cap. III, p. 208). Eis então que D. Fernando chegou
às portas de Toro, desejando resolver a querela com D. Afonso V, numa contenda em
campo aberto.
Seguindo os procedimentos militares normais, decidida a batalha e colocada a
hoste em campo, os chefes tinham de atender a algumas formalidades, como o facto de
trocar mensagens de protesto e desafio com os adversários410
. Já em Maio de 1475
haviam sido escritas cartas entre ambos os reis, para aferir se era possível resolver a
contenda de forma pacífica. Foi precisamente o que sucedeu: encontrando-se Fernando
a sitiar a praça de Toro, foram trocadas entre ambos os monarcas sete cartas de
408 Cfr. CRC-DV, cap. IX, p. 27 e CEIV-AP, II, livro III, cap. III, pp. 206-207.
409 A razão para estra grande desconfiança dos Grandes tem origem na apropriação indevida de
património real por parte de muitos nobres. Refere Palencia que um homem honrado que dormia no
mosteiro, despertou e ouviu a conversa dos Grandes, tendo estes chegado à conclusão que «debía
procurarse a tiempo que don Fernando no destruyse al adversário en una batalla com aquel inmenso
aparato de fuerzas, y buscarse un médio para que los Grandes pudieran oportunamente apretar o aflajar
las riendas en la marcha de los sucesos». Porém, para que D. Fernando não percebesse o conluio, afirma
este cronista que mesmo já sem estipêndio, deviam os nobres ir às portas do inimigo. Cfr. CEIV-AP, II,
livro III, cap. II, p. 207.
410 Os «profissionais» que se ocupavam destas missões podiam ser: o passavante (o que está a aprender o
ofício), o arauto e, no topo da carreira, o rei de armas. Para exercer esta função eram necessários pré-
requisitos físicos (robustez) e intelectuais (sagacidade, capacidade de observação, inteligência).
Naturalmente que esses atributos eram bastante úteis na observação de um acampamento inimigo, por
exemplo. Cfr. MONTEIRO, João Gouveia – A guerra em Portugal nos finais da Idade Média, Lisboa:
Editorial notícias, 1998, pp. 274-277.
158
desafio411
, sendo três de Afonso V e quatro de Fernando, redigidas entre 21 de Julho e 4
de Agosto de 1475. O marido de Isabel enviou o poeta Goméz Manrique, enquanto o
soberano português delegou essa tarefa em Alonso de Herrera, castelhano que já tinha
servido Enrique IV.
Estas cartas tinham como objectivo evitar a guerra, colocando-se na mesma
linha das duas embaixadas supracitadas. Todavia, embora as missivas abrissem caminho
para um duelo412
, o qual evitaria todos os malefícios da guerra, nomeadamente para as
populações, nunca se chegou verdadeiramente a vias de facto. Vejamos os aspectos mais
importantes destas cartas.
A primeira carta, datada de 21 de Julho de 1475, assume-se como continuação
das embaixadas anteriores. Nela Fernando mostrou perplexidade por Afonso V lhe
chamar usurpador, pois afirma que não houve qualquer contestação, nem desobediência
desde que ele e Isabel foram coroados. Claro que sabemos que houve alguma resistência
na Galiza, Andaluzia, entre outras províncias, mas também por parte de alguns
nobres413
, como já tive oportunidade de explicar. Eram tempos conturbados, em que os
privilegiados tentavam arrecadar para si mais algumas vilas e terras e em que cidades
queriam fugir do jugo senhorial, pedindo para esse efeito protecção aos Reis Católicos.
De outro modo, e após julgar as preocupações de Afonso V em assegurar apoios do
outro lado da fronteira, estou certo que o Africano não teria tido a veleidade de invadir
411 Estas cartas de desafio já foram estudadas por José Angel Sesma, em SESMA MUÑOZ, José Ángel -
«Carteles de desafio cruzados entre Alfonso V de Portugal y Fernando V de Castilla (1475)», in Revista
Portuguesa de História, XIV (1976), pp. 277-295.
412 É por volta desta altura que se codificaram os procedimentos a ter em duelo, em Itália. Veja-se
HUGHES, Stephen C. - «Soldiers and Gentlemen: The Rise of the Duel in Renaissance Italy», in Journal
of Medieval Military History, vol. 5, 2007, p. 106: «the first full-fledged detailed codification of the
dueling ritual is generally attributed to Paride del Pozzo, or Paris de Puteo, a distinguished jurist and
humanist working at the Aragonese court in Naples. Originally published around 1471, his Libellus de re
militari would eventually go through numerous editions in both the original Latin and Italian and would
become one of the bedrock references for other early dueling codes, which were primarily penned by
other jurists». Não seria de estranhar, portanto, que pelo menos Fernando, dada a sua ligação a Itália,
tivesse conhecimento deste código.
413 Entre os numerosos exemplos que seriam passíveis de escolher das fontes deste trabalho, destaco um
de Alonso de Palencia, o qual retrata a volatilidade dos apoios de cada um dos partidos, pelo menos num
primeiro momento: «Quedaban algunos de los principals de la ciudad, muy adictos al duque de Alba D.
Garcia Alvarez de Toledo, de quienes, asi como de éste, no se dudaba que secundarían a D. Fernando, y
aunque en su conducta el Duque se mostraba tiránico y su excesiva ambición le llevaba a inclinarse ya a
uno e a otro partido», CEIV-AP, II, p. 195.
159
Castela, mesmo sentindo-se na obrigação de lutar pelo que considerava seu por direito,
caso não se sentisse apoiado por grande parte da nobreza castelhana. A isto responde o
auto-intitulado rei de Castela, D. Afonso V, dizendo que era marido de D. Juana, e que
esse facto assim como o facto de a sobrinha-esposa ser filha legítima de Enrique IV e ter
sido jurada rainha à morte do pai, pelos prelados, Grandes e procuradores das cidades,
lhe conferia a legitimidade para reinar em Castela. O príncipe de Aragão retorquiu,
contrapondo que tinha sido Isabel quem tinha sido jurada princesa herdeira e que se
assistia à deserção de muitos nobres partidários para o bando dos Reis Católicos. A troca
de cartas prosseguiu com a esgrima de argumentos jurídicos que defendiam a
legitimidade de uma e outra rainha – terminologia que aparece nas cartas, e na
possibilidade de haver um duelo. Os efeitos práticos desta correspondência foram nulos:
não houve nenhum duelo, nem se avançou para a batalha campal, a qual Fernando
procurava com tanta determinação.
Se os portugueses começavam a deparar com as primeiras escaramuças e
operações de assédio, Isabel e Fernando não tinham a vida em nada facilitada pois sem
dinheiro e com muito poucos apoios, debatiam-se com sete frentes de guerra activas.
Das frentes de guerra, a região Zamorana, no Douro, seguia sendo a zona mais atingida
pela guerra e para isso se reforçaram as guarnições de Tordesilhas, Madrigal, Alaejos,
Sieteiglesias e Cantalapiedra, para impedir o avanço territorial de Afonso V414
. Mesmo
assim, os Católicos tinham ainda de atender a situações complicadas em Burgos, na
Andaluzia ocidental, na Extremadura, no mestrado de Calatrava, no marquesado de
Villena e na Galiza, sem falar na guerra marítima que se começou a verificar
principalmente a partir dos armadores sevilhanos, os quais estenderam os conflitos
armados até à Guiné, na procura de escravos e ouro415
.
Deste modo, os conflitos armados que se verificam nesta altura contra os
portugueses não são os primeiros. Ainda em vida do infante Alfonso, até 1468, houve
dois a destacar. O cerco de Simancas pelas tropas reais e a segunda batalha de Olmedo
em 1467, na qual o exército de Enrique IV saiu vencedor416
. Os próprios cronistas
414 CEIV-AP, II, livro III, cap. I, p. 201.
415 TORRE; SUÁREZ FERNÁNDEZ - Documentos referentes a las relaciones con Portugal durante el
reinado de los Reyes Catolicos, vol. I, doc. 27, pp. 87-89.
416 CEIV-DEC, cap. LXXX e CEIV-LGC, cap. LXXXIX.
160
reprovam os grandes gastos necessários para pagar o soldo. Portanto, o ponto de partida
para a contenda que se verificará durante quatro anos entre os dois reinos ibéricos, como
já tive oportunidade de salientar, é um clima de agitação social, política e de
levantamentos armados por todo o reino de Castela, sendo aproveitado para resolver
querelas e interesses particulares e lutas pelo poder de âmbito local, embora
habitualmente não se produzam grandes enfrentamentos armados.
Afirma Margarida Garcez que «D. Afonso V não se enganou, nem no efectivo
poder militar e económico das famílias de origem portuguesa que temos vindo a referir
[Pacheco, Pimentel, Cunha], nem na sua adesão ao seu desejo de juntar as coroas de
Portugal e de Castela, quaisquer que fossem as razões que as moviam»417
. Creio que
esta afirmação é demasiado imprecisa. No contexto da rivalidade que opunha senhores
ao monarca, que se mantém latente durante a centúria em análise e da qual resulta uma
instabilidade social que culminará numa guerra civil, penso ser seguro sustentar que a
nobreza procurava um candidato que pudesse manipular, tal como já tinha feito com o
infante Afonso, tentando agora o mesmo com o rei português, uma vez que tais
caminhos tinham sido impossíveis de trilhar com Isabel e Fernando, devido a estes
monarcas evidenciarem um forte sentido de centralização régia. Quanto muito, Afonso
V poderá ter suposto que conseguiria facilmente estabelecer postos avançados na
comarca zamorana, uma vez que essa zona vinha demonstrando uma grande
instabilidade política devido aos movimentos de senhorialização e às lutas que ocorriam
na Estremadura espanhola para prover os mestrados de Alcântara e de Santiago. Como
demonstrou José Luis Garcia, estes confrontos estiveram particularmente activos desde
1464, havendo episódios de cercos, destruição de fortalezas e mesmo batalhas em
campo aberto, como a de Cerro de las Vigas418
. Outra razão à qual já aludi rapidamente
mas que carece de maior fundamento foi o facto de esta nobreza ser relativamente nova
no território em questão, fosse por via de doação, fosse por troca ou compra de
senhorios, para o que contribuiu a morte de D. Enrique, infante de Aragão e mestre de
Santiago. Este senhor detinha um extenssíssimo património na região, composto por
417 VENTURA, Margarida Garcez - «A nobreza lusa refugiada em Cáceres, Zamora, Toro: opções
senhorialistas nas vésperas de um estado centralizado», separata do Svmmvs philologvs necnon verborvm
imperator, Lisboa: s.n., 2004, p. 250.
418 PINO GARCIA, José Luis del - «Extremadura en visperas de la invasión portuguesa (1465-1475)», in
Separata da Revista da Faculdade de Letras - História, III série, vol. III, Porto, 1986, pp. 385-400.
161
Albuquerque, La Codosera, Azagala, Alconchel, Medellín, Alconétar, Las Garrovillas,
Granadilla e Galisteo, o qual foi desmembrado, entre 1429 e 1445. Foi este o território
que acabou por ser distribuído pelos nobres citados. Por isso, havia um receio muito
grande que, em se formando um bloco castelhano-aragonês, Juan II de Aragão
reivindicasse os seus estados bem no interior de Castela e isso seria mais uma razão
para que esta nobreza apoiasse Afonso V e o bloco luso-castelhano.
O Rei Católico foi um homem que teve sempre contacto de perto com a guerra e
ao longo do seu reinado as armas nunca foram depostas. Começou com dez anos a
sentir a realidade bélica, quando acompanhou a mãe à tumultuosa Catalunha. Com treze
anos participou na batalha de Calaf, aos quatorze encontrava-se ao lado do pai, Juan II
de Aragão, na campanha de Ampurdán e aos quinze participou na batalha de
Viladelmar419
. Estes conflitos armados desenvolveram-se dentro dos cânones que
marcavam a luta entre a nobreza e a monarquia.
As primeiras actuações de Fernando na guerra da sucessão são marcadas pela
sua inexperiência no comando, embora fossem audazes, procuravam uma decisão rápida
para os conflitos militares, fruto das suas vivências da guerra civil da Catalunha. Com
efeito, duas linhas de acção estão presentes nesta primeira fase da guerra: uma guerra de
desgaste (sublevação de vilas como Alcaraz; razzias e devastação de terras inimigas),
que corresponde a uma tipologia claramente medieval e, por outro lado, a procura por
parte de D. Fernando de uma decisão rápida e audaz do problema, à base de um
combate decisivo. Só a inexperiência explica que Fernando acreditasse que podia vencer
o experimentado exército português, não muito numeroso mas disciplinado e dotado de
artilharia, apenas com a sua superioridade numérica do seu exército indisciplinado, sem
artilharia nem provisões.
Aprendida a lição, ele começará a dar mostras de prudência. A 21 de Julho de
1475 contratou um italiano, Domingo Zacarias, como Mestre-mor de Artilharia, cargo
que aparece pela primeira vez. Dará cada vez mais importância à artilharia. Em 1479
tinha quatro peças de artilharia, mas em 1485 já tinha noventa e uma. No início da
guerra ainda não está plenamente formado o pensamento militar de Fernando,
cometendo erros de estratégia operativa, procurando uma acção directa e resolutiva sem
419 MAS CHAO, Andrés - «La formación militar del Rey Católico», pp. 377-378.
162
meios para tal. Porém, podemos já notar uma mudança de atitude desde que cercou Toro
pela primeira vez, até ao cerco de Burgos, pois compreendeu que o dinheiro e a
disciplina constituem o essencial da guerra, a qual daqui em diante seria confiada a
unidades de cavalaria e artilharia, prescindindo da infantaria nas acções decisivas420
.
Não deixa de ser algo estranho esta escolha de Fernando, uma vez que com a Guerra
dos Cem Anos começam a tirar-se ilações e se vai concluindo que a infantaria começa a
ser preponderante face à cavalaria pesada. É mais fácil de reunir e, sobretudo, é mais
barato pagar o soldo a um infante do que a um cavaleiro. Estes corpos podem ser ou não
apoiados por cavalaria desmontada e por arqueiros. Esta linha pensamento está
plenamente consolidada no início do século XVI.
O resultado do primeiro cerco de Toro era expectável. Os peões, nomeadamente
os biscainhos, agitavam-se, incomodados com a espera da hoste às portas da cidade,
sem nada fazer. Os conselhos em que o rei se encerrava com os Grandes transcendiam-
nos. Um desses conselhos durou tanto tempo que estes biscainhos julgaram que os
nobres haviam prendido o rei e «fasta diez mill vinieron dando muy grandes vozes
diçiendo que todos los grandes fuesen muertos, e sacasen al rey de su poder; lo qual
como el rey sintiese salió a muy grand priesa e aplaco la yra de los viscaynos» (CRC-
DV, cap. IX, p. 30). Desta forma, mesmo que o cronista pretendesse, quanto muito,
evidenciar a bravura e criticar a ociosidade do exército ante as muralhas da cidade, é
possível ler nas entrelinhas as tensões existentes entre os próprios castelhanos, naturais
num corpo tão heterogéneo.
Encerrado em Toro, Afonso V não deu mostras de querer lutar contra um
exército bastante mais numeroso, sendo criticado por alguns cronistas que têm
conhecimento que o monarca português ostenta a divisa da Jarreteira421
.
f) Vitórias repartidas: Zamora e Baltanás para D. Afonso V e os mestrados de
Calatrava e o marquesado de Villena para D. Fernando e D. Isabel
«E neste tempo Joam de Porras Cavalleiro principal de Çamora, andava em trato de fazer vir a
dyta Cidade a servyço e obediência d‟Elrey Dom Afonso; porque o Mariscal que tinha a fortaleza por
420 Cfr. SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: La conquista del trono, p. 135.
421 Veja-se supra a nota 373.
163
ElRey Dom Fernando, elle tambem o commovia, porque era seu jenrro. […] E como ElRey foy do trato
de Çamora seguro, e certeficado, se foy logo a ela com a Raynha, onde foram em tudo com muytas
cirimonias e grandes triunfos recebidos e obedecidos». (CDAV, cap. CLXXX, p. 835)
«Juan de Porras en este comedio trataua com el rey de Portogal secretamente de le entregar la
çibdad; y como ovo resçibido el oro que le prometió, e las otras mercedes que le fizo, luego se desnudó de
aquella vestidura de simulaçión que al Rey e a la Reyna mostraua de fuera, e pareció de dentro el
verdadero Juan de Porras; y erró, y fizo errar al mariscal su yerno, e dieron su obediençia al rey de
Portogal, e alzaron pendones por él. E luego el rey de Portogal fue con toda su hueste a la çibdad, en la
qual estovo algunos pocos días, y dexó la fortaleza al mariscal que la tenía; e la puente asimismo dexó la
fortaleza al mariscal que la tenía; e la puente asimismo dexó a Francisco de Valdés, que la tenía de antes».
(CRC-FP, cap. XLI, p. 130)
«El conde de Paredes, maestre de Santiago, y don Diego Fernández de Córdoua, conde de Cabra,
por virtud de los poderes que tenían del Rey e de la Reyna, hacían guerras a las tierras del maestre de
Calatraua, e a la tierra del conde de Urueña, su hermano, e del marqués de Villena, su primo, que estaban
[…] en la obidiençia del rey de Portogal; e tomaron Cibdad-Real, que tenía el maestre de Calatrava, e
reduxéronla a la obidiencia del Rey e de la Reyna. E de tal manera estos dos caualleros tenían ocupada la
tierra del maestre de Calatraua, que él ni gente suya no pudo yr en ayuda del rey de Portogal». (CRC-FP,
cap. XLVI, p. 146)
«No andaba tampoco remiso D. Rodrigo Manrique, ya más empeñado en recabar para sí el
Maestrazgo de la provincia de Castilla. Excotí a su yerno Pedro Fajardo, adelantado de Murcia, a que
ocuparse con sus tropas las villas del marquesado de Villena, confinantes con sus tierras. […] El Marqués
y su primo D. Rodrigo Girón eran impotentes para acudir a tantas partes con su caballeria, inferior a la
enimiga en número y en calidad». (CEIV-AP, II, libro III, cap. IX, pp. 221-222)
Afonso V somou mais uma vitória, pois recebeu o apoio de João de Porras,
fidalgo principal de Zamora, cujo genro, o marechal, era alcaide da cidade e partidário
de D. Fernando (embora não estivesse fora de questão mudar para o partido de D.
Juana), tendo assim sido promovido a vedor da casa de D. Afonso V. O soberano não
podia parar por aqui. Era necessário socorrer uma das principais cidades do reino
castelhano, que tinha voz por Portugal. Tratava-se de Burgos, bastião importantíssimo,
que se conquistado, permitiria aplicar o efeito de tenaz (com a ajuda de Luís XI) e
estrangular as forças de Isabel e Fernando. O Rei Católico compreendeu bem o perigo
em que se encontrava, daí que tenha partido de imediato para cercar a cidade. Como o
cerco provasse ser longo e difícil (coisa que aconteceu, já que a cidade só se rendeu ao
cabo de nove meses), D. Fernando mandou chamar o seu irmão, Afonso de Aragão, o
qual «había alcanzado singular reputación en vários menesteres de la guerra; pero más
especialmente en la disposición de sítios de fortalezas, y en la toma o en la conservación
de la de Burgos se crecía consistir el punto esencial de la campaña» (CEIV-AP, livro III,
cap. IX, p. 221). Algum tempo depois, Afonso V, deixando a rainha em Zamora,
164
determinou cercar Burgos. Em Arévalo perdeu tempo precioso, fazendo o ponto da
situação relativamente ao cerco de Burgos, sofrendo aí o exército com os ares doentios,
o que lhe tomou mais tempo do que o previsto. Mudou-se então para Peñafiel,
ponderando uma vez mais acerca do que fazer com Burgos. Aí teve conhecimento de
que Rodrigo Pimentel, conde de Benavente, vigiava os seus movimentos, defendendo o
caminho para Burgos com escassas centenas de homens422
. O Africano manobrou de
modo a desviar a atenção do dito conde, mandando à frente Lopo de Albuquerque e Rui
Pereira, tomando ele próprio o caminho de noite, para se encontrar com os comandantes
ao nascer do dia e atacar a vila. Estavamos a 18 de Setembro de 1475. Note-se que o
conde de Penamacor já havia atacado a vila e sido rechaçado por Rodrigo Pimentel.
Temos apenas alguns indícios, dispersos pela cronística, que nos ajudam a completar o
puzzle militar. Muitas baixas portuguesas – não obstante a disparidade de forças,
causadas por «tiros de poluora manuales», ao longo de sete horas. Trata-se, portanto, de
espingardeiros. Rodrigo Pimentel podia ter abandonado o lugar, mas não o fez, não
obstante os conselhos que recebeu nesse sentido. Porquê? Terá querido praticar uma
façanha de guerra que degenerou em desastre? Pura obstinação? Os cronistas referem
desde lugar sem defesas naturais ou artificiais (Palencia), com defesa imprópria
(Crónica incompleta), passando por paliçada (Bernáldez) e, no caso de Rui de Pina e
Pulgar, de muros. O conde não teve tempo de fortificar o lugar, por isso, entrada a vila
por meio de escadas, os combates tiveram lugar nas ruas, até que Pimentel se rendeu,
sendo posteriormente trocado por três fortalezas423
e pelo filho. É curioso ainda o
destaque que Damião de Góis dá à convivência pacífica entre portugueses e castelhanos,
a partir do momento que o conde de Benavente se rende, passando os vencedores a noite
na vila conjuntamente com os vencidos.
Muito embora fosse um começo auspicioso, D. Afonso V não avançou sobre
Burgos, por mais que a casa de Stuñiga lho requeresse, e voltou para Arévalo, tendo
422 Este é um dos casos difíceis de avaliar, já que a maior parte dos cronistas não estão de acordo em
relação ao número de soldados, quer castelhanos, quer portugueses. Em relação aos castelhanos, Rui de
Pina menciona 400 lanças, Damião de Góis fala em 300 e Garcia de Resende não coligiu este episódio.
Quanto à cronística castelhana, Pulgar não refere números, Palencia regista 150 lanças, Diego de Valera e
Andrés Bernáldez omitem os números, Lúcio Marineo Sículo também não regista o episódio, Jerónimo
Zurita cifra os castelhanos em menos de 1 300 cavaleiros, a Crónica incompleta estima 300 cavaleiros e o
Cronicón de Valladolid reporta 180 lanças castelhanas.
423 As fortalezas de Portillo, Mayorga e Villalba permitiram às guarnições portuguesas ocupar posições na
retaguarda isabelina, em finais de Novembro de 1475.
165
estado apenas a sessenta quilómetros de Burgos. O Inverno seria passado em Zamora.
Não se tratou de cobardia. Tratou-se da conjugação de diversos factores. O monarca foi
aconselhado a não atacar. Várias são as razões que poderiam ter levado a essa tomada de
decisão: o facto de D. Afonso V ter noção que Burgos era importante mas não lhe
atribuir a importância capital; o conhecimento que iria tendo de que a fronteira
portuguesa, principalmente na zona do Alentejo, era fustigada pelos castelhanos, que
não só roubavam gado e capturavam pessoas, como também chegaram a conquistar as
praças de Alegrete, Noudar e Ouguela, tentando os fronteiros e o próprio D. João, «nom
como Pryncepe moço e novel, mas como ardido e velho cavaleiro» esses ataques travar;
e por último, a razão que pretendo destacar e demonstrar agora, foi o facto de o rei
recear internar-se mais no território inimigo e não poder dispor dos apoios que lhe
haviam sido prometidos. Não era para menos. Rodrigo Téllez Girón, mestre de
Calatrava, foi sendo abandonado aos poucos pelos seus partidários. Palencia dá conta do
sucedido: «Rodrigo Manrique […]; el conde de Cabra D. Diego de Córdoua; el
comendador mayor Fernando Ramírez de Guzman, y García de Padilla, clavero de
Calatrava […], trabajaban con empeño por destruir al joven Rodrigo Téllez Girón»424
.
Rodrigo Manrique recebeu de D. Fernando plenos poderes para fazer a guerra a Rodrigo
Girón, e impossibilitou este último de levar os seus homens a ajudar Afonso V,
mantendo-os a defender as terras do mestrado de Calatrava. Mesmo assim, o esforço de
guerra do conde de Paredes venceu as tropas do mestre de Calatrava, tendo conquistado,
além de Ciudad Real, as vilas de Almodôvar, Manzanares, Villarrubia e Daimiel, nomes
que vão aparecendo com mais ou menos detalhe pelas penas dos cronistas. Jorge
Manrique, filho de Rodrigo Manrique, poeta e autor da citação no início deste trabalho,
ficou a defender este território a partir de Ciudad Real, ao passo que o pai se havia
passado para Toledo para, em conjunto com Pedro Fajardo, adiantado de Múrcia, sanear
agora as terras do marquesado de Villena. Assim, no segundo semestre de 1475, a maior
parte da Ordem de Calatrava era já controlada por Isabel e Fernando. Diz Palencia, na
sua manifesta tendência a favor do partido Católico que, por esta altura, o marquês de
Villena, fruto da acção de Manrique e Fajardo, «perdió 24 villas y otros tantos castillos,
además de Alcaráz, que desde su principio abandono su causa, y Baeza e Trujillo. Las
villas más importantes, ahora obedientes al Rey y en outro tiempo ocupadas por
Pacheco, eran Requena, Utiel, Jumilla, Almansa, San Clemente, Chinchilla, Albacete,
424 CEIV-AP, II, livro III, cap. IX, p. 220.
166
Injesta y Villanueva de Alcaraz»425
. Mesmo assim, a partir de Zamora, Afonso V,
aproveitando uma saída de Vasco de Vivero, conseguiu tomar Cantalapiedra. Todavia,
não teve tanta sorte na conquista de Castrotorafe.
Dado que todos somavam vitórias e sofriam derrotas simultaneamente, por
iniciativa do cardeal de Espanha, um Mendoza, Afonso V foi abordado para negociar a
paz. O monarca português não se opunha à ideia, exigindo «las çibdades de Toro e de
Zamora que él tenía, y le diesen el reyno de Galicia para juntar com su reyno; e
asimismo demandava vna gran suma de dineros»426
. Parece que o soberano português já
se contentava com algumas terras, juntamente com dinheiro, o qual lhe permitiria
contrabalançar o saldo cada vez mais negativo que tinha o tesouro real. Será que aceitar
parte do todo seria já um sinal de dúvida em como D. Afonso V não conseguiria levar a
sua missão a bom porto por falta de apoios? Provavelmente nunca o saberemos, mas se
o Africano se achava com legitimitade para reclamar o trono castelhano, é estranho que
se contentasse só com dinheiro e alguns territórios. Isabel, que até estava receptiva à
ideia de pagar uma indemnização de guerra ao seu inimigo para poder finalmente
pacificar os reinos em Castela, assim que soube que as exigências de Afonso V incluíam
terras, deu um não rotundo e as negociações ficaram por aí.
g) Os reinos a ferro e fogo
Durante quase um ano, de Maio de 1475 – data em que o Africano entra em
Castela, a Março de 1476 – mês em que se feriu a batalha de Toro, não se sabia qual
seria o desfecho da guerra, até porque os conflitos tinham múltiplas frentes activas,
como já tive oportunidade de referir. Os planos de D. Afonso V eram até bem
concebidos, o único senão é que dependiam de duas condições que não se verificaram: a
entrada de tropas francesas em Castela, apoiando o esforço de guerra português; e o
apoio generalizado do reino vizinho, o qual ia pendendo cada vez mais para o partido
isabelino. Assim, nestes dez meses de guerra, só por via terrestre, verificaram-se
inúmeros episódios militares na Península Ibérica, para os quais, por vezes, se torna
425 CEIV-AP, II, livro III, cap. IX, p. 222. Veja-se a descrição, algo diferente e elencando outras vilas e
lugares, dada por Fernando del Pulgar, tais como, por exemplo Uclés e Villena: CRC-FP, cap. XLVI, pp.
146-149.
426 CRC-FP, cap. XLVI, p. 149.
167
difícil delimitar onde terminavam os interesses políticos e começavam as querelas
pessoais, fruto da orientação e ambição de cada um. Eis, na medida do possível, os
conflitos que pude registar ao longo deste período: Alcaraz427
; Ciudad Rodrigo428
;
Azagala, Piedrabuena e Magazela429
; Ouguela430
; Noudar431
; Alegrete432
; Mourão e
Moura433
; Ciudad Real434
; Baltanás435
; Bélmez436
; Burgos437
; Valência438
, Toro439
;
427 Meados de Março de 1475.
428 Primavera de 1475.
429 Enfrentamentos produzidos na Primavera de 1475, antes da tomada de Ouguela.
430 A praça foi reconquistada por D. João em Junho de 1475, tendo sido anteriormente conquistada por um
cavaleiro castelhano.
431 Tomada pelas milícias andaluzas a 6 de Junho de 1475, as quais a mando de Martim Sepúlveda a
usaram como base para incursões ao território português.
432 Conquistada pelos castelhanos no início da guerra, mais ou menos pelo mesmo tempo que Ouguela e
Noudar foram também conquistadas.
433 Junho de 1475.
434 Esta e as vilas de Almodôvar, Manzanares, Villarrubia e Daimiel, pertencentes ao mestrado de
Calatrava, foram conquistadas durante o Verão de 1475.
435 18 de Setembro de 1475.
436 Palencia narra este episódio depois de o castelo de Toro se ter dado a Afonso V e de D. Fernando ter
ido pessoalmente cercar Burgos.
437 Iniciado o cerco em Julho de 1475, resistiu esta fortaleza quase até à Primavera de 1476. A decisão de
não descercar a cidade valeu ao partido português a perda de muitos apoios castelhanos. Damião de Góis
dá-nos pelo menos duas profecias menos favoráveis ao partido português, por não se socorrer esta
importante praça militar: «Ha rainha donna Isabel que com sua gente andaua sempre aho rasto do exerçito
delRei dom Afonso, quomo soube de sua partida, e caminho que tomaua para Areuallo, segura do perigo
em que elrei seu marido podera cair se elrei dom Afonso chegara a Burgos, se tomou pera Valledolid, e há
gente que consigo trazia repartio polas villas, e castellos vezinhos, e tomada occasiam da tornada delRei
dom Afonso de Penna fiel, dandolhe cor de fogida, pareçendolhe que per este respeito poderia atraher
assim muitos dos que tinha por contrairos, começou loguo com sua prudençia (…) trattar com elles, que
quisessem seguir sua parte, ho que lhe sucçedeo bem à vontade, porque hos negoçios delRei dom Afonso
começavão de vir em menos reputaçam, assi que em pouquo spaço de tempo ha Rainha ganhou há
vontade de muitas pessoas, villas, e çidades» (CPDJ, cap. LXIV, p. 138); «(…) acabou este áspero e
mortífero combate [Afonso V atacou a torre da ponte de Zamora], causa de todolos negoçios delRei dom
Afonso darem verdadeiro sinal do fim que se delles pronosticara no tempo que se tornou de Penna fiel
para Areualo, sem querer ir socorrer hos do castelo de Burgos». (CPDJ, cap. LXVIII, p. 146)
438 Palencia situa este episódio já depois de Afonso V estar na posse da cidade de Toro, cercando a sua
fortaleza.
439 18 de Julho foi o primeiro cerco castelhano à cidade, a qual já estava por D. Afonso V, ao mesmo
tempo que este monarca assediava o castelo.
168
Zamora440
; Herreros441
; Cantalapiedra442
; Alcoutim443
, Frejenal444
, Trujillo445
;
Villanueva de Barcarrota446
; Hellín447
; Castrotorafe448
; Ocaña449
; San Felices de los
Gallegos e Ledesma450
; sem esquecer o episódio que opôs Alonso de Fonseca, bispo de
Ávila, ao arcebispo de Toledo, Alfonso Carrillo451
, ou a escaramuça de Lopo de
Albuquerque contra Álvaro de Mendoza, próximo de Zamora452
.
440 Zamora tomou voz por Portugal a 16 de Julho de 1475. Porém, de 3 para 4 de Dezembro, Afonso V
percebeu que nem todos os castelhanos tomavam o seu partido – nomeadamente Francisco de Valdés e
Pedro de Mazariegos, os quais esperavam reforços de D. Fernando, e atacou as portas da torre da ponte de
Zamora. D. Fernando cercou a fortaleza de Dezembro de 1475 a Março de 1476, com três engenhos e
duas grandes bombardas.
441 16 de Julho de 1475.
442 Setembro ou Outubro de 1475.
443 Outubro de 1475.
444 Outubro de 1475.
445 Novembro de 1475.
446 Inverno de 1475, posterior ao recontro de Trujillo.
447 Hellín foi tomada antes de 28 de Outubro; as localidades limítrofes de Tobarra, Ontur, Albatana e
Peñas de San Pedro foram tomadas pelo adiantado Pedro Fajardo, entre Outubro e Novembro de 1475.
Cfr. TORRES FONTES, Juan – «La conquista del marquesado de Villena en el reinado de los Reyes
Católicos», in Hispania, nº 53, Madrid, pp. 37-151, em particular nas páginas 63-64.
448 13 de Novembro de 1475.
449 25 de Novembro de 1475.
450 Janeiro de 1476.
451 7 de Outubro de 1475.
452 Fevereiro de 1476.
169
Mapa 3 – A Península Ibérica nos finais da Idade Média
Fonte: GARCÍA de CORTAZAR, Fernando – Atlas de Historia de España, Barcelona: Planeta, 2005, p.
259.
Não deixa de ser pertinente citar Palencia, o qual, mesmo antes da tomada da
igreja de Santa Maria la Blanca, em Burgos, dizia:
«Mientras permanecia indeciso el triunfo de cada uno de los Reyes, crecía
por todas las províncias […] la audácia de los delincuentes y se suscitaban
numerosos tumultos para extender por todas partes la tirania. Viendo arder en
guerras los territórios todos del occidente de la Península, acogíanse con gozo
ocasioes de tantas revueltas para la perpetración de toda suerte de crímines.
Ninguno de los Grandes seguía con entera lealtad la causa de D. Fernando, por lo
que todas partes tropezaba con riesgos difíciles de salvar. Corría voz de la
inmediata llegada del rey Luis de Francia con numeroso ejército, no sólo a
favorecer al Portugués, sino a someter por la fuerza o por concierto a los
vascongados […]. Ademas, decíase con insistencia que éste acudía en socorro de
los sitiados en Burgos»453.
453 CEIV-AP, II, livro XXIV, cap. I, p. 229.
170
Na verdade, através do mapa podemos observar que todos os reinos de Castela
que faziam fronteira com Portugal estiveram envolvidos nesta guerra. Se formos mais
generosos e incluirmos os conflitos bélicos com a natureza de uma guerra civil, isto é,
sem a participação portuguesa, se integrarmos a questão de Navarra e as invasões
francesas em Fuenterrabia, por exemplo, então é possível observar que a virulência da
guerra se estendeu a praticamente todo o território castelhano. Claro que estes episódios
militares não se cirscunscreveram somente ao reino vizinho. Atente-se no mapa
seguinte, o qual dá conta das quase trinta incursões castelhanas levadas a cabo ao
território português, no triénio de 1475-1478. Estas vinte e oito localidades fronteiriças
situadas entre o Sabugal, na região da Beira e Alcoutim na região do Algarve, são
enunciadas a partir de um importante documento emanado da chancelaria de D. Afonso
V, de 23 de Maio de 1480454
, sendo que a zona mais flagelada foi a do Alentejo.
454 Chancelaria de D. Afonso V, livro 32, fol. 158. Documento publicado por Humberto Baquero Moreno
em «A contenda entre D. Afonso V e os Reis Católicos... », p. 322-324.
171
Mapa 4 – Localidades portuguesas onde ocorreram incursões castelhanas entre
1475 e 1478
Fonte: MORENO, Humberto Baquero – «A contenda entre D. Afonso V e os Reis Católicos:
incursões castelhanas no solo português de 1475 a 1478», in Separata dos «Anais», II série, vol. 25,
Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1979, p. 304.
Não é possível analisar exaustivamente todos os episódios militares que vêm nas
fontes, nomeadamente porque muitas vezes os relatos nas crónicas não são orientados
172
exclusivamente para os episódios militares455
. Desta maneira, há muitos episódios que
estão omissos ou tiveram um tratamento demasiado sumário por parte dos cronistas.
Recorrentes são também algumas escaramuças que opõem quer portugueses a
castelhanos, quer castelhanos entre si. São destacadas em função de protagonistas que
integram a luta. Um exemplo disto é o recontro militar que possibilitou aos castelhanos
capturar o conde de Penamacor, por Álvaro de Mendoza, terminando o cronista
dizendo:
«Otros muchos recuentros e fechos de armas pasaron entre los de un
partido e de otro, ansí en aquella comarca do estaban, como en otras partes del
reyno, do fueron vencidos, veces los de una parte, veces los de la otra. Pero la
Corónica no face mención dello, savo déste, por ser muy ferido, e porque fue preso
aquel conde, que era persona principal, e de quien el rey de Portogal fiaba»456
.
Todavia, isso não impede os cronistas de evidenciarem as suas simpatias face ao
pessoal beligerante, que caracterizam frequentemente. Vale a pena atentar em alguns
dos seguintes exemplos para demonstrar os esterótipos das crónicas castelhanas face a
um partido e ao outro. Aquando da invasão de D. Afonso V, pela Codiceira, e antes de se
ter apoderado de Zamora e Toro, em Salamanca, embora os cavaleiros estivessem
divididos pelos partidos do duque de Arévalo e do licenciado de Ciudad Rodrigo –
Antão Martínez, «todo el pueblo aborrescía a los portugueses»457
e assim que souberam
que D. Fernando se dirigia para a cidade «fueron muy alegres, como le conosciesen por
verdadero rey e señor»458
. É evidente que o louvor recai sempre sobre os castelhanos459
,
455 Um bom exemplo é o capítulo XXXVIII da crónica de Pulgar, no qual o autor se refere a cinco
episódios militares, alguns mais ricos em pormenores do que outros. Escreveu o cronista muito
sucintamente sobre a tomada de Noudar e Alegrete pelos castelhanos, documentou o sucesso dos
portugueses contra o conde de Cifuentes, próximo de Arévalo, descreveu a cavalgada que Afonso de
Cárdenas fez no reino de Portugal e ainda avançou a relação de vários eventos na Galiza, como a guerra
que Pero Álvarez de Sotomayor fazia às populações, por Portugal; e as suas conquistas de Tuy e de
Baiona do Minho. Porém, alguns desses episódios vêem de tal forma reduzida a sua importância que não
passam de meros fragmentos. CRC-FP, cap. XXXVIII.
456 CRC-FP, cap. LVIII.
457 CRC-DV, cap. VII, p. 18.
458 CRC-DV, cap. VII, p. 18.
459 Há excepções nas quais os cronistas consagram algum mérito aos portugueses: «el rey de Portugal, a la
sazón más poderoso porque mandaba fuerzas que ciegamente le obedecían, marchó a Toro, adonde le
arrastraba la dañada intención de Juan de Ulloa. Este hombre pérfido y sacrílego, monstruo execrable,
quebrantador de toda religión y enemigo de todo sosiego, logró persuadirle a don Alfonso, campeón de la
173
como por exemplo no grande alardo que se fez antes de D. Fernando sitiar Toro, no
primeiro semestre de 1475: «muchos vinieron a servir al rey sin reçebir sueldo; lo qual
no acaesçió así al rey de Portugal, porque muchos de los que del reçibieron dinero le
fallesçieron»460
. Fica assim demonstrado, na óptica do cronista, o valor e a firmeza dos
soldados castelhanos, que contrastam com a pusilanimidade dos militares apoiantes de
Afonso V, alguns dos quais mesmo tendo recebido soldo, não compareceram. Por outro
lado, os portugueses e os seus apoiantes são alvo de todo o tipo de recriminações: «casi
por este mismo tiempo [a conquista de Cantalapiedra por Afonso V] se entrego a D.
Fernando la fortaleza de Gordillas, en território de Avila, encomendada por la
indulgencia y bondad de la Reina al antiguo Alcaide, para daño de los pueblos limítrofes
y favor que com sus traicioneras artes presto al enemigo»461
; ou ainda, após uma
cavalgada levada a cabo com sucesso, pela parte de Pero Díaz de Villacreces e Diego
Ramírez de Segarra, utilizando Sevilha como base de ataque em Portugal, Moura foi
atacada e muitas cabeças de gado roubadas. Conclui então Valera acerca deste episódio:
«este caso acaescido de pocos castellanos a muchos portugueses les dió a conosçer que
les convenía más usar de saber que de su sobervia acostumbrada» e que «muchos
semejantes casos acaescieron en este tienpo de pocos castellanos a muchos portugueses,
que siempre los castellanos ovieron la victoria»462
. Para não ser fastidioso, quero apenas
apresentar um último exemplo, o qual espelha bem a visão oficial que os Reis Católicos
queriam passar relativamente aos portugueses. Acautelando a defesa do território e
tentando prever os movimentos de D. Afonso V, «el rey e la reyna com gran diligencia
avían provehído, no solamente llamando los grandes, mas a los pueblos más fieles,
amonestándoles viniesen por la libertad y gloria de la gente castellana a pelear com el
sobervio enemigo, a la arrogância e crueza del qual él está aparejado con todas sus
fuerças resistir»463
. Perante esta amostragem é fácil de compreender que, de acordo com
justicia y de la religión, que sería lo más seguro aquello que mereciese su preferencia» (CEIV-AP, II, libro
III, cap. I, p. 204). Palencia é também conhecido por fazer pontualmente alguns reparos menos positivos à
conduta de Isabel e Fernando: «por las malas artes de los Grandes, D. Fernando y D.ª Isabel se detuvieron
mucho en Valladolid, com grave perjuicio, pasando el tiempo inútil e imprudentemente, y muy en daño
suyo […]» (CEIV-AP, II, livro II, cap. VIII, p. 195).
460 CRC-DV, cap. VIII, p. 22.
461 CEIV-AP, II, livro XXIV, cap. IV, p. 236.
462 CRC-DV, cap. VII, p. 21.
463 CRC-DV, cap. IX, p. 25.
174
as fontes castelhanas, D. Fernando teria muitos e bons soldados, leais e corajosos, os
quais lhe chegavam de todo o território464
. São estes que se vão defrontar com os
portugueses, os quais são soberbos, arrogantes, facilmente provocáveis465
e cujos
aliados castelhanos têm sempre dificuldades em reunir tropas e são odiados pelos
próprios povos.
A já extensa lista de conflitos apresentada anteriormente – a qual, lembro, é
apenas uma fração do todo, permite pintar um quadro muito matizado, com diferentes
tipos de operações militares. Senão vejamos: Alcaraz foi uma rebelião separatista levada
a cabo pelos seus moradores, os quais se queriam ver livre do domínio de Pacheco,
demonstrando assim da forma mais radical o seu descontentamento face ao regime de
senhorio, devido possivelmente à dureza governativa do marquês de Villena. Dentro do
modelo de vilas que são arrancadas dos mestrados466
ou domínios senhoriais para passar
a integrar o reguengo, podemos incluir os casos de Ciudad Rodrigo, Azagala, Piedra
Buena, Magazela, Ciudad Real, Bélmez, Valência, Trujillo, Hellín e Ocaña. De igual
modo, os eventos sucedidos em Ouguela, Noudar, Alegrete, Mourão, Moura,
Cantalapiedra, Alcoutim, Frejenal, Villanueva de Barcarrota e Castro Torafe configuram
expedições punitivas – vulgo cavalgadas, das quais por vezes resultou a conquista de
praças militares, tendo sido levadas a cabo tanto por castelhanos como por portugueses.
Nos cercos há também um certo grau de variabilidade. Desde os mais rápidos, como foi
o caso de Herreros, aos mais demorados, como aconteceu em Burgos durante cerca de
464 Uma vez mais, no alardo em Valladolid, antes de Toro: «fueron allí onze mill de cavallo e treynta mil
peones, en que avia gran número de vizcaynos; aunque avían quedado en Burgos quinientos por ayudar a
los çibdadanos. Y el marqués de Astorga […] y el conde de Luna […] traxieron allí muy grand copia de
gente de Asturias, los quales con grand voluntad querían yr a pelear con los portugueses, a lo qual mucho
ayudavan las predicaciones de notables religiosos». Porém, assinala Valera em seguida «aunque a los
grandes desto despluguiese». (CRC-DV, cap. IX, p. 26). Porque desagradaria esta ajuda espiritual aos
Grandes? Esta peça do puzzle temos de procurar noutro cronista, em Palencia. Este diz que «algunos
religiosos persuadían a los castellanos a obedecer las acertadas órdenes alistándose para ir contra los
inicuos portugueses». (CEIV-AP, II, libro III, cap. II, p. 206). Ou seja, os Grandes não queriam perder um
certo poder dominador, a sua suposta autoridade enquanto Grandes, logo a acção e os reptos idóneos dos
clérigos deixavam-nos agastados.
465 «[…] el rey açeleró su camino para yr a pelear com el sobervio enemigo, creyendo que segund la
costunbre de los portugueses ligeramente los podía provocar a la batalla» (CRC-DV, cap. IX, pp. 29-30);
«(…) dezían que el rey de Portogal estaua en tierra agena, y odiosa a él e a su gente». (CRC-FP, cap.
LXXII, p. 202)
466 Estas ofensivas foram levadas a cabo principalmente por Rodrigo Manrique no mestrado de Calatrava
e por Pedro Fajardo e o conde de Cocentaina no marquesado de Villena.
175
nove meses. Além destes dois, integram o perfil de cerco os episódios de Toro e
Zamora. Valência tratou-se de um golpe de mão, no qual Juan de Robles assassinou o
seu cunhado, o duque de Valência (Juan de Acuña), aproveitando D. Fernando de
imediato para controlar a fortaleza. Por fim, há ainda aqueles episódios que são fruto da
oportunidade que se apresenta, como é o caso de San Felices de los Gallegos e de
Ledesma, que foram atacados porque estavam na rota mais rápida de D. João para
chegar ao encontro de seu pai, não sendo por isso propriamente um cerco, nem uma
expedição punitiva. Verificaram-se também três escaramuças: Baltanás e os encontros
de Alonso de Fonseca contra o bispo de Toledo e de Lopo de Albuquerque face ao
cardeal de Espanha. Como se pode ver, não há uma única batalha a registar, embora a
cronística tenha exaltado o episódio de Rodrigo Pimentel contra as forças de D. Afonso
V, em Baltanás, como acabei de referir. Porém, embora possamos aceitar efectivos na
casa do meio milhar, não se tratou de uma batalha, mas sim de um recontro militar que
começou com um cerco a um lugar pouco defensável, estendendo-se depois à conquista
do lugar, em jeito de guerrilha, ou seja, rua por rua.
Com isto podemos concluir que a virulência da guerra foi, na verdade, bastante
elevada, sem, contudo, haver nestes dez meses que antecedem a grande batalha – talvez
inclusivamente a única desse nome, confrontos directos e decisivos. Por outras palavras,
o maior desejo dos monarcas, a grande batalha campal, era também o seu maior receio.
Daí que se fossem ocupando em operações de desgaste, como assédios intermináveis e
algumas escaramuças. Em paralelo, podemos observar as querelas existentes entre as
casas dos grandes senhores, as quais oscilam entre um ou outro partido, mas sempre
visando o bem-estar material da sua família.
h) O pedido de auxílio ao príncipe D. João
«Ho príncipe quomo reçebeo ha carta delRei que mandaria gente d‟armas que ho acompanhasse
atte ha çidade de Çamora. Stando ali esperando esta gente, elRei lhe mandou dizer, por Vasquo Mĩz de
Sousa Chichorro, seu capitam dos ginetes, que nam passasse a diante, por quanto tinha auiso que ho
capitam da ponde de Çamora induzido por elRey dom Fernando, e rainha donna Isabel, tinha ordenado de
ho tomar antre ambalas torres da ponte. […] Has quaes nouas sabidas pelo príncipe, despedindo loguo
Vasquo Mĩz Chichorro, se veo ha cidade da Guarda […] prouendo nas cousas do Regno». (CPDJ, cap.
LXVI, p. 142)
«El [príncipe de Portogal] aperçibido, por mandado del rey su padre, vino luego a su
llamamiento, e traxo consigo gente de pie y de cauallo del reyno de Portogal, fasta en número de veynte
176
mil conbatientes; e llegó toda aquella gente fasta la çibdad de Toro, do estaua el rey su padre». (CRC-FP,
cap. LX, p. 195)
«Conocida por el príncipe D. Juan la crítica situación de su padre, fue recogiendo tropas por el
reino: pero como las riquezas producidas por las expediciones de D. Alfonso estaban agotadas, no había
con qué pagar el estipendio a los soldados, porque la más productiva, la de Africa, no podía emprenderse,
y la de Marruecos, más inútil y hasta perjudicial, era imposible que pudieran volver con felicidad los
portugueses, dada su pobreza. Tuvo, por tanto, que recurrir el Príncipe a nuevos impuestos exigiendo a
sus vasallos la cuarta parte de los bienes. Este grave recargo en los gastos y en los trabajos fue duro de
sobrellevar a los portugueses; pero la costumbre de obedecer a sus Príncipes les dio resignación para
sufrirlo. Después de repartidas entre los populares grandes sumas, se aumentó considerablemente la
caballería, de modo que sobre las guarniciones apostadas en las fronteras pudo el Príncipe reunir 2.500
caballos ligeros y 15.000 peones. […] Al cabo llegaron con el Príncipe a Alfayates, donde hicieron alto,
aguardando las órdenes del Rey». (CEIV-AP, II, libro XXV, cap. V, p. 262)
Vendo as dificuldades recaírem sobre o seu partido, o Africano solicitou a
presença de D. João, em Zamora, uma vez que acreditava que o choque com D.
Fernando estaria muito próximo. Preparava-se assim o príncipe para se dirigir para
Zamora, não tivesse sido avisado por Vasco Chichorro, capitão dos ginetes, da traição
preparada na ponte da dita cidade, cujo intuito seria a captura de D. João, morto ou vivo,
encurralando-o entre as duas torres da ponte. D. João regressou a Miranda do Douro e
daí partiu para a cidade da Guarda mas não ficou ocioso. Preparou uma expedição
militar para socorrer seu pai em Zamora.
Qualquer campanha militar era um sorvedouro de dinheiro e o país ainda não
sarara as feridas de Marrocos (não obstante as campanhas até terem sido parcialmente
favoráveis a Portugal) e já estava envolvido noutra com Castela. Desta maneira, apesar
da concessão pelas Cortes do subsídio de “pedido e meio” a receber durante dois anos,
Afonso V viu-se obrigado a contrair empréstimos junto dos almoxarifados e a proceder
a recolha de prata das igrejas do reino e de outras fontes, quer particulares, quer
concelhias. O diligente filho preparou-se, angariando dinheiro. Esta resolução teve
início a 15 de Dezembro de 1475, sendo feita a recolha dos objectos em prata,
litúrgicos, ou não, salvo os cálices, custódias e relicários sagrados, existentes nas igrejas
diocesanas ou de religiosos e ainda nas sinagogas. A recolha deveria ser inventariada e
avaliada para mais tarde poder ser feito o seu pagamento. O destino desta prata foi a
Casa da Moeda do Porto, onde foi logo amoedada com os cunhos de Castela, uma vez
que a nova moeda se destinava a circular essencialmente neste reino, teatro das
operações bélicas e das actividades políticas de atracção de partidários desenvolvidas
177
por D. Afonso V467
. É natural que tal medida tenha sido bastante impopular entre a
população religiosa, opondo-se os cabidos das sés, das colegiadas, mosteiros e igrejas
espalhadas pelas dioceses. Porém, no final, conseguiu-se recolher aproximadamente 100
quilos de prata468
.
No início de Janeiro de 1476, D. João partia da cidade da Guarda, após ter feito
«logo pera gente apuraçooẽs e percebymentos geeraaes»469
– por outras palavras,
expediu cartas e fez alardo, arrancando a 24 de Janeiro e entrando em Castela a partir de
Castelo Rodrigo. Ainda na Guarda diligenciou no sentido de assegurar a regência do
reino, a qual transferiu para a sua mulher, D. Leonor de Lencastre, pelo tempo que ele
estivesse ausente em Castela. Não descurou também outros cargos de importância e
«leixou pessoas d‟autoridade e letras e bom conselho, com que nas cousas do Reyno se
aconselhasse [D. Leonor], e proveo as frontarias de Capytaães, Alcaydes, e jentes como
compria»470
.
A cronística não é tão explícita para a arregimentação de tropas como para a
recolha de prata das igrejas, que já referi, talvez por ser um procedimento bastante
comum. Apenas sabemos que o Príncipe Perfeito, depois de levada a cabo a recolha da
prata, «teue prestes ha gente que hauia de leuar»471
, mencionando em seguida Damião
de Góis que D. João entrou em Castela com a sua «oste muĩ bem ordenada, no qual
caminho tomou por força d‟armas ha villa de S. Felizes»472
. É neste ponto que os
cronistas portugueses diferem dos castelhanos. Enquanto os primeiros colocam como
primeira paragem no itinerário de D. João San Felices de los Gallegos – lugar tomado
467 Cfr. MARQUES, José - «O príncipe D. João e a recolha das pratas das igrejas para custear a guerra
com Castela» in Actas do congresso internacional Bartolomeu Dias e a sua época, vol. I, Porto:
Universidade do Porto e Comissão nacional para as comemorações dos Descobrimentos portugueses,
1989, pp. 201-219. Sobre este assunto veja-se também ENCARNAÇÃO, Marcelo – Efígies de D. Afonso
V – as aspirações ibéricas de um dos últimos cruzados portugueses, no prelo.
468 Mencionam as crónicas que estes empréstimos seriam pagos já no reinado de D. João II: «(…) com
muyto recado, e muyta certeza de paga, tomou a prata das Ygrejas, e Mosteiros (…) a qual depois de ser
Rey com muyto cuydado pagou». Cfr. CDJII, cap. XII, p. 10. Além disso, vários foram os agradecimentos
que foram feitos aos municípios a agradecer a ajuda pecuniária concedida.
469 CDAV, cap. CLXXXVII, p. 841.
470 CDAV, cap. CLXXXVII, p. 841.
471 CPDJ, cap. LXXIV, p. 155.
472 CPDJ, cap. LXXIV, p. 156.
178
pela força, e depois Ledesma – aldeia que não só não foi atacada, como também nela
foram comprados mantimentos honestamente, os três castelhanos que referem este
episódio afirmam que o príncipe passou primeiro por Ledesma e, em seguida, atacou
San Felices de los Gallegos473
. O lapso temporal também difere, uma vez que Pina, Góis
e Resende situam o ataque em finais de Janeiro, até porque se lê na Crónica do Príncipe
D. João: «dali [D. João] foi ter a Touro, no mesmo mês de Ianeiro, onde foi reçebido
delRei, e da rainha»474
. Palencia, Valera e Zurita colocam esta passagem pelos lugares
citados já no mês de Fevereiro de 1476, especificando mesmo Palencia que o ataque se
deu no primeiro dia do mês. Pouco depois o Príncipe encontrava-se com seu pai em
Toro.
473 CEIV-AP, II, livro XXV, cap. VI; CRC-DV, cap. XVIII; ACA-JZ, livro XIX, cap. XLI.
474 CPDJ, cap. LXXIV, p. 156. Rui de Pina está de acordo, referindo que «dally na fym do mês de Janeiro
em tanto concerto levou sempre o Pryncepe sua gente, que no caminho nunca recebeo rota nem recontro,
atée que chegou aa Cidade de Touro, onde ElRey seu Padre despois de sair de Çamora, seguio e tratou em
sua propria pessoa as cousas da guerra». (CDAV, cap. CLXXXVII, pp. 841-842)
179
7. DA BATALHA DE TORO AO ÚLTIMO RESCALDO
O socorro que D. João levou a seu pai proporcionou uma renovação de efectivos
militares, mas sobretudo, dotou o partido português de uma aura de confiança apenas
vista no início da campanha. A cidade de Zamora que entretanto havia levantado pendão
por D. Fernando era já ocupava por este, ao mesmo tempo que sitiava a sua fortaleza.
Neste contexto, há uma dança de ambos os reis: Afonso V visitou Zamora, com intenção
de dar batalha ao adversário e D. Fernando retribuiu a cortesia, visitando Toro. Porém,
nenhum dos reis tinha efectivamente vontade de dar batalha e nunca se produziu
nenhum enfrentamento armado.
Foi então que Afonso V se decidiu por cercar Zamora. Pelo caminho, tentou
atacar Madrigal, tendo sido recebido por uma chuva de setas, pedras e muitos tiros de
pólvora, o que motivou um rápido cerco por parte dos portugueses, mas sem grande
sucesso. Meio dia depois estava a hoste já em movimento, parando em Medina del
Campo, vila que estava defendida pelas 700 lanças de Alonso de Aragão475
. A partir de
16 de Fevereiro e até ao último dia do mês476
, D. Afonso V instalava-se no mosteiro de
S. Francisco, pelo lado da ponte, ou seja, do outro lado do rio, onde arriscava menos a
sua pessoa e homens, mas também pouco dano causava aos de dentro. Não obstante,
não deixou de mandar cavar valas e fazer bastidas477
. D. Fernando continuava a receber
mantimentos sem oposição. Esta escolha menos feliz deve-se provavelmente à
impossibilidade de passar o rio a vau, devido a ser Inverno. Pode parecer um erro
elementar de estratégia a posição portuguesa, mas quiçá Afonso V terá julgado possível
conquistar a ponte de Zamora, encurralando assim a saída do inimigo da cidade, pois
estaria necessariamente estrangulado pela ponte. Calculando isso, D. Fernando mandou
fazer minas e portas num baluarte478
.
475 Cfr. CRC-DV, cap. XIX, p. 65, CEIV-AP, livro XXV, cap. VII, p. 267.
476 Zurita contabiliza apenas dez dias (ACA-JZ, livro XIX, cap. XLIII) e o Cronicón de Valladolid refere
onze dias (CV, p. 115).
477 CPDJ, cap. LXXV, p. 158.
478 Cfr. ACA-JZ, livro XIX, cap. XLIII.
180
Foi neste cenário que se deu o que, exageradamente talvez, Zurita chamou de
famosa peleja junto a Zamora479
. Álvaro de Mendoza foi mandado interceptar um
ataque português que visava capturar víveres castelhanos em trânsito para Zamora. Não
foi necessário porque o comboio chegou a salvo ao destino. D. Afonso V ao saber isso e
ao saber que andavam soldados pela terra, mandou Lopo de Albuquerque saber o que se
passava. Vendo os inimigos ser mais numerosos, Álvaro de Mendoza não estava
inclinado a dar batalha. Todavia, devido à ânsia dos seus homens de conquistar a glória
pelas armas, após uma rápida reunião, o comandante castelhano mudou de opinião.
Acautelaram-se as ciladas e vendo que não existia nenhuma, ambas as forças
avançaram, descendo os castelhanos do alto do cerro onde estavam. Lutou-se durante
quatro horas480
. Lutou-se com espadas e, partidas estas, empunharam-se punhais. No
que diz respeito a números, o registo nas fontes não é unânime481
. Porém, no fim, a
vitória pertenceu aos castelhanos, sendo o conde de Penamacor feito prisioneiro. Do
combate saíram feridos Álvaro de Mendoza e Hernando de Acuña, entre outros. Dos
portugueses foram feitos prisioneiros Lopo de Albuquerque, um seu irmão, Rui Pereira,
Álvaro Freire e outros quinze cavaleiros.
As operações de assédio decorriam normalmente. Como referi acima, Afonso V
não provocou grande dano ao partido inimigo482
, o qual teria mais ou menos o mesmo
número de efectivos militares483
.
479 ACA-JZ, livro XIX, cap. XLI.
480 CRC-FP, cap. LVIII, p. 192. Góis fala-nos em cinco horas (CPDJ, cap. LXII, p. 153.
481 Góis totaliza as hostes em meio milhar de homens; Pulgar diz que os portugueses eram mais
numerosos e contabiliza todos em mais de duas centenas; Palencia, Valera e Zurita afirmam que seriam
oitenta portugueses contra sessenta castelhanos e o Cronicón de Valladolid segue de perto os últimos três
cronistas, apenas diferindo deles ao calcular que seriam apenas cinquenta castelhanos.
482 Bernáldez e Valera dão-nos conta de que Afonso V bombardeou com bombardas as posições inimigas,
nomeadamente a torre na extremidade da ponte, a partir do seu arraial. Cfr. MRC-AB, cap. XXIII e CRC-
DV, cap. XX.
483 Pulgar presenteia-nos com dois dados importantes: primeiro afirma que D. João socorreu o pai com 20
000 homens e segundo que entre a hoste de D. Afonso V que sitiou Zamora e os homens de D. Fernando
«avia poça diferençia en el número de la gente de cauallo de vna parte e la outra». CRC-FP, cap. LX, pp.
195-198. Este número, porém, parece-me algo avultado, até porque Damião de Góis afirma que as forças
portuguesas que sitiam Zamora se cifram em 1 000 lanças. Já Andrés Bernáldez é mais generoso e estima
a presença de 3 500 cavaleiros e de 5 000 peões. São, em todo o caso, os únicos cronistas que
contabilizam as forças e mesmo assim só o fazem para o partido português.
181
D. Isabel atenta aos movimentos inimigos a partir de Tordesilhas, mandou o
duque de Villa Hermosa (meio-irmão de D. Fernando) com 600 lanças a Fonte Sabugo e
o conde de Treviño à cabeça de 400 lanças, para Alahejos – vilas próximas de Zamora,
com o intuito de cumprir dois objectivos. O primeiro passava por impedir que
mantimentos chegassem ao arraial português, e o segundo por aplicar um golpe de tenaz
contra os portugueses, no qual na outra extremidade estariam as tropas de D.
Fernando484
. Ao aperceber-se disto, o Africano tentou celebrar uma trégua, numa ilha
que existia no meio do Douro, por meio do duque de Alba e do almirante de Castela,
pelo lado de Castela e por D. Álvaro, Rui de Sousa e o licenciado de Ciudad Rodrigo
pelo lado português, mas estes encontros não resultaram em nada. D. Isabel, a quem
entretanto tinham chegado novas destas conversações, incitou D. Fernando ao diálogo
pela concórdia, autorizando-o mesmo a pagar uma indemnização de guerra a D. Afonso
V, mas recusando veementemente a alienação de qualquer parte dos reinos que
considerava seus485
. Os cronistas falam-nos mesmo num encontro secreto entre os
monarcas, mas por ironia do destino não chegou a verificar-se486
. Assim, perante as
dificuldades de aprovisionar os soldados e com as agruras causadas pelas condições
meteorológicas típicas de Inverno, D. Afonso V levantou o arraial na madrugada de 1 de
Março de 1476, pois já previa a perseguição de D. Fernando, enviando à frente os
corpos mais lentos – os infantes e a carriagem, não esquecendo que a maior parte da
infantaria já tinha seguido para Portugal, pela falta de mantimentos no arraial487
.
a) A escolha do local da batalha e a preparação do terreno
«Partidos do dito arrayal, depois de teerem andadas duas llegoas e mea, vierom novas como
parecia gente contraira em batalhas, a quall cousa como soubesse o dito rey nosso Senhor, que entom era
Principe, que trazia carrego de toda a hoste da gente, porque o dito senhor rey seu Padre era já diante aa
dita cidade de Touro a poer cobro em ella, e mandar recolher sua artelharya e gente de pee com ella, e se
viesse que Elrrey dom Fernando nom vynha aa cidade, elle logo aquella noete aver dhir com gente de
484 CRC-FP, cap. LX, p. 198. Valera, por exemplo, põe este chamado na boca de Fernando e não de Isabel.
Cfr. CRC-DV, cap. XIX.
485 CPDJ, cap. LXXV, pp. 159-160.
486 Segundo Pulgar, houve duas tentativas falhadas. A primeira não foi possível porque a embarcação de
Fernando metia água; a segunda não se efectuou porque o relógio da cidade não estava certo e Fernando
julgando-se atrasado, voltou para trás. Cfr. CRC-FP, cap. LXI, pp. 199-200.
487 CEIV-AP, livro XXV, cap. VIII, p. 268.
182
cavallo a huun lugar que se chama a ffonte do sabugo, onde avya por nova certa qua estava o iffante dom
Anrrique daragom e o duque de Villa ffremosa, jrmaaom do dito rey dom ffernando, e com elle o Conde
de Travjnho com gente de cavallo, para dar em elles, e veendo o dito rey Dom Joham nosso Senhor como
o llugar onde lhe derom as ditas novas nom era desposto para pellejar por seer estreyto, ffez tirar toda sua
jente ao campo, onde a ffez istar queda em batalhas, pollos contrairos mais despejadamente decerem ao
campo, e entom ffez todo saber ao dito senhor Rey seu Padre, o quall llogo tornou e depois de todos asy
de hũa parte como da outra, serem em campo, ajnda que os contrairos tevessem avantagem, por teerem as
costas em a serra, e por teerem mais gente de pee, por quanto a sua era já toda em a Cidade de Touro, e
isso meesmo allgua de cavallo que ffora diante com a fardagem, pollo quall os contrairos tynham
davantagem setecentas ou oitocentas llanças, empero, sem embargo de todo, os ditos Senhores Rey Dom
Affonsso, que Deus aja, e Ellrey nosso Senhor, per duas vezes ffizerom volver os rostros de suas batalhas
contra os inmygos pera veerem se queriam pellejar, o que elles nunca quiserom fazer, e quando os ditos
senhores esto virom, como esfforçados Principes, e que dezejavom vyr a couza a concrusom e
determynaçom de todavja dar em os inmygos, como o de feito poserom em obra, sem embargo de os
comtrairos teerem a dita avantagem conhocidamente llogo o dito rey Dom Affonso mandou ao dito rey
dom Joham seu filho, que entom era Principe, que com a vanguarda que llevava desse nos contrairos».
(Livro das Vereações da Câmara do Porto de 1481, fl. 38 v. – Cfr. anexo n.º 17)
«El rey dePortugal tomo el partido de conducir su ejército al llano y hacer alto en aquella
dilatada extensión unos três quartos de legua de Toro». (CEIV-AP, livro XXV, cap. VIII, p. 269)
«Neste tempo que elRei dom Fernando ordenaua suas azes, houue tanto spaço que vendo elRei
dom Afonso que ho nam seguia ninguem, passou ha serra que stà quasi no meo do caminho dentre
Çamora, e Touro, sem ver cousa porque deuesse sperar, nem tornar atrás, nem lhe pareçia que elRei dom
Fernando lhe saísse, porque se ho soubera antes de chegar aho monte sperara por elle; e tendo já passada
ha serra, ha gente se lhe começou a desmandar pólo campo, scaramuçando, e outros se iham pera Touro,
ho que elRei dom Afonso vendo, desejoso de fazer algum feito de guerra, antes d‟entrar na çidade, de que
hos seus ganhassem honrra, adiantousse de todos, e fez tornar hos que caminhauam par‟ella, com tençam
de aquella noite tomar delles hos que lhe neçessario fossem, e ir dàr sobre Fonte Sabugo, onde staua ho
duque de Villa Fermosa com seis çentas lanças, e ver se podia tomar, e ganhar ha villa». (CPDJ, cap.
LXXVI, p. 161)
Logo que soou o alarme no arraial castelhano, D. Fernando deu ordem para
perseguir o exército que fugia. A retirada processou-se em boa ordem, sendo este mais
um sinal que os castelhanos estavam perante um exército maduro e que sabia acatar e
cumprir as ordens que lhe eram dadas488
. Na madrugada da retirada, o Africano
488 Não posso concordar com Suárez Fernández neste ponto o qual afirma que, em virtude de o exército
vir retirando dividido em dois corpos, um em torno do pendão real, outro com a fina-flor da nobreza e a
maioria dos espingardeiros sob o comando do príncipe D. João, o exército português tinha dois núcleos
que não possuíam a coesão necessária entre si. Afirma ainda este ilustre historiador que «si no en número,
al menos en orden y refresco, la superioridad correspondía a los castellanos» (SUÁREZ FERNANDEZ –
Los Reyes Católicos: la conquista del trono, p. 155). Aliás, Palencia vem dar uma achega em relação à
força anímica de pelo menos alguns soldados castelhanos: «(…) los de D. Fernando, muy alejados de
Zamora, corrian doble riesgo, porque la prisa para perseguirlos les había impedido alimentarse, y por su
inferioridad numérica, sí llegaba a empeñarse campal batalla». (CEIV-AP, II, livro XXV, cap. VIII, p.
269)
183
determinou que se devia destruir parcialmente a ponte, deixando ainda para trás um
grupo de 500 cavaleiros, para proteger a retirada.
Num primeiro momento o exército acantonado dentro de Zamora confrontou-se
com algumas dificuldades para fazer sair os homens da posição intramuros em que se
encontravam. A solução encontrada foi embarcar parte da peonagem, ao passo que
outros vadearam o rio, uma vez que a saída pela ponte era demasiado estreita e estava
rodeada de cavas e baluartes489
. Outra das medidas passou por abrir minas e portas no
baluarte, para que os homens pudessem sair com mais celeridade490
.
A guerra do toca e foge, estratagema muçulmano, foi acautelada por parte do
comando castelhano, sendo para isso destacado um corpo de 100 cavaleiros,
comandados por Álvaro de Mendoza, para não deixar os mais afoitos perseguirem os
portugueses a ponto de não terem apoio e se perderem491
, ao mesmo tempo que outro
corpo, liderado pelo bispo de Ávila – Alonso de Fonseca, Alonso de Fonseca – senhor
de Coca e Pedro de Guzmán tinha a missão de, com 300 cavaleiros, picar a retaguarda
portuguesa, atrasando-a492
.
Três a quatro horas foi o tempo necessário para que pudesse sair todo o exército
castelhano do baluarte zamorano, transpondo o rio e passando à margem esquerda do rio
Douro. Dado que o exército português, não obstante D. Afonso V ter enviado alguns
peões e a carriagem mais cedo, tinha um ritmo lento, por altura que o exército em
perseguição havia saído todo de Zamora, apenas tinha coberto metade do caminho493
.
Às 14 horas a vanguarda castelhana conseguia avistar a retaguarda portuguesa494
, junto
ao lugar de Coreses. Daí para a frente, o vale do Douro estreita-se, elevando-se o
489 CRC-FP, cap. LXIV, p. 208.
490 CRC-DV, cap. XX, p. 68.
491 CEIV-AP, II, livro XXV, cap. VIII, p. 269. Valera quantifica 300 cavaleiros. Porém, ao julgar pela
narrativa de vários cronistas, esta tratou-se da primeira missão concedida a Álvaro de Mendoza, sendo a
segunda atrasar a hoste portuguesa (CRC-DV, cap. XX, p. 68; ACA-JZ, cap. XLIV).
492 CRC-DV, cap. XX, p. 68. Pulgar (CRC-FP, cap. LXIV, p. 208) e Góis (CPDJ, cap. LXXVI, p. 160)
atribuem a liderança desta segunda missão a Diogo de Cáceres, ao comando de somente 200 homens.
493 CEIV, II, livro XXV, cap. VIII, p. 269.
494 Relativamente ao tempo que decorreu até que D. Fernando alcançasse a hoste de Afonso V, Palencia
afirma que foi às 14h (p. 269), enquanto Valera antecipa a chegada do monarca castelhano para o meio-
dia (Cfr. CRC-DV, cap. XX, p. 68).
184
terreno, antes de se estender na planície de Toro. Aí foi alcançada a retaguarda lusa,
tendo sido capturadas setenta lanças portuguesas495
.
A colocação dos homens em campo na batalha que teve lugar na planície entre
Toro e Zamora, no sítio de Peleagonzalo, entre S. Miguel de Gros e a cidade de Toro e a
preparação do campo de batalha são aspectos muito importantes, mas para os quais
carecemos de dados. Porém, dada a apresentação do terreno e a perseguição que D.
Fernando moveu a D. Afonso V e onde o alcançou, o único sítio viável foi a planície de
Toro, uma vez que aí o terreno perde grande parte da sua irregularidade mais ocidental,
como quem vinha de Zamora. Podemos então dizer que a batalha não estava prevista
mas era desejada, daí que não tenha existido um exército que chegou primeiro ao
campo, uma vez que alguns dos homens de Afonso V principiavam já entrar em Toro. A
meteorologia acabou por não prejudicar ainda mais os portugueses, uma vez que com
chuva, não tiveram de se preocupar com o sol que se punha a bater-lhes de frente, já que
combatiam virados para oeste. Assim, embora as crónicas não apresentem referências à
preparação do terreno, mas, especialmente se algum tempo mediou entre a chegada dos
homens de Afonso V às portas de Toro e ao início da batalha – e como demonstrarei
mais à frente, as opiniões são divergentes – não é descabido crer que tenha existido
alguma preparação do terreno, ainda que apenas parcial, mesmo que a esse aspecto não
tenha a cronística prestado atenção. Consoante o autor, temos respostas diferentes no
que diz respeito à distância de Toro, no campo em que se livrou a batalha. Pina (p. 844)
e Resende (p. 69) afirmam que a mesma se travou a duas léguas de Zamora; Palencia
recorda que a acção se passou a três quartos de légua de Toro (p. 269); Valera menciona
uma légua e meia de Toro (p. 11), Bernáldez precisou que foi a duas léguas de Toro e a
três de Zamora (p. 58); Zurita explica que foi a cinco milhas de Toro (cap. XLIV); o
Cronicón de Valladolid fala em quatro léguas e meia de Toro (p. 117); Góis (p. 161) e
Pulgar (p. 209) são os mais imprecisos e apenas dizem que foi a meio caminho entre
Zamora e Toro. Sículo não faz qualquer menção à distância e a Crónica Incompleta…
não cobre este evento.
495 ACA-JZ, livro XIX, cap. XLIV.
185
b) A disposição do exército castelhano – os comandos
«(…) llegó el rey don Fernando com cinco batallas hordenadas; allende de los trezientos de
cavallo (…) perseguiendo a los enemigos». (CRC-DV, cap. XX, p. 68)
«(…) luego el Rey mandou hordenar todas sus gentes de armas en esta manera. En la batalla do
yva su persona y su estandarte real yva don Enrrique Enrríquez (…), con algunos caualleros sus criados, y
otros continos del palaçio real; y asimismo yva la gente de armas de Galizia, que envió el conde de
Lemos, y otros cayalleros de aquel reyno, y las gentes darmas de las çidades de Salamanca, e Zamora, e
Cibdad Rodrigo, y Medina del Canpo, y Valladolid, e Olmedo, e otras çibdades y villas de la comarca. E
en la mano derecha yvan seis esquadras, en vna das quales yva por capitán don Áluaro de Mendoça (…);
y en ésta yvan Gutierre de Cárdenas, e Rodrigo de Ulloa (…), Y en otra esquadra yvan por capitanes el
obispo de Ávila e Alfonso de Fonseca, señor de Coca e Alahejos. E en otra yva por capitán vn cauallero
que se llamava Pedro de Guzmán. En otra esquadra yva por capitán otro que se llamaua Bernal Francés. E
en otra esquadra de gente yva por capitán Pedro de Velasco. Y en otra esquadra yva por capitán Vasco de
Viuero. Todas estas seys esquadras de gentes yvan a la mano derecha de la batalla del Rey, a la parte de
las cuestas que se fazen yendo de Zamora a Toro, por aquella parte de la puente. En la ala ysquierda de la
batalla del Rey, a la parte del río de Duero, yvan el cardenal de España con la gente de su casa, y luego
cerca dél yva el duque de Alua con otra escuadra de la gente de su casa, y el marqués de Astorga; e de la
otra parte el almirante don Alfonso Enrríquez, tío del Rey, e en aquella batalla estaua don Enrrique
Enrríquez, conde de Alua de Liste, con otra escuadra de la gente de su casa. En otra batalla iba don García
Osorio, capitán de la gente del marqués de Astorga, su sobrino. Y el peonaje yva en medio de aquellas
batallas. El condestable no se acaesçió en aquella batalla, porquel Rey le avía mandado que quedase en el
çerco del castillo de Burgos». (CRC-FP, cap. LXIV, pp. 208-209)
Não há dúvidas que a batalha de Toro tem um perfil medieval clássico, na qual
vão soprando alguns ventos de modernidade, como é o caso dos espingardeiros. Os
castelhanos marcharam de Zamora para Toro já seguindo uma formação que
conservariam em batalha. Assim, como podemos atestar pelas fontes, Álvaro de
Mendoza comandava a vanguarda com 300 lanças escolhidas, onde iam também
Gutierre de Cárdenas e Rodrigo de Ulloa. Mais atrás, numa formação trinitária clássica
seguiam D. Fernando, o qual comandava o centro, no qual marchavam as gentes da sua
casa, as guardas reais, os cavaleiros pagos com estipêndio régio e as mesnadas de
Enrique Enriquez e do conde de Lemos. Na ala direita, do outro lado da serra, seguiam
os peões, mal ordenados, apesar dos esforços de Nicolás de Ovando, os quais
contendiam com dificuldades de progressão levantadas pelo terreno mais acidentado. A
ala esquerda, a mais forte, composta pelos grandes cavaleiros, era a que seguia mais
próxima do rio, avançando em três esquadras: o almirante Enriquez comandava aquela
mais próxima da água; o cardeal Pedro González de Mendoza a do meio; e o duque de
Alba à direita deste. Como corpo de reserva, mais atrás, vinha ainda o conde de Alba de
186
Liste, governador da Galiza, bem como as lanças do marquês de Astorga, os quais, por
ele ser menor ainda, vinham comandadas pelo seu tio – Luís de Osório.
c) A disposição do exército português – os comandos
«ElRey Dom Afonso com sua jente já muy allongado, quando seus contrairos começaram de
mover contra elle, o qual sendo a duas léguas de Çamora adiantousse pello fyo a reter sua jente, que a
Touro se recolhia com tençam secreta de aquella noite dar de salto em seis centas lanças d‟ElRey Dom
Fernando, que sob, a Capitanya do Duque de Vylla Fremosa seu Irmaõ bastardo estavam em Fonte
Sabugo, mas o Pryncepe que por sua vontade, e sem necesario constrangimento quis esperar e dar a ElRei
Dom Fernando a batalha, avysou logo disso a ElRey seu Padre, que nom descontente disso chegou já ao
campo junto com Touro, onde a batalha se deu, e foy a tempo que as batalhas d‟ElRey Dom Fernando
passavam já hum porto de huma pequena serra que hy a cerca estava onde o Conde de Loulee em voltas
que fez foy ferido, e se foy a Touro. (…) [Os portugueses] tinham muyto menos gente, porém elle e o
Pryncepe seu Fylho fizeram rostro, pera lha dar [batalha] com sua jente, de que muyta era a Touro jaa
recolhida, e outra muita mais fycara na dita Cidade com a Raynha e com o Duque e Conde de Vylla Real
(…). E sendo jaa o tempo muy curto pera ElRey e o Pryncepe concertarem e repartirem sua jente em
batalhas (…), fyzeram logo de toda a jente nom mais de duas batalhas. A prymeira e de mayor numero
foy a d‟ElRey Dom Afonso, que (…) se pôs a cerca do ryo ao encontro da batalha. (…) A segunda batalha
de menos jente, e porém cortesaã e mui limpa foy a do Pryncepe, que com sua bandeira se pôs afastado aa
maoõ ezquerda d‟ElRey seu Padre». (CDAV, cap. CXC, p. 844)
«En su batalla, do yva él y su estandarte, yva el conde de Beule, y Pereyra, su guarda mayor, con
sus gentes, e muchos caballeros y escuderos castellanos que estauan en su conpañía. En la ala de su mano
yzquierda yva el príncipe su fijo, con otra esquadra de gente del obispo de Évora; y estas dos batallas del
príncipe y del obispo yvan forneçidas de grande número de espingardas e otros tiros de artillerías. E en la
ala de la mano derecha yva otra esquadra de gente, do yva por capitán el conde de Faro, con su gente e
con la gente del duque de Guimaraens, su hermano. E en otra batalla, a esta misma mano, yva el
arçobispo de Toledo con toda la gente de su casa, e en esta ala yva outra esquadra, do yva por capitán el
conde de Villarreal, e en otra batalla yva el conde de Monsant con sus gentes. El peonaje del rey de
Portogal venía repartido en quatro partes, todos a la parte del río». (CRC-FP, cap. LXIV, pp. 211-212)
«Pusieron los enemigos sus peones con algunos pocos de caballo delante para que continuasen
su camino sin detenerse, y repartieron su caballería en dos haces. Tuvo el príncipe de Portugal
ochocientos de caballo, la más escogida gente de todo su ejército, y con ellos se repartieron algunas
compañías de espingarderos que se habían escogido para ponerse a los lados de los escuadrones; y toda la
otra caballería con el estandarte real fue caminando con muy buena ordenanza y con gran concierto y
silencio y más a paso, teniendo un muy espacioso campo a su mano derecha y a la siniestra iban
guardados del río». (ACA-JZ, livro XIX, cap. XLIV)
Os portugueses correspondem à formação adoptada pelos castelhanos: um centro
e duas azes. Tal como no exército inimigo, cada uma destas batalhas era dividida em
esquadrões mais pequenos, por uma questão de facilidade no comando. Deste modo,
Afonso V comandava o centro, no qual se encontravam os fidalgos da sua casa e os
187
castelhanos que tomaram o seu partido, chefiados por Rui Pereira. A ala esquerda era a
que continha as 800 lanças da fina-flor da nobreza comandadas pelo príncipe e
enquadrava também os espingardeiros e a artilharia. A ala direita era composta, por sua
vez, pelo arcebispo Carrillo à cabeça das suas mesnadas mas também por soldados
portugueses.
À semelhança dos castelhanos, D. João também achou prudente mandar guardar
alguns homens de reserva, os quais foram comandados por Fernão Martins
Mascarenhas, seu capitão dos ginetes496
.
d) O início da batalha
«(…) fueron enpos de las batallas del rey de Portogal, fasta en el médio camino que es desde
Zamora a Toro. Y llegaron a vn portillo estrecho que se haze entre las cuestas e el río, por el qual no
puede pasar mucha gente junta, saluo pocos a pocos. E porque fué dicho al Rey que no podían alcançar al
rey de Portogal, e que antes que oviese pasado aquel portillo todas aquellas gentes serían puestas en saluo
en la çibdad de Toro, mandó estar quedas todas las batallas; e mandó que se juntasen con él todo aquellos
sus capitanes, e juntos allí en el canpo con él, preguntóles si sería bien pasar su hueste más adelante».
(CRC-FP, cap. LXIV, p. 209)
«E luego el príncipe de Portugal movió su batalla contra los que más çercanos halló, que eran los
trezientos de cavallo que siempre avían perseguido a los portugueses (…) [que] no se pudieron sostener,
mayormente por que sus cavallos terriblemente se espantaban del sonido de las espingardas». (CRC-DV,
cap. XX, p. 70)
«Esta batalla se començó muy tarde y llovía, y peleando les cerró la noche». (MRC-AB, cap.
XXIII, p. 59)
«(…) sendo já casy Sol posto, ElRey mandou dizer ao Pryncepe que com a sua bençam
rompesse logo, o qual por lhe obedecer e comprir o que tanto desejava, despois de em ambas as batalhas
se fazer pellas trombetas synal de batalha, ele e assy seus Capytães (…) deram assy rijamente nas
batalhas contrairas». (CDAV, cap. CXCI, p. 845)
Se qualquer decisão relativa à guerra tinha de ser bem estudada, a oportunidade
de uma batalha campal, que já era desejada desde o início da campanha mas que ainda
não tinha ocorrido devido a vicissitudes que já vim apontando, teve de ser bem
ponderada, embora num curto espaço de tempo. Estando então o grosso das tropas
castelhanas na entrada estreita que dá acesso à veiga de Toro, mas ainda do outro lado
496 CPDJ, cap. LXXVII, p. 164.
188
da serra e sem conseguir ver os inimigos, D. Fernando reuniu um conselho de guerra. O
dia ia já avançado e os castelhanos não sabiam que movimentações empreendiam os
seus inimigos. Em jogo estava uma oportunidade que podia ser única, mas era preciso
ter em conta as (des)vantagens tácticas. Algumas vozes no conselho defenderam que se
devia voltar para trás porque Afonso V fugira, logo a honra fernandina não estava
manchada497
. O soberano português tinha retirado efectivamente. Não havia qualquer
vantagem em ficar mais tempo no campo, não conseguindo cercar a cidade
conveninentemente. Além do mais, um contra-ataque em duas frentes estaria prestes a
ocorrer. Daí que a decisão mais acertada, não conseguidas as tréguas pedidas, fosse a
fuga. Creio que a estratégia portuguesa passaria por reagrupar para conseguir atacar
novamente Fernando. Uma guerra exaustiva a nível físico, psicológico e de recursos,
mas infrutífera. Porém, Pedro González de Mendoza defendeu que era necessário saber
exactamente qual a posição do exército inimigo e quais as suas intenções, já que devido
ao relevo não se sabia se o inimigo entrava para a segurança proporcionada pela cidade
de Toro, ou se, por outro lado, aguardava no campo os homens de Castela. Foi assim
que um conjunto de batedores comandado pelo dito Álvaro de Mendoza foi espreitar os
movimentos do rei português, voltando ao seu acampamento com notícia que este
monarca aguardava em campo a chegada de D. Fernando498
. Daí que o cardeal de
Espanha tenha exortado D. Fernando a combater. Mesmo assim, o Rei Católico hesitava
pois os portugueses tinham a vantagem de receber reforços da guarnição de Toro, ou a
cidade poder servir de refúgio a coberto da noite em caso de derrota499
. Pesados os
argumentos, deliberou o conselho em como se deveria dar batalha, sendo a principal voz
a favor a de Pedro González de Mendoza500
.
497 CPDJ, cap. LXXVI, p. 162.
498 CRC-FP, cap. LXIV, p. 211.
499 CEIV-AP, II, livro XXV, cap. VIII, pp. 269-270.
500 Palencia, Valera e Zurita colocam a exortação a D. Fernando na boca de Luis de Tovar: «(…) el noble y valiente caballero Luis de Tovar, censuró la apatía de D. Fernando, diciéndole en altas voces: “Mucho
temo, ínclito Monarca, que, por el parecer de los Grandes, sea más apariencia que verdadero deseo el que
muestras por empeñar combate. Quiero que te persuadas de que si deseas ser reconocido por Rey de
Castilla te conviene librarle, y manifestarte resuelto a no rehusarle jamás si diez veces se presentase la
ocasión”» (CEIV-AP, II, livro XXV, cap.VIII, p. 270); «(…) Luis de Tovar, muy noble caballero, pariente
cercano del rey, le dixo en alta voz: Señor, mucho me pesa que tardéis en dar la batalla que tanto deseais,
a vos señor conviene luego pelear si queréis ser rey de Castilla; e si diez vezes se ofresçiere, nunca se
debe dexar de pelear» (CRC-DV, cap. XX, p. 69); «Cuando había pasado todo nuestro campo aquel
estrecho y tenían muy cerca el de los enemigos, llegó al rey de Castilla un caballero que era tenido por
189
Figura 4 – Esquema da batalha de Toro
Legenda: A) Mosteiro de S. Miguel de Gros; B) Lugar de Pelayo González; C) Rio Douro; 1) A
vanguarda de Fernando captura 70 cavaleiros da retaguarda portuguesa; 2) O exército de Afonso V,
impossibilitado de completar a tempo e em segurança a manobra de fazer entrar em Toro todos os seus
homens, retrocede e posiciona-se para dar batalha, recebendo reforços da dita praça, alguns dos quais
eram soldados que já tinham entrado (3); 4) Avanço de D. Fernando, com uma formação clássica e
simétrica à do seu rival: o exército estruturou-se em vanguarda, centro e retaguarda e duas alas. Embora a
ilustração mostre ambos os reis na retaguarda, acredito que esta posição só fosse válida para o monarca
castelhano, uma vez que Afonso V se encontraría na frente exortando os soldados; 5) Após duros combates, a ala direita de Fernando derrota a esquerda de Afonso V, que se retira para Toro (6) e depois
disso continua a sua carga flanqueando o corpo centra portugués, forçando a retirada do Africano.
Fonte: SÁEZ ABAD, Rubén – La batalla de Toro 1476: La guerra de sucesión castellana, Madrid:
Almena ediciones, 2009, pp. 64-65.
Outro aspecto pertinente em que diferem as crónicas é em relação à forma como
o exército português ocupou o tempo até se ferir a batalha, especialmente entre Damião
de Góis, que nos mostra que os comandos e soldados portugueses tiveram bastante
tempo e queriam dar batalha, o que se explica após uma campanha já longa; e os outros
dois cronistas portugueses que tenho vindo a seguir, Pina e Resende, os quais afirmam
que a hoste tentava entrar em Toro quando abortou essa operação já em curso por se
considerar mais prudente dar batalha. Vale a pena então deter-me e citar o que dizem
estes autores:
muy esforzado y valiente que se llamaba Luis de Tovar y le dijo a voces que esperaba que aquel día había
de pelear si quería ser rey de Castilla» (ACA-JZ, cap. XLIV);
190
«(…) toda a gente delRei dom Afonso staua afastada da çidade, alguns em
ordenança, e outros scaramuçando pelo campo, e que na mostra que dauam pareçia
mais terem vontade de fazerem algum feito de guerra. (…) Os portugueses stauam
no campo tam de vagar, e em tam boa ordem de guerra, que se podia crer que nhũa
outra cousa faziam senam sperallo [a D. Fernando]»501.
«(…) quando seus contrairos começaram de mover contra ele [D. Afonso
V], o qual sendo a duas léguas de Çamora adiantousse pello fyo a reter sua gente,
que a Touro se recolhia»502.
«Sendo ja el Rey dom Fernando tão cerca, que não podião ordenar sua
gente, que era bem pouca em respeito da dos Castelhanos, e com tudo com muyta
pressa a ordenarão em duas batalhas»503.
Entrar em Toro significava passar para a margem direita do rio Douro
novamente, através da ponte que dava acesso à cidade. Esta travessia estrangulou a
passagem dos homens e atrasou-os, dado que alguns já haviam entrado na cidade504
,
dando tempo ao exército de D. Fernando de alcançar por completo os soldados
portugueses. Isso explica que Rui de Pina afirmasse que alguns homens «andauam
espalhados polo campo». Também alguns cronistas favoráreis a Castela parecem ter-se
apercebido de que o exército português, embora próximo do seu quartel-general, tinha a
dificuldade logística de fazer entrar todos os homens na cidade em segurança:
«Sabido por el rey de Portogal que ele Rey avía salido de Zamora y venía
empos dél, reputando a gran mengua si no tornasse a pelear, ovo consejo de boluer
sus batallas, segúnd avemos dicho, y de esperar al Rey e de le dar batalla si más se
açercase donde él estaua»505.
501 CPDJ, cap. LXXVII, p. 162.
502 CDAV, cap. CXC, p. 844.
503 CDJII, cap. XIII, p. 12.
504 «E ElRey Dom Afonso muy contente e allegre de non negar a batalha, pera que per hum trombeta e
arauto d‟ElRey Dom Fernando era já desafyado com quanto tinham muyto menos gente, porém elle e o
Pryncepe seu Fylho fizeram rostro, pera lha dar com sua gente, de que muyta era a Touro jaa recolhida, e
outra muita mais fycara na dita Cidade com a Raynha e com o Duque e Conde de Vylla Real». (CDAV,
cap. CXC, p. 844)
505 CRC-FP, cap. LXIV, p. 211.
191
«Viendo el rey de Portugal que ya no podía entrar con sus gentes en la
puente de Toro sin ser destrozado, acordó de esperar en aquel campo»506.
Rui de Pina e Damião de Góis parecem ter notado uma formalidade importante,
ou seja, o facto de D. Fernando ter enviado um trombeta e um arauto a desafiar
formalmente para batalha o rei português507
. Estas missões, como já foi notado por João
Gouveia Monteiro, podiam servir para espiar o arraial inimigo, uma vez que o arauto
beneficiava de um estatuto de sacralidade, embora o códice Livro de Arautos, datado do
início do século XV, advirta que a espionagem retira ao arauto capacidade natural para
exercer embaixadas de guerra e negociar tratados de paz508
. Por seu lado, Afonso de
Palencia não fala do arauto mas coloca Pedro Vaca – cavaleiro castelhano, a ir provocar
os portugueses, admoestando os seus compatriotas que estavam na linha da frente e
combatiam ao lado de D. Afonso V, que não deviam perpetrar um crime contra o seu rei
natural e ao lado do «eterno enemigo»509
. Diego de Valera segue de perto as palavras
escritas por Palencia, dando fé da provocação que levará ao início da peleja por ordem
do príncipe D. João. As fontes que tenho vindo a seguir parecem estar de acordo ao
afirmar que foi o príncipe quem abriu as hostilidades através dos espingardeiros, os
quais assustaram os cavalos inimigos, fazendo a cavalaria portuguesa desbaratar, num
primeiro embate, os esquadrões da ala direita castelhana.
Este mesmo episódio de Pedro Vaca, embora as penas portuguesas não o tenham
registado, não é entendido pelos cronistas da mesma forma. Palencia, a quem Diego de
Valera segue de perto, diz:
«Mientras regresaba Pedro Vaca, D. Fernando se puso el casco y dispuso
acertadamente todo lo necesario para la batalla. Lo mismo hicieron los Grandes,
506 ACA-JZ, cap. XLIV.
507 CDAV, cap. CXC, p. 844. Por seu lado, Góis afirma mesmo que D. Afonso V terá sido pouco polido na
resposta ao diplomata: «elRei dom Afonso dixe ao rei d‟armas que podia dar em resposta aho Prínçipe da
Siçília, que era mais tempo de s‟encontrarem, que nam de lhe mandar desafios». Cfr. CPDJ, cap.
LXXVII, p. 165.
508 Citado por MONTEIRO – A guerra em Portugal..., p. 264, nota 172. Sobre a temática dos arautos
vejam-se as pp. 242-243 e 274-277.
509 CEIV-AP, II, libro XXV, cap. VIII, p. 270.
192
porque encolerizados com las voces de los acusadores, procuraron ocultar en el
semblante y en las palabras todo deseo de rehusar la pelea»510.
Já Zurita, que habitualmente também segue Palencia, desta vez não o faz
integralmente:
«Envió el rey de Castilla con Pero Vaca a saber el parecer del cardenal
y de todos los otros grandes; y todos los del real estaban tan animados para ella
que ninguno dellos la quería rehusar»511.
Os cronistas castelhanos não quiseram omitir os riscos que semelhante batalha
representava para os Grandes de Castela, aos quais, na verdade, era muito mais
vantajoso deixar prosseguir o conflito, tentando conquistar a simpatia do monarca e
mercês para si e respectiva família, do que jogar o tudo ou nada numa batalha campal
cujo desfecho seria imprevisível.
Havia, pois, que começar a batalha porque alguns desertores já haviam
abandonado o campo512
. Tal como em relação à distância da cidade de Toro onde se
travou a batalha, no que diz respeito ao número de homens que estaria em campo, esse
varia consoante a pena. Atente-se na tabela seguinte, a qual mostra resumidamente os
efectivos militares e as baixas sofridas por ambos os partidos aquando da batalha de
Toro, segundo os vários cronistas.
Batalha de Toro
Efectivos Baixas
Rui de PINA --- ---
Damião de GÓIS Port.: --- Cast.: só quantificou 200 ginetes
---
Garcia de RESENDE --- ---
Fernando del PULGAR Apenas diz que os números eram
aproximados ---
Afonso de PALENCIA Port.: 3 500 lanças
Cast.: 3 000 lanças
Port.: ---
Cast.: 9 homens
510 CEIV-AP, II, livro XXV, cap. VIII, p. 270.
511 ACA-JZ, cap. XLIV.
512 «(…) el rey don Fernando, sabiendo cómo fasta quinientos de los suyos avían fuído, a grandes bozes
dixo: O noble gente, no temáys de pelear, que oy avremos la victoria de nuestros enemigos!» Cfr. CRC-
DV, cap. XX, p. 70.
193
Diego de VALERA
Port.: 3 500 lanças; muitos
espingardeiros
Cast.: 3 000 lanças; muitos peões
Port.: mais de 800 homens
Cast.: ---
Andres BERNÁLDEZ Port.: 3 500 cavaleiros; 5 000 peões
Cast.: 2 500 cavaleiros; 5 000 peões
Port: 1 200 homens
Cast.: ---
Lúcio Marineo SÍCULO --- ---
Jerónimo ZURITA
Port.: 3 500 cavaleiros
Cast.: 3 000 cavaleiros
Port.: ao invés de quantificar,
Zurita nomeia os principais
capitães portugueses: Fernando de
Almeida, Garcia de Melo, Nuno de
Castro
Cast.: 300 cavaleiros
Crónica incompleta... --- ---
Cronicón de Valladolid...
Port.: 3 500 cavaleiros; 10 000 peões Cast.: 400 cavaleiros; 3 000 peões
Port.: 1 500 homens (300 dos quais afogados)
Cast.: 30 homens
Tabela 2 – quantificação de efectivos militares e baixas resultantes da batalha de Toro
Creio que a questão da data é um assunto actualmente pacífico. A batalha
verificou-se a 1 de Março de 1476, uma sexta-feira. A confusão pode ter sido gerada
pelo engano registado em Garcia de Resende, o qual afirma que a batalha se travou
numa «sefta feyra, dous dias do mês de Março do anno de mil e quatrocentos e setenta e
seys»513
. Acontece que o dia 2 de Março de 1476 calhou a um sábado e não a uma
sexta-feira. Este lapso foi depois reproduzido pelo Visconde de Santarém514
e
esporadicamente por alguns autores modernos515
. Todos os outros cronistas que tenho
vindo a seguir expressam claramente que a batalha se feriu a 1 de Março de 1476.
e) A sequência da batalha. As várias batalhas
«Fue el primero que la acometió con los suyos el príncipe de Portugal, arremetiendo contra la
caballería que todo aquel día los iba persiguiendo». (ACA-JZ, cap. XLIV)
«Puestos así los vnos y los otros en horden de batalla (como las banderas enemigas se vieron),
fecho el signo de pelear por las tronpetas, los vnos se vinieron para los otros con muy recio
513 CDJII, cap. XIII, p. 11.
514 SANTARÉM – Quadro elementar…, p. 378.
515 DUARTE, Luís Miguel - «1449-1495: O triunfo da pólvora», p. 382; MORENO, Humberto Baquero –
«Os confrontos fonteiriços…», p. 111; MATOS, Gastão Melo – «Toro», in Dicionário de História de
Portugal, dirigido por Joel Serrão, vol. IV, [s.l.], Iniciativas Editoriais, 1971, pp. 530-532.
194
acometimiento, e las batallas se ynvistieron vnas en otras (e nombrando cada uno su apelido, los unos
Fernando, los otros Alfonso), y se firieron de las lanças (...); E quebradas las lanças, vinieron al combate
de las espadas». (CRC-FP, cap. LXIV, pp. 212-213)
«E assy como as batalhas do Pryncepe no desbarato fyzeram a estas d‟ElRey Dom Fernando,
assy a batalha grande d‟ElRey Dom Fernando fez na d‟ElRey Dom Affonso, que sem alguma força nem
resistência a rompeo logo, e destroçou com dano e mortes de muytos». (CDAV, cap. CXCI, p. 845)
A batalha começara ao fim da tarde, o que é bastante incomum. Para além disso,
as condições metereológicas eram adversas, pois as nuvens deixavam antever a borrasca
que se iria instalar antes do cair da noite516
; essa meteorologia acabou por ser uma
bênção para os soldados portugueses, os quais, derrotados, aproveitaram a sua protecção
para fugir para Toro. Foi uma decisão ousada, a de dar batalha, uma vez que se estava
ainda no Inverno, anoitecia e a chuva tinha começado a cair. Poder-se-á atribuir esta
resolução de oferecer batalha a ambos os monarcas, e quiçá principalmente D. Afonso
V, pelo facto de estarem cansados de tão longa campanha e de os recursos escassearem,
querendo obter um resultado decisivo que se afastasse da guerra de desgaste. Dado o
congestionamento e a obscuridade, alguns lançaram-se ao rio, mas sendo ainda Inverno,
o rio ia tão crescido que não era de esperar que soldados, alguns dos quais com o peso
das armas, quer ofensivas, quer defensivas, pudessem lutar contra essa poderosa força
da natureza e vencer. A maior parte foi assim encontrada às portas de Zamora nos dias
seguintes. Porém, não me quero adiantar.
Como podemos perceber pelos excertos citados no início deste sub-capítulo, o
início da batalha está associado ao comando do príncipe D. João. Além dos já referidos
Pulgar, Pina e Zurita, também Palencia atribuiu o sinal de batalha ao futuro Príncipe
Perfeito:
«Al punto los espingardaros encendieron las mechas, y para librarse de
los tiros, Vaca torció el caballo, resguardándose con su cuello y poniéndole luelo al
galope hasta reunirse con los suyos. El príncipe D. Juan dio una embestida a los
516 Diz Damião de Góis que a batalha se iniciou «já depois de véspera, andando ho dia cuberto com
neuoeiros, e chuiua meuda». Cfr. CPDJ, cap. LXXVIII, p. 165.
195
jinetes más próximos, que durante todo el día habían venido picando la
retaguardia»517.
Do mesmo modo, Damião de Góis e Garcia de Resende indicaram o príncipe
como responsável pelo começo da refrega:
«E estando assi as batalhas ordenadas de huma parte e da outra pera
encontrar, sendo ja quasi Sol posto, el Rey mandou dizer ao Principe que lhe
mandaua a bençam de Deos, e a sua, e que com ella desse logo rijamente nos
contrayros: o qual por lhe obedecer, e cumprir o que tanto desejava, depois de feito
sinal pollas trombetas, elle com todos os seus com grandissimo esforço e animo,
como singular Capitão, bradando todos pollo nome de Sam Iorge, com grande
força e ímpeto deu tam bravamente nas batalhas contrayras...»518.
«Ho Prinçipe dom Ioam seguindo ho que lhe elRei seu pai mandara,
chamando todolos que com elle stauam sam George em sua ajuda, foi ferir nas
çinco allas»519.
f) A disposição dos exércitos
Devo começar por referir que estando então as hostes prestes para combater,
após os reis terem exortado os seus homens à vitória, invocaram-se os respectivos
apelidos520
. Os portugueses gritavam por S. Jorge, padroeiro de Portugal, e S. Cristóvão,
santo da devoção de Jorge Correia, comendador do Pinheiro, enquanto os castelhanos
pediam a assistência de Santiago. Isto de acordo com Rui de Pina e Damião de Góis. Já
517 CEIV-AP, II, livro XXV, cap. VIII, p. 271.
518 CDJII, cap. XIII, p. 12. Aproveito para fazer referência a um cronista que consultei ocasionalmente,
por ser mais tardio. Duarte Nunes de Leão, nas suas Crónicas dos Reis de Portugal, publicada
originalmente em 1600, afirmou na Crónica e Vida del Rey D. Afonso V que «dado o sinal de huma parte,
e da outra, o Principe D. Joaõ seguindo o que seu pai lhe mandara (...), foi ferir nas seis alas dos
Castelhanos, que lhe estavaõ fronteiras, e o primeiro de todos que rompeo, foi Gonçalo Vaz de
Castellobranco, que levava seus cento e vinte de cavalo mui concertados (...). Tanto que o Principe
accommetteo aquellas seis alas, abalou logo el Rey D. Affonso em pessoa com sua batalha, seguindo o
Conde de Faro com sua ala». Isto faz-nos crer que o ataque não foi bem sincronizado e que o príncipe D.
João atacou primeiro. Cfr. LEÃO, Duarte Nunes de – Crónicas dos Reis de Portugal, Porto: Lello &
Irmão Editores, 1975, pp. 970-971.
519 CPDJ, cap. LXXVIII, p. 165.
520 Sobre os momentos que antecedem a batalha, leia-se também MONTEIRO – A guerra em Portugal
nos finais da Idade Média, p. 277.
196
o cronista Fernando del Pulgar menciona apelidos diferentes: “Fernando” e “Alfonso”
para castelhanos e portugueses respectivamente. É importante notar a divergência,
baseada evidentemente nas fontes, de que os cronistas nacionais afirmam que
portugueses e castelhanos invocavam a ajuda dos respectivos patronos, enquanto
Palencia refere que os combatentes gritavam pelos seus líderes. Zurita, bem como
Palencia, dão conta do chamamento (o qual serviria muito provavelmente de apelido
durante a batalha) e do valor de Álvaro Mendoza, de quem se dizia que se queria furtar
à batalha, acabando por reconhecer também o valor de Alfonso Carrillo:
«"Traidores; aquí está el cardenal", y estaba el arzobispo de Toledo de la
otra parte que podía cantar al mismo son, que en su edad no hacía peor su deber,
según fue siempre animoso y guerrero»521.
Lendo os vários cronistas, apercebemo-nos de nova divergência. A posição dos
monarcas em campo não é simétrica, ao contrário das hostes que se defrontaram. Ao
passo que D. Afonso V surgia na linha da frente a incutir ardor nos seus homens, D.
Fernando adoptava uma posição na retaguarda, própria da Idade Moderna, ficando
assim mais protegido em caso de derrota e consequente necessidade de fuga e
eventualmente tendo uma melhor visão de conjunto do combate, e uma maior
capacidade de intervir com ordens e instruções. Damião de Góis reforça bem essa ideia.
Isto é, porém, a visão que nos é transmitida pela cronística portuguesa:
«ElRey Dom Fernando nom foy em pessoa própria na sua batalha, que
venceo a d‟ElRey Dom Affonso, mas como era pratico guerreiro, por ver como as
cousas de tamanha ventura sobcediam, apartouse fora em huma batalha»522.
«(...) daquella parte staua a batalha, e bandeira real delRey dom
Fernando, mas nam já sua pessoa, porque ele por se assegurar, e por conselho dos
seus, depois de ter ordenadas todalas allas do exerçito, se pos em hũa pequena, que
521 ACA-JZ, cap. XLIV.
522 CDAV, cap. CXCI, p. 846.
197
pera isso deixou na reguarda acompanhado de boa, e nobre gente, pera dali se
saluar se ha fortuna lhe fosse contraira»523.
«ElRei dom Fernando quomo fica dito, se pos na regaça de todo seu
exerçito em hũa alla pequena»524.
As penas castelhanas apresentam-nos um cenário distinto, na qual D. Fernando
comandava na linha da frente, incitando os seus homens ao combate:
«Al ver D. Fernando el espanto de muchos de los suyos y la huida de las
400 lanzas, les grito: - “Que terror es ese, nobles soldados? Cobrad ánimo, y todos
los valientes salgamos sobre el enemigo en busca de gloriosa victoria”. Dicho esto,
y al toque de todos los clarines, embistió con escogida caballería, aunque inferior
en número a la enemiga, contra el centro de batalla de D. Alfonso»525.
«En este conbate del rey de Castilla y el rey de Portugal, cada vno por su
parte andavan veces amonestando sus gentes a la pelea, veces rodeaua cada vno
sus haces e renovando los lugares flacos de gente, vezes peleavan; e ayudando
cada vno al lugar do era menester ayuda»526.
No que diz respeito à batalha propriamente dita, Rui de Pina não é muito
generoso nos pormenores. Sucintamente, da sua leitura percebemos que o contingente
liderado pelo príncipe D. João desbaratou a az correspondente castelhana, mas para
infortúnio dos portugueses, os corpos comandados por Afonso V foram vencidos pela
batalha real fernandina. Para este autor a explicação para este facto é simples:
«Porque na batalha do Pryncepe era a frol dos Fydalgos e nobre jente de
Portugal, que faleceram nesta d‟ElRey Dom Afonso, e mais na batalha d‟ElRey
Dom Fernando vynha muyta, e muy grossa jente d‟armas encobertados, aalém dos
523 CPDJ, cap. LXXVII, p. 164.
524 CPDJ, cap. LXXVIII, p. 167.
525 CEIV-AP, II, livro XXV, cap. VIII, p. 271.
526 CRC-FP, cap. XLIV, p. 213.
198
genetes, e mais lançaram diante de sy huma gram soma d‟espingardeiros, que ao
romper fizeram com seus tiros fronteiros duvydar, e enfiar os cavalos e a gente da
batalha d‟ElRey Dom Afonso»527.
Podemos perceber da leitura das fontes que houve vários embates, sucessivos e
simultâneos. Isto porque as tropas lideradas por D. João causaram o terror nas posições
castelhanas, as quais tiveram de reagrupar. Este triunfo fugaz não foi devidamente
aproveitado pela az comandada por D. João, uma vez que as tropas parecem ter voltado
à posição inicial, não aproveitando para fortificar a refrega que se travava no centro.
Contribuiu decisivamente a acção do cardeal de Espanha, o qual, ao carregar novamente
sobre a ala direita portuguesa, conseguiu impelir a poderosa cavalaria castelhana,
desbaratando, em reflexo, os portugueses que os haviam atacado e, ao contrário do que
haviam feito os seus inimigos, reforçando os efectivos que lutavam no centro. Daqui se
depreende que embora houvesse um exército português, combateram separadamente e
não houve a coordenação necessária entre os dois corpos principais: o de D. Afonso V e
o do Príncipe D. João. Assim, os homens do monarca português, sendo os que mais
necessitavam de vencer, acabaram por ser derrotados. Afirma Pulgar que durante uma
hora a vitória não pendeu para nenhum dos lados528
. Temos de analisar com prudência
as palavras do cronista em questão. Primeiramente porque uma hora a combater
pesadamente armado era algo de esgotante, quer para o homem, quer para o cavalo,
devido ao peso do armamento defensivo e ofensivo. Depois porque temos de ter em
conta o adiantado da hora e a escuridão crescente. Deste modo, os cavaleiros que
podiam ter tido um papel preponderante, não o tiveram. Devemos então interrogar-nos
acerca do que andou a fazer a cavalaria durante uma hora. Posteriormente, as fontes
também dão conta de como o centro castelhano – liderado uma vez mais pelo cardeal de
Espanha, pelo duque de Alba e pelo almirante de Castela, conseguiu com menos
homens rechaçar o centro luso, flanqueando os portugueses. A fuga portuguesa das azes
do rei tornou-se descontrolada na direcção de Toro. Alguns dos homens tentaram
527 CDAV, cap. CXCI, pp. 845-846.
528 Também Duarte Nunes de Leão, provavelmente bebendo informação em Fernando del Pulgar, afirma
que estas duas batalhas pelejaraõ por espaço de huma hora, sem a victoria se inclinar a alguma das
partes». Cfr. LEÃO, Duarte Nunes de – Crónicas dos Reis de Portugal, Porto: Lello & Irmão Editores,
1975, p. 971.
199
escapar pelo rio, como já referi, mas não tiveram sorte, pois trocaram a morte pelas
armas pela morte por afogamento, afirmando mesmo Fernando del Pulgar que foram
mais os homens que morreram no Douro do que os que morreram em combate. As
estimativas de efectivos estão praticamente ausentes das penas portuguesas, mas estão
em desacordo com os números recolhidos pelos cronistas castelhanos (veja-se acima a
tabela 2), que atribuem mais soldados a Portugal do que a Castela. Não era um
procedimento invulgar. Era, sim, uma maneira de elevar a glória dos vencedores.
As palavras de Rui de Pina exprimem bem os motivos pelos quais centro e ala
direita portuguesa não tiveram hipótese: os castelhanos eram mais, como já referi;
tinham homens de armas, ou seja, soldados bem protegidos por bacinetes, camais,
arneses mais ou menos completos, bem como cavalos protegidos também – cavalaria
pesada; e isto sem contar com os ginetes. Os guerreiros portugueses equivalentes a estes
estavam, lembra Pina, na batalha de D. João. Esta decisão pode parecer algo bizarra. Por
que não estariam os melhores homens ao lado do seu rei? Não os teria D. Afonso V
trazido aquando da invasão de Castela no ano anterior? Ou teria a marcha forçada do
exército português e a respectiva perseguição empreendida pelos soldados castelhanos
condicionado o posicionamento das tropas? Lembremo-nos que D. João vinha mais
atrás do que o seu pai quando soube que D. Fernando perseguia os portugueses. Por esta
altura já D. Afonso V organizava a entrada da carriagem e dos peões portugueses em
Toro. Porém, estes foram mandados sair de novo devido à decisão tomada de dar
batalha. Por outras palavras, uma possível justificação para a nata da nata da cavalaria
portuguesa estar com o príncipe prende-se com a ordem de marcha dos homens e o
tempo para ordenar os mesmos em campo. Um outro motivo a apontar pode passar pela
homogeneidade do corpo de cavalaria em questão, talvez acreditando D. João e D.
Afonso V que, mesmo sendo menos, contrabalançariam essa desvantagem pelo facto de
serem os melhores armados. Não esqueçamos que a presença de espingardeiros neste
contingente ajudou a caracterizá-lo como o melhor, não obstante ser numericamente
inferior ao do soberano português. A importância do corpo de espingardeiros, quer no
caso dos castelhanos, quer no caso dos portugueses, teve um papel decisivo. Não
sabemos se esse papel se deveu à eficácia dos projecteis dos espingardeiros, se
unicamente ao estrondo e ao fumo, os quais assustavam bastante os cavalos. Por fim,
relembro algo que não deve escapar à nossa percepção. A redação cronística foi levada a
cabo já no reinado de D. João II, portanto o facto de o relato mostrar os melhores
200
cavaleiros ao lado de D. João pode indiciar já a preparação do cenário para a entrada em
cena do Príncipe Perfeito enquanto rei.
Para o episódio militar emblemático desta campanha, a sua descrição nas fontes
é muito parcimoniosa. Já Luís Miguel Duarte registou que Pulgar foi o único cronista
evidenciar um demorado equilíbrio na luta. Isto se não atendermos à descrição dada por
Lúcio Marineo Sículo, por ser manifestamente incorrecta e distante das outras que tenho
vindo a seguir, o qual refere que ambos os partidos lutaram desde as nove horas até
depois do sol se pôr, sem nenhum dos lados parecer vitorioso529
. Sugere ainda Luís
Miguel Duarte que uma possível razão para o cronista o ter feito seria o atribuir algum
protagonismo a D. Fernando, quando, na verdade, de acordo com a cronística
portuguesa, ele não o teve530
.
O que podemos destacar destas passagens? Que de uma maneira incipiente, o
exército dá os seus primeiros passos na modernização. Vejamos alguns exemplos. Por
um lado, os apelidos mostram-nos a fragmentação própria de um exército medieval que
acaba por ser o somatório de um conjunto de contigentes particulares; a falta de
comunicação entre estes mesmos corpos531
; a disposição dos homens em campo
apresenta uma tipologia tripartida, em que um exército faz por espelhar a posição do seu
adversário, demonstrando uma mentalidade claramente medieval; por outro lado, a
utilização de espingardeiros e a sua colocação em campo; o uso recorrente e com
sucesso da artilharia532
; e a posição de D. Fernando na retaguarda são claros indicadores
de que sopram ventos de mudança.
529 VHRC-LMS, p. 44.
530 DUARTE, Luís Miguel - «1449-1495: O triunfo da pólvora», p. 383.
531 Note-se o total desconhecimento, no campo de batalha, de D. João face ao pai e vice-versa, tanto que
só no dia seguinte houve novas de que Afonso V não tinha perecido na batalha, mas se tinha abrigado em
Castronuño.
532 Diz Pulgar que «estas dos batallas del prínçipe y del obispo yvan fornecidas de grande número de
espingardas e otros tiros de artillerías». Cfr. CRC-AP, cap. LXIV, pp. 211-212. Estas afirmações dos
cronistas são tão desprovidas de conteúdo, quanto eram os seus conhecimentos militares e, se bem que
sejam as nossas fontes principais, pouco nos ajudam quando mais pormenores seriam essenciais.
201
g) A fuga de Afonso V. A vitória do príncipe D. João. A noite no campo
«Desbaratada la batalla real primera del rey de Portugal -a donde fue derribado y tomado su
pendón de las armas reales- y muerto el alférez Duarte de Almeida -según parece en la relación que envió
el rey de Castilla del suceso de la batalla, aunque Hernando del Pulgar dice que fue preso y llevado a
Zamora-, y ganadas las más de las otras banderas, temiendo el rey de Portugal ser preso se salió de la
batalla con solo veinte de caballo y tomó el camino de la sierra apartándose del río; y aquella noche se fue
a recoger al castillo de Castro Nuño». (ACA-JZ, cap. XLIV )
«Quomo soube que ho Prinçipe dom Ioam desbaratara has seis allas primeiras, e ha ventura em
que staua sua batalha Real, sem ha victoria se mostrar por ella, nem polo delRei dom Afonso, mandou
dali recado aho Cardeal de Castella, e aho duque d‟Alua, encomendandolhes que tomassem a cargo fazer
todo ho que comprisse áquele exerçito segundo vissem que a tal tempo, e sazam conuinha, e antes que
hos Portugueses se começassem a desordenar, e ir de vencida, se acolheo caminho de Çamora
acompanhado daquela alla pequena com que se deixara ficar atras contra ha entrada da montanha e ainda
de noite chegou à cidade, sem ele, nem hos que com ele hiam saberem, se eram vençidos se vençedores».
(CPDJ, cap. LXXVIII, p. 167)
«La lluvia, la oscuridad de la noche y el no saber de cierto el camino que llevaban los fugitivos,
hizo a los nuestros perder la formación y no les permitió adoptar un plan para alcanzar victoria completa.
Al rey D. Fernando le acompañaran tan pocos que a veces tuvo que perseguir al enemigo con sólo três
caballeros, Garcia Manrique, Iñigo López de Albornoz y Fernando Carrillo de Córdoba (...). Las demás
tropas se entretenian en recoger el botín o en perseguir rápidamente al enemigo por la llanura». (CEIV-
AP, II, livro XXV, cap. VIII, pp. 271-272)
«La confusión hubiera podido trocar en desastre la victoria si el príncipe D. Juan, todavía a la
cabeza de tropas en buen orden y próximo a la orilla del Duero, hubiese atacado a nuestra gente
desparramada; pero lleno de excesivo terror, sólo pensaba en aprovechar las sombras de la noche para
encaminarse lentamente hacia Toro. Su irresolución engañaba a los nuestros, no menos vacilantes, y
cuando por caso algunos reconocían en la marcha al caudillo portugués, temían acometer con tropas
desordenadas al escuadrón correctamente formado». (CEIV-AP, II, livro XXV, cap. IX, p. 272)
«E assi recolheo muyta gente, que pollo campo era espalhada, e fez corpo, e com muyta
segurança, e sossego, e grandissimo esforço, e recado esteve no campo a mayor parte da noite, sem nunca
mouer atrás, estando junto delle muyta mais gente del Rey dom Fernando, qua a sua, a qual pollo tão
valentemente verem peleijar, e vendo a segurança, e sossego com que estava, nunca ousou de o cometer,
estando tão cerca huns dos outros, que se ouuiam o que falauam. E como a noite escureceo se foram
todos, e o Principe ficou só no campo, triumphando do tamanho vencimento, e fazendo recolher os
feridos, e mortos como piadoso capitão esteue assi quedo». (CDJII, cap. XIII, p. 14)
As condições atmosféricas a que já aludi impediram o normal desenrolar da
batalha, pois a visibilidade era praticamente nula, tanto por causa da escuridão, como
por causa da chuva. Nesse sentido, D. João reagrupou os homens, chamando a sua
atenção o melhor que pôde, através de tambores e trombetas, e fortificou-se no alto de
202
um cerro, mandando acender fogos533
. Quanto mais nos aproximamos na acção do
desfecho da batalha, mais diferentes leituras vamos fazendo entre os cronistas
portugueses e os cronistas castelhanos. Neste ponto não podemos crer nas palavras de
Afonso de Palencia, que assevera que D. João marchou para Toro protegido pela
obscuridade534
.
Houve ainda lugar para o heroísmo de Duarte de Almeida, que ao ver-se rodeado
de inimigos, defendeu o estandarte real o melhor que conseguiu. Segundo a descrição,
os castelhanos deceparam-lhe um braço, fazendo o alferes agarrá-lo com a outra mão, a
qual também foi decepada. O alferes acabou a segurar o estandarte com os dentes para
gáudio dos castelhanos. Neste ponto, algumas crónicas castelhanas divergem uma vez
mais das portuguesas, uma vez que as primeiras afirmam que o alferes foi morto, ao
passo que as portuguesas dão bem conta dos últimos dias de Duarte de Almeida,
bastante depois da batalha, lamentando os cronistas que ele não tivesse tido uma tença
adequada aos serviços que prestou durante a batalha de Toro535
. Afonso de Palencia e
533 «Ho prinçipe (...) se fez forte em hũa assomada (...), donde com has trombetas, e atabales, que fazia
tocar a meude, e com fogos que mandou fazer, daua sinal ahos que andauam spalhados pelo campo, pera
se recolherem par‟elle, ho que assi fezeram, nam tam sómente hos que da sua alla faltauam, mas muitos
dos destroçados que scaparam da batalha delRei, que nam poderam tomar ho caminho de Touro». Cfr.
CPDJ, cap. LXXIX, p. 168.
534 Contraponham-se as palavras de Palencia, acima enunciadas, com as palavras de Fernando del Pulgar
(CRC-FP, cap. LXIV, p. 215), que corresponde ao relato que podemos ler nas crónicas portuguesas e
explicando que, na verdade, quem retirou para Zamora foram os soldados castelhanos «porque la noche
era tan escura, que no se veían ni conoçían vnos a otros, y la gente del Rey estaua cansada, e muchos
dellos no avían comido en todo el dia, porque de Zamora avían salido mucho por la mañana».
535 Cfr. CRC-DV, cap. XX, pp. 70-71; ACA-JZ, livro XIX, cap. XLIV. Palencia apenas afirma que Pedro
«Vaca derribó al Alferez» (CEIV-AP, II, livro XXV, cap. VIII, p. 271). Pulgar também não fala na morte
de Duarte de Almeida (CRC-AP, cap. LXIV, pp. 213-214). Quanto às penas portuguesas, Resende declara
que os castelhanos o deixaram por morto (CDJII, cap. XIII, pp. 12-13), mas efectivamente expressivos
são Rui de Pina e Damião de Góis respectivamente: «(...) a qual [bandeira] nom foy aquelle dia tomada
das maaõs de Duarte d‟Almeyda Alferez pequeno, até que lhas primeyro nom deceparam com outras
infyndas feridas, que no rosto e em todo ho corpo ouve, de que escapou. E a tanto mal se estende o maoo
sobcedimento das cousas, que este Alferes, a que tanta honrra e riqueza após ysto se devia, viveo despois
alleijado e prove, e nam com gallardam dino de tal serviço» (CDAV, cap. CXCI, p. 847); «e na mesma
pobreza viueu ho alferes Duarte d‟Almeida, aho qual se nam fez merçe nhũa em satisfaçam de quantas
feridas reçebeo antes que lh‟os castelhanos tirassem ha nossa bandeira Real das mãos» (CPDJ, cap.
LXXVIII, p. 168). Como já notou Sousa Viterbo, Duarte de Almeida já havia sido recompensado antes da
própria batalha de Toro, em Novembro de 1475, com mercê para o seu filho mais velho, da terra e celeiro
de Mossamedes, na comarca da Beira, termo de S. Pedro do Sul (Cfr. VITERBO, Sousa – A batalha de
Toro, Lisboa: Tipografia Universal, 1900, pp. 17-18). O segurar da bandeira tendida era um sinal visual
essencial para a organização do exército em campo, o qual podia e devia sempre agrupar-se em torno
desta, sob pena de o exército bater em retirada. Daí que Gonçalo Pires, escudeiro, tenha feito tudo para
203
Diego de Valera, por exemplo, atribuem importância capital a este episódio, que saldou
uma dívida em aberto, existente desde 1385, na batalha de Aljubarrota, altura em que os
portugueses capturaram a bandeira de João I de Castela.
A ala direita portuguesa sofreu grandes dificuldades, por causa da chuva e da
proximidade com o rio Douro. Assim, quando os soldados partem em debandada para
buscar refúgio na cidade de Toro, são vítimas da perseguição acesa dos castelhanos. A
confusão da retirada e do mau tempo causou dissabores não só aos anónimos soldados
que se lançaram ao rio na esperança de escapar, encontrando assim a maioria a sua
morte, como também a Enrique Enriquez, conde de Alba de Liste, o qual acabou por se
ver completamente cercado por inimigos e capturado como precioso refém, próximo da
ponte de Toro536
. Pelo este motivo, o mesmo cronista explica que muitos portugueses
bradavam agora o apelido “Fernando” para escaparem à captura por parte dos seus
inimigos.
No que diz respeito à conduta de D. Fernando, podemos dizer que o relato de
Pulgar está muito mais próximo do que noticiam os cronistas portugueses e, por sua
vez, se afasta das ideias de Palencia. Zurita não segue Pulgar neste caso. Vejamos o que
podemos aferir acerca do monarca castelhano:
capturar as bandeiras perdidas (algumas das quais se perderam no rio), tendo-as conquistado novamente a
Pedro Vaca e a Pedro de Velasco. Veja-se CDAV, cap. CXCI, p. 847 e CRC-AP, cap. LXIV, p. 214.
Curiosamente, Palencia omite este acontecimento. Mesmo assim, os castelhanos conseguiram capturar
oito bandeiras portuguesas menores, as quais foram levadas como troféu de guerra para Toledo, para a
capela de S. Juan de los Reyes (MRC-AB, cap. XXIII, p. 59). Pulgar (p. 214) menciona que elas foram
levadas para Zamora, o que é perfeitamente normal, uma vez que era a base mais próxima da batalha que
se travou, podendo posteriormente ter sido levadas para Toledo. Também Luis Suárez interpretou somente
as palabras de algumas crónicas castelhanas, dando o alferes por morto logo no próprio campo de batalha.
Cfr. SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: la conquista del trono, p. 156.
536 CRC-FP, cap. LXIV, p. 214; CDJII, cap. XIII, pp. 14-15. Queixam-se os cronistas que apenas na
manhã seguinte houve novas em como o conde tinha sido feito prisioneiro pelos inimigos, não deixando
de haver uma analogia com a situação em que se encontrava Afonso V que, refugiado em Castronuño,
também preocupava todos em Toro. Cfr. CEIV-AP, II, livro XXV, cap. IX, p. 272 e CRC-DV, cap. XX, p.
72.
204
«El Rey boluió luego para la çibdad de Zamora, porque le dixeron que
podía venir gente del rey de Portogal, de la que aví quedado en la çibdad de
Toro»537.
«Dom Fernando (…) quando logo vio vencidas e desbaratadas suas
tamanhas e prymeiras batalhas, pelas batalhas do Pryncepe que eram menos em
jente (…), foy aconselhado que se recolhesse como recolheo, e se foy a
Çamora»538.
«El rey de Castilla con los grandes y caballeros que con él se hallaron,
estuvieron en el campo por espacio de tres horas -según se afirma en las cartas que
se escribieron del suceso desta batalla- porque se detuvo rigiendo el campo; y con
mucha alegría de la victoria se volvió a Zamora a donde llegó a la una hora
después de la media noche»539.
«D. Fernando (…) iba reuniendo la gente ocupada en recoger botín(…).
Los que con el rey don Fernando se encaminaban a Zamora a las nueve de la
noche (…). A la media noche, victorioso D. Fernando, había vuelto a Zamora a dar
descanso e alimento a las tropas»540.
A informação dada por Diego de Valera nada nos diz acerca de quando D.
Fernando teria deixado o campo de batalha. Ainda sobre este problema, tenho
necessariamente de rejeitar o ponto de vista de Rubén Sáez, quando afirma que D.
Fernando permaneceu quatro horas em campo depois do choque, tendo chegado a
Zamora depois da meia-noite541
, devido à distância que os cavaleiros teriam de
percorrer – cerca de dezassete quilómetros, de noite, em condições atmosféricas
adversas e em terreno não plano, para chegar a Zamora pouco depois da meia-noite, não
esquecendo que Palencia menciona que D. Fernando partiu do campo de batalha às 21
horas. É, no entanto, curioso este paralelismo existente entre os castelhanos e os
portugueses. Deste modo, segundo alguns cronistas castelhanos, D. Fernando teria
537 CRC-FP, cap. LXIV, p. 215.
538 CDAV, cap. CXCI, p. 846.
539 ACA-JZ, livro XIX, cap. XLIV.
540 CEIV-AP, II, livro XXV, cap. IX, p. 272.
541 SÁEZ ABAD, Ruben – La batalla de Toro 1476, Madrid: Almena, 2009, p. 66.
205
ficado três horas em campo (os portugueses sugerem que ele fugiu), o mesmo tempo
que o príncipe D. João, fortificado num cerro, como se verá adiante.
Um dado que causa alguma estranheza pela singularidade do apontamento é o
que refere o Cronicón de Valladolid, quando diz que «fué ferido el Príncipe de
Portugal»542
, logo após se terem perdido as bandeiras e de Afonso V ter fugido para
Castronuño. Tratar-se-ia de D. Afonso V? Não temos outro relato que comprove este
acontecimento. Ainda no que a esta fuga diz respeito, as crónicas também não estão de
acordo, variando na quantidade de cavaleiros que acompanhavam o monarca543
.
É ainda notória a diferença entre o comportamento dos soldados castelhanos
com o cair da noite. As crónicas castelhanas pintam os soldados vitoriosos, a recolher os
despojos da batalha e em perseguições aos inimigos, ao passo que as portuguesas falam
na debandada dos castelhanos:
«Sendo já pasada gram parte da noite, sabendo hos Castelhanos que
stauam naquella batalha, junto da do Prinçipe dom Ioam, quomo elRei dom
Fernando se acolhera pera Çamora, reçeosos de no dia seguinte lhes dár ho
Prinçipe batalha, poucos, e poucos se partiram do campo, tomando ho camino da
serra, e dali pera onde lhes milhor pareçeo, sem o Cardeal de Castella, nem o
duque d‟Alua, nisso poderem poer orden, hos quaes, vendo quomo se lhes ha gente
toda acolhia, com a que lhes ficou, se foram pera Çamora ho mais caladamente
que poderam»544.
542 CV, p. 118.
543 Pulgar quantifica três ou quatro cavaleiros que acompanham Afonso V (CRC-FP, cap. LXIV, p. 213);
Palencia atesta que o grupo que protegia o monarca português tinha vinte elementos (CEIV-AP, II, livro
XXV, cap. VIII, p. 271), tal como Valera (CRC-DV, cap. XX, p. 71); Bernáldez menciona oito
companheiros (MRC-AB, cap. XXIII, pp. 58-59). A cronística portuguesa é mais rica em detalhes, com a
excepção de Garcia de Resende, o qual diz apenas que Afonso V chegou a Castronuño sozinho (CDJII,
cap. XIII, p. 13). Na verdade isto faz pouco sentido, pois o rei nunca viajava sozinho. No caso de Rui de
Pina e Damião de Góis, não só são quantificados os cavaleiros que escoltavam o rei, como também são
nomeados: João de Porras, Gomes de Miranda, prior de S. Marcos em Castela e depois bispo de Lamego
e o conde de Caminha, Pedro Álvares de Souto Maior (CPDJ, cap. LXXVIII, p. 166); Pina nomeia apenas
Pedro Álvares de Souto Maior e João de Porras, mas afirma que iriam outros cavaleiros integrados no
grupo. Não deixa de haver, desta forma, um certo paralelismo entre estes três companheiros que
acompanham Afonso V e os três cavaleiros que acompanham D. Fernando na sua retirada para Zamora:
Garcia Manrique, Iñigo López de Albornoz e Fernando Carrillo de Córdova (Cfr. CEIV-AP, II, livro XXV,
cap. VIII, p. 272).
544 CPDJ, cap. LXXIX, p. 169.
206
«El príncipe de Portugal tovo entera su batalla çerca de la ribera del Río,
e si osara pelear con los peones castellanos, es cierto que pudiera hazer en ellos
grand daño. Pero con el grand temor que llevaba, curó de seguir su viaje para Toro
lo más presto que pudo, como la noche y el agua mucho le ayudava»545
.
Entrava-se assim na cruel fase do rescaldo após a peleja. Os autores castelhanos
quiseram documentar a bravura e exacerbar o sentido de vitória militar de D. Fernando,
enquanto os portugueses, mais moderados, têm bastantes vectores convergentes com o
relato de Fernando del Pulgar. Contudo, temos mais um problema em aberto e para o
qual não há resposta. Trata-se das baixas causadas pelo combate. Conforme se pode ver
acima na tabela 2, nem todos os cronistas apresentam cifras; e alguns dos que
apresentam, fazem-no parcialmente. Lamentavelmente, as penas portuguesas não
registaram quaisquer baixas, o que não deixa de ser estranho. Porque razão seria? Para
não denegrir mais a derrota portuguesa, entretanto justificada com a vitória do príncipe,
o único que ficou em campo? Assim, julgando pela cronística castelhana, temos um
intervalo de mortos portugueses compreendido entre 800 – avançado por Diego de
Valera, e 1500 – sugerido pelo Cronicón de Valladolid; ao passo que no partido oposto
temos um intervalo entre as nove – inventariadas por Palencia, e as 300 baixas –
contadas por Jerónimo Zurita. Temos de apreciar estes números com muita prudência,
especialmente para o lado castelhano, no qual até os 300 homens mortos me parecem
um valor anormalmente baixo. Claro que os cronistas usam estes artifícios para
aumentar o valor e justificar a glória do partido vencedor. Nas palavras destes, um
exército com menos efectivos derrotou um exército com mais soldados, causando uma
mortandade incrível, tendo apenas a lamentar um número pouco significativo de vidas.
De acordo com o antigo costume germânico, a sessio triduana, pretendia D. João
ficar senhor do campo de batalha durante três dias. Diziam as regras que se o vencedor
não fosse contestado neste prazo, aceitar-se-ia a vitória como validada oficialmente. Isto
era especialmente importante em batalhas cujo resultado era indeciso546
. Porém,
acompanhado com poucos homens, embora fortificado num cabeço elevado, foi
545 CRC-DV, cap. XX, p. 72.
546 MONTEIRO, João Gouveia – A guerra em Portugal nos finais da Idade Média, Lisboa: Editorial
Notícias, 1998, pp. 309-310.
207
aconselhado pelo arcebispo de Toledo, que esteve parte da noite com ele no campo, a
passar apenas três horas, à razão de uma hora por dia. O raciocínio do clérigo era válido,
tendo apresentado uma argumentação de carácter religioso:
«despois dos ymigos partidos bem compria por os tres días estar no
campo tres oras continoas a rezam de ora por dia, por comparaçam que trouxe da
Resurreyçam de nosso Senhor, que foy despois da morte tres días nam todos
inteiros, mas porque tomou de tres días tomando a parte por todo»547.
Naturalmente que o raciocínio desta ideia religiosa escamoteava algo de carácter
mais pragmático e urgente. Alfonso Carrillo percebeu que com o nascer do sol, os
castelhanos que ainda estivessem no campo, mais numerosos do que a hoste de D. João,
organizar-se-iam e atacariam o príncipe, conferindo ao partido português pouca
esperança de vitória caso este cenário se verificasse. Assim, decorridas as três horas,
partiu a batalha do príncipe, de bandeiras desfraldadas, sem ter sido alvo de qualquer
ataque e «guardando em todo ho caminho ha ordem que hos vençedores em tal caso
acustumam ter, segundo lei e vso da Cauallaria»548
.
h) Castronuño, Zamora, Toro e Tordesilhas
«O Principe (…) se foy com grande triumpho e vagar, com suas bandeyras tendidas, e trombetas,
e atabales á Cidade de Touro, onde entrou, e esteue com muyta tristeza até o outro dia, que soube nouas
del Rey seu pay, de que ficou muyto ledo, e logo lhe mandou muyta gente com que veo a Touro, onde a
Raynha, e o Principe estauão». (CDJII, cap. XIII, p. 15)
547 CDAV, cap. CXCI, pp. 847-848. Pulgar menciona o facto de D. João ter permanecido em campo, mas
sem se alongar muito (CRC-FP, cap. LXIV, p. 215). Das palavras de Damião de Góis, ficamos com a
ideia que o príncipe teria ficado em campo até ter raiado o dia: «O Prinçipe nam quis (…) mouer sua
hoste do lugar donde staua atte que nam fosse dia, e assi lho aconselharam ho Arçebispo de Tolledo, e
todollos outros senhores, e capitães. (…) Em amanhecendo nenhum delles [castelhanos] se vio no campo,
nem nas montanhas, que de noite has passaram todas, ficando ho Prinçipe dom Ioam victorioso, com toda
sua gente posta em ordem, pera dar batalha, se achara com quem pelejar. Ho qual quomo foi dia fez leuar
todolos feridos, e presos a Touro».
548 CPDJ, cap. LXXIX, p. 170.
208
«El rey don Fernando luego que en Zamora llegó fizo saber a la reyna, que en Tordesillas estava,
el bien aventurado suçesso que en la batalla avía avido, por el noble varon Iñigo López de Albornoz».
(CRC-DV, cap. XX, p. 72)
Imaginemos um mundo com comunicações rudimentares, baseadas em
mensageiros. Agora adicionemos a esse ingrediente uma terra a ferro e fogo. Assim se
entendem, pois, as comunicações no período em questão. Daí que Afonso V não tivesse
qualquer conhecimento do que teria acontecido ao filho, julgando o pior. Se ele próprio,
com mais homens, havia sido derrotado, então que teria sido de D. João, com muito
menos homens? Poderia inclusivamente estar morto. O príncipe também não sabia
novas de seu pai, o qual tinha seguido para Castronuño, como já referi, para escapar ao
congestionamento à passagem pela ponte de Toro, a qual daria acesso à cidade. Também
a rainha Juana, protegida pelas muralhas de Toro e encomendada à guarda do duque de
Guimarães e a Pedro de Meneses, conde de Vila Real, nada sabia do destino de D.
Afonso V, nem de D. João549
, até que este chegou à cidade, encontrando mesmo alguma
resistência para que as portas fossem abertas aos seus homens. Muitos já tinham
chegado à cidade há horas, mas as portas não lhes haviam sido abertas, nem lhes fora
permitido entrar, uma vez que o duque de Guimarães censurava o facto de os soldados
terem abandonado o campo de batalha sem o rei e sem nada saberem dele550
. Era escuro
e reinava um clima de desconfiança entre portugueses e castelhanos, no qual até os
feridos podiam encenar um golpe para capturar a cidade e, mais importante ainda, a
rainha. Assim, com a chegada do príncipe, já de madrugada, ultrapassadas as invectivas
que foram dirigidas aos soldados do alto das muralhas – apesar de haver algum cuidado
549 «El Rey onde estava, duvidando da vyda e salvaçam do Fylho, de que a moor parte da desaventura
nom falleceo aa Raynha que estava no Castello atée o outro dia, que o Pay foy certefycado da saúde e
prospera vitoria do Fylho, e o Fylho da salvaçam e saúde do Pay acolhydo em Crasto Nunho» (CDAV,
cap. CXCI, p. 848).
550 Pulgar registou a crítica do duque vimaranense aos soldados que voltavam da batalha: «Oh fidalgos de
Portogal” – decía el – dó está vuestro rey? Do está vuestro señor? Dó dexastes vuestra cabeça y vuestro
capitán? No sé yo porqué no sopistes guardar todos aquel que guardaua a todos; ni sé como podéys ver la
gente, ni sofrir que la gente vea a vosotros, aviendo dexado vuestro rey en el perigo, por escapar vosotros
dél. Si perdistes la fuerça para pelear con él, no sé yo como perdistes el entendimento para venir sin él.
Guardávades la persona del rey en la cama, en la tabla, en las fiestas y en los plazeres, y dexastes de le
guardar en la batalla, do su vida e honrra avíades más de mirar» (CRC-FP, cap. LXV, p. 217). Trata-se
claramente de um discurso ficcionado, inventado pelo cronista, para dar uma imagem negativa dos
portugueses que haviam abandonado o campo.
209
com os feridos551
, o duque de Guimarães e o conde de Vila Real reconheceram as
bandeiras de D. João e vieram pessoalmente abrir as portas. Porém, só na manhã
seguinte chegou um mensageiro, enviado por D. Afonso V, a comunicar que o rei tinha
escapado ileso e se encontrava em Castronuño, onde tinha sido bem recebido pelo
alcaide, Pedro de Mendanha. Naturalmente que estas notícias foram a causa de «fésta, e
alvoroço em toda ha cidade, e tanto repicar de sinos, e tocar de trombetas, e atabales que
toda ha perda da batalha se teue por nada»552
, tendo de imediato D. João enviado um
destacamento armado para escoltar o pai de Castronuño até Toro.
Do outro lado da barricada, D. Fernando não perdeu tempo e diligenciou no
sentido de enviar notícias da vitória a D. Isabel e às cidades – note-se a importância
estratégica deste acto, o qual seria também levado a cabo por D. João ao dirigir-se por
escrito às cidades do reino553
. Para além disso, voltou imediatamente à coordenação das
acções de assédio à fortaleza de Zamora, a qual acabaria por capitular a 19 de Março de
1476554
, episódio que abordarei em pormenor mais abaixo.
D. Isabel assim que soube da vitória maior do marido, deu «muchas graçias a
Dios de la victoria ávida por el rey su marido [e] andava visitando las iglesias e
mandando fazer proçessiones»555
.
i) O regresso do exército português
«Onde sobre conselhos, que acerca destes feitos ElRey e o Pryncepe tiveram, foy acordado, que
o Arcebispo de Tolledo se fosse como foy a Tallavera e a suas terras, e com ele por sua segurança Dom
Garcia Bispo d‟Evora (...). E assi acordou que o Pryncepe se tornasse a Portugal, o qual como era
Pryncepe bom e piadoso, despois de prover e remedear com mercêes e visitaçooẽs, aos que de sua batalha
551 «(…) elles nam quiseram mandar abrir has portas da çidade nem recolher pessoa nhũa dentro, atte
verem ho Prinçipe, e serem çertos e seguros do que lhe diziam, mas hauendo respeito ahos feridos polo
postigo da porta da ponte lhes mandauam dar tudo ho que lhes era neçessario pera remédio de suas
chagas, e feridas» (Cfr. CPDJ, cap. LXXX, p. 171).
552 CPDJ, cap. LXXX, p 171.
553 Palencia também aborda este assunto, mas com um tom ácido para com os portugueses: «de aquí
tomaron pie los portugueses para escribir desvergonzadamente a Lisboa que el Principe habia
permanecido en su campo como vencedor» (CEIV-AP, II, livro XXV, cap. IX, p. 273).
554 CEIV-AP, II, livro XXVI, cap. I, p. 280.
555 CRC-DV, cap. XX, p. 72.
210
foram presos e feridos, partio na semana mayor de Touro, e veo dormir a Crasto Novo, fortalleza que
estava por ElRey seu Padre, e ao outro dia passou a gente o rio em huuma barca, e os cavallos e bestas a
nado, per hum porto que se diz Ryco Váo, e de hy foy ter a Pascoa a Miranda do Doiro, e com elle o
Conde de Penella Dom Affonso de Vasconcellos, e assy pouca jente; porque os mais grandes Senhores
com todolos mais fycaram em Touro em ElRey». (CDAV, cap. XCXII, pp. 848-849)
«Alguns dos chronistas castelhanos dizem que ho Prinçipe dom Ioam (ho mesmo dia que se
recolheo em Touro depois do desbarato das batalhas) teue algũas suspeitas de ho Arçebispo de Toledo ter
modos, e intelligencias secretas com elrei dom Fernando, pera se lançar da sua parte, ho que pareçe ser
aho contrairo, visto quomo ho Arçebispo se nam atraueo a partir de Touro sem grossa companhia, pera
guarda de sua pessoa, e assi elRei dom Fernando desejoso de ho hauer has mãos, lhe mandou tomar ho
caminho pelo conde de Teruino». (CPDJ, cap. LXXXII, p. 174)
«El príncipe de Portugal con cuatrocientos de caballo se fue la vía de su reino y llevó consigo a
doña Juana su prima, princesa». (ACA-JZ, cap. XLV)
Os «vários e porlixos conselhos» no dizer de Damião de Góis continuariam a
ocorrer, agora não para decidir acerca de uma eventual batalha, mas para fazer a
avaliação da situação e determinar qual seria o papel dos apoiantes de Afonso V,
nomeadamente do príncipe D. João e de Alfonso Carrillo. Assim, depois de ter
agraciado com mercês aqueles que se distinguiram na peleja, através da distribuição de
dinheiro, especialmente aos feridos556
, D. João empreendeu o caminho de regresso a
Portugal, atravessando o rio Douro num lugar chamado Rico Vau, embarcando os
homens e passando a vau os animais. Em Miranda do Douro, onde já estava na Páscoa,
reencontrou-se com a princesa sua mulher. Uma vez mais, pai e filho voltaram a
separar-se. O reino de Portugal precisava do seu rei. À falta deste, o príncipe tinha
legitimidade para governar. Assim, enquanto D. Afonso V planeava o resto da campanha
em Castela, pensando já numa visita em pessoa a Luís XI de França.
A batalha foi, indubitavelmente, uma lição de vida, na qual o futuro D. João II
aguçou o discernimento a quem devia recompensar pelos serviços prestados na guerra.
Recorda Garcia de Resende, não obstante a sua parcialidade, que o príncipe teria
afirmado que «muy necessaria cousa me foy vestir as armas, para conhecer os homens a
que deuo de fazer merce»557
. Sem dúvida que esta experiência adquirida contribuiu para
a sua maturidade, até porque o príncipe partiu de Toro com um documento da
chancelaria régia, datado de 14 de Março de 1476, que estipulava que quaisquer rendas
556 CDJII, cap. XIV, p. 15-16.
557 CDJII, cap. XIV, p. 16.
211
ou mercês superiores a 10 000 réis, concedidas por D. Afonso V, careciam da aprovação
de D. João, de forma a proteger o património da coroa de eventuais delapidações e
oportunismos, quer por parte de portugueses, quer por parte dos fiéis castelhanos que
era necessário recompensar pelos serviços prestados558
.
Não se pense que este regresso dos homens de armas foi isento de problemas.
Especialmente na zona de Sayago, perto de Miranda do Douro, cansada de abusos, a
população castelhana atacou com violência, na razão da proporção inversa dos apoios
de Afonso V a seguir à batalha, os soldados que atravessavam as aldeias559
.
Como seria de esperar, o regresso do exército português não é um tema
suficientemente importante para a maior parte dos cronistas castelhanos, como
Bernáldez, Valera, Palencia, entre outros, preferindo estes demonstrar como os
castelhanos prosseguiram a campanha, fazendo incursões em Portugal e combatendo os
inimigos internos remanescentes. Valera chegou mesmo a sintetizar a questão dizendo
«en este tiempo ovo muchos recuentros, así por mar como por tierra, entre castellanos e
portugueses, en que sienpre los portugueses fuenron vençidos e desbaratados»560
. O
assunto atraiu tal atenção que chegou aos ouvidos de D. Fernando que, de imediato,
reuniu um conselho, para determinar qual seria a posição oficial castelhana quanto ao
regresso de tropas inimigas ao seu país de origem. Conta-nos Pulgar que muitos
suplicaram ao rei que se usasse a crueldade e a violência contra aqueles que haviam sido
cruéis para com as populações castelhanas, chegando mesmo a invocar, pela quarta vez
ao longo da crónica, a memória de Aljubarrota. Os fugitivos deveriam ser mortos ou
reduzidos à escravidão. Estas palavras vinham principalmente daqueles que tinham
participado na batalha e que tinham parentes e amigos que tinham sido gravemente
feridos ou mortos na batalha de Toro. Estas dolorosas recordações recuavam também
umas quantas gerações, até à Batalha Real, em Agosto de 1385. A dureza serviria então
de lição aos portugueses, não só contra a sua violência, como também contra a sua
arrogância e orgulho. Porém, o cardeal de Espanha – Pedro González de Mendoza,
558 ANTT, gaveta 13, maço 10, n.º 4.
559 CRC-FP, cap. LXVI, p. 219. Nas palavras do cronista, «matavan y prendían todos los portogueses que
por allí boluían a Portogal, e muchos dellos castrauan, por las fuerças de las mugeres que avían fecho».
Tratava-se assim de aplicar a velha máxima de fazer justiça pelas próprias mãos: olho por olho, dente por
dente.
560 CRC-DV, cap. XXI, p. 78.
212
representando a voz dos justos, da piedade e dos nobres valores da cavalaria (qual Nuno
Álvares Pereira quase 100 anos antes), arguiu que não seria honroso perseguir inimigos
que fugiam do país, uma vez que já não se travava de nenhuma batalha:
«matar al que se rinde, más se puede decir torpe venganza, que gloriosa
victoria. Si vosotros, caballeros, matárades peleando a estes portogueses, fecho era
de caballeros; pêro si se os rindieran e los matáredes, a cueldad se reputara, e
mucho se ofendiera el uso de la nobleza castellana que lo defiende, quanto más
viniendo a pedir misericordia de sus vidas, e libertad de sus personas. (…) Estos
portogueses que se vuelven a Portogal, gente es común, que vino por fuerza a
llamamiento de su rey; e si fuerzas han cometido en este reyno, también las
cometiéramos nosotros en el suyo, si el Rey allá nos llevara»561.
À semelhança dos anteriores conselhos já mencionados, a opinião que
prevaleceu foi a do clérigo e D. Fernando confiou a um capitão dos ginetes do duque
de Alba a missão de ajudar os portugueses a passar a fronteira, mesmo que para esse
auxílio tivessem de pagar. Os afortunados passaram com a sua ajuda. Outros tiveram
o contratempo de serem trazidos a Zamora, demonstrando-se o monarca benevolente
e dando-lhes o que necessitavam para que eles regressassem a Portugal.
j) O “dia seguinte” no lado castelhano
«Sábado xvj de marzo entré en Toro estando ende el Rey de Portugal D. Alonso, y el Príncipe su
fijo y el Arzobispo de Toledo». (CV, p. 120)
«Estos dos adinerados caballeros [Pedro Arias e Pedro Núñez] ocuparon el arrabal, y asestaron
muchas bombardas contra la Puerta de Guadalajara, com escasa resistência del Alcaide puesto por el
Marqués para defenderla. (…) Aterrado con este peligro el que dirigía la resistencia, capituló la
rendición». (CEIV-AP, II, livro XXVI, cap. I, p. 280)
«Esta tal victoria, caualleros, quiero yo menospreçiar, que aquí no venimos sino para quitar al
rey de Portogal, mi primo, los malos conçeptos de su persona, y no los buenos arreos de su cámara».
(CRC-FP, cap. LXVII, p. 222)
561 CRC-FP, cap. LXVI, pp. 219-220.
213
Depois da batalha, as crónicas portuguesas seguem uma linha menos
convergente com as castelhanas e a aragonesa, preocupando-se mais as primeiras em
documentar momentos em que Portugal é o interveniente activo, com o caso em que D.
Afonso V tentou um golpe de mão, lançando uma cilada para capturar D. Isabel562
, em
reacção ao cerco fernandino da praça de Cantalapiedra. Porém, os batedores isabelinos
estavam alerta e deram o sinal de alarme. A rainha, saindo de Madrigal, tencionava
deslocar-se até Medina del Campo, mas arrepiou caminho e tornou-se a Madrigal563
. Os
outros autores tecem a história com a tónica na transição para a ofensiva por parte dos
castelhanos. Episódios militares como o de Cantalapiedra, Castro Torafe ou Zamora são
alvo de grande destaque nas crónicas castelhanas.
Afonso de Valência, comandante da fortaleza de Zamora, ao ver que não era
socorrido por Afonso V, decide iniciar negociações para a rendição, não sem antes ter
querido inverter o insucesso que se adivinhava, expondo o filho do conde de Benavente
aos tiros das bombardas e dos trabucos564
. De acordo com Afonso de Palencia,
preparava-se o rei para mandar cessar os bombardeamentos, quando Valência percebeu
que seria inútil continuar a resistir, uma vez que teria visto «a fortaleza desnuda de
defensas y la derrota de los portugueses abatió su ánimo». Concluídas as negociações,
ficou definido que lhe seria atribuída a alcaidaria de Castro Torafe, pela contrapartida da
entrega de Zamora, situação que acabaria por ocorrer a 19 de Março. A cidade seria
ainda premiada com a criação de uma feira franca anual565
.
Os despojos encontrados pelos castelhanos em Zamora foram riquíssimos, uma
vez que pertenciam à própria câmara do rei. Sedentos de poder, houve quem tivesse
prontamente requerido a D. Fernando que repartisse os bens lá encontrados (jóias,
vestidos e baixelas de prata), uma vez que os portugueses também capturavam
frequentemente despojos castelhanos566
. Com um raro sentido de humanidade e justiça,
562 CPDJ, cap. LXXXIII, p. 175.
563 CDAV, cap. CXCII, p. 849.
564 CEIV-AP, II, libro XXVI, cap. I, p. 280.
565 Cfr. SUÁREZ FERNANDEZ – Los Reyes Católicos: la conquista del trono, p. 158.
566 Mesmo sendo impossível de contabilizar estes prejuízos, não deixa de ser interessante pensar em
quantos tesouros da Coroa de Portugal não se terão perdido no decorrer dos reveses desta batalha, o que,
sem dúvida, dificultou ainda mais a situação económica portuguesa e para a qual contribuirá também a
visita de D. Afonso V e do seu séquito a França, durante quase um ano.
214
ou simplesmente para facilitar as novas negociações políticas com o rei português, D.
Fernando não quis humilhar Afonso V, confiscando-lhe os bens, pelo que lhos mandou
devolver em Toro.
Mesmo sendo bastante jovens, Isabel e Fernando começavam a demonstrar
bastante maturidade nas decisões que iam tomando. Preocupados não só com o plano
militar, no campo estratégico também estabeleciam medidas que prejudicavam os
castelhanos que se tinham aliado ao inimigo – retirando-lhes as rendas, e transferindo-as
para quem tinha demonstrado uma conduta “correcta” ou para alguém que não se
quisesse hostilizar. No primeiro caso podemos nomear Rodrigo de Ulloa, que obteve
como compensação de danos sofridos um juro de 28 000 maravedis que pertenciam ao
chantre Gonçalo de Valência, nas rendas de Zamora; integra ainda este quadro Rodrigo
Maldonaldo de Talavera, que recebeu 18 000 maravedis de juros nas Astúrias e
Salamanca; ou Pedro de Mazaiegos, regedor e alcaide perpétuo da ponte de Zamora,
membro do Conselho, passou a ser corregedor do Principado das Astúrias, recebendo
uma renda de 210 000 maravedis em Zamora567
. Estes procedimentos destinavam-se a
criar um conjunto de homens fiéis aos Reis Católicos, assentando essa fidelidade em
rendas, fazendo assim com que os Grandes vissem algo neutralizado o seu peso político.
Como segunda vertente podemos ver o exemplo de Álvaro de Stúñiga, aquando da
rendição da fortaleza de Burgos e da submissão desta importante família a Fernando e a
Isabel, que lhe garantiram a concessão do ducado de Béjar e do ducado de Plasencia,
por permuta com o de Arévalo. Era o sanear de sequelas provenientes de contendas
internas que escalaram desde 1420 até 1476. O sucesso desta receita agridoce foi
conseguido através da concessão de títulos aos nobres, por um lado, e do
estabelecimento de um limite para as suas ambições, por outro. Assim, o método geral
seguido foi: confirmar a cada uma das linhagens os senhorios que as mesmas haviam
adquirido legitimamente, permitindo-lhes conservar as suas rendas, mas ao mesmo
tempo mostrar-lhes que o crescimento inusitado do seu património à custa das terras da
Coroa não seria tolerado. Para cada nobre, o serviço à Monarquia devia agora ser a
principal prioridade. Acerca disto, acrescenta ainda Luís Suárez: «no había
inconveniente en admitir cierto grado de solidaridad entre las famílias, unidas entre sí
por repetidos lazos de parentesco, lo que ayudaba a que no pudiera hacerse distingos en
567 Cfr. SUÁREZ FERNANDEZ – Los Reyes Católicos: la conquista del trono, pp. 157-158.
215
el trato entre fieles, tibios o adversarios. Los cuatro acuerdos que se concertaron en
1476 con los Manrique, que militaran en sus filas desde la primera hora, con el marqués
de Cádiz, que se mantuviera ostensiblemente neutral en los primeros meses, y con los
Stúñiga y Portocarrero, públicos partidarios de doña Juana, nos ayudan a comprender
esta política pacificadora»568
.
Tinha então começado a pacificação interior, tendo-se dirimido muitas questões
nas cortes de Madrigal; inclusivamente nelas se estatuiu a criação da Santa
Hermandad569
.
No plano das armas, Isabel e Fernando tinham agora uma atitude
manifestamente ofensiva. Afirma Bernáldez que «en este tienpo fizieron muchas
lombardas, más de las que tenían, e muchos tiros de pólvora de diversas maneras, e
muchos robadequines»570
. Porém, renovou-se igualmente a tentativa de alcançar a paz,
tentativa essa que foi infrutífera como sabemos. Essa missão foi planeada por Pedro
González de Mendoza571
e a sua comissão poderia eventualmente ter sido atribuída ao
Doutor de Toledo – quem se crê ter proferido a afirmação que entrou em Toro no dia 16
de Março de 1476, a mando de D. Isabel e que citei no início deste capítulo.
k) A continuação da campanha
«E neste tempo porque ElRey sentía já bem, que seu poder nem ajuda dos grandes de Castela,
nom lhe davam pera sua demanda tam firme esperança como comprya, forçado de hum vivo desejo de
sua honrra, envyou per seus messegeiros requerer ajuda a ElRey de França (…) [e] detriminou virse a
Portugal, e de hy pasar logo em França, crendo que o remedio e ajuda pera seu recurso, que tanto
desejava, com sua yda e em sua pessoa se faria mais facil». (CDAV, cap. CXCIII, p. 850)
568 SUÁREZ FERNÁNDEZ – Isabel I, Reina (1451-1504), pp. 140-141.
569 CRC-FP, cap. LXX, pp. 230-243; VHRC-LMS, p. 51; CIRC, título LI, pp. 305-309.
570 MRC-AB, cap. XXVIII, p. 65.
571 Pedro González de Mendoza teria sido um homem completo a todos os sentidos: devoto à religião e ao
bem, não deixamos de o ver sempre a aconselhar o mais idoneamente possível em todos os conselhos
reunidos por D. Fernando; de ser o primeiro na linha da frente em batalha a combater os adversários; a
demonstrar a sua virtude e piedade ao pedir um seguro para os portugueses que queriam regressar a
Portugal, fugindo de um país hostil; e a revelar um espírito concertador ao propor a paz, em nome dos
reis, a D. Afonso V. Eis como descreve Pulgar este grandioso homem: «era home esforzado, e de grand
ingenio; e siempre fué visto procurar el pacífico estado, e celar el honor de la corona real de Castilla»
(CRC-FP, cap. LXVI, p. 221).
216
«Passados algunos días después que el rey don Alonso salió de Castilla, como dicho es, estando
en Portogal ordeno ir a demandar favor y ayuda al rey de Francia; y enbarcóse y fué a Francia, quedando
su fijo el príncipe don Juan alçado por rey de Portogal; y estovo en Francia com el rey Luis, el cual no le
acudió ni dió favor, según remaneció. E lo que allá entre ellos pasó no se supo» (MRC-AB, cap. XXVII,
pp. 62-63)
«Entregóse la fortaleza de Toro, é la Mota, y Monzon, é la puente de Toro á la Reyna nuestra
Señora sábado xviiii de otubre anno Domini mcccclxxvj». (CV, p. 124)
«[D. Isabel e D. Fernando] imbiaron a don Alonso, maestre de Calatraua, hermano del Rey, y a
don Pero Manrrique, conde de Treuiño que asentasen real sobre Cantalapiedra, y asimismo imbiaron por
los caualleros y pueblos de Salamanca y Medina del Campo y Valladolid y Avila para que (a) aquel çerco
veniesen. Y la gente llegada, primero dia de Pascua florida asentaron real (…); y desque algunos días
estouo çercada, en el comedio dellos se adereçaron mantas y gruas y bancos pinjados y muchas cosas para
combatir neçesarias; asimismo, le fueron gruesos tiros de poluora asentados, con que le tenían la mayor
parte del muro puesto en el suelo». (CIRC, título XLVII, p. 289)
Face à vitória decisiva que Afonso V não obteve no campo de Castro Queimado
e de que necessitava realmente, partiu de Toro a 13 de Junho de 1476, para Portugal,
não sem antes ter buscado apoios no reino francês. Porém, o emissário enviado – Álvaro
de Ataíde, não teve grande sucesso, pelo que o monarca considerou fundamental visitar
Luís XI pessoalmente, para lhe requerer ajuda. Assim, antes de embarcar para França, o
rei proveio as fortalezas e regressou a Portugal (deixando em Toro o capitão-mor conde
de Marialva), fazendo “escala” em Miranda do Douro – onde atravessou a fronteira e
itinerou pela Guarda, Coimbra, Abrantes e Porto. Inicialmente planeada uma travessia
marítima pelo Atlântico, o monarca acabou por ir pelo mar Mediterrâneo, uma vez que
as águas poderiam estar patrulhadas por forças de D. Fernando572
. Na verdade, o
Mediterrâneo também não estava isento de problemas, como o confronto que se
verificou entre o almirante francês que transportava Afonso V, Guillermo de Casenove
Coulon, e o capitão castelhano Ladrón de Guevara573
. Ao contrário do que afirma Saul
572 CDAV, cap. CXCIII, p. 851.
573 A escolha da travessia até França pelo Mediterrâneo deu-se também pela necessidade de prover ao
reforço da defesa das forças portuguesas em Ceuta, uma vez que estando a guarnição portuguesa na dita
praça militar algo debilitada, o duque de Medina Sidónia aproveitou para enviar alguns soldados para ver
se a conseguiam tomar. Foi no decorrer desta viagem que Coulon e Ladrón de Guevara travaram um
combate naval, no qual o francês se apoderou de três embarcações castelhanas, duas das quais naus mas,
em contrapartida, perdeu quatro dos seus barcos para os castelhanos, que os incendiaram. Só depois desta
missão é que Coulon regressou a Lisboa para transportar Afonso V, praticando sempre uma navegação de
cabotagem, receando ter novamnete um encontro com Ladrón de Guevara e desta vez com o rei português
a bordo. Chegaram a França em meados de Setembro de 1476. Na verdade, para os castelhanos, era
estrategicamente mais importante controlar as águas cantábricas e livrá-las de piratas franceses, do que
217
Gomes574
, considero que a ajuda gaulesa seria a última cartada que Afonso V poderia
jogar, no meio de uma posição já fragilizada pelos sucessivos abandonos à sua causa por
parte dos Grandes castelhanos. Como tive oportunidade de desenvolver anteriormente,
Luís XI acabou por não prestar qualquer apoio a Afonso V, fazendo-o, ao invés
embrenhar-se na política externa francesa, o que, na verdade, era o que interessava
verdadeiramente ao rei gaulês. Esta ausência de D. Afonso V foi prontamente
aproveitada por Isabel e Fernando. Relembro que D. Afonso V só regressou a Portugal
em meados de Novembro de 1477575
. Não significa isto que as acções portuguesas
tenham cessado. Apenas adquiriram uma dimensão mais pequena, defensiva e
depredatória576
.
Especialmente a partir do segundo semestre de 1476, altura em que Isabel e
Fernando passaram à ofensiva, é de novo incentivado que se faça a guerra dentro de
Portugal. Esses ataques seriam coordenados pelo conde Feria, Gómez Suárez de
Figueroa e pelo comendador-mor de Leão, Alonso de Cardenas. Com as suas fronteiras
protegidas, Isabel estava assim livre para tratar de assuntos pendentes na Estremadura
espanhola e Fernando para se deslocar à província de Leão577
. Mas mesmo assim, as
coisas não foram fáceis e estavam longe de estar definidas, uma vez que grande parte do
território castelhano continuava a ferro e fogo, competindo os nobres entre si pelos
despojos, com os interesses particulares a falar mais alto, em detrimento dos interesses
dos nacionais. Assim, Zurita dá-nos conta de que o duque de Medina Sidónia se
apoderou da cidade de Sevilha; travou-se uma batalha em Jerez, relativamente próximo
da fronteira com Portugal, sendo tomada pelo marquês de Cádis; e ainda outra batalha
em Guadalcanal; Córdova foi tomada por Alonso de Aguilar; Ecija conquistada por Luís
Puerto Carrero; e Carmona subjugada por Luís de Godoy, rematando ainda o cronista
quaisquer outros objectivos no Mediterrâneo. Assim o comércio marítimo podia voltar a ser estabelecido
na zona das Astúrias. Cfr. SUÁREZ FERNANDEZ – Los Reyes Católicos: la conquista del trono, p. 201.
574 GOMES – D. Afonso V..., p. 216. O autor defende que «a decisão tomada por Afonso V de se deslocar,
com prestigioso séquito, a França para, aí, confrontar pessoalmente Luíx XI com a necessidade que a
Coroa Portuguesa sentia da efectivação de um apoio diplomático e militar por parte daquele reino, não
constitui um acto de desespero político».
575 Para esta temática, ver atrás o capítulo “A ameaça francesa e a paz armada”.
576 CDPJ, cap. LXXXVI, p. 178.
577 ACA-JZ, Livro XX, cap. II.
218
que outros senhores havia que tinham tomado outras cidades, acalentando todos a
esperança que a guerra com Portugal continuasse, para que eles, na ausência de ordem,
pudessem continuar a aumentar livremente os seus estados578
.
Ainda assim, tratou-se do ano da capitulação dos Grandes, tal como o marquês
de Villena e o arcebispo de Toledo, os quais prestaram preito e menagem a Isabel e
Fernando a 11 e 17 de Setembro de 1476 respectivamente579
. À semelhança destes,
houve convénios com outros senhores igualmente poderosos e que, numa primeira
etapa, coincidem com as cortes de Madrigal, nas quais se concluíram pactos com quatro
Casas nobres: duas eram partidários de Juana – Stúñiga e Portocarrero; uma era neutral
– os Ponce de León; e a quarta era partidária dos Reis Católicos desde o início – os
Manrique, condes de Treviño. Estas negociações pretendem assegurar para a Coroa a
posse de territórios vitais: Biscaia, Cádiz, Arévalo e Mérida. Deste modo, e ainda no
início de Março de 1476, Pedro Manrique, conde de Treviño, recebeu uma
indemnização para renunciar ao título de corregedor da Biscaia, o que ocorreu a 2 de
Março de 1476580
, recebendo em troca o título de duque de Nájera. A Rodrigo Ponce de
León, marquês de Cádiz, em constante disputa com o duque de Medina Sidónia, foi
permitido, entre outras coisas, conservar os seus estados, incluindo Jerez, sendo-lhe
aumentadas as rendas com a concessão de 1% do valor de todos os bens descarregados
no porto de Cádiz. Nestas negociações ocorridas entre Abril e Junho estavam incluídos
também Luís de Guzmán e Luís de Godoy. Por outras palavras, houve uma
reorganização dos patrimónios, dos títulos e das relações de poder no seio da nobreza
castelhana. Não foi o fim dos problemas na Andaluzia, mas era uma forma de ir
apaziguando as discórdias que ensombravam o ocidente andaluz. O duque de Arévalo e
Leonor Pimentel, sua mulher, passaram imediatamente para a esfera de influência
isabelina com a derrota em Toro, durando a negociação das condições várias semanas, o
que mostra o quão ponderada e aproveitada foi esta mudança. Generosas rendas a troco
de Burgos e da paz entre os Stúñiga e outras famílias de Grandes: Mendoza, Álvarez de
Toledo. Pelo exposto, as longas negociações que os reis levam a cabo com estes
Grandes, provando a existência de um verdadeiro contrato entre as partes, não só
578 ACA-JZ, Livro XX, cap. XII.
579 Cfr. SUÁREZ FERNANDEZ – Los Reyes Católicos: la conquista del trono, p. 169.
580 Acordo de 2 de Março, em Archivo General de Sello. Patronalo Real, leg. 11, fol. 81, citado por
SUÁREZ FERNANDEZ – Los Reyes Católicos: la conquista del trono, pp. 160.
219
refutam a posição de Alfonso de Palencia – exprimindo que Isabel e Fernando eram
inimigos da nobreza, como também demonstram que cada linhagem, na medida em que
desempenhava um papel imprescindível, devia conservar o seu poder económico. Os
Reis Católicos aceitam então o modelo do senhorio, reconhecendo nesta forma de
administração a prestação de um serviço público581
.
Seria demasiado exaustivo para o âmbito deste trabalho estar a expor
pormenorizadamente todos os episódios militares ocorridos durante o período em
questão, pelo que remeto para o anexo compilado que os inventaria e descreve. Mesmo
assim, não posso deixar de aprofundar a extensão da ofensiva isabelo-fernandina
também dentro do seu território: Madrid, Atienza, Caracena, Cantalapiedra, Castronuño,
Toro, Cubillas, Sieteiglesias, Trujillo, Utrera, etc. Os Reis Católicos souberam gerir os
seus recursos de forma a aproveitar a ausência de D. Afonso V em França. Por
consequência, muitas destas fortalezas são tomadas por golpes de mão ou então por
exaustão de recursos e falta de socorro, o que obriga os sitiados a capitular, por vezes
mesmo com o consentimento de Afonso V582
.
Com a longa estadia em França e, ao contrário do que o rei português esperava
conseguir, ao não ter obtido o apoio de Luíx XI, Afonso V tomou a decisão de renunciar
à coroa portuguesa, ordenando ao filho que se fizesse aclamar, o que aconteceu em
Novembro de 1477, dois dias antes de o monarca ter regressado a Portugal.
Já em Portugal, mesmo tendo sentido a incapacidade para impor a sua vontade
no plano das armas e tendo sido derrotado politicamente por Luís XI, Afonso V
acreditou que as coisas podiam ter mudado no cenário castelhano, talvez devido à
contínua insatisfação dos grandes senhores e das suas constantes querelas, como era o
caso do marquês de Cádis – Rodrigo Ponce de León, com o duque de Medina Sidónia –
Enrique de Guzmán. Era repetir o mesmo erro. Conta-nos Zurita que
«El rey de Portugal desde que entró en su reino amenazaba de entrar en
los reinos de Castilla y hacia muy grandes aparejos para ello y señalaba tener para
esta su empresa muy estrechas inteligencias con algunos grandes, señaladamente
581 Cfr. SUÁREZ FERNANDEZ – Los Reyes Católicos: la conquista del trono, pp. 160-163.
582 Foi o caso de Castronuño e Cubillas, em meados de 1477. Cfr. CPDJ, cap. XCV, p. 195.
220
con el arzobispo de Toledo y con el marqués de Villena (que ponía en gran defensa
todos sus castillos y fuerzas y juntaba gentes publicando que no se guardaba la
concordia)»583
.
Por outro lado, o ano de 1477 havia trazido bons auspícios a D. Fernando. Não
só tinha assinado uma trégua de três anos com Granada, como também tinha acordado a
paz com França, estando assim livre para fazer a guerra ao inimigo no território deste. O
esforço deste monarca era ainda direccionado para a pacificação da Andaluzia584
.
Contribuíram ainda para a dita acalmia a acção de Alfonso de Fonseca, arcebispo de
Santiago, Diego de Muros, bispo de Tuy, e Fradique de Guzmán, bispo de Mondoñedo,
membros do conselho, bem como o conde de Benavente, o qual foi enviado para a
Galiza, satisfeito por ajudar a desfazer o desaire de Baltanás, o qual conseguiu capturar
o conde de Caminha585
. Porém, é necessário explicar uma coisa: depois das derrotas de
do clã Pacheco nos episódios militares de Madrid e Uclés, este foi obrigado a negociar.
Assim, a partir do fim do Verão de 1476 começaram a ser delineadas as condições da
rendição do marquês de Villena. Diego López Pacheco prestou homenagem aos Reis
Católicos a 11 de Setembro e as negociações continuaram586
. Porém, a transição
pacífica e sem peripécias do marquesado não chegou a ser consumada devido à
ganância de alguns senhores, enviados pelos Reis Católicos. Estes altos oficiais,
Antonio Rodríguez de Lillo, Juan e Gaspar Fabre, entre outros, tinham um
comportamento que consistia em aproveitar os despojos que haviam feito parte do
marquesado desintegrado. Era o carácter social destes homens e das suas respectivas
ambições que condicionava a guerra e punha em causa a estabilidade e a paz acertada
com o Pacheco. Portanto, eles foram directamente responsáveis pelo incumprimento da
capitulação de 11 de Setembro, ao terem-se apoderado da cidade de Villena e do castelo
de Almansa muito tempo depois desta data e vigorando um cessar-fogo587
.
583 ACA-JZ, Livro XX, cap. XVI.
584 ACA-JZ, Livro XX, cap. XVI e XXI.
585 SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: la conquista del trono, p. 311.
586 SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: la conquista del trono, pp. 168-169.
587 SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: la conquista del trono, pp. 313-314.
221
Foi então necessário o príncipe refrear os ânimos do pai, pois de contrário, D.
Afonso V teria entrado novamente em Castela. Pesou na decisão de D. João o
conhecimento do tratado de Saint-Jean de Luz, assinado entre França e Castela, a 9 de
Outubro de 1478 e ratificado no ano seguinte em Santa Maria de Guadalupe. Deste
modo, D. João era cada vez mais o verdadeiro condutor da política externa portuguesa,
orientando-a no sentido da concórdia com o país vizinho.
l) A paz das Alcáçovas
«Despois do destroço do Bispo e ante delle avia já neste Reyno de jente, armas e cavallos, e
principalmente de dinheiro, que he o sustancial nervo da guerra, manifestas necesidades, e estas mesmas
com outros mayores receos tambem nom falleciam em Castela». (CDAV, cap. CCVI, p. 867)
«Primeramente, quel rey de Portogal dexase el título que avía tomado de rey de Castilla, e las
armas de Castilla que avía puesto en su escudo. Otrosí, que jurase de no casar en ningún tiempo con
aquela doña Juana su sobrina. Item, que ella toviese libertad por tiempo de seys meses de facer de su
persona lo que le pluguiese; o estando si quisiese en aquel reyno de Portogal, o yendo a otra cualquier
parte e reyno que a ella bien viniese, tanto que el rey de Portogal, ni otro alguno de su reyno, la
fauoreçiese, E que si por ventura delibrase no salir del reyno de Portogal, que conplidos los seys meses,
luego fuese obligada de elegir vna de dos vías: o que se obligase de casar con el prínçipe don Juan de
Castilla, y estoviese en poder de la infanta doña Beatriz, tía de la Reyna, esperando fasta que el prínçipe
fuese de hedad para casar con ella; o si esto no quisiese facer, entrase en religión en la Orden de Santa
Clara, en vno de los monasterios que le fueron nonbrados en el reyno de Portogal. Otrosí, que el príncipe
don Alonso, fijo del prínçipe de Portogal, casase con la infanta doña Isabel, fija del Rey e de la Reyna. E
que por çertenidad de las cosas concordadas çerca desta paz, estos dos señores prínçipe e ynfante
estouiesen en poder de la infanta doña Beatriz, tía de la Reyna, en el castillo de Mora, que es en el reyno
de Portogal; (…) Otrosy, que la mina del oro quedase para el rey de Portogal e para el príncipe su fijo; e
que ninguno de los reynos e señoríos del Rey e de la Reyna fuesen a ella, so grande penas. Iten, que
oviese paz entre el Rey e la Reyna de Castilla y el rey de Portogal, e entre sus reynos e súbditos y
naturales de la vna parte e de la otra; e que esta paz fuese guardada e conseruada, so grandes penas, por
tiempo de çiento e vn años. Iten, que la Reyna perdonase al clauero, e a la condesa de Medellín, e a todos
los castellanos que avían rebelado contra el Rey e contra ella, e avían seguido el partido del rey de
Portogal, de todos y qualesquier crímines e delictos que oviesen cometido contra ellos, de qualquier
calidad que fuesen. E les mandasen restituyr sus bienes y heredamientos y rentas, que por sy mandado les
fueron tomadas en Castilla, los que tenína al tiempo que fueron a seruir al rey de Portogal. En esta manera
fue fecha e firmada la paz con el rey de Portogal e con su reyno» (CRC-FP, cap. CXI, pp. 401-402)
«Se començaron a tratar las paces de entre Portogal e Castilla; e antes que los portugueses
cercados se fuesen en Portogal, destrocaron los prisioneros todos, que se tenían desde el comienço de las
guerras (…). Luego fueron concertadas e pregonadas paces entre Castilla e Portogal en el dicho año de
MCCCCLXXIX». (MRC-AB, cap. XLI, p. 91)
Recuemos até meados de 1477. Concluída a querela em relação aos direitos de
Juana, não se entabularam negociações com Portugal, tal como aconteceu com França.
222
Muito pelo contrário, a violência da beligerância rasgou os reinos ibéricos e a guerra
recrudesceu588
. À medida que o tempo vai passando, inicia-se o processo conducente à
pacificação interna em Castela, com mais ou menos sucesso. Finalmente, uma das vozes
mais discordantes, a do arcebispo Carrillo a 7 de Janeiro de 1479, acabava por ceder e
capitular, entregando as suas fortalezas até ao fim de Janeiro de 1479, resultando daqui
o isolamento de Diego Pacheco.
A aproximação entre os reinos tornar-se-ia inevitável. Já em 1478, parte da
fronteira portuguesa gozava de uma trégua com Castela, reactivando-se tibiamente os
circuitos comerciais589
. Passou o Verão e não se verificaram acções ofensivas, a não ser
as costumeiras escaramuças. A única coisa que não foi bem conseguida numa primeira
abordagem foi a negociação das condições com Alfonso de Monroy e com a condessa
de Medellín. Ambos estavam irredutíveis. Alfonso queria ser mestre de Alcântara e
Beatriz Pacheco pretendia o condado de Medellín, que pertencia por direito ao seu filho,
Pedro de Portocarrero, o qual já era maior e podia administrá-lo sozinho. A resposta
negativa às suas reivindicações instigou a ajuda portuguesa que se exauriu na batalha de
La Albuera, travada a 24 de Fevereiro de 1479.
Esta batalha, sobre cuja dimensão ainda se discute, uma vez que os cronistas
parecem querer atribuir-lhe proporções que ela talvez não tenha possuído, sendo isto
perceptível pelas diferenças no relato entre os vários autores590
, é o último episódio
militar de relevo, não obstante terem ocorrido ainda algumas situações esporádicas de
violência, como aconteceu na Galiza e na Andaluzia e que igualmente de forma pontual
se prolongaram para além da assinatura e ratificação das pazes:
588 Diz Palencia que «en las fronteras de Portugal diariamente se recrudescia el azote de las guerras, no
sólo por los mismos portugueses, sino por las discórdias intestinas de los Grandes castellanos, causa de
graves perjuicios». Cfr. CEIV-AP, III, livro XXVIII, cap. VI, p. 22.
589 Foi inclusivamente mandado fazer um levantamento para saber quem fazia contrabando para Portugal.
Cfr. SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: la conquista del trono, p. 318. A zona abrangida
pela tregua ia desde Arronches até Alcoutim, tendo D. Isabel concedido poderes ao conde de Feria, em 30
de Agosto de 1477, para concertar a paz localmente com os portugueses.
590 CRC-FP, caps. CVI-CVII; pp. 370-377; MRC-AB, cap. XXXVII, pp. 80-82; CDAV, cap. CCV, pp.
866-867; CPDJ, cap. XCIX, pp. 205-206.
223
«El maestre don Alonso de Cárdenas se puso en Lobón en frontera, por estar
en la comarca de Mérida y Medellín, y entrando el obispo de Evora a dos leguas de
Mérida para juntarse con el clavero hubo batalla entre el maestre y el obispo junto a La
Albuhera el martes de carnestolendas a 23 de febrero y fueron los portugueses
vencidos. Y se pusieron cercos sobre Mérida, Medellín, Montánchez, Castilnovo,
Deleitosa, Magazela, Zalamea, Benquerencia y Almorchón de la orden de
Alcántara»591.
Resumidamente, um exército português às ordens do bispo de Évora estava
preparado para levar a Monroy e a Beatriz Pacheco o auxílio solicitado por ambos.
Prevendo tal situação, D. Fernando acautelou os reforços. Ordenou também a Alfonso
de Cárdenas que se cortasse o camino aos portugueses, com a ajuda de companhias que
lhe enviava. Dado que D. Garcia de Meneses era obrigado a socorrer Mérida, os
castelhanos facilmente tiveram a superioridade táctica proveniente da escolha do melhor
terreno, sendo este um efeito de surpresa para o bispo de Évora. Sem querer tornar-me
repetitivo, uma vez que se pode consultar a informação relativa a esta batalha em anexo,
posso afirmar que os cronistas lusos estão praticamente de acordo no que diz respeito ao
número de efectivos, tendo Rui de Pina e Damião de Góis quantificado 700 cavaleiros e
alguns peões, dos quais, refere ainda Góis, 200 cavaleiros eram castelhanos.
Relativamente às forças inimigas, que levam vantagem sobre os portugueses, ambos os
cronistas estimam 1 300 cavaleiros e 3 000 peões. Fernando del Pulgar apresentou
números dos soldados portugueses em tudo iguais à cronística nacional, omitindo,
porém, as forças castelhanas. Já Andres Bernáldez cifra 800 cavaleiros portugueses mais
alguns peões, que se teriam oposto a 800 cavaleiros castelhanos e 500 peões. Garcia de
Resende, Afonso de Palencia, Diego de Valera e Lúcio Marineo Sículo nada dizem
sobre este episódio militar.
Pela leitura das fontes facilmente compreendemos os contornos medievais que
caracterizam a batalha de Albuera: formação tripartida, choque da cavalaria, múltiplas
acções pessoais e um número reduzido de baixas. Para além disso, como já notou Luís
Suárez592
, os cronistas posteriores embelezaram o relato com arengas, brados e apupos –
591 ACA-JZ, livro XX; cap. XXX.
592 Cfr. SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: la conquista del trono, p. 319.
224
factores que nos levam a crer que o episódio se tenha assemelhado mais a uma
escaramuça do que a uma verdadeira batalha.
Com este episódio bélico cessa pois, como já referi, no geral, o tinir das armas, o
qual dará lugar a conversações de paz, mediadas por D. Beatriz, duquesa de Bragança e
tia de Isabel, a qual pelo parentesco com os dois partidos a tornou numa mediadora
idónea. Da sua acção resultaram as “vistas” de Alcântara, a 20 de Março de 1479, nas
quais seriam tratadas quatro matérias distintas: o problema dos direitos de Juana e o seu
destino futuro; a amizade entre os reinos; o perdão dos castelhanos exilados em
Portugal; e a navegação na costa africana. Nas palavras do grande investigador que
tenho vindo a citar, as negociações de Alcântara «continuaban lo que en Guisando se
dijera, en Segovia se planteara y ante los muros de Toro se ofreciera»593
, ou seja, Isabel
era a única legítima herdeira do trono e iria decidir o que fazer a Juana, a quem
chamavam “filha da rainha”.
Duraram três dias estas conversações e sobre elas pairava o fantasma de
poderem ser um embuste para ganhar tempo. Se observarmos a última citação de Zurita,
na página anterior, podemos confirmar que as fortalezas rebeldes tardavam em entregar-
se a Isabel e a Fernando.
Finalmente, a paz celebrada entre Portugal e Castela, em 4 de Setembro de 1479,
fez cessar o conflito que grassava desde 1475594
. O cronista Fernando del Pulgar
considerou as premissas para a paz suficientemente importantes para as resumir e
colocar na sua obra, cujo excerto citei. Neste aspecto, tanto os Reis Católicos, como D.
Afonso, acabaram por perdoar os exilados que se aliaram com os inimigos. Se o rei
português perdoou Lopo Barradas; João Bartolomeu; João Escudeiro; Fernão Bonilha;
Catarina Franca595
; D. Isabel também teve de conduzir longas e amplas negociações
com alguns dos nobres que se aliaram a Afonso V, como já tive oportunidade de referir.
Porém, é importante fazer a ressalva que o único elemento comum nas duas Coroas
relativamente a este processo é mesmo o perdão, uma vez que os portugueses perdoados
593 SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: la conquista del trono, p. 321.
594 TORRE; SUÁREZ FERNÁNDEZ - Documentos referentes a las relaciones con Portugal durante el
reinado de los Reyes Católicos, vol. I, doc. 165, pp. 245-284.
595 Cfr. VITERBO – A batalha de Touro, pp. 77-78.
225
não têm propriamento peso político, enquanto os Reis Católicos tiveram amplas e
longas negociações para perdoar alguns dos nobres mais importantes de Castela.
Olhava-se a reconstrução no horizonte, difícil em muitas situações, como é a de
lugares da Beira e do Alentejo, que foram duramente castigados pela guerra. Na
sequência dos protestos dos seus moradores e lavradores face à impossibilidade de
aproveitar as suas terras, D. Afonso V condescendeu e ordenou que
«todos moradores e vizinhos dos dictos lugares que terras e erdades
trouuessem arrendadas, emprazadas, aforadas a tempo çerto ou em vidas ou pera
ssenpre de que ouuessem de pagar mataçõoes, foros de djnheiros, pertamças ou
quallquer outro pam, çerto ssabudo a quaeesquer pessoas de quallquer estado e
condiçam que fossem, posto que fossem de comendas de quallquer hordem, ora
fossem emcanpadas ou nom, que des ho tempo que nos emtramos em os dictos
rregnos de Castella que foy no mes de Maio do anno de Nosso Senhor Ihesu
Chripto de mjll iiiijlxxb a esta parte emquanto durar a guerra nom fossem theudos
nem obriguados de pagar ao senhorio das terras e herdades que assy trouuerem
nenhuuas mataçõoes, foros nem pertamças de pam, vino, dinheiros nem avees nem
outra allguua cousa que lhes ouuessem de dar per bem de sseus contratos e
obrigaçooes, soomente fossem obrigados de pagar a rreçam de todo aquello que
ssemeassem ssegundo ho stillo da terra. E que os senhorios a deuiam assy a ver
por bem vista a necessydade de tempo e como sse all durando a guerra nom podia
fazer. E esto sem embargo de quaeesquer contrautos e obrigaçooes que acerca
desta ssejam feictos per quallquer maneira que fossem. Salluo sse elles
expresamente os dictos contrautos os obrigarom a pagar vindo tall casso da guerra
ou outros ssemelhantes, porque sse sse elles assy obrigarom nom deujam ser
rrelleuados das dictas pagas. Porque em tall casso queriamos que sse guardasse a
despossijçam do djreito comuum. E posto que acerca desto já fossem hordenadas
ou moujdas demandas per a dicta determjnaçom mandauamos que logo çessaçem e
nom fossem por ellas mais em diamte porque o aviamos assy por seruiço de Deus
e nosso e bem de nosso pouo»596.
Com base no documento citado é possível elencar as localidades que ficaram
isentas de pagar imposto, num total de vinte e oito. Na comarca da Beira enumeram-se o
596 MORENO - «A contenda entre D. Afonso V e os Reis Católicos... », pp. 314-315.
226
Sabugal, Santo Estêvão e Monsanto; na comarca de Entre Tejo e Guadiana constavam
Montalvão, Castelo de Vide, Marvão, Portalegre, Alegrete, Assumar, Arronches,
Monforte, Campo Maior, Ouguela, Elvas, Borba, Vila Viçosa, Juromenha, Alandroal,
Redondo,Terena, Olivença, Monsaraz, Mourão, Moura e Serpa; por último, houve
também outras localidades que não constam no documento, mas que também se viram
dispensadas de pagar os ditos impostos. Elas foram Segura, na comarca da Beira;
Noudar, na comarca de Entre Tejo e Guadiana; e de Alcoutim, na região do Algarve597
.
Não abrigados por esta disposição ficavam aqueles cujos lugares não haviam sido
afectados pela guerra. Pelo disposto podemos concluir que a zona de fronteira mais
afectada pela guerra foi a do Alentejo, no que actualmente corresponde aos actuais
distritos de Évora e Portalegre. Sem prejuízo das considerações tecidas acerca da
fronteira alentejana, no que diz respeito ao norte do país, e como Humberto Baquero
Moreno já referenciou598
, não obstante as operações armadas se terem verificado na
zona castelhana fronteiriça a Trás-os-Montes, os principais ataques inimigos
verificaram-se principalmente nos eixos de penetração a que já aludi no início deste
trabalho, em especial, na zona do Sabugal, sendo portanto essa a zona mais
desguarnecida da fronteira.
No ano seguinte seria ratificado, em Toledo, o convénio assinado em 1479, nas
Alcáçovas. Como sabemos hoje, estes vários tratados não pretenderam somente pôr um
ponto final à guerra civil, como também levar a cabo um ajuste completo das relações
entre Portugal e Castela, para que no futuro não se verificasse nenhuma situação
semelhante. A haver uma aproximação entre os dois reinos, teria de partir da vontade de
ambos os partidos e não apenas de um só.
m) A construção da vitória nos dois lados: as procissões de agradecimento
«(…) ordenamos e mandamos que daqui em diante em louuor de Nosso Senhor e da
Bemaventurada Virgem Maria sua Madre, e de Sam Jorge, e de São Cristovão que o dito dia trazíamos
por nossos padroeiros e nome em cada hum anno aos dous dias de Março em que foj a dita batalha e
uictoria a clerezia e todos os dessa cidade façais solenne procissão saindo da See, e indo por os lugares
públicos com toda a solemnidade, officios e jogos, e cerimonia assj e tam compridamente como
597 MORENO - «A contenda entre D. Afonso V e os Reis Católicos... », pp. 315-316.
598 MORENO - «A contenda entre D. Afonso V e os Reis Católicos... », p. 316.
227
costumaes fazer em cada dia de Corpo de Deus». (CHAVES – Livro de apontamentos (1438-1489)…, p.
74)
«Fué este día de este vencimiento día de San Albín, confesor, del cual se hazía en Castilla fiesta
menor de três leciones; e el rey y la reyna mandaron desde este dia honrar su fiesta e facer fiesta mayor de
nueve leciones e segunda dignidad como se faze hoy». (MRC-AB, cap. XXIII, p. 60)
«Como quer que até a anno passado se fizesse a procissão ordenada pela victoria que Nosso
Senhor nos deu na batalha que houvemos ácerca da cidade de Touro, considerando nós agora no grande
amor e affeição, paz e socego que ha entre nós e El-Rei e Rainha de Castela, de Leão e d‟Aragão, etc.,
nossos muito amados e presados irmãos, e isso mesmo como o casamento do príncipe, meu sobre todos
muito amado e presado filho, com a princeza sua filha, minha muito amada e presada filha, foi o meio por
que todas as cousas passadas houvessem fim, e de uma e da outra parte fossem esquecidas e o amor entre
nós todos crescesse: havemos por serviço de Deus e nosso que a dita procissão se não faça mais».
(VITERBO – A batalha de Touro, p. 15)
A vitória começa a ser construída a partir do dia seguinte à batalha, com as
cartas que os monarcas escrevem às cidades, bem com a devoção religiosa demonstrada
por Isabel. Porém, é verdadeiramente a partir de 1480, para o caso castelhano, e de 1482
para Portugal, que se começa a construir a memória colectiva através de uma celebração
processional.
No caso luso, o ofício enviado por D. João II aos juízes, vereadores e homens-
bons das cidades, datado de 12 de Março de 1482, esteve em vigor até 1 de Março de
1491, ia acompanhado de uma outra carta que relatava a relação da batalha, de acordo
com a versão oficial, a qual deveria ser lida após a missa. Nesta missiva estatuía-se a
criação de uma procissão, a qual deveria ser igual à maior festividade pública, ou seja, a
do Corpo de Deus, diferindo desta apenas por não ir nela o andor com Santo
Sacramento. Nas entrelinhas podemos ler que era uma procissão que envolvia
preparativos e terminava numa grande e onerosa cerimónia, suportada maioritariamente
pelos concelhos, tal como a do Corpo de Deus599
.
599 Dado que esta procissão se assemelha à do Corpo de Deus e que já foi bem estudada por Iria
Gonçalves («As festas do Corpus Christi do Porto na segunda metade do século XV: a participação do
concelho», in Um olhar sobre a cidade medieval, Cascais, Patrimonia Historica, 1996, pp. 153-176);
Amândio Barros («A procissão do Corpo de Deus no Porto nos séculos XV e XVI: a participação de uma
confraria», in Revista da Faculdade de Letras – História, II série, vol. X, Porto, pp. 117-130); e Maria
João Branco («A procissão na cidade: reflexões em torno da festa do Corpo de Deus na Idade Média
portuguesa», in A cidade. Jornadas inter e pluridisciplinares, Lisboa, Universidade Aberta, 1993, pp.
195-217), não me vou deter em elementos que, de outro modo, julgaria pertinentes, como sendo os corpos
que constituem a procissão, a sua ordem, o percurso, etc., pelo que remeto para estes autores.
228
O principal objectivo da procissão era manter viva na memória colectiva a
vitória portuguesa sobre o inimigo castelhano, uma vez mais de acordo com a visão
oficial, surgindo também em resposta à procissão instituída por Castela, a 3 de Agosto
de 1480, exaltando assim o poder e a grandiosidade de D. João II enquanto príncipe e
agradecendo aos padroeiros do exército português na batalha: Nosso Senhor, a Virgem
Maria, São Jorge e São Cristóvão. Assim, todos os anos, na data estabelecida,
actualizava-se a memória colectiva desses feitos heróicos do rei, através de uma acção
ritual necessariamente performativa que implicava a repetição de um conjunto de
procedimentos pré-estabelecidos de celebração, movimentos corporais, cores, sons e,
ainda, vozes, como as que liam o relato da Batalha de Castro Queimado600
. Na verdade,
como podemos perceber, a procissão revestia-se de contornos de propaganda política e
não devoção. E bem podia D. João gabar-se da vitória. Afinal, ele teria sido o único
poder a permanecer em campo, após os portugueses terem lutado contra um inimigo
mais numeroso, que D. João estimou em 700 ou 800 lanças (uma vez mais não
esqueçamos que esta é a visão oficial portuguesa) e que por duas vezes D. Afonso V e o
príncipe «fizerão volver os rostros de suas batalhas contra os inimigos pera verem se
querião pelejar o que elles nunca quizerão»601
. Afirma ainda a versão enviada aos
concelhos que os castelhanos não aceitaram o desafio, apesar de, como referi, terem
mais efectivos militares e de terem uma posição estratégica mais favorável, «por terem
as costas em a serra»602
.
Como já notou Luís Miguel Duarte603
, no que à sucessão dos eventos em batalha
diz respeito, o relato oficial é confuso e lacónico, de forma a desculpar uma vitória total
sobre o inimigo, passando rapidamente para a conclusão: já de noite, os castelhanos
foram para Zamora «como desbaratados, e o dito senhor Rei Dom João com toda a sua
gente em pos elles os seguio e os lançou fora do campo»604
. O píncipe saiu do campo de
600 Sobre este aspecto veja-se CONNERTON, Paul – Como as sociedades recordam, Oeiras, Celta
Editora, 1993, p. 47, citado por ROLDÃO, Filipa - «Na rua e no arquivo: a construção da memória
portuguesa da Batalha de Toro no século XV», in A guerra e a sociedade na Idade Média – actas das VI
jornadas luso-espanholas de estudos medievais, Vol. II, coord. de COELHO, Maria Helena da Cruz et al.,
Batalha, 2009, pp. 325.
601 CHAVES – Livro de apontamentos (1438-1489)…, pp. 72-73.
602 CHAVES – Livro de apontamentos (1438-1489)…, p. 72.
603 DUARTE – «1449-1495: O triunfo da pólvora», p. 391.
604 CHAVES – Livro de apontamentos (1438-1489)…, p. 73.
229
madrugada, voltando no dia seguinte para enterrar os mortos, não sendo contestado ou
desafiado.
Quase uma década mais tarde, D. João II mandava suspender a procissão
comemorativa da vitória em Toro devido à aproximação entre os dois reinos, resultante
do projecto de casamento entre a filha dos Católicos e o do Príncipe Perfeito605
,
fazendo cessar os efeitos da propaganda a favor da vitória da batalha de Toro, em
detrimento das boas relações entre Portugal e Castela, até porque não se sabia se, no
futuro, os dois reinos poderiam unir-se, agora por via da união pacífica e planeada
através do casamento dos infantes.
n) O balanço da campanha
Com a batalha de Toro a representar um ponto de chegada para os castelhanos,
uma vez que os Grandes começam a mudar de partido, Afonso V vai percebendo que
são quase nulas as hipóteses de perseverar nos seus objectivos. Chegados a 1480, as
cortes de Toledo vêm resolver o problema que ficou pendente nos tratados das
Alcáçovas, que nas palavras de Luís Suárez era o fundamental: a luta entre nobreza e
monarquia para o estabelecimento de uma forma de Estado e um regime político606
.
Acerca deste mesmo problema, refere o historiador que não houve vitória de nenhum
dos partidos, tendo ambos de se contentar com um compromisso: «los soberanos
adquirieron el poder decisório, fuertemente arbitral, sustentado sobre la plataforma de
una ley que los Consejos se encargaban de aplicar; los Grandes obtuvieron la
confirmación de su fuerza social, sus rentas y su participación en el gobierno del
territorio»607. Destas cortes sairá um modelo de governo que aceitaria a pluralidade de
reinos submetidos a uma só soberania.
605 Veja-se o documento n.º 134, datado de 2 de Junho de 1479 e publicado em TORRE; SUÁREZ
FERNÁNDEZ - Documentos referentes a las relaciones con Portugal durante el reinado de los Reyes
Catolicos, vol. I, doc. 134, p. 209, no qual D. Isabel concede poderes a Rodrigo Maldonado para tratar de
firmar o casamento da infanta castelhana com o infante Afonso.
606 SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: la conquista del trono, p. 357.
607 SUÁREZ FERNÁNDEZ – Los Reyes Católicos: la conquista del trono, p. 357.
230
Sobre a tipologia de armas utilizadas continuamos a ter muitas dúvidas, dado os
relatos generalistas de cronistas que não têm na agenda preocupações exclusivamente
militares. Sabemos que ambos os exércitos tinham artilharia (reportando-se os cronistas
a essas armas como artilharias, trabucos, ribadoquines, bombardas, etc.), mesmo em
contigentes que não os régios. Ainda assim, estes partidos mais pequenos são por vezes
reforçados com artilharia enviada por D. Isabel e D. Fernando. Estes corpos armados
surgem nas batalhas, mas dada a escassez destas, aparecem principalmente associados
às operações de assédio. Os espingardeiros começam a ter cada vez mais importância
nos combates, embora nem tanto pelos projécteis que disparam, como pelo fumo e
estampido que provocam aquando do disparo.
Salvo em momentos pontuais, nos momentos de contenda, as forças portuguesas
parecem equilibradas com as forças castelhanas. As estruturas defensivas (castelos,
muralhas) são ainda nesta altura eficazes, capazes de provocar assédios bastante
demorados, como foi o caso de Burgos, ou de Castronuño. Perante a boa resposta da
defesa, a qual muitas vezes só capitula pela fome e pela sede, ou por não lhe chegarem
reforços, são frequentes os golpes de mão oportunistas, ou as conquistas através de
artimanhas, como foi o caso da cidade de Toro, cujo cerco tendo fracassado, em Julho
de 1476, apenas o conhecimento de um pastor permitiu aos apoiantes de Fernando
entrar na cidade, já no Outono. Algumas destas fortalezas, ou por terem sido erigidas
indevidamente, ou pelo perigo que representam, serão demolidas, sendo Castronuño um
destes exemplos.
Não se vislumbram novidades técnicas nem tácticas fruto de mais de meio
século de permanência em África. No entanto, se ignoradas algumas deficiências no
comando e nas comunicações608
, a prestação global do exército português foi muito boa,
especialmente se tivermos em conta que esteve a combater além-fronteiras, mas também
dentro de Portugal, durante quatro anos.
Os Reis Católicos conseguem negociar várias tréguas com os poderes que se
lhes opõem: França, Granada e até mesmo Portugal (quer a trégua relativa à fortaleza de
Cantalapiedra, quer a trégua local na zona de fronteira entre Alcoutim e Arronches, por
608 Luís Miguel Duarte já tinha identificado estes problemas. Cfr DUARTE – «1449-1495: O triunfo da
pólvora», p. 390.
231
exemplo). Estas tréguas permitem uma optimização na gestão dos recursos, o que
garantiu o sucesso das suas intervenções militares.
No que diz respeito à parte militar, Isabel e Fernando planearam e aplicaram
sucessivos golpes no interior da fronteira portuguesa – principalmente, com a finalidade
de debilitar a acção portuguesa em terras zamoranas, o que contribuiu para o
enfraquecimento da acção militar portuguesa em Castela. Embora isto não seja o
suficiente para explicar a derrota do partido português – até porque, como já referi, não
houve nenhuma batalha conclusiva, foi mais um factor que debilitou a capacidade
portuguesa, o que, em conjunto com a política isabelina de atracção dos nobres, o gorar
dos planos portugueses quanto à ajuda francesa, e as relações internacionais favoráveis
mais favoráveis a um eixo castelhano-aragonês, em detrimento do português, causaram
o insucesso da campanha portuguesa em Castela, entre 1475 e 1479.
232
8. CONCLUSÃO
A exemplaridade da crise política castelhana da baixa Idade Média proveio da
nitidez com que se apresentou, da vivacidade do seu desenvolvimento, do seu
radicalismo e duração prolongada, assim como das particularidades da sua trajectória.
Tudo isto é dado à percepção do historiador, que não pode isolar os conflitos políticos,
sociais e intelectuais, a não ser teoricamente, em abstracto. Assim, por via do inevitável
corte de uma “fatia” do que foi a complexa realidade da baixa Idade Média ibérica,
tentei prover de significado o conflito permanente que envolveu as monarquias
peninsulares da segunda metade do século XV.
Pode dizer-se que na guerra de 1475 a 1479 dirimem-se três questões de
natureza distinta: o resultado final do jogo de forças entre nobreza e monarquia
castelhanos, consubstanciado numa guerra civil. Como pude demonstrar, a relação entre
a nobreza e quem detém as rédeas do governo não é simples. Parte dos fidalgos
castelhanos era frequentemente hostil aos actos deliberativos por parte dos reis e até
mesmo dos clérigos mais influentes, como o Papa, cardeais, arcebispos ou bispos. No
entanto, é seguro afirmar que as instituições de governo medievais não podiam ter
surgido sem a cooperação da nobreza. Na Castela do século XV, não obstante o
centralismo monárquico vencer esta batalha e se apresentar como a orientação política
da Idade Moderna, Isabel e Fernando têm perfeita noção que precisam da nobreza,
desde a baixa nobreza até aos grandes senhores do reino, tanto que acabam por
favorecê-la, independentemente de alguns deles se terem rebelado. Num reino já
dilacerado pelos conflitos com os franceses pela posse do Rossilhão, e pelos problemas
em Navarra com beaumonteses a oporem-se aos agramonteses e tendo cada um destes
partidos os seus apoios, a intervenção portuguesa numa Castela já bastante dividida pela
guerra civil, à qual não são alheias as querelas pela posse dos mestrados das ordens
militares, não só pareceu uma empresa legítima a Afonso V, como também se afasta da
tradicional ideia de megalomania afonsina, uma vez que configurava um partido com
sólidos apoios e que podia, numa primeira fase, ser mesmo o vencedor da empresa a que
o Africano se propôs; as outras questões são a distribuição de âmbitos de exploração no
Atlântico africano, configurando-se o mundo pela primeira vez dividido entre os dois
reinos ibéricos; e o reajuste de alianças entre os príncipes reinantes na Cristandade
ocidental.
233
Na guerra contra o partido de D. Juana, Fernando apresentou-se como rei de
Castela e defendeu os direitos da sua mulher, «reyna verdadera y legítima sucesora
dellos». A história não é feita de ses, mas é tentador imaginar um cenário diferente: é
quase seguro que Fernando, se não tivesse ganho a guerra, deveria ter reinado em
Aragão e ainda que tivesse Itália, sem a plataforma castelhana, a sua capacidade de
manobra seria mais limitada. Por outro lado, é difícil intuir se Isabel teria reinado em
Castela sem o casamento com Fernando, mas é bastante provável que uma derrota
militar em Toro a tivesse afastado do trono castelhano. Castela e Portugal seriam então
as componentes da monarquia hispânica.
A união das duas monarquias (Castela e Aragão) através do matrimónio foi
consequência da vontade das famílias reinantes, que procedem de uma mesma dinastia e
foi alentada por interesses de grupos dirigentes, muito activos principalmente em
Castela. Foi uma ligação conveniente e adequada para superar as dificuldades com que
se debatiam ambos os territórios.
Todavia, a unidade efectiva entre Castela e Aragão esteve longe de ser
totalmente alcançada. O impacto da união em cada uma das Coroas foi distinto, se bem
que em ambas se produziu imediatamente a estabilização do novo monarca e o aumento
do seu poder, através de um controlo de mais recursos materiais e patrimoniais. A longa
duração e estabilidade deveu-se, em grande medida, ao sistema institucional equilibrado
e flexível já há muito consolidado entre Aragão, Catalunha, Maiorca e Valência, as
quatro unidades que constituíam o núcleo da coroa aragonesa que durante quase quatro
séculos se abriu ao desenvolvimento e permitiu a participação e intercâmbio conjuntos,
até ao ponto em que todas as transformações institucionais, sociais, económicas e
mentais produzidas em alguma delas têm uma referência simétrica e simultânea em
todas609
.
Houve um número bastante alargado de recontros militares que não foram
contemplados nesta dissertação, uma vez que configuram episódios de menor dimensão,
embora façam parte do todo e traduzam o virulento cenário de guerra que Castela (mas
também Aragão) viveu no período em questão. Alguns desses conflitos demonstram
609 SESMA MUÑOZ, José Ángel - «La compenetración institucional y política en la Corona de Aragón»,
in Poderes públicos en la Europa Medieval: Principados, Reinos y Coronas. XXIII Semana de Estudios
Medievales de Estella, Pamplona, 1997, pp. 347-371.
234
uma autêntica guerra civil, com os senhores mais poderosos a tentarem aumentar o seu
território à custa de outros, ou a expensas da própria Coroa. Dentro destes parâmetros,
posso apresentar os exemplos da tomada do castelo de Belmez, por homens leais a D.
Fernando, face ao inimigo, o mestre de Calatrava; ou o recuperar do castelo de Valência,
para o partido de Isabel, detido por Juan de Acuña, ou para dar um último exemplo, a
discórdia entre o conde de Treviño e Alonso de Arellano, conde de Águilar, em Junho de
1476.
Algo que não é inédito no cenário medieval é o facto de algumas destas
fortalezas, quando são reconquistadas pelo partido Católico, serem mandadas
demolir610
, ou porque eram fortalezas que tinham sido erigidas recente ou
indevidamente, ou então porque de alguma forma, aos olhos de Fernando e Isabel,
constituíam uma ameaça, caso fossem tomadas por um partido inimigo. Foi o caso de
Alcaraz e de Cantalapiedra, só para dar dois exemplos.
Foi realmente notável a capacidade que Fernando e Isabel tiveram de atrair e
chamar a si os nobres, especialmente quando tinham múltiplos focos rebeldes aos quais
tiveram de atender - estrangeiros e domésticos. Inclusivamente, numa primeira fase,
poucos seriam aqueles em quem os jovens reis podiam confiar, mesmo que se
declarassem por eles611
. Além disso, Afonso V tentou continuamente ocupar o que
considerava seu por direito – o trono castelhano. Para isso, procurou o apoio
diplomático e militar de Luís XI, que se limitou a fazer algumas entradas na zona do
Rossilhão, não arriscando também internar mais a sua gente, especialmente devido aos
vários desastres em Fuenterrabía. Ainda assim, os Reis Católicos tiveram de lidar com
os nobres insurrectos nas províncias de Leão, Castela, Galiza612
e, em especial, na
610 No âmbito da minha investigação de mestrado, tive oportunidade de coligir inúmeros exemplos de
demolição de fortalezas. Os motivos são frequentemente os mesmos: é uma forma de impedir que esses
bastiões sejam novamente controlados por alguém estranho ao poder. Cfr. ENCARNAÇÃO, Marcelo
Augusto Flores Reis da – A guerra vista do chão: os conflitos militares em Portugal nos reinados
fernandino e joanino observados numa perspectiva local, (policopiado), dissertação de mestrado
apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto: 2006.
611 Tomemos este exemplo em consideração, em Junho de 1475: «Quedaban algunos de los principales de
la ciudad, muy adictos al duque de Alba D. García Alvarez de Toledo, de quienes, así como de este, no se
dudaba que secundarían a D. Fernando, y aunque en su conducta el Duque se mostraba tirânico y su
excesiva ambición le llevaba a inclinarse ya a uno y a outro partido […]» CEIV-AP, II, p. 195.
612 A Galiza constituiu uma situação complexa e de excepção, na qual os Reis Católicos tiveram não só de
se opor, como também de destruir linhagens nobres. Este reino, com estruturas arcaizantes ligadas à posse
da terra, seviu de palco a lutas entre as famílias Fonseca e Sotomayor, ou Osório contra os Pimentel ou
235
Andaluzia: vários cronistas chegam a mencionar que se Afonso V tivesse invadido o
reino vizinho por essa fronteira, teria tido certamente mais sucesso613
. Convém ainda
não esquecer os bandos de agromonteses e beaumonteses que colocavam o território
navarro a ferro e fogo. Para acalmar os ânimos foi determinante a reactivação da
Hermandad, a qual possibilitou a segurança nas cidades, vilas e aldeias e seus termos,
assim como constituía uma fonte de homens de que os reis podiam dispor e realocar
onde fosse necessário. Entre múltiplos exemplos posso citar o caso de Las Navas e
Arroyomolinos614
.
Foi assim neste complexo enredo que D. Afonso V se intrometeu, lutando pela
honra e pelos seus ideais. Porém, Toro tem pouco a ver com uma Alfarrobeira, ou com
as campanhas africanas. Configura um cenário de charneira, no qual os valores
medievais conheciam o seu ocaso e se entrava rapidamente num mundo diferente, com
os exércitos e os estados a começarem a exibir sinais dos tempos modernos.
contra os Pardo de Cela. Estes conflitos verificavam-se, frequentemente, por um objectivo pouco
importante. Daí que a estratégia de pacificação deste reino, tal como foi formulada por Isabel e Fernando,
passasse por três aspectos distintos: a submissão do conde de Caminha, entretanto colocado fora dos
tratados de paz; a mudança de titular da diocese de Tuy, retirando-a de objecto de discórdia entre os vários
partidos; e por último, o regresso de Ponferrada – motivo de contenda entre o conde de Lemos e o de
Treviño, ao reguengo. Assim, só com a acção da Hermandad e com a justiça aplicada na Galiza, quedou
esta terra pacificada, já no ano de 1484. Cfr. SUÁREZ FERNANDEZ – Los Reyes Católicos: la
conquista del trono, pp. 364-368.
613 CEIV-AP, II, p. 187, p. 189 e p. 196; CRC-FP, cap. LI.
614 CEIV-AP, II, p. 313.
236
9. CRONOLOGIA DOS PRINCIPAIS ACONTECIMENTOS
1425/01/25 – Nascimento de Enrique IV.
1451/04/22 – Nascimento de D. Isabel.
1453 – Nascimento do infante Alfonso, meio-irmão de Enrique IV.
1462/02/28 – Nascimento de D. Juana, filha de Enrique IV e de Joana de Portugal.
1464/09/28 – “Manifiesto de quejas y agravos”, assinado em Burgos por prelados e nobres,
queixando-se de excessos cometidos pelo rei.
1465/06/05 – “Farsa de Ávila”, golpe em que se depõe simbolicamente Enrique IV e o infante
Alfonso é proclamado rei.
1465/07 – Encontro na Guarda, entre Afonso V e a irmã (mulher de Enrique) para definir os
termos da ajuda portuguesa a Castela.
1468/07/05 – Morte do infante Alfonso.
1468/09/19 – Pacto de Toros de Guisando, em que Isabel é reconhecida como herdeira ao trono
com o título de Princesa das Astúrias.
1469/03/07 – Negociações matrimoniais entre D. Isabel e Fernando de Aragão.
1469/04/28 – Isabel não é jurada nas cortes de Ocaña.
1469/10/18 e 19 – Matrimónio civil e religioso de Isabel de Castela com Fernando de Aragão.
1470/10/26 – Isabel é destituída como princesa e D. Juana é nomeada em seu lugar, em Val de
Lozoya.
1473/12/28 – Reconciliação entre Enrique IV e Isabel.
1474 – Cerco de Carrión: conflito nobiliário contra a monarquia.
1474/12/12 – Morte de Enrique IV.
1474/12/13 – D. Isabel proclama-se rainha de Castela.
1475/01/02 – D. Fernando é proclamado rei de Castela.
1475/01/15 – Concórdia de Segóvia entre Isabel e Fernando.
1475/02 – Cortes de Évora, nas quais D. Afonso V pede dinheiro para financiar a campanha
militar que se avizinha.
1475/05/19 – O príncipe D. João, em Portalegre, escreve a inquirir às autoridades do Porto,
quantos há capazes de tomar armas e participar na guerra. Note-se que esta missiva só
foi lida na vereação do Porto a 15 de Julho de 1475. Não se conhecem os resultados
desse apuramento.
1475/05/25 – Afonso V entra em Castela.
1475/05/30 – D. Afonso V casa-se com D. Juana, filha de Enrique IV, em Plasencia. Manifesto
de D. Juana ao reino de Castela.
1475/06/03 – D. Afonso V manda uma embaixada a Luís XI de França para negociar o seu
reconhecimento como rei de Castela.
1475/06/20 – Isabel ordena ao mestre D. Alonso de Cardenas que mova a guerra ao reino de
Portugal, devastando e destruindo tudo o que encontrar.
1475/06/2ª quinzena – D. Francisco de Solis, mestre de Alcântara, ataca a partir de Badajoz,
Elvas e Ouguela.
1475/07/23 – Os castelhanos levantam o cerco a Toro, em desordem.
1475/07/31 – Reis Católicos, em Medina del Campo, doam a fortaleza de Ouguela a D.
Francisco de Solis; notificam as cidades de Coria, Badajoz, Trujillo, Cáceres e
Albuquerque que deviam apoiar por todos os meios possíveis os homens ao serviço de
D. Francisco de Solis.
237
1475/08/29 – Tratado de Picquigny: Inglaterra desiste das suas pretensões em territórios
franceses; Portugal é compreendido por parte da Inglaterra. Bretanha e Borgonha
suspendem actividades militares contra França.
1475/09/08 – Tratado de liga ofensiva entre D. Afonso V e Luís XI, contra Juan II de Aragão.
1475/11/13 – Isabel, em Valladolid, ordena a inventariação e confiscação de bens pertencentes
a nobres que sejam partidários do rei português.
1476/08 – D. Afonso V parte para França numa armada de dezasseis navios.
1476/11/10 – Encontro em Tours entre D. Afonso V e Luís XI.
1475/11/22 – Aragão envia reforços para o cerco de Burgos.
1475/12/04 – Revolta em Zamora: a cidade passa-se para Castela; a fortaleza e a catedral são
portuguesas.
1476/02/02 – Rendição do castelo de Burgos.
1476/03/01 – Batalha de Toro.
1476/03/15 – Afonso V emite um documento onde se compromete a não dar vilas ou rendas da
Coroa sem o consentimento do príncipe D. João.
1476/03/19 – Capitulação de Zamora.
1476/04/27 – Cortes de Madrigal, nas quais Isabel é jurada rainha.
1476/06/05 – D. Afonso V estatui que a ordem sucessória passa pelo príncipe D. João e depois
pelo primogénito deste.
1476/06/13 – D. Afonso V regressa ao Porto.
1476/07/01 – Durante a trégua firmada com Afonso V, Isabel decide atacar Toro pelo seu valor
estratégico de praça militar. Foi rechaçada e por isso a cidade foi cercada.
1476/09 – D. Afonso V parte para França. O marquês de Villena e o arcebispo de Toledo
submetem-se à autoridade dos Reis Católicos.
1476/12/23 – Tratado entre D. Afonso V, como rei de Castela e Luís XI de França, confirmando
e renovando os antigos Tratados de paz e amizade entre Castela, Leão e França.
1476/12/29 – Encontro de D. Afonso V com Carlos, o Temerário, duque da Borgonha.
1477/01/06 – Morte de Carlos, o Temerário.
1477/02 – O príncipe D. João liberta Alegrete e Arronches, tomadas no início do ano anterior.
1477/02/03 – Sisto IV concede a dispensa de casamento a Afonso V e D. Juana.
1477/04/28 – Rendição de Cantalapiedra.
1477/05/05 – Rendição de Sieteiglesias.
1477/06/25 – Rendição de Cubillas.
1477/10 – Rendição de Castronuño.
1477/09 – D. Afonso V despede-se de Luís XI, em Arras.
1477/10 – D. Afonso V embarca em Arras para Portugal.
1477/11/15 – D. Afonso V desembarca em Cascais.
1478 – O Papa Sexto IV revoga a dispensa necessária ao casamento de Afonso V com Juana, a
Beltraneja.
1478/06/30 – Nasce o filho varão de D. Isabel e D. Fernando – o infante D. João.
1479/08/19 – Procuração de D. Afonso V para o barão do Alvito, João Fernandes da Silveira,
celebrar o Tratado chamado das “Terçarias de Moura”.
1478/09/04 – Tratado de paz entre D. Afonso V e os Reis Católicos, sobre títulos e demarcações
territoriais, em Évora.
1478/10/09 – Tratado de Saint Jean de Luz, estabelecendo a paz entre França e Castela.
1479/01/19 – Morte de Juan II de Aragão.
238
1479/02/24 – Batalha de Abuera que opõe o bispo de Évora, D. Garcia de Meneses a Afonso de
Cárdenas. É a última batalha antes das negociações de paz.
1479/03/20 a 22 – Entrevista no castelo de Alcântara entre D. Beatriz de Bragança e D. Isabel.
1479/05 – D. Juana decide ingressar num mosteiro.
1479/10/04 – Tratado das “Terçarias de Moura”, entre D. Afonso V e os reis de Castela; e de
casamento entre D. Afonso, filho do infante de Portugal D. João, com a infanta D.
Isabel de Aragão e de Castela, assinado nas Alcáçovas.
1480/03/06 – Ratificação dos tratados anteriores, na cidade de Toledo.
1480/11/15 – D. Juana toma o hábito.
1481/01/11 – Entrada em terçaria da infanta Isabel com o infante Afonso.
1481/08/29 – Morte de D. Afonso V.
1480 – Início da procissão castelhana comemorativa da vitória em Toro.
1482/03/12 - Início da procissão portuguesa comemorativa da vitória em Toro.
1490 – Casamento do príncipe herdeiro, D. Afonso, com a princesa castelhana D. Isabel.
1491/03/01 – Suspensão da procissão portuguesa comemorativa da vitória em Toro.
1504/11 – Morte de D. Isabel.
1516/02 – Morte de D. Fernando.
239
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258
ÍNDICE
ABREVIATURAS ........................................................................................ p. 5
INTRODUÇÃO ............................................................................................ p. 6
1. “ESTADO DA ARTE” .............................................................................. p. 9
2. METODOLOGIA ..................................................................................... p. 15
3. O LEGADO GODO .................................................................................. p. 18
4. CRONISTAS E CRÓNICAS ..................................................................... p. 29
a) Cronistas portugueses ...................................................................... p. 31
b) Cronistas castelhanos ....................................................................... p. 37
c) Cronistas aragoneses ........................................................................ p. 56
d) Crónicas castelhanas ........................................................................ p. 58
5. DESENVOLVIMENTO POLÍTICO ......................................................... p. 61
a) A primeira década do reinado de Enrique IV 1454-1464 ............................ p. 61
b) O caminho conducente à guerra civil 1462-1474 ....................................... p. 67
c) Guerra civil (1465-74)............................................................................... p. 73
d) Da questão sucessória ao conflito internacional: a guerra peninsular entre 1475 e
1476 .............................................................................................................. p. 96
e) Ameaça francesa e a paz armada 1477-1479 .............................................. p. 114
f) O rescaldo e a obtenção da paz .................................................................. p. 120
6. A CAMPANHA MILITAR: DA PREPARAÇÃO AO CHOQUE ............... p. 127
a) A decisão de passar a Castela .................................................................... p. 139
b) O recrutamento militar e a formação do exército ....................................... p. 144
c) Primeira contagem de efectivos ................................................................. p. 146
d) O exército em marcha: estrutura e comandos ............................................ p. 150
e) O percurso ................................................................................................ p. 151
f) Vitórias repartidas: Zamora e Baltanás para D. Afonso V; e os mestrados de Calatrava
e Villena para D. Fernando e D. Isabel .......................................................... p. 162
g) Os reinos a ferro e fogo ............................................................................. p. 166
h) O pedido de auxílio ao príncipe D. João .................................................... p. 175
7. DA BATALHA DE TORO AO ÚLTIMO RESCALDO ............................. p. 179
259
a) A escolha do local da batalha e a preparação do terreno ............................. p. 181
b) A disposição do exército castelhano – os comandos .................................. p. 185
c) A disposição do exército português – os comandos .................................... p. 186
d) O início da batalha .................................................................................... p. 187
e) A sequência da batalha. As várias batalhas................................................. p. 193
f) A disposição dos exércitos ......................................................................... p. 195
g) A fuga de D. Afonso V. A vitória do príncipe D. João. A noite no campo ... p. 201
h) Castronuño; Zamora; Toro; Tordesilhas ..................................................... p. 207
i) O regresso do exército português ............................................................... p. 209
j) O “dia seguinte” no lado castelhano ........................................................... p. 212
k) A continuação da campanha ...................................................................... p. 215
l) A paz das Alcáçovas .................................................................................. p. 221
m) A construção da vitória nos dois lados: as procissões de agradecimento ... p. 226
n) O balanço da campanha ............................................................................ p. 229
8. CONCLUSÃO .......................................................................................... p. 232
9. CRONOLOGIA DOS PRINCIPAIS ACONTECIMENTOS ...................... p. 236
BIBLIOGRAFIA .......................................................................................... p. 239
ÍNDICE ........................................................................................................ p. 258
ANEXOS ...................................................................................................... p. 260
260
ANEXOS
Anexo 1 – Afonso V, em iluminura da Biblioteca de Estugarda (retirado de SOUSA,
Armindo - «1325-1480», in História de Portugal: a monarquia feudal (1096-1480), vol.
II, Lisboa: Editorial Estampa, 1993).
.
261
Anexo 2 – Representação de D. João II, in Crónica de D. João II, de Rui de Pina.
Instituto dos Arquivos Nacionais / Torre do Tombo, Lisboa.
262
Anexo 3 – Retrato de Enrique IV (retirado de A. Paz y Meliá - «Introducción», in
Crónica de Enrique IV, Madrid: Atlas, 1973).
263
Anexo 4 – Retrato de Fernando, o Católico – conservado numa colecção italiana
(retirado de SUÁREZ FERNÁNDEZ, Luis - «La España de los Reyes Católicos (1474-
1516)», in História de España, dirigida por Ramón Menéndez Pidal, T. XIV, Madrid:
Espasa-Calpe, 1966, p. 233)
Anexo 5 – Retrato de Isabel, a Católica – quadro de Rincón, Palácio Real de Madrid
(retirado de Fernández Domínguez, J. – La guerra civil a la muerte de Enrique IV –
Zamora, Toro y Castronuño, Zamora, 2ª ed., 1993).
264
Anexo 6 – Retrato de Juana, a Excelente Senhora (retirado de SITGES, J. B. – Enrique
IV e la excelente señora llamada vulgarmente Doña Juana la Beltraneja (1425-1530),
Madrid, 1912).
265
Anexo 7 – A Península Ibérica no início do reinado dos Reis Católicos (retirado de
SUÁREZ FERNÁNDEZ, Luis – Los Trastámara y los Reyes Católicos, Madrid:
Editorial gredos, 1985, p. 205).
Anexo 8 – Carta enviada por D. Fernando a D. Afonso V, a 21 de Julho de 1475
(retirado de SESMA MUÑOZ, José Ángel - «Carteles de desafio cruzados entre Alfonso
V de Portugal y Fernando V de Castilla (1475)», in Revista portuguesa de história, XIV
(1976), pp. 277-295).
Lo que nuestro senyor el rey de Castilla, de Leon e de Sicillia, principe d'Aragon, me mando
dezir a vuestra real senyorio esto:
Que ya aquella sabe como le hovo embiado a Ruy de Sosa, cavallero de su casa, a la villa de
Valladolit, con cierta embaxada, la qual en efecto contenia dos cosas. La primera, querer iusticicar e
colorar la demanda de la senyora vuestra sobrina; la segunda, requerir que el alteza suya e la reyna
nuestra senyora salliessen destos reynos y qye assi sallidos se hoviesse de ver la justicia. E cuanto a la
primera, su alteza me mando dezir a vuestra merced que bien parece que aquella fue mal informada de la
verdat, que si verdadera informacion hoviera non cree que segunt vuestra grande virtut y buena
conciencia y el cerquano deudo y gran amor y buena paz que la senyoria suya y sus reynos con vuestra
excellencia y con los vuestros tenian acceptarades empresa tan iniusta como sta que acceptastes, ni
embiarades vuestra embayxada tan agra de hoyr como era sallir destos regnos, stando en ellos tan pascificamente como nunqua reyes en stos sus reynos stovieron, haviendo seydo iurados y obedecidos sin
violencia ni oppresion alguna por todos los prelados e grandes e ciudades e villas dellos e generalmente
por todos los tres stados y haun por los mesmos que al presente vuestra senyoria tiene usurpados en sus
reynos e por los mesmos vassallos suyos que en ellos mas con temor de los crimines que han cometido e
266
con desseo e voluntat de tiranizar. A lo que lalteza suya sabia que no havia de dar logar, que no por
respecto bueno alguno vos dieron entrada. E quanto a sto, el rey nuestro senyor dize que la iusticia suya e
de la reyna nuestra senyora sta tan clara e notoria que de buen graso permetiera que por quinquiera fuera
luego vista, mas que le parecio que vuestra senyoria le embio con mano armada sta embaxada pareciendo
querer que deste debate fuesse juez nuestro soberano Dios e los testigos las armas, entrando con gentes de
guerra en estos sus reynos e usurspandole su titulo de rey dellos sin tener nenguna accion, publicando por
sus cartas patentes que lo venia a buscar a donde quiera que stoviesse. E por sta causa, su alteza dize que
respondio a Ruy de Sosa que su senyoria responderia a la vuestra si en stos reynos viniesse e que desta
causa es venido agora, assi como lo dixo, a responder ante ste soberano e derecho juez que tomastes e trahe consego los testigos que scogistes, que son las armas. Por ende, que vos requiere que pues tan
cerqua desta ciuda suya en que sus desleales vassallos vos metieron vos presento la batalla ayer jueves
que se contaron veynte dias deste mes de julio, e yo viernes tiene aqui assentado su real, que a vuestra
alteza plegua fazer una de dos cosas: o sallier luego de sus reynos desembargandole todo lo que en ellos
tiene occupado y sto assim complido que el sera contento que ste debate se remita a nuestro muy sancto
padre, o sallir luego con vuestra hueste a aquel campo donde el ayer vos spero e oy spera a la batalla,
porque ste iusto e derecho juez que es nuestro soberano Dios determine sta quistion sin tantas muertes e
quemas e robos e otros grandes males que se speran seguir en stos sus reynos y en el vuestro en gentes
que no tienen culpa; e si por ventura vuestra excellencia se querra scusar con el cerquo que tiene sobre sta
su fortaleza, dize que la mandara luego entregar a un caballero fiable de vuestro reyno con seguredat que
dada la batalla vos la entregue; y si vuestra real senyoria, por non tener tantas gentes que puedan ygualar con las suyas dexa de salir a la batalla, dize que sera contento que ste debate se determine por la batalla de
sue real persona a la vuestra con que sto sea luego sin otra dilacion. Lo qual todo, muy excellente senyor,
yo Gomez Manrique, en nombre del rey nuestro senyor, vos digo y requiero de su parte todo lo
sobredicho, sin anyadir ni minguar e lo dare ansi firmado de mi nmbre e seellado con el seelo de mis
armas.
Anexo 9 – Carta enviada por D. Afonso V a D. Fernando, a 22 de Julho de 1475
(retirado de SESMA MUÑOZ, José Ángel - «Carteles de desafio cruzados entre Alfonso
V de Portugal y Fernando V de Castilla (1475)», in Revista portuguesa de história, XIV
(1976), pp. 277-295).
Lo que el rey de Castilla, de Leon e de Portugal, nuestro senyor embia a dezir a vuestra senyoria
en respuesta de la requesta con Gomez Manrique le embiastes, es lo siguiente.
Que el jueves passado, veynte dias deste mes de julio, vino hun vuestro rey darmas a su alteza a
le pedir de vuestra parte un seguro para Gomez Manriquem que vuestra senyoria le queria embiar, lo qual
su alteza luego otorgo e embio un trompeta suyo con quein seguramente podiesse venir; y despues, otro dia siguiente, fue a su alteza el dicho Gomez Manrique y de vuestra parte le dixo e fizo una requesta, la
qual dio firmada de su nombre y seellada con el seello de sus armas, el tenor de la qual es segun de parte
darriba se contiene, etc.
Quanto a lo que vuestra senyoria le embio dezir que bien parece que su alteza fue mal informado
de la verdat, e dize su real senyoria que much tiempo antes que acceptasse el desporio e casamiento con la
reyna dona Juana, nuestra senyora, e se informo bien de la verdat e iusticia que su senyoria tiene a stos
sus reynos, como legitima e natural del senyor rey don Enrique su padre, que Dios haya, e por tal havida e
tenida e iurada e obedecida por princesa primogenita heredera del dicho senyor rey su padre e por reyna e senyora destos dichos regnos pora despues de sus dias, assi por el como por los prelados e grande destos
sus reynos e por los procuradores de las ciudades e villas dellos, la qual asi mesmo fue dexada e
instituyda por el dicho senyor rey su padre por su legitima e universal heredera destos dichos reynos,
segun lo qual parece quel dicho rey nuestro senyor ha seydo e es verdaderamente informado quel dicho e
verdadero senyorio dellos pertenece iusta e drechamente a la dicha senyoria e la senyora reyna vuestra
muger fuestes iurados e obedecidos en stos reynos por algunos grandes e ciudades e villas dellos ha seydo
e fue iniusta e no devidamente e so color e causa hereda, diziendo quel dicho senyor don Enrique havia
fallecido sin dexar fijo ni fija legitimo, e por consiguiente que vuestra mercet usurpa e occupa el titulo e
nombre de rey destos reynos indevidamente e quel dicho rey nuestro senyor con iusto e drecho titulo
entro e sta en ellos como legitimo sposo de la dicha reyna dona Juana nuestra senyora, como legitimo
protessor e deffensor de sus drecho e causa, e que los que llamaron a su alteza e le suplicaron que entrasse
267
en ellos e le iuraron e obedecieron por su verdadero rey dellos usaron e usan grant lealdat e fidelidat, los
quales nunqua reconocieron ni obedecieron salvo al dicho rey nuestro senyor e a la reyna nuestra senyora
dona Juana.
A lo otro, que vuestra senyoria embio a dezir a su alteza que le plegua fazer un de dos cosas: o
sallir luego destos sus reynos desembargandole todo lo que en ellos tiene occupado e que sto ansi complido vuestra senyoria sera contento que ste debate se remita a nuestro muy santo padre; o, sallir
luego con su hueste al campo porque nuestro senyor Dios lo determine, dize su real senyoria que por las
causas susodichas parece la grande e notoria razon e iusticia que el tiene star como sta en stos reynos, e
que vuestra senyoria se deve sallir dellos, desembargar y dexar a la dicha senyora reyna su sposa y a su
alteza todo lo que en ellos teneys occupado, e que assi vos lo pide y requiere con Dios, e faziendolo assi
vuestra senyoria a su alteza plaze e sera contento, por scusar todos otros rigores e rompimientos de
guerra, que nuestro muy sancto padre vea e determine ste dicho debate por drecho, porque nunqua su
intencion e proposito fue de desviar ni apartar en ste caso la via de la iusticia e porque segunt la grant
virtut de su sanctidat confia gela mandara guarda.
E quanto a la batalla sobre que vuestra senyoria requiere a sua alteza, diziendo que por ella se
scusan muertes e quemas e robos e otros grandes males que se speran seguir en stos sus reynos en gentes
que no tienen culpa, su alteza dize que porque al presente sus grandes e gentes stan derramadas en otras
partes, su senyoria embiara a llamar luego, e venidas vos presentera e dara luego la batalla, mediante la
gracia de Dios, pero porque vuestra alteza le embio dezir que si su real senyoria por no tener tantas gentes
que puedan ygualar con las vuestras dexa de sallir a la batalla, que vuestra merced sera contento que ste
debate se determine por batalla de su real persona a la vuestra, a sto responde su real magestat que si a
vuestra senyoria mas pluguiere desto a su alteza assim mesmo plaze dello, faziendose por manera quel
campo sea seguro e que sta question y debate mas prestamente del todo con ello se determine e fenezca e
acabe, porquel vencedor quede pacificamente en la obediencia e possesion destos dichos sus reynos e se ataje e scusen para adelante todas otras guerras y males e danyos dellos, por cuyo respecto solamente su
alteza condeciende a sto y en tanto que stas seguredades pora ello se dieren, cada una de las partes
prosigua su negocio y causa como entendiere que le cumple.
Lo qual todo, muy poderosa senyor, yo Alonso de Herrera, en nombre del dicho rey nuestro
senyor, vos digo e respondo de su parte, en fe de lo qual firme sta scritura de mi nombre e la seelle con el
seello de mis armas, Que fe fecha oy sabado, veynte e dos dias del mes de julio de setenta e cinquo anyos.
Anexo 10 – Carta enviada por D. Fernando a D. Afonso V, a 24 de Julho de 1475
(retirado de SESMA MUÑOZ, José Ángel - «Carteles de desafio cruzados entre Alfonso
V de Portugal y Fernando V de Castilla (1475)», in Revista portuguesa de história, XIV
(1976), pp. 277-295).
Respuesta del rey de Castilla et etc.
Nuestro senyor el rey de Castilla, de Leon e de Sicilia e príncipe d‟Aragon me mando dezir a
vuestra excellencia que vio la respuesta que Portogual, vuestro rey darmas, le levo por scrito de hun
nombre que dezia Herrera e seellada com hun seello quel dezia ser de sus armas, el tenor de la qual se
continua arriba etc.
E quanto a lo primero que vuestra senyoria dize, aprovando la demanda de la senyora vuestra
sobrina, dando a sto razones en la dicha respuesta contenidas y entre stas diziendo que los que metieron a
vuestra senyoria en stos reyno no iuraron a su alteza ni a la reyna nuestra senyora a sto su senyoria dize
que assi como desto vos fue fecho relacion no verdadera, que assi es en todas las otras cosas, pues sta
muy notório e manifiesto que los mas principales dellos, en presencia del senyor rei don Enrique, iuraron
a la dicha reyna nuestra senyora publicamente por princessa heredera destos reynos e por reyna dellos
pora despues de los dias del dicho senyor rey e haun com auctoridat del legado del nuestro muy sancto
padre, lo qual es tan notório que no se puede encobrir e porá parescer por scrituras autenticas. E assi
mesmo, dize que es manifiesto que todos los que vos trixieron a stos regnos agora, quando fallescio el
dicho senyor rey don Enrique, iuraron a la alteza suya e de la reyna nuestra senyora si les atorgaran
algunas iniustas demandas que les fazian. Y no menos parece haver seydo mal informado y haun
268
enganyado vuestra real senyoria en lo que dizen quel rey Enrique al tiempo de su fallecimiento dexo por
heredera la dicha senyora vuestra sobrina, pues sto passo por el contrario: conociendo el passo en que
stava, mando quel fecho de la succession de los reynos se fiziesse lo quel Cardenal sabia que el ténia
determinado e asentado de fazer com la dicha reyna nuestra senyora, que era declarar por ella la
succesion, que assi lo pusiera en obra si hoviera lugar de passar a Segovia, segun que ya todos los del su
conseio e a otros muchos es notório, e que preguntandole que que fari de la senyora vuestra sobrina,
mando que stoviesse a lo que hordenassem el Cardenal y los duques del Ingantadgo y de Plasiencia y del
Conmdestable y conde de Benavente y marques de Villena, lo qual todo passo assi en verdat e hay
muchos testigos que lo que vieron e oyeron, assi que para sto e para las otras allegaciones que en la dicha
respuesta se contienen podran haver replicatos com satisfatorios e verdaderos, que si aqua tuviessedes
juez humano y no suspechoso staria muy ligera de averiguar su iusticia, pero pues al presente ste juez no
teneys ni vos, muy excellente senyor, que stastes en el proceder deste negocio seguir la via que permiten
las leyes divinas e humanas, antes yendo contra aquellas scogistes la via de la fuerca. Dizes u alteza, que
para sta forma de proceder que tomastes no son menester las otras razones ni allegaciones salvo las armas
y los braços que las menean, e por sta causa vos cino a presentar batalla general y embio a requetir
comigo a vuestra senyoria que quisiesse sallir a ella e sino que se librasse por batalla particular de su real
persona a la vuestra, lo qual parece que vuestra merced accepta haviendo para ello placa segura. A lo qual
su realeza responde que porque seria cosa difícil que tan grandes príncipes como vosotros fallassedes
outro ninguno príncipe christiano que el campo vos pudiesse assegurar, e haun porque sto seria una
dilacion infinita, que a sua alteza parece, si la vuestra ha voluntat, que sto haya efecto que se devian tener
sta manera: que se eligan quatro grandes hombres, dos castellanos e dos portugueses, e que stos com cada
ciento o dozientas lanças con grandes sagramentos e homenatges que se fagan los unos a los otros e los
otros a los otros de no valer ninguno dellos a su parte como quiera que la vean passar, tengan la placa
segura, e que para sto com expresa licencia e mandamiento que para ello hayan de la alteza suya e de la
vuestra, se desnaturen de vosotros; e su alteza dize quel condeciende a offrescer su real persona a sta
batalla, stando como sta mas poderoso en gentes que vuestra senyoria, por scusar los irreparables danyos
que se speran de la dilacion desta contienda e porque tiene muy firme confianca en la clara iusticia quel e
la reyna nuestra senyora tienen, com la qual spera en nuestro soberano Dios y en l‟apostol Sanctiago que
se dara por el la sentencia. E dize que si desto plazera a vuestra alteza, que sentro de tercero dia se ponga
en execucion e haya luego, oy o manyana, vuestra respuesta en el real donde su alteza stoviere e donde no
que su senyoria no entiende mas entender en ello, porque entre tan altos principes no seria cosa honesta
andar en demandas e respuestas como fazen los hombres baxos, pero dentro deste tiempo no se entienda
que ha de dexar ninguno de fazer lo que podiere, como queira que por las leyes sea reprobado a los que
stan en requesta, assi como en la respuesta de vuestra senyoria se contiene.
E porque aquella sea cierta quel rey nuestro senyor me mando dezir todo sto, doylo firmado de
mi nombre e seellado com el seello de mis armas. Fecho XXIIIIº de Júlio de LXXV anyos.
Anexo 11 – Carta enviada por D. Afonso V a D. Fernando, a 25 de Julho de 1475
(retirado de SESMA MUÑOZ, José Ángel - «Carteles de desafio cruzados entre Alfonso
V de Portugal y Fernando V de Castilla (1475)», in Revista portuguesa de história, XIV
(1976), pp. 277-295).
Lo quel rey de Castilla, de Leon, de Portugal, nuestro senyor, embia a dezir a vuestra senyoria en
respuesta de una scritura que ayer lunes, XXIIIIº de Júlio, Ceritanez, vuestro rey darmas, dio a sua alteza,
firmada del nombre de Gomez Manrique e seellada com el seello de sus armas, es lo siguiente.
Que su alteza vio la dicha scritura que vino inserto el tenor de la outra su respuesta que com
Portugal, su rey darmas, yo Alonso de Herrera, cavallero de su casa e del su conseio, por mandado enbie a
vuestra senyoria, la qual en efecto se contenia la iustificacion del drecho de la succesion de la reyna dona
Juana nuestra senyora a stos sus reynos y quando vos presentarian la batalla general que vuestra senyoria
le embio offrecer, porque si a vuestra e que a su alteza plazia assi mesmo dello, faziendose por manera
quel campo fuesse seguro y quel vencedor quedasse pascificamente en la obediência y possesion destos
reynos y se diessen seguridades para ello, segunt que mas largamente en la dicha scritura de respuesta se
contiente, a lo qual el dicho Gomez Manrique dize que vuestra senyoria replica com efecto sto que se
sigue.
269
Primeramente, que es notorio e manifiesto que los mas principales de los grandes que se
metieron al rey nuestro senyor en stos reynos, en presencia del senyor rey don Enrique, que Dios haya,
iuraron a la senyora vuestra muger publicamente por princessa heredera destos reynos e por reyna dellos
porá despues de los dias del dicho senyor rey, y al tiempo de su fallescimiento el mando que en el fecho
de la succession se fiziesse lo quel Cardenal sabia quel ténia determinado de fazer com la senyora reyna
vuestra muger, que diz que era declarar por ella la dicha succession e que la reyna nuestra senyora
stoviesse a hordenanca del Cardenal y del duque d‟Arevalo e Condestable e marques de Sacntellana e
marques de Villena e conde de Benavente. Otro si, que pues al presente no havia juez pora sto determinar,
ni el rey nuestro senyor havia seguido las vias que permiten las leys, e que por sta causa vuestra senyoria
le havia presentado la batalla general o la particular de su real persona a la vuestra, e que para tener placa
segura a vuestra alteza parece que se devria tener sta manera: que se eligan quatro grandes hombres, dos
castellanos y dos portogueses, e que stos com cada ciento o dozientas lancas com grandes sagramentos e
homenages que se fiziessen los unos a los otros de non valer ninguno dellos a sua parte haunque la
viessen mal passar, tenga la placa segura, y que a sta batalla particular vuestra senyoria condeciente por
scusar los irreparables males que se speran de la dilacion desta contienda, segunt que mas largamente en
la dicha scitura de replicato se contiene.
Acerqua de los primero, tocante a la iustificacion del drecho y causa de la reyna dona Juana
nuestra senyora, responde su alteza que como quiere que aquellos grandes que vuestra senyoria dize
iurasen a la senyora reyna vuestra muger, parece muy manifiestamente por su scritura firmada e iurada,
que lo fizieron e otorgaron por atajar scandalos y por otras causas que no hovieron efecto, e no porque la
reyna nuestra senyora no hoviesse drecho a la succession destos reynos como lo tiene e aquellos mesmos
grandes e todos los otros que agora siguen la opinion de vuestra senyoria la havran obedecido y iurado
primeramente por princessa y reyna e senyora dellos, porá despues de los dias del dicho senyor rey su
padre, y haun despues com grande deliberacion haviendo por ninguno irrevocado iusta y drechamente el
segundo iuramento por ellos fecho a la senyora reyno vuestra muger, por seer como fue contra el primero
e por las otras dichas causas, ratificaron y aprobaron el dicho su primero iuramento e lo otorgaron de
nuevo, iurando de nunqua mas obedecer ni seguir a la senyora reyna vuestra muger.
En lo que vuestra senyoria embio a dezir quel dicho senyor rey don Enrique havia hordenado e
mandado al tiempo de su fallecimiento, no conviene responder, porque su real senyoria sabe muy scierto
lo contrario, assi de los seccretarios ante quien passo, como de muchos testigos dignos de fe que fueron a
ello presentes, en lo qual por acortar en scrituras no quiere mas dezir que si vuestra senyoria hoviera
scogido la via de la iusticia por iuyzio de nuestro muy sancto padre, en la manera que se vos offrecio, ante
su sanctidat se pudiera todo aquesto bien averiguar e mostrar e haun probar, que la via que su alteza há
proseguido e comencado en defension del drecho e causa de la dicha reyna nuestra senyora e de su
primogenitura no es repugnante al drecho divino ni humano.
Quanto a lo de la batalla particular de su real persona a la vuestra, ya su alteza tiene respondido
que le plaze dello, pues que por aquella via se scusan mas muertes y danyos, con que se de luego
seguredat por la uparte e por la outra para quel vencedor quede pascifico en la obediência e possesion
destos reynos e como lo dixo en su primera respuesta, porque si de otra manera se fiziesse, la mesma
guerra e division quedaria siempre abierta e pendiente y no se scusarian las dichas muertes y danyos en
stos reynos, por cuyo respecto solamente a stu su alteza quiere condecender como la vuestra dizer que
condeciende, y por mayor brevedat del fecho su alteza porna luego por rehenes dello a la dicha reyna
dona Juana nuestra senyora y que vuestra senyoria ponga assi mesmo a la dicha senyora reyna vuestra
muger, e pues segun la qualidat del fecho no puede haver ni hay otras rehenes bastantes para ello. E
cerqua la seguredat del campo, a su alteza plaze de la forma contenida en la dicha scritura y porque no
haya division ni mas larga en la dipputacion de los quatro grande y se pueda tener mayor confiança
dellos, vuestra senyoria scoja e nombre dos de los portoguesses suyos e sua alteza scogera e nombrara
luego dos grandes castellanos de los que siguen vuestra opinion, a los quales assi mesmo se entreguen
luego los dichos rehenes, a todos quatro iuntamente, e cada parte su rehn a los suyos como vuestra
senyoria mas quisiere e por sta via se puede haver mas prestamente el inycio en sta contienda, en lo qual
confia en nuestro senyor Dios, qui es iusto e drecho juez que le non denegara su ayuda y favor. Y porquês
verdat que su alteza lo responde todo assi, por su mandado firme sta scritura de mi nombre e la seelle com
el seello de mis armas. Fecho oy martes, veyntecinquo dias de Júlio anyo de LXXV.
270
Anexo 12 – Carta enviada por D. Fernando a D. Afonso V, entre 26 a 31 de Julho de
1475 (retirado de SESMA MUÑOZ, José Ángel - «Carteles de desafio cruzados entre
Alfonso V de Portugal y Fernando V de Castilla (1475)», in Revista portuguesa de
história, XIV (1976), pp. 277-295).
Lo que nuestro senyor el rey de Castilla e de Leon e de Sicilia, principe d‟Aragon, me mando
dezir a vuestra senyoria, es sto.
Primeramente, que su alteza vio el segundo replicato que en nombre de vuestra senyoria le
embio Ferrera, firmado de su nombre e seellado con el seello de sus armas, e assi mesmo vio las razones e
allegaciones en el dicho replicato contenidas sobre la iniusta demanda de la senyora vuestra sobrina. E
dize se alteza que sobre ste caso no le paresce que es menester contender por palabras y por scitos, pues
como se dontiende en la segunda respuesta que de parte de su alteza yo di, no teneys aqua al presente juez
humana que oya vuestras allegaciones e por aquellas juzgue e determine, y por sto su alteza me manda
que posponiendo todas la razones muy iustas e verdaderas que dar se podrian en guarda del drecho de la
reyna nuestra senyora e suyo, e solomente responde a dos cosas. A la primera, a lo que vuestra alteza dize
que si su alteza dize que si su alteza quisiera que ste debate viera nuestro muy sancto padre como le
embio dezir; la segunda, a lo de la batalla de su real persona a la vuestra. E quanto a la primera, dize que
ya yo de su parte dixe a vuestra senyoria el permetiera de muy buen grado que quinquiera fuera juez desta
causa, sí vuestra mercet no le embiara aquella embaxada con mano armada y tal que era muy agre de hoyr
e mucho mas de fazer, diziendole que dexasse stos regnos que iusta e pascificamente tenia e posseya, lo
qual no permiten los drechos divino no humano. E quanto a la segunda, de la batalla e de la seguredat del
campo que su senyoria vos offrecio y la vuestra accepta, dize su alteza que destoe s muy alegre, porque
por sta via puede ser que plega a nuestro senyor que se atajen los otros grandíssimos danyos que stan
apparejados y dize su alteza que ele s contento que se nombren los cavalleros de amas partes assi como lo
dize vuestra merced, e por la parte vuestra nombra de los vuestros el duque de Guimaranes y al conde de
Villareal; pero en cuanto a las rehenes que vuestra excellencia declara de la reyna nuestra senyora e de la
senyora vuestra sobrina, dizes su real senyoria que y ala vuestra vee y a todos es notorio que stas no son
yguales, que si lo fuessen no havrian sobre que contender ni batallar, e pues que en sto ay tan grande
desigualdat e a el no seria honesto otorgarlas, pero que dara todas las rehenes e seguredades que para en
tal caso se puedan demandar, assi por la parte suya como de la reyna nuestra senyora por manera que por
falta de las seguredades no quede la execucion desto a que su senyoria se offrecio com desseo de redemir
com sta batalla particular los grandes males y danyos generales que se speran. E porque la senyoria
vuestra no dude desto aqua contenido, embio sta scritura firmada de mi nombre e seellada com el seello
de mis armas.
Anexo 13 – Carta enviada por D. Afonso V a D. Fernando, a 1 de Agosto de 1475
(retirado de SESMA MUÑOZ, José Ángel - «Carteles de desafio cruzados entre Alfonso
V de Portugal y Fernando V de Castilla (1475)», in Revista portuguesa de história, XIV
(1976), pp. 277-295).
Lo que nuestro senyor el rey de Castilla, de Leon, de Portogual, responde al replicato que com
Portugal, su rey darmas, Gomez Manrique de vuestra parte le embio por escrito, firmado de su nombre e
seellado com el seello de sus armas, es esto que se sigue.
Que visto el dicho vuestro replicato, por acortar en escrituras non quiere repetir las cosas en el
contenidas, salvo solamente lo que faze al fecho principal en que vuestra senyoria dize que es contento
que para la seguridat del campo se nombren los cavalleros de ama partes y que por la parte vuestra
nombre de los de su alteza al duque de Guimaranes e al conde de Villareal, pero quanto a las rehenes de la
reyna nuestra senyora y de la senyora reyna vuestra muger, dize vuestra senyoria que estas no son iguales,
que si lo fuessen no havrian sobre que contender ni batallar y pues que en sto hay desigualdat que a
vuestra mercet no seria onesto atorgarlas, pero que dara todas las rehenes e seguridades que para en tal
caso se puedan demandar, assi para la parte vuestra com de la dicha senyora reyna vuestra muger.
A esto, su alteza responde que se maravilla mucho de la vuestra, en se querer assi escusar de la
batalla que lo offrecio, so color de desigualdat de las rehenes la qual en la verdat no hay ni por vuestra
271
parte se puede ni deve allegar por estas razones: la primera, porque pues que su real senyoria y la vuestra
soys la cabeça cada huno por su parte y por tanto bien universal de aquestos reynos quisisteys offrecer
vuestras personas a peligro de batalla particular, no se deviera dizir ni pensar en ygualdat ni desigualdat
de las senyoras reynas vuestras mugeres, que devem andar e seguir tras vosotros, mayormente que pues
vuestra senyoria confia vuestra real persona de los cavalleros que han de tener la placa segura e se vos
ofrecio por su alteza que los vuestros teniessen la rehen de la senyora reyna vuestra muger no seria sin
razon confiar dellos assi mesmo la persona della ni le corria en ello peligro alguno salvo haver de estar e
passar por el iuyzio de la batalla, como se offrece que ella mesma lo quiere permeter e segurar; la otra
razon es porque fablar en esta ygualdat o desigualdat es repetir la mesma question e debate de vuestra
requesta sobre que su alteza a la vuestra haveys de combatir, que pues su real senyoria defiende el drecho
de la reyna nuestra senyora como fija heredera del senyor rey don Enrique, que Dios haya, la senyora
reyna vuestra muger, como su hermana infante de Castilla, reyna de Sicilia, no tiene ygualdat con ella y
puesto que vuestra senyoria aquello niegue, pues soys requestador y sobre ello offreciesteys vuestra
persona a la batalla y el rey nuestro senyor lo contrario dello vos entiende defender e combatir de cuyo
iuyzio depende la determinacion dello manifiesto es que agora antes de tiempo no se podia ni devia
aquello por vos allegar pora dexar por ello de dar las dichas rehenes ni escusarse de la dicha batalla; outra
razon muy principal notória hay para esto que vuestra senyoria en todos los carteles por nuestra parte
enbiados afirma que a esta batalla particular condeciende y offrece su real persona por escusar los
yrreparables danyos que de la dilacion se esperan de sta contienda y por redemir con elaa los grandes
danyos generales de aquestos reynos, pues ya vee vuestra mercê e a todos es manifiesto que no hay
seguridades otras que basten para del todo atajar e escusar aquesto si la dicha senyora reyna vuestra
muger quedasse en su liberdat, pues es la parte principal vuestra que pretiende haver drecho a la
succession destos reynos e com ella sola que quedase en todo tiempo se podia sumtar e renovar esta
contienda, por manera que aprovecharia poço al bien universal destos reynos el vencimiento de la batalla
ni por ella se consiguiria el fin principal porque se condeciende a ella quanto mas que non se puede negar
que pues estas dos senyoras reynas son las partes principales desta contienda que entre las personas reales
dellas no se pude notar ni oponer duda ni diferencia de seguridat e saneamiento deste debate e del
alanamiento et perpetua pacificacion dessos reynos, que si para entero remédio dello otras seguridades
bastantes huviera, sin duda alguna el rey nuestro senyor fuera tanto contento dellas como de las que
declaro, en las quales si alguna desigualdat havia era e es de 1.ª parte de vuestra senyoria, porque tiene
fija de la dicha senyora reyna vuestra muger, con la qual todavia quedava abierta duda o color para con
ella se poder revocar la dicha contienda, lo qual bien conocio el rey nuestro senyor al tiempo que nombro
los dichos rehenes, pero su alteza por llegar mas prestamente el fecho al cabo, contra voto e parecer de
muchos grandes e cavalleros de su consejo, hovo por bien de se contentar sin la dicha infante vuestra fija,
que estava por entonçe apartada de vos, porque vuestra senyoria le embio requerir que dentro tercero dia
se pusiesse en execucion la dicha batalla e para se poder asi complir et poner en obra no le parecio a sua
alteza que otras rehenas bastantes havia luego en su mano ní en la vuestra para poder dar ni poner en tan
breve tiempo salvo las dichas senyoras reynas, e por tanto dize su real magestat que se affirma en lo que
tiene dicho y si vuestra senyoria quiere luego sin ninguna dilacion poner e entregar lealmente los dichos
rehenes ya declarados, que en tal caso su alteza assi mesmo nombrara otros dos grandes de los vuestros,
en otra manera no le parece que conviene passar tiempo en palabras ni en escrituras, ni entiende mas
sobre ello replicar, mayormente que vuestra senyoria bien sabe que por fray Alonso, persona de vuestro
consejo e a vuestra mercet e la dicha senyora reyna vuestra muger muy fiable e accepta, fue el dicho rey
darmas que a vos embio ante las puertas de vuestro palácio, en presencia de algunos vuestros grandes,
muy iniuriado et maltratado e despojado rasgando la su cota de armas elo quisieron fazer ferir e matar en
tan grande offensa de vuestra real persona, y todo ello passa sin castio ni remedio alguno, por donde
pareçe que en la parte vuestra no les plaze ni quieren dar lugar que esta cosa vaya adelante ni que alla
vayan mensageros ni officiales darmas sobre ello, ni su real magestat los entiende mas embiar y por esto
embio yo agora esta su respuesta a vuestra senyoria com el levador della por mandado de sua alteza, en fe
de lo qual la firme de mi nombre e la fize seellar com el seelo de mis armas. Fecho primero dia de Agosto
anyo de LXXV, Herrera.
Anexo 14 – Carta enviada por D. Fernando a D. Afonso V, 4 de Agosto de 1475
(retirado de SESMA MUÑOZ, José Ángel - «Carteles de desafio cruzados entre Alfonso
V de Portugal y Fernando V de Castilla (1475)», in Revista portuguesa de história, XIV
(1976), pp. 277-295).
272
Lo que nuestro senyor el rey de Castilla, de Leon, de Sicilia, de Portugal, principe de Aragon, me
manda responder en respuesta del tercero replicato que de parte de aquella embio Alonso de Herrera,
firmado de su nombre e seellado com el seello de sus armas, es lo que adelante dira.
Quanto a lo primero que vuestra excellencia dize que se maravilla mucho de su alteza se querer
scusar de la batalla que offrecio so color de la desigualdat de las rehenes, me manda responder que mas se
devria maravilhar su realeza por vuestra mercet haviendo acceptado como accepto su requesta en la qual
no hoyo ningun apuntamiento de rehenes, querer apuntat en que estar se hoviessen de dar y nombrando
que fuese la reyna nuestra senyora y tranando mucho desto como de cosa difícil que por tal deve seer
havido aquello que los reyes e cavalleros no deven fazer, e dizes u alteza que no sabe que honra podria
ganar en esta batalla que mas mengua no se le siguiesse en haver de ygualar a la reyna nuestra senyora
com la senyora vuestra sobrina seyendo como son desyguales, haunque en la respuesta de vuestra
senyoria de ciertas razones porque esto se deviesse assi fazer, a las quales me manda responder lo
siguiente:
A la primera, que vuestra senyoria dize que pues su alteza y vuestra mercet que soys las cabeças
offreceys vuestras personas a peligro de batalla e las confiarey de los seguradores del campo que no se
devria dizir ni pensar en ygualdat ni desigualdat, ni era sin-razon confiar de los sobredichos las personas
de la reyna nuestra senyora e de la senyora vuestra sobrina, a la qual su alteza me manda responder que
quando aquella conmigo nos requirio de batalla general y en caso que aquella no hoviesse lugar de la
batalla particular, que ya sabe vuestra mercet que no apunto en esta requesta ninguna cosa de rehenes que
pudiesse traher la dilacion que se a seguido por apuntar en ellas vuestra senyoria, lo qual non se deviera
fazer si aquello hoviera gana de la execucion, la qual fermosamente se niega, demandando cosa tan
desigual que tanto quanto de es honorosso ofrecer su real persona a esta batalla le será vituperosso poner
a la reyna nuestra senyora por rehenes della, seyendo su muger velada e madre de la senyora princesa su
fija, teniendo los cargos que tiene de su real senyoria et poniendo vuestra mercet a essa senyora que es
fija de vuestra hermana seyndo de tan poqua edat e por casar, la qual es assaz desigualdat demas de las
otras que estan declaradas e divulgadas por estos sus reynos e por los stranyos e ahun por cartas firmadas
de todos vuestros sequaces. Assi que por aquesta sola causa, su alteza dize que no es razon que el ponga
este rehen, la qual no dexaria de poner por desconfianca de los seguradores del campo.
E quanto a la segunda razon que vuestra mercet da, diziendo que fablar en esta ygualdat e
desigualdat es repetir la mesma question e debate desta requesta, porque vuestra senyoria defiende el
drecho de la senyora vuestra sobrina comofija heredera del senyor rey don Enrique e a su alteza el de la
reyna nuestra senyora como he su hermana, a esto me manda responder que es necessário que se repita
este debate, pues sobre aquele s el fundamiento de la batalla, que si ello fuesse como vuestra senyoria lo
dize, ho havria nenguno tan temerário que quisiesse defender el drecho de la hermana haviendo fija
heredera, mas porque esta falleçe es tan grande la desigualdat que no se devria pedir lo que se pide ni
aquello atorgar.
E a lo que vuestra mercet dize que pues su alteza es el requestador y sobre esto offreçe su
persona a la batalla y vos, muy excellente senyor, entendeys defender e combatir lo contrario, que no
podia ni devia su realeza antes de tiempo allegar esta desigualdat para por ello dexar de dar los dichos
rehenes e escusar la batalla. A esto su alteza me manda responder e que si en su primera requesta vos
offreciera alguna rehenes y no las diera que esto hoviera lugar de dizirse, pero que non vos offrecio por
mi salvo la batalla de su real persona a la vuestra, sin otras condiciones ningunas que esta podiessem
empachar y esta vos há offrecido y offrece agora, como quier que el iuyzio de aquella fa el somete todos
estos reynos que iusto e pacificamente tiene e posse y vuestra mercet no pone sino tres o quatro ciudades
e villas en que los muy desleales tenedores dellas vos han apoderado forcando a sus leales et naturales
vassallos e moradores en ellas.
E quanto a lo que vuestra mercet responde que pues su alteza por sus cartelles dize que
condeziende a esta batalla por escusar muertes e danyos e que estos no se podran atajar quedando libre la
reyna nuestra senyora, su alteza me manda responder que quando aquello vos requirio distava talla
entendio que assaz muertes e danyos se podrian scusar al presente, haviendo efecto, e assi lo entiende
agora que remediar los males venideros a solo Dios pertenesce, pues que como en la respuesta a vuestra
mercet se contiene que de su parte quedaria la senyora princessa assi bien dize que de la parte de la
senyora vuestra sobrina quedarian otras personas, que asi iniustamente como ella se podrian intitular
successores destos reynos y por tanto, dizes u senyoria, que se devrian atajar los males presentes como
273
cree que se atajarian com esta batalla y remitir los venideros al divino remédio; en conclusion, su alteza
me manda dizir a vuestra senyoria que si todavia quisiere que haya rehenes et seguridades para lo
venidero, que como quiere que le parece seer cosa de gran dilacion, pero que el será contento de poner a
la senyora princesa su fija com que vos, muy esclarecido senyor, pongays al senyor vuestro primogénito.
Porque este parece processo infinito, su realeza dize que lo que vos offrecio por su primera requesta vos
offrece agora de nuevo, que es la batalla de su real persona a la vuestra, et que vuestra mercet como
requestada no puede ni deve demandar ninguna destas condiciones que pide, pues aquellas son enemigas
de conclusion, et que si desto plaze a vuestra senyoria, que dexando todas las otras dilaciones responda
nombrando luego los caballeros de su parte que han de tener da plaça segura, pues su realeza há
nombrado los de vuestra, et divisando las armas y que esto fecho su alteza assignara el dia y tanto breve
que se conozca quanto desse ala conclusion deste fecho. Y a esto, muy excellente senyor, que yo embio de
parte de su real senyoria por este cartel fimado de mi nombre et seellado com el seello de mis armas, le
suplico me mande luego responder com el efecto de suso declarado, que de otra guisa su alteza me manda
que yo no reciba ninguna respuesta que venga con dilacion, porque seria desonesto a tan grandes
principes contender mas en carteles sin exsecucion.
E quanto a lo que vuestra mercet toqua en el fin de su respuesta, de lo que fue cometido contra
vuestro rey darmas, diziendo haverse fecho a fin que no vayan ni vengan mensageros ni officiales darmas,
su alteza me manda responder que deste caso el e la reyna nuestra senyora huvieron tan grande pesar que
de ninguna cosa no podieron haver mayor, segunt de su parte mas largamente yo le dixe al dicho Portugal,
vuestro rey darmas, remitiendo a vuestra senyoria la forma de la emienda que le parecia que se le devia
fazer, que toda aquella que fuese razonable e fazedera se faria; esto se dezia por seer el cometedor
constituydo en sacra religion, que de otra guisa en la mesma hora se fiziera el castigo que merecia; y
quanto a dizir que se fizo a fin que no viniessen ni fuessen, a esto dize se alteza que no ha lugar, porque
aquella assi mesmo me mando dezir al dicho rey darmas que volviesse com la repuesta et que lo fiziesse
saber que el seria traydo et levado seguramente, et para atajar este inconveniente, dizes u alteza que vea
vuestra senyoria la forma que quiere que se tenga para que seguramente vayan y vengan los officiales
darmas o trompetas o otras personas si fueren necessárias de hir o venir para la execucion de la batalla et
que aquella se terna por la parte suya, por manera que por este non quede la execcucion della. Fecha en
Medina del Campo, a quatro de Agosto de LXX e cinquo anyos. Gomez Manrique.
Anexo 15 – Carta de D. Afonso V, dada em Toro, a 5 de Março de 1476, agradecendo à
Câmara Municipal de Lisboa o auxílio pecuniário que ela lhe prestara, in VITERBO,
Francisco Marques Sousa - A batalha de Toro. Alguns dados e documentos para a sua
monographia historica, Lisboa, Typographia Universal, 1900, pp. 9-10.
«Vereadores, Procurador e Procuradores dos mesteres da minha nobre e sempre leal cidade de
Lisboa, vos envio muito saudar. Muito vos agradeço e tenho em especial serviço o dinheiro que cá
mandastes para pagamento do soldo, e certo eu sou em bom conhecimento do muito amor e lealdade com
que me sempre essa Cidade tem servido e serve, e assim crede que he minha tenção e vontade para em
todo tempo vol‟o galardoar com mercês, honras, privilegios e liberdades, quando quer que m‟os
requererdes e vos necessários forem; e por que dos dinheiros que destes para o dito soldo a Affonso
Martins e a Pedro Annes ficaram em sua mão duzentos e cincoenta mil réis, os quaes elles entregaram em
minha Camara, col‟o notifico assim para lh‟os mandardes levar em conta e despeza. Escripta em Touro, a
cinco de Março – Pedr‟Alvares a fez – de mil quatrocentos setenta e seis».
Anexo 16 – Carta do príncipe D. João, dada em Toro, a 9 de Março de 1476,
agradecendo à Câmara Municipal de Lisboa o auxílio pecuniário que ela lhe prestara, in
VITERBO – A batalha de Toro…, Lisboa, Typographia Universal, 1900, p. 10.
«Corregedor, Vereadores, Procurador e Procuradores dos mesteres. Nós o Principe vos enviamos
muito saudar. Muito vos agradecemos e temos em serviço os seiscentos e tantos mil réis que nos enviastes
274
para pagamento do soldo da gente com que ora ordenastes de servir a El.Rey, meu senhor, e a nós n‟esta
vinda que a sua senhoria viemos, e certo por ello, além das outra razões que ahi há, sempre folgaremos de
fazer a essa cidade e a vós outros em particular toda a mercê e favor como he razão, e queremos e nos
praz que o dito serviço, que nos assim com toda bôa vontade como fieis e leaes vassalos e servidores
fizestes, não fique em foto nem se possa allegar por exemplo para ser foro a vós nem a vossos
successores; e bem assim nos praz e vos damos nossa authoridade que, para pagamento dos ditos
dinheiros, possaes lançar taxa por todos os moradores d‟essa cidade e seu termo, que algum não seja
escuso d‟ella salvo os que por si ou por outrem nos vieram em a dita vinda servir. E queremos e
mandâmos que se cumpra o que ácerca da dita taxa accordardes e tiverdes accordado. Escripta em a
cidade de Touro, a nove dias de Março – João Garcez a fez – de mil quatrocentos e setenta e seis».
Anexo 17 – Carta de D. João II, datada de 11 de Março de 1482, recomendando à
Câmara Municipal do Porto a celebração festiva da batalha, in VITERBO – A batalha
de Toro…, Lisboa, Typographia Universal, 1900, pp. 10-15.
«Juizes, vereadores, Procurador e Homeens boos, nos Elrey vos enviamos muito saudar. Como
quer que por todallas cousas, que de Nosso Senhor recebemos, lhe devemos de dar graças, como
lembrados de seus benefficios, e especiallmente os Reis e Principes o devem ffazer pollas vitorias e
vencimentos, de que sua maaom recebem, o que os Reix destes regnos sempre muy perffectamente
fezerom e guardarom dês o primeiro Santto e gllorioso rey dom Affonso, o primeiro, ataa nossos dias,
segundo que per procissõens e solenydades hordenadas, que se em cada humm ano ffazem em alguuns
llugares destes Regnos, a todos he notoryio: e querendo nos acerca dello nom menos seer grato e
reconhecido a Nosso Senhor o que em nossos dias e presença nos ffez de mercee, em a batalha que
ouvemos com os Regnos de Castella antre Touro e Çamora, porem hordenamos e mandamos que daquy
em diante, em llouvor de Nosso Senhor e da Bemaventurada Virgem Maria, sua Madre, e de Sam Jorge e
de Sam Chritovam, que o dito dya trazíamos por nossos Padroeiros e nome, em cada huum ano, aos dous
dias de Março, em que ffoy a dia batalha e vytorya, a cllerizia e todos os dessa cidade ffaçaaes sollepne
procissom sayndo da See e hindo per os lugar purbycos com toda solepnidade, cyrimonya, officios, jogos,
asy e tam compridamente como costumaes de fazer em dya do Corpo de Deus, tirando sollamente de nom
hir a Arca, onde vay o Sacramento, e se em essa Cidade ouver Igreja do precioso marter e cavalleiro Sam
Jorge e Sam Christovom, a precissom vaa a ella, onde se diga Missa e Preegaçom em lembrança da dita
Vytoria, segundo o theor e fforma desse caderno, que vos com esta envyamos, e onde nom ouver Caza do
dito Sam Jorge e Sam Christovom, vaa a dita procissom e preegesse onde se acustuma hir e preegar per o
dito dia de Corpo de Deus, e esta nossa carta vos mandamos que registees no Lyvro da Camara dessa
Cidade, pera senpre se aver de ffazer o que dito he em relembrança da causa por que se a dita
sollepnydade ffaz. Scripta em Vyanna da par dallvyto a 11 dias de Março – Alvaro Barrozo a ffez – de
1482. E por quanto essa carta non vay a tenpo pera se a dita procissom poder ffazer ao tempo nella
contheudo vos encomendamos e mandamos que se ffaça agora a primeira sesta ffeira que vyer depois da
dada della, e pera o ano que vem e dhi endiante, aos dous dias de Março.
Por quanto as cousas notavees e dignas de grande memorya, especialmente aquellas que som
ffeitas pellos grandes Reyx e Principes, devem seer magnifestas a todos, por a ffama dellas fficar em
llembrança aos que depois vierem e se dar llouvor aaquelles que o bem ffezerem, e disso poderem tomar
exemplo os que suas obras quiserem seguir, por tanto pareceo razom de a Batalha que ouverom so muy
altos e mui excellentes Principes Ellrrey Dom Affonso o quinto, o que sancta gllorya aja, e Elrrey Dom
Joham o segundo nosso senhor, que ora he, em seendo príncipe, com ellrrey dom Fernando de Castella
antre Touro e Çamora, se deve aqui poor em escripto sumariamente, tomando as fforças mais principaaes
da verdade do feito como aconteceo, por seer cousa digna e de muyta llembrança. Aos dous dias de
Março anno de mil iiijc lxxxij, eestando os muy alltos e excellentes Principes Ellrrey dom Affonsso o
quinto e Ellrrey Dom Joham o segundo, em seendo Principe, em arrayal sobre Çamora, da parte da ponte,
onde vierom por causa dellrrey Dom Fernando teer cercada a ffortalleza da dita Cidade de Çamora, a
quall estava pollo dito Rey Dom Affonsso, e elle a tynha cercada, porque cobrou a Cidade por treiçom
que ffoy ffeita por huum cavalleyro castelhano que se chamava Balldes, e por asy teer a dita Cidade e
estar muy affortellezado, se nom podia bem soccorrer aa dita ffortelleza, e por tanto os ditos Senhores
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Rey y Principe ordenarom de se aseentar sobre a Cidade daquella parte, e da outra poserom guarniçooes
para sy por mingoa de mantimentos, como per quall outra maneira estreitarem a dita Cidade, e o dito Rey
Dom Fernando e sua gente que dentro estavam, de maneira que lhes conprisse descercar a dita Fortalezza
e lleixaren a dita Cidade.
E estando asy, depois de allgũas vezes combaterem a torre da dita ponte, a quall trabalhavam
ffilhar, em o sobredyto dya de noete lhes veo huum recado de dentro da Cidade, em como o dito rey dom
Fernando partya aquella noete com sua gente e hia a huum trauto, que tynha em a cidade do Touro, a quall
cousa, como ffosse dita per pesoa digna de seer cryda, os ditos Senhores Rey e Principe acordarom de
atalhar aa dita cousa e se llevantarem do arrayall e hirem aa dita cidade de Touro, por entenderem que asy
comprya e poserom llogo em obra e partidos do dito arrayal, depois de teerem andadas duas llegoas e
mea, vierom novas como parecia gente contraira em batalhas, a quall cousa como soubesse o dito rey no
Senhor, que entom era Principe, que trazia carrego de toda a hoste da gente, porque o dito senhor rey seu
Padre era já diante aa dita cidade de Touro a poer cobro em ella, e mandar recolher sua artelharya e gente
de pee com ella, e se viesse que Elrrey dom Fernando nom vynha aa cidade, elle logo aquella noete aver
dhir com gente de cavallo a huun lugar que se chama a ffonte do sabugo, onde avya por nova certa qua
estava o iffante dom Anrrique daragom e o duque de Villa ffremosa, jrmaaom do dito rey dom ffernando,
e com elle o Conde de Travjnho com gente de cavallo, para dar em elles, e veendo o dito rey Dom Joham
nosso Senhor como o llugar onde lhe derom as ditas novas nom era desposto para pellejar por seer
estreyto, ffez tirar toda sua jente ao campo, onde a ffez istar queda em batalhas, pollos contrairos mais
despejadamente deceram ao campo, e entom ffez todo saber ao dito senhor Rey seu Padre, o quall llogo
tornou e depois de todos asy de hũa parte como da outra, serem em campo, ajnda que os contrairos
tevessem avantagem, por teerem as costas em a serra, e por teerem mais gente de pee, por quanto a sua
era já toda em a Cidade de Touro, a isso meesmo allgua de cavallo que ffora diante com a fardagem, pollo
quall os contrairos tynham davantagem setecentas ou oitocentas llanças, empero, sem embargo de todo,
os ditos Senhores Rey Dom Affonsso, que Deus aja, e Ellrey nosso Senhor, per duas vezes ffizerom
volver os rostros de suas batalhas contra os inmygos pera veerem se queriam pellejar, o que elles nunca
quiserom fazer, e quando os ditos senhores esto virom, como esfforçados Principes, e que dezejavom vyr
a couza a concrusom e determynaçom de todavja dar em os inmygos, como o deffeito poserom em obra,
sem embargo de os comtrairos teerem a dita avantagem conhocidamente llogo o dito rey Dom Affonso
mandou ao dito rey dom Joham seu filho, que entom era Principe, que com a vanguarda que llevava desse
nos contrairos, o quall, com muy esfforçado coraçom deu nelles e rompeo a primeira e segunda batalha
dos contrairos, que llogo fforom desbaratados, e asy o dito Senhor rey Dom Affonso muy
esfforçadamente entrou a batalha do dito rey Dom Fernando, e asy as batalhas dhũa parte e da outra,
humas com as outras, e o dito Senhor Rey Dom Joham com a sua batalha, depois de teer desbaratadas as
outras duas, com que encontrou, vollveo sobre as batalhas do dito rey Fernando, como quer polla jente ,
que de suas batalhas se soltara no encalço dos desbaratados com elle fficara tam pouca gente, que a que
estava na batalha dos contrairos era muyta mais em grande numero, e sem embargo de o asy seer, deu em
ella e a desbaratou e seguyo ataa dar em outras batalhas dos contrairos, e quando as reconheceo e vyo a
multidom dos contrairos, por recolher allgũa de sua gemte que andava espalhada em o allcanço, mandou
estar queda a sua batalha, porque a gente dos contrairos serya trestanta como a sua, onde esteve queda
algũas oras, e tam acerca hũa gente da outra, que allguums Cavaleiros de huma parte e da outra sayam das
batalhas a se arremessar as llanças, e veendo os contrairos como se recolhia allgũa gente dellrey nosso
Senhor da que era espalhada, conhocendo que queriam dar em elles, por estarem tam acerca huums dos
outros, que todos os bem conhociam, arrancarom do campo, hindose caminho de Çamora como
desbaratados, e o dito senhor rey Dom Joham os seguyo e os llançou ffora do canpo, e a noete seer já muy
carrada e escura, e por suas gentes hũuas com as outras se nom desconhocerem, nom quis seguir mais o
encallço e mando estar a sua gente queda, e depões de recolhidos os fferidos do canpo e os prisoneiros
antre os quaaes ffoy preso Dom Anrrique Conde dallva de llixtra, tyo do dito rey Dom Fernando, mandou
voolver suas gentes em duas batalhas, hũa com a bandeira do dito senhor rey seu padre, e outra com a sua,
tornandose para a dita cidade de Touro com muyta vitorya, e ao outro dya mandou seos Capitaams ao dito
canpo soterrar os mortos e ffazer os auctos de vencimento, o que se fez todo muy jnteiramente sem
contradiçom allguma, em a quall batalha fforom muytos mortos, prezos e fferidos, de huma parte e da
outra. A quall cousa, por seer de tanta vytorya e llouvor, que he razom que ffyque em memorya pera os
que depois vierem e porque a Coronyca desta cousa ajnda nom he per extenso ffeita, pareceo bem e razon
se escrepver aqui a soma da verdade de todo como se passou».
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Anexo 18 – Carta de D. João II, datada de 1 de Março de 1491, pedindo à Câmara
Municipal de Lisboa que pusesse termo à comemoração da batalha de Toro, in
VITERBO, Francisco Marques Sousa - A batalha de Toro. Alguns dados e documentos
para a sua monographia historica, Lisboa, Typographia Universal, 1900, p. 15.
«Vereadores, procurador e procuradores dos mesteres. Nos El Rei vos enviamos muito saudar.
Como quer que até o anno passado se fizesse a procissão ordenada pela victoria que Nosso Senhor nos
deu na batalha que houvemos ácerca da cidade de Touro, considerando nós agora no grande amor e
affeição, paz e socego que há entre nós e El-Rey e Rainha de Castella, de Leão e d‟Aragão, etc., nossos
muito amados e presados irmãos, e isso mesmo como o casamento do príncipe, meu sobre todos muito
amado e presado filho, com a princeza sua filha, minha muito amada e prezada filha, foi o meio por que
todas as cousas passadas houvessem fim, e de uma e da outra parte fossem esquecidas e o amor entre nós
todos crescesse: havemos por serviço de Deus e nosso que a dita procissão se não faça mais; porem vol‟o
notificâmos assim e vos encommendâmos e mandâmos que d‟aqui em diante vos não empacheis de a
mais fazerdes nem mandardes fazer; e de o assim cumprirdes vol‟o agradeceremos. Escrita em Evora,
primeiro dia de Março, o secretario A.º Gonsalves a fez – de 1491 – Rey».