“A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J....

37
www.lusosofia.net “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. 2009

Transcript of “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J....

Page 1: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

www.lusosofia.net

“A Beleza salvará o mundo”

J. Alves Pires, S.J.

2009

Page 2: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

Page 3: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

Covilhã, 2009

FICHA TÉCNICA

Título: “A Beleza salvará o mundo”Autor: J. Alves Pires, S.J.Colecção: Artigos LUSOSOFIA

Design da Capa: António Rodrigues ToméComposição & Paginação: Filomena S. MatosUniversidade da Beira InteriorCovilhã, 2009

Page 4: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

Page 5: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

“A Beleza salvará o mundo”

J. Alves Pires, S.J.

Índice

Da evolução do conceito de beleza 5Sobre a urgente necessidade da inútil beleza 10Um grande criador e proclamador da beleza salvadora 11Um excelente leitor do artista Soljenitsine 17Da arte como artifício ao serviço da beleza 18A beleza como “esplendor da verdade” 20Breve leitura da “Carta aos artistas” 26À maneira de conclusão 32Bibliografia 34

Em conversa de corredores, ainda não há longos dias, veio a contorememorar acontecimentos, esses sim de tempos longínquos e quedá sempre gosto tentar reviver. Éramos estudantes de FilosofiaEscolástica, de rigores e exigências pouco dados a contemporizarcom os direitos da imaginação e da intuição – que os têm, e tãohumanos ou mais do que os da humana razão.

Mas claro está, moços buliçosos, aprendizes ainda principian-tes da maiêutica socrática, nada nos tolhia de explorar novos mun-dos e modos de pensamento. E fazíamo-lo com denodo e “cristãosatrevimentos”, como diria o Poeta.

E só por associar ideias, recordo-me do alvoroço com que umatarde me entra pelo quarto o vizinho do lado exibindo, glorioso, o

3

Page 6: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

4 J. Alves Pires, S.J.

manuscrito de cerca de uma dúzia de páginas A4, acabadinho deredigir. Que o lesse atentamente, e opinasse.

Era todo um poema, escrito de um fôlego, sem descansos, deestrofação livre e amplos ritmos, muito à medida dos intuitos e dosalentos metafísicos inspirativos do poeta. Aqui e ali parecia-meouvir o resfolegar do nietzscheano Zaratustra. Mas, tudo muito aodivino e cristão, já se deixa ver.

Pois foi lá por esses idos que no acaso da discreteação especu-lativa entre dois desses briosos e fogosos aprendizes de filósofosem determinado passo diz um deles:

“Toda a intuição é verdadeira.”De imediato lhe responde o outro, num repente deflagrado e

rimado:“Pois tenho cá a intuição de que estás a dizer uma grande as-

neira.”Não recordo que vias tomou o prosseguir do diálogo nem qual

a sequência das argumentações. Pouco importa.Valeria a pena, isso com certeza, reflectir um nadinha sobre a

questão em si mesma.Porque a verdade é esta: intuitivamente percebemos que por ali

anda assomada uma qualquer realidade humana, difícil de cingirmas existente. Ora perguntemo-nos: e se se desse o caso de am-bos terem razão? Sem o pretenderem, é claro, ao menos de formareflexa.

Bem sei que ao admitirmos tal coisa estamos a enveredar pelosdomínios do paradoxo. Mas, e se os campos do paradoxo forem osmais férteis em verdades permanentes? Os mais abertos à perscru-tação e descoberta das zonas fecundas e fecundantes do subconsci-ente individual e colectivo, donde brotam em toda as sua grandezahumana os veros conteúdos do símbolo e da metáfora?

Mas o melhor é deixarmos estas questões e respectiva dilucida-ção aos cuidados de um Carl Jung, de um Gaston Bachelard, de umGilbert Durand, de um Charles Mauron; de um Serge Doubrovsky

www.lusosofia.net

Page 7: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

“A Beleza salvará o mundo” 5

e seus comparsas da psicocrítica, e bem assim dos demais estudi-osos do fenómeno artístico-literário. São muito bem apetrechadosno respeitante às técnicas de análise, e pelo geral sabem lastrar eenquadrar a utilização das técnicas a partir de uma noção bastantecomplexiva da humana realidade.

E entretanto fiquemo-nos com uma certeza, esta sim de há mui-to averiguada: é que entre o conhecimento meramente racional oupor conceitos claros e distintos, e o conhecimento poético-intuitivomedeia uma distância tão inumerável como um abismo cósmico.

E provavelmente era o que aqueles dois jovens aprendizes deAristóteles e de Platão estavam a querer sugerir nesse diálogo decircunstância, e numa linguagem assim desvigiada, a arrumar, semoutros matizes, de um lado o Quixote e do outro o Sancho Pança.

Da evolução do conceito de belezaDa evolução do conceito de beleza

Mas, noto agora que esta entrada se alongou bastante além doconveniente, pois não queria ser mais do que brevíssima introduçãoa uns comentos que aqui me proponho, acerca da bem conhecidaexpressão dostoievskiana acima transcrita a modos de título.

“A beleza salvará o mundo”. Este dito de um dos personagensmais dostoievskianos de todos os criados pelo grande ficcionistarusso – para muitos, e com boas razões à vista, o maior romancistade todos os tempos – este dito foi exercendo grande fascínio sobremuita boa gente, e de quadrantes diversos. Aqui evocarei depoiscom alguma detença os casos de Soljenitsine, no Discurso que de-veria proferir (mas não pôde proferir) perante a Academia sueca,em 1970, aquando do recebimento do Nobel da Literatura, e deJoão Paulo II, na “Carta aos Artistas”, na Páscoa de 1999.

www.lusosofia.net

Page 8: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

6 J. Alves Pires, S.J.

Aos porventura deslembrados recordo que esta “intuição” apa-rece no romance O Idiota e é proferida pelo príncipe Mychkine,personagem central, mais precisamente, o “idiota” adentro da nar-rativa romanesca.

Ainda que apenas em seu contexto mínimo, interessa relermoso dito do príncipe, inserido no texto do romance. Transcrevo datradução de Maria Franco, certamente a mais bem conseguida emportuguês.

Estamos no cap. V da 3a Parte :

Hippolytos, que adormecera durante a peroraçãode Lebedev, acordou de súbito, como se alguém o hou-vesse aguilhoado. Estremeceu, soergueu-se e, muitopálido, lançou olhares desvairados à direita e à es-querda. Quando se recordou, o rosto exprimiu umaespécie de terror.

– Que fazem? Vão-se embora? Acabou-se? O Soljá se levantou? – inquiriu com ansiedade, agarrando amão do príncipe. – Que horas são? Por favor, diga-meas horas. Dormi! Foi por muito tempo? – acrescentoudesesperado, como se perdesse qualquer coisa de quedependia a sua sorte.

– Dormiu ao todo sete ou oito minutos – respondeuEuguine Pavlovich.

Terentiev deitou-lhe um olhar ávido e pareceu nãocompreender.

– Ah, só isso... Então, eu...Exalou um suspiro prolongado, como quem se de-

sembaraça de um fardo. Percebera que “não acabaranada”, que o dia ainda não surgira, que se tinham le-vantado da mesa para a ocupar novamente e que sóterminara a tagarelice de Lebedev. Sorriu. Nas facesde tísico apareceram-lhe duas rosetas.

www.lusosofia.net

Page 9: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

“A Beleza salvará o mundo” 7

– Ah, contou os minutos enquanto eu dormia, Eu-guine Pavlovich – replicou irónico o doente. – Nãodespegou de mim a vista durante toda a noite, bem vi!Olha, Rogojine... – Fez-lhe um sinal e disse ao ouvidodo príncipe : – Acabo de sonhar com ele. Ah – tornoua interromper-se –, onde está o orador, o Lebedev? Játeria acabado? De que é que falou? É verdade, prín-cipe, haver dito um dia que o mundo será salvo pelabeleza? Meus senhores, o príncipe pretende que será abeleza a salvadora do mundo! Eu para mim tenho quea ele ocorrem pensamentos joviais por estar apaixo-nado. Meus senhores, está apaixonado! Percebi issologo que entrou. Não core, príncipe. Senão, lastimá-lo-ia. Qual é essa beleza que há-de salvar o mundo?Foi Kolia quem me disse... É cristão praticante? Koliaalega que o senhor se intitula cristão...

Mychkine observou-o atentamente, mas esqueceu-se de lhe responder.1

Não pretendendo, ao menos por agora, fazer qualquer comentá-rio ao texto, permito-me contudo sublinhar o facto de o dito/intui-ção do príncipe Mychkine lhe surgir em clima psíquico de paixão.Este dado, se o tivermos presente, projectará luz mais radiosa so-bre algumas situações de claroescuro que ao diante com certezanos vão aparecer.

Entretanto, com Hippolytos, bem andaremos se deixarmos e-coar dentro de nós a magna questão: “Qual é essa beleza que há-desalvar o mundo?”

É absolutamente indispensável, na verdade, e antes de prosse-guir, cuidarmos de assentar em algum conceito de beleza. Nãoestou a dizer que nos vamos pôr aqui a assistir à evolução do con-ceito de beleza, dos diversos sentidos e conteúdos que o conceito

1 Fiodor Dostoievski, O idiota. Trad. Maria Franco. Estúdios Cor, Lisboa,1969. Vol. II, pp. 113-114.

www.lusosofia.net

Page 10: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

8 J. Alves Pires, S.J.

foi incorporando e desincorporando a partir de Homero, de Platãoe Aristóteles até aos nossos dias. Longo e curioso e aliciante per-curso, não há dúvida; mas está feito e bem feito, por estudiosos decritério afinado e tão bem apetrechados como um David EstradaHerrero de Estética (Editorial Herder, Barcelona, 1988), ou umRaymond Bayer de Histoire de l’Esthetique (Armand Colin, Paris,1961).

Encontrar uma definição essencial de beleza que possa conten-tar o comum dos humanos é tarefa quase tão íngreme como acharum melro branco. Para tal concluirmos bastaria folhear com ummínimo de atenção Tratados como os referidos, sobretudo o de Da-vid Estrada Herrero, certamente mais circunstanciado e discernidono apresentar das várias fases da evolução doutrinal dos conceitos.

Assim sendo, o melhor que temos a fazer, julgo, é tentar umarapidíssima aproximação a um conceito de beleza, não tanto pelolado essencial como pelo descritivo, e que possa de algum modoir ao encontro da realidade integral e das humanas sensibilidadesmais exigentes. Tarefa de enfesto, repita-se, mas, “não faltem cris-tãos atrevimentos”.

Como nota muito pertinentemente David Herrero, perante apródiga abundância de definições de beleza dos Tratados de esté-tica, a tentação maior é a de assumirmos uma atitude de cepticismo,a desembocar em conclusões relativistas e/ou subjectivistas. Mas,como bem adverte o mesmo estudioso, a reflexão serena e equâ-nime facilmente nos levará a um estado de espírito mais construtivoe realista.

Na realidade, e agora falamos por conta própria, o que é im-portante e decisivo, neste como em tantos outros casos, é nuncaperdermos de vista a humana natura, em sua realidade integral.

Se tomarmos o fio da evolução do conceito lá desde as origens,desde Platão e Aristóteles, depois como que refinado pelos neopla-tónicos com Plotino em primeiríssimo plano, é-nos fácil concluirque por diversificadas que sejam as definições de beleza, toda elas

www.lusosofia.net

Page 11: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

“A Beleza salvará o mundo” 9

incorporam em maior ou menor grau certos elementos comuns : aharmonia de proporções, a ordem e simetria, a unidade na varie-dade...

Com o andar dos anos, a reflexão filosófica foi sentindo a ne-cessidade de explicar, sobre tal base, a origem e o sentido não ape-nas dos cosmos mas de toda a humana realidade. Neste ponto,construindo sobre a herança grega e latina, mas muito principal-mente embebidos de perfeita mundividência de inspiração cristã,irão desempenhar papel de relevo único S. Agostinho e o Pseudo-Dionísio.

No que respeita ao pensamento medieval e escolástico, aí te-mos S. Tomás, também neste campo, não apenas a fazer a síntese ea dar coerência aos diversos aspectos da doutrinação anterior, masa abrir caminhos novos, ou pelo menos mais decididos à estéticado belo. Totalmente na linha do pensar dos estetas gregos que sesentiram na obrigação de cunhar um conceito abrangente da bon-dade e da beleza – kalón kai agathón = kalokagathón – também S.Tomás, sem incluir de forma directa, como o fizera S. Boaventura,o “pulchrum” nos transcendentais (i. é, o ser, para S. Boaventura.é unum, verum, bonum et pulchrum), o faz de maneira indirecta aoconsiderar que na realidade concreta, in re, o bonum e o pulchrumse identificam.

Fiquemo-nos pois com esta certeza, sem mais esmiuçar poragora: no ser em concreto, ou se quisermos, e melhor para o nossotema, na obra de arte concretamente realizada, a bondade e a belezaidentificam-se. Recorrendo à linguagem dos filósofos escolásticos:bonum et pulchrum convertuntur. E o que se diz do bonum e dopulchrum diz-se por igual do unum e do verum.

www.lusosofia.net

Page 12: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

10 J. Alves Pires, S.J.

Sobre a urgente necessidade da inútil beleza

Os poetas, em geral, preferem fazer identificação entre beleza everdade, beleza e alegria, beleza e mistério: “A thing of beauty is ajoy for ever – um pedacinho de beleza é uma alegria para sempe”(Keats); ou ainda o mesmo poeta, na bem conhecida “Ode a umaurna grega”: “Beauty is truth, truth is beauty – that is all / Ye knowon earth, and all ye need to know – A beleza é verdade, a verdadebeleza – isso é tudo o que / Sabemos sobre a terra, e tudo o queprecisamos saber.”

E ainda esta, inglesa igualmente oitocentista, Emily Dickin-son, no poema “Beleza e verdade”, muito bem trasladado para oportuguês pelo grande Manuel Bandeira: “Morri pela beleza, masapenas estava / Acomodada em meu túmulo, / Alguém que morrerapela verdade / Era depositado no carneiro contíguo. / Perguntou-me baixinho o que me matara: / – A beleza, respondi. / – A mim,a verdade, – é a mesma coisa, / Somos irmãos.”

A exemplificação sobre o pensar e sentir dos poetas sobre a be-leza muito longe nos levaria, e por caminhos tentadoramente belos,sem dúvida; mas exemplificação é isso mesmo, e urge terminar.Para tal, nada como recorrer a um poeta nosso, e bem nosso: Mi-guel Torga. No voluminho Odes (1946), após ter dedicado sendas“odes” “À poesia”, “À terra”, “Ao mar”, “Ao vento”, “À música”...,dedica também uma “ode” “À beleza”. Vamos lê-la na íntegra, sa-boreadamente, que o merece:

“Não tens corpo, nem pátria, nem família, / Nemte curvas ao jugo dos tiranos. / Não tens preço na terrados humanos, / Nem o tempo te roi (sic). / És a essên-cia dos anos, / O que vem e o que foi. // És a carnedos deuses, / O sorriso das pedras, / E a candura doinstinto. / És aquele alimento / De quem, farto de pão,anda faminto. // És a graça da vida em toda a parte,

www.lusosofia.net

Page 13: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

“A Beleza salvará o mundo” 11

/ Ou em arte, / Ou em simples verdade. / És o cravovermelho, / Ou a moça no espelho, / Que depois de tever se persuade. // És um verso perfeito / Que traz con-sigo a chama do que diz. / És o jeito / Que tem. Antesde mestre, o aprendiz. // És a beleza, enfim! És o teunome! / Um milagre, uma luz, uma harmonia, / Umalinha sem traço... / Mas sem corpo, sem pátria e semfamília, / Tudo repousa em paz no teu regaço!”2

Embora um tanto por longe talvez, ou a passo demasiado lento,não custa no entanto a ver que nos vamos acercando, um poucomais esclarecidos, ao vero alcance da intuição lançada pelo per-sonagem dostoievskiano – essa intuição que tão funda impressãohavia de causar neste outro gigante da literatura russa que é Ale-xandre Soljenitsine, e que tão sabiamente João Paulo II iria apro-veitar no admirável Documento estético-espiritual que é a “Cartaaos artistas”.

Convenço-me até, que, neste intento de colher a integral ver-dade e ampla ressonância desse dito de Mychkine, o caminho maisbreve e mais esclarecedor será o de nos cingirmos de perto às su-gestões luminosas que nos oferecem aqueles dois leitores tão qua-lificados, tão lúcidos e sensíveis.

Um grande criador e proclamador da belezasalvadora

Comecemos por ouvir o Nobel de Literatura de 1970, A. Soljenit-sine, quando nos fala da sua própria convicção de que “a belezasalvará o mundo”.

Permita-se-me breve advertência prévia, algo necessária, mes-mo para tornar mais sensível e atento o nosso ouvido para o queele tem a dizer-nos sobre o tema em análise.

2Miguel Torga, Odes, pp. 53-55. Coimbra Editora, 1946.

www.lusosofia.net

Page 14: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

12 J. Alves Pires, S.J.

Em primeiro lugar: o Sojenitsine que aqui nos interessa, maisdo que o afamadíssimo e mais ou menos politizado Autor de Oarquipélago do GULAG, é o grande Escritor de O pavilhão doscancerosos, de O primeiro círculo, de Um dia na vida de Ivan De-nisovitch... Por outras palavras, muito mais do que o polemista quetambém foi, e de mui nobre estatura, aqui importa-nos é conviverum nadinha com o grande espiritual da Literatura, não apenas russamas universal.

Com fazer semelhante animadvertência, não gostaria de ser in-terpretado como alguém que minimiza a restante actividade inte-lectual e interventiva do Escritor nos vários quadrantes: no da polí-tica, da sociologia e mesmo nas tomadas de posição frente à hierar-quia religiosa ortodoxa russa. Não custa reconhecer que subjacentea todos esses escritos está sempre a voz vibrante e autorizadíssimade alguém que, sobrevivente algo miraculoso não apenas do GU-LAG mas de um cancro, decidiu empenhar a própria vida na lutapelos direitos humanos. A todo o transe e assumindo todas as con-sequências Respeitabilíssimo como os que mais, por conseguinte.Sucede é que para o caso vertente, como agora se diz, vale e basta-nos o Escritor como grande espiritual da Literatura. Muito sim-plesmente, e para tudo dizermos em duas palavras, porque a ajudaque aqui nos faz falta é a que per prius nos pode supeditar o artista,como privilegiado vivenciador e criador da beleza.

No entanto, – e talvez esteja de sobra dizê-lo, mas por causa dosmais desatentos... – o que aqui vamos chamar ao nosso convívionão é o Soljenitsine criador de beleza, enquanto tal; não é o A. deO primeiro círculo ou de O pavilhão dos cancerosos, mas essa vozparticularmente sonora e autorizada que em diversos momentos selevantou a proclamar a transcendente importância do livre cultivoda arte e da beleza, não apenas em ordem a tornar um pouco maishabitável o nosso mundo, mas para impedir que se desmorone eapodreça. “A beleza salvará o mundo”.

Para o Nobel da Literatura de 1970, a arte, e especialmente a

www.lusosofia.net

Page 15: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

“A Beleza salvará o mundo” 13

literatura, é o espelho e o grande veículo da vivência humana. Temo poder prodigioso de transmitir de uma língua para outra, de umpaís para outro, toda a experiência vital de um povo. Por outraspalavras, é capaz de condensar e transmitir toda a história humanavivenciada.

“A literatura é a memória vivente de uma nação. Conserva ereaviva a sua história esquecida sob uma forma inviolável e refrac-tária a qualquer entorse infligida à autenticidade dos factos. Porisso a literatura digna deste nome preserva a língua e a alma de umpovo”.3

E logo na pág. seguinte, na sequência e a complementar o pen-samento anterior: a riqueza da humanidade constitui-se pela diver-sidade dos povos com suas personalidades colectivas. Porque emcada, por pequeno que seja, há um reflexo particular da intençãocriadora de Deus.

Assim sendo, qualquer tentativa de abafar a expressão e a ex-pansão da grande literatura de um povo, pela intervenção do poderpolítico, não é apenas violar a “liberdade de imprensa”, mas é con-denar à asfixia o coração desse povo, a sua memória viva. ( p. 106)

Não vem tão directo ao nosso assunto, mas não se levará a malrefira este judicioso considerando que vem um pouco adiante (p.110): Soljenitsine vê na ONU, não propriamente uma Organiza-ção das Nações Unidas, mas sim de Governos Unidos, e por issomesmo imoral. Porquê? Porque isso tem como consequência goza-rem aí de direitos iguais os governos que provêm de eleições livrese os que foram impostos pela força ou que tomaram o poder pelaviolência das armas. Deste modo a ONU, ao mesmo tempo quedefende com denodo a liberdade de certas nações está a desprezar

3André Martin, Soljenitsyne – Le croyant. Lettres, Discours, Témoignages,pp. 104-105. Éditions Albatros (Éditions Étapes), Paris, 1973. O texto aquitranscrito sob o título de “Un Discours jamais prononcé – pour le Prix Nobel”ocupa as pp. 93-116. Citarei o “Discurso” sempre por esta ed., indicando apenasa página.

www.lusosofia.net

Page 16: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

14 J. Alves Pires, S.J.

sistematicamente a de outras. E o discursante bem sabia do quefalava.

Seja como for, conforte-nos o sentimento íntimo de que existeuma literatura universal, coração imenso a bater ao ritmo das ale-grias e sobretudo das angústias do nosso mundo de sombras e tra-gédia. Uma literatura que é fruto sazonado de sensibilidades bemmoduladas e por isso dotada de finas antenas, capazes de captar,penetrar e fazer sua a unidade crescente do género humano.

Porque em última análise, e continuo a seguir de perto o pen-samento do grande espiritual da literatura, esta é na sua essência avocação do Escritor : ao serviço da língua materna que é força uni-ficadora e sinal de unidade para o povo e para a terra que ele habita,tem o poder, mormente nas horas privilegiadas, de dar expressãoaos anseios da alma nacional, e mesmo universal. (pp. 112-114)

Mas parece-lhe no momento estar a ouvir a objecção: “assimsendo, que pode a literatura, face à pressão impiedosa, implacável,da violência?”

E a resposta surge com a interior vibração e a credibilidade quemerece alguém que sofreu na carne, na alma, essa mesma violênciaimplacável e descomiserada :

“Não esqueçamos que a violência nunca está só, que não podeviver sozinha. Está unida à mentira por laços indissolúveis. Entreuma e outra existe uma aliança orgânica, um profundo parentescode sangue. A violência não tem outro recurso que não seja a men-tira, e a mentira só pode sobreviver ao abrigo da violência”. Porisso “o dever elementar do homem humilde, mas não de todo des-provido de coragem, é recusar a cumplicidade, não colaborar coma mentira. Que ela tome conta do mundo, que o domine, mas sema minha colaboração.”

Mas os escritores, os artistas podem fazer mais, muito mais:“têm processo de vencer a mentira. A experiência o demonstra:na luta contra a mentira, a arte triunfou sempre, triunfará sempre,de maneira manifesta e irrefutável. A mentira poderá ter a última

www.lusosofia.net

Page 17: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

“A Beleza salvará o mundo” 15

palavra em muitas zonas da vida humana, mas nunca no duelo coma arte.

Quando a mentira for desmascarada, a violência desvendar-se-áem toda a sua repugnante nudez e a sua malévola sedução desapa-recerá.”

E o apelo final chega-nos com a sonoridade profunda de umclamor de esperança e, mais do que isso, de vésperas de ressurrei-ção:

“Amigos! Esta a razão por que julgo podermos prestar ajudaeficaz a este nosso mundo angustiado e entregue às chamas. Nãonos desculpemos com julgarmo-nos de mãos desarmadas! Não nosrefugiemos na segurança beata de uma vida sem preocupações. En-frentemos a adversidade!

A língua russa gosta muito de certos provérbios que, referentesà verdade, exprimem por vezes de forma percuciente o duro destinodo nosso povo.

“Uma palavra de verdade tem maior peso do que o universointeiro.”

Este princípio, a abrir brechas na lei de conservação da massa-energia, constitui o fundamento de tudo o que faço e inspira-meo apelo que daqui dirijo aos escritores do mundo inteiro.” (pp.115-116)

Quem assim fala é um homem que fez travessia do deserto,no sentido mais amplo e mais profundamente bíblico do termo, esó na medida em que pudermos sintonizar em plenitude com essarealidade existencial vivida pelo escritor é que saberemos colherem totalidade a total ressonância destas e de outras palavras suas.Estamos, convém não esquecer, perante alguém que depois de tersobrevivido, não apenas a um cancro mas a onze anos de degredosiberiano no GULAG, e talvez por isso mesmo, preserva cada vezmais robusta a certeza de que “só vivemos uma vez, mas para nuncamais morrer”. É possível que esta ideia fosse nele algo de titube-ante ao iniciar a sua existência de concentracionário, mas não pre-

www.lusosofia.net

Page 18: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

16 J. Alves Pires, S.J.

cisou de longos dias de experiência e observação, no convívio comessa multidão de humilhados e ofendidos, para que uma tal certezase lhe impusesse como conclusão insofismável.

Mais ainda: doravante algumas outras obscuridades se irão dis-sipando, ou pelo menos vão ganhando maior claridade.

Entra a compreender, por ex., que afinal o mundo não é cria-ção do homem, mas simplesmente é-lhe oferecido como que ina-cabado, informe, à maneira de um material, para ser moldado, semdúvida, mas sobretudo como uma realidade que leva em si mesmafundamente inscrito um sentido secreto, misterioso talvez, mas queurge decifrar. E é então que este intelectual sensível e perscrutadorentra a compreender – e o que é muito mais, entra a saber (“sa-pere”) – que afinal o trabalho humano, por mais humilde e quotidi-ano que seja, tem sempre algo de criação artística, a exigir contínuatranscensão e a abrir sobre a consciência espiritual.

Porque afinal, vistas de perto as coisas, o universo mundo e otrabalho humano que o vai moldando têm um sentido, e o agenteimediato do desvelamento desse sentido, a pessoa humana, age sobimpulso interior tal que, no mais profundo de si mesmo, só pode irdesembocar na beleza e no mistério.

Na realidade, este grande espiritual da literatura – como já umséculo antes acontecera ao seu genial compatriota Dostoievski, porigual quando concentracionário na Sibéria – em meio aos trági-cos acontecimentos que houve de viver durante a sua travessia, foicompreendendo, e “sabendo” existencialmente, que em última aná-lise, todo o ser humano é artista, e por isso mesmo criador de be-leza, isto é, participa analogicamente do poder do Supremo ArtistaCriador.

Que a participação analógica da criatura no poder criador doSupremo Artista admite graus, sobra dizê-lo, e basta um simplesolhar sobre a inumerável diversidade e modos de beleza artística ànossa volta.

www.lusosofia.net

Page 19: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

“A Beleza salvará o mundo” 17

Um excelente leitor do artista Soljenitsine

Mas no Discurso do Nobel que vimos lendo encontramos mais al-guns tópicos de reflexão muito ao nosso caso e que nos podemser de ajuda não pequena ao pretendermos decifrar um nadinha domistério daquela frase, sem dúvida enigmática do sibilino perso-nagem de Dostoievski . “A beleza salvará o mundo”. Curarei deutilizar um estilo com seu quê de telegráfico ou cifrado, para bonsentendedores, com o fito tentar dizer no mínimo de espaço/tempoo máximo de conteúdo e sugestividade.

Felizmente, além das obras de Soljenitsine – todas elas, mor-mente as de ficção, impregnadas de belos apontamentos orientáveisao nosso intuito – tenho aqui à mão, lido e relido, um precioso es-tudo intitulado L’esprit de Soljenitsyne ( Éd. Stock, Paris, 1974),de Olivier Clément. Trata-se de um cristão “ortodoxo”, ocidental,Autor de vários e valiosos estudos sobre a história da literatura es-piritual do Oriente cristão, e que no presente volume, pondo comoque entre parênteses a faceta política/polémica, chamemos-lhe as-sim, do A. de O arquipélago do GULAG, nos oferece, quase emtom meditativo, uma excelente literário-espiritual do grande escri-tor de obras como O primeiro círculo, O pavilhão dos cancerosos,Um dia na vida de Ivan Denissovitch, e diversas outras.

Dispensado que me sinto de apresentar uma interpretação porinteiro original do tema em análise, de bom grado me valerei, ad-mirador e grato, das propostas e sugestões que o seu estudo esplen-didamente por vezes influi, sempre que válidas ao intuito que memove.

Ainda dentro do objectivo premente de abreviar, direi que, dovolume denso de O. Clément, de 384 pp. numeradas, nos vamos fi-xar principalmente nas referentes ao cap. 4, sobre “L’acte créateur”(83-106). Muita coisa se nos diz aí no atinente ao nosso propósitoe o difícil é seleccionar. No entanto, mais do que fazer antologia,procederei antes com a subjectividade descomprometida de quem

www.lusosofia.net

Page 20: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

18 J. Alves Pires, S.J.

recolhe sugestões e as entretece ao sabor dos seus próprios intuitos.Cuidando de evitar divagações dispensáveis, naturalmente.

Da arte como artifício ao serviço da beleza

Ao dizermos que a arte implica artifício e está ao serviço da belezaestamos simplesmente a dizer algo de parecido com um truísmo.Outra coisa é que todo o artista, em sua actividade artística, tenhaverdadeira consciência dessa realidade e lhe assuma os parâmetrosde exigência.

O artista Soljenitsine possui como poucos uma consciência bemreflexa e assumida de uma tal realidade: conforme insinua em di-versos teclados, o artista que se preza tende sempre a pôr a suaarte ao serviço do mistério da verdadeira beleza, isto é, ao ser-viço dessa beleza que é capaz de colher o homem todo inteiro,sacudindo-o desde as profundezas e empolgando-o a caminho dacontínua transcensão de si mesmo. A arte arranca o homem de umcerto clima de sonambulismo e letargia espiritual, que o quotidianopropende a influir-lhe, e lança-o nos caminhos do que Dionísio oAreopagita chama de “tensão para uma vida mais alta”.

Por outro lado, a beleza assim compreendida é sempre reflexodessa luz profunda e misteriosa que, pela visão fugidia, abre sobrerealidades inacessíveis à secura da razão.

Na realidade, considera o Nobel de 70, a própria arte se encar-rega de nos demonstrar que, embora nem tudo esteja ao alcanceda palavra humana, a linguagem da arte tem o condão de em certomodo ultrapassar o meramente humano e, pelo esplendor e pelohorror, franquear portas sobre o mistério da existência, interpre-tando o silêncio dos corações e a infinda sugestividade dos rostos.

É nesta linha de sentir e pensar que ele diz sem ambages, no

www.lusosofia.net

Page 21: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

“A Beleza salvará o mundo” 19

Discurso do Nobel, que “toda a obra-prima autêntica traz consigouma força de convicção irresistível, capaz de subjugar os coraçõesmais rebeldes”. Mais: a arte, por sua natureza tende a ser vitóriasobre as forças da morte, mesmo, e sobretudo, quando as explora;porque a beleza que cria prova que a descida aos infernos não podeser a última etapa. Assim, a força de ressurreição que a arte trazconsigo é tal que “é capaz de abrasar mesmo a alma que morre defrio e se debate nas trevas, para a lançar nas vertiginosas vias dademanda espiritual”. (ibid.)

Por mor da clareza, forçoso é dizer que estes raciocínios têmsubjacente a concepção soljenitsineana do chamado romance “sin-fónico”, a que neste passo apenas podemos aludir, e para sublinhara densidade humana que o A. de O pavilhão dos cancerosos intro-duz no conceito de arte “verdadeira”.

Em duas palavras, e sigo de perto a leitura de O. Clément: setoda a arte é por definição “incarnativa” da realidade, a grande arte,ou, na linguagem de Soljenitsine, a arte “verdadeira”, é-o na exactamedida em que for incarnativa da realidade integral. Explicitando:a arte romanesca “verdadeira” é a que procura e consegue dar-nos,por um lado a densidade mais incarnada, o peso de história e deuniverso das existências pessoais, e por outro lado, ou em simultâ-neo, aquilo que podemos chamar o seu peso de eternidade. É in-carnando a densidade da história, mediante os personagens e suasinter-relações, que o romancista logra alcançar as raízes da meta-história.

Desembocamos assim, por via um tanto diversa, na consabidaverdade estética segundo a qual o artista se alcança o universal épelo aprofundamento no real concreto, individual e local. Ou, re-correndo de novo à linguagem do Nobel de 70, o artista será tantomais “verdadeiro” quanto mais souber manter o equilíbrio entreactualidade e eternidade: incarnando, pela densidade da expressãoartística, as tragédias e as esperanças e as alegrias do seu tempo,atinge a unicidade de cada pessoa, do mesmo passo com que vai

www.lusosofia.net

Page 22: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

20 J. Alves Pires, S.J.

descrevendo a totalidade humana e cósmica representada ou quali-ficada por essa pessoa. Por outro lado, conclui o grande escritor, oartista “verdadeiro” intuiu e deixou pressentir “o centro para ondeconvergem todas as linhas”.

A beleza como “esplendor da verdade”

Com certeza que a estas horas há muito tirámos por conclusão,sem esforço de maior, que a “verdade” da obra artística, de que nosvem falando Soljenitsine, se não identifica, de modo nenhum, comuma qualquer verdade ideológica. Não cabe dentro de nenhumaideologia ou sistema, pois bole com a realidade última dos seres edas coisas, com o seu mistério.

A essa verdade gosta de chamar-lhe “verdade-justiça”, infun-dindo no conceito uma breve tonalidade bíblica. E assim proce-dendo, conforme anotam os estudiosos, Soljenitsine limita-se a re-cuperar, para lá das deturpações do regime, o poderoso vocábulo“pravda” (“justiça-verdade”), em toda a sua força e suculência ori-ginária.

Todo o seu combate, nas diversas frentes, é por esse teor deverdade, e procede bem à maneira daquele guerrilheiro lúcido queencontramos em O pavilhão dos cancerosos, que se declara inca-paz de lutar sem saber os motivos últimos por que luta.

Escritor cristão que é, sabe que esse combate vale a pena quan-do em favor da “verdade” assim entendida; porque então estaráao serviço, não de uma qualquer abstracção ideológica, mas simda pessoa humana concreta, da pessoa integralmente olhada – detodas as realidades criadas a que verdadeiramente reflecte em si oabsoluto.

O artista será autêntico, ou “verdadeiro”, na exacta medida em

www.lusosofia.net

Page 23: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

“A Beleza salvará o mundo” 21

que souber pôr a sua arte ao serviço da “verdade” da pessoa hu-mana. E como, segundo a bela expressão platónica, “a beleza é oesplendor da verdade”, sempre que assim proceder estará a criarbeleza, ou seja, a desvelar diante dos nossos olhos e da nossa sen-sibilidade maravilhados a verdade, quanto possível em todo o seuesplendor.

Daí, a vital e transcendente importância da missão do artista.E nós captamos também um pouco melhor o alcance e a amplís-sima ressonância do apelo feito aos artistas, e concretamente aosescritores, no final do Discurso do Nobel: porque “uma palavrade verdade tem maior peso do que o universo inteiro”, mormentequando proferida em timbre artístico. Na realidade a linguagemprópria da arte é a linguagem simbólica, por sua própria naturezavoltada para o mistério da beleza e sua celebração.

Neste contexto, ainda que a modo de parêntesis, julgo oportunoreferir, porque muito justa e pertinente, a observação de O. Clément(o. c., p. 306) segundo a qual a arte de Soljenitsine tem seu quêde raro, se não de único, na literatura universal – está a referir-semais a O arquipélago do GULAG : a arte de Soljenitsine, diz esteseu leitor sensibilíssimo, em sua sobriedade, mais do que no gé-nero romanesco ou no género trágico, deve é qualificar-se comointegrando-se no “mistério litúrgico em que o passado se actua-liza em sua significação permanente: vasta liturgia da Sexta-feirasanta da história, da crucifixão e da descida aos infernos de tantosinocentes. Seria (esta arte) realizável sem a presença secreta deum Inocente ressuscitado, com quem estamos indissoluvelmenteunidos? A história, pela metanoia, acede à comunhão dos santosque é antes de mais a dos humilhados. Nenhum homem, nenhumanação, nenhuma comunidade de destino pode hoje passar ao ladodesta purificação que faz com que tenhamos acesso à intercessãodos excluídos, dos malditos, dos crucificados. Recusar e verdade éaceitar a vitória da morte, a fuga perante o nada de que nos pressen-

www.lusosofia.net

Page 24: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

22 J. Alves Pires, S.J.

timos cúmplices. Só a história, assim liturgicamente restabelecida,nos pode abrir à comunhão dos viventes.”

A citação foi algo extensa, mas creio que estou desculpado,porque na verdade alude a aspectos vários e abre para fecundas su-gestões respeitantes ao nosso tema, e que naturalmente podemos edevemos dispensar-nos de aqui desenvolver ou sequer referir, fa-lando como falamos para entendedores excelentes.

Não será de todo deslocado nem ocioso, ainda na linha inter-pretativa de O. Clément, dizermos mais uma palavra, em comple-mento do que fomos escrevendo, sobre a génese profunda e a seivavital de que se alimenta a escrita artística soljenitsineana, e que defacto acaba por nela imprimir tamanha amplitude de sonoridade evibração humana.

Vale recordar que o engenheiro Alexander Soljenitsine foi altograduado do exército soviético, e o que lhe “mereceu” os oito anos(a que se somaram mais três) de trabalhos forçados na Sibéria – sobtemperaturas que atingem os 50 graus negativos, e alimentação demera sobrevivência – foi o “crime” de um dia em carta a um amigoter escrito que Estaline em questões de estratégia militar era nulo.Isto acontece na década de quarenta.

Essa espécie de degelo da década seguinte, sob Krutchev, tor-nou possível o regresso de centenas de milhar (há quem fale demilhões) de concentracionários do GULAG. No meio dessa multi-dão de semifantasmas e esqueletos ambulantes vinha também esteque viria a ser o A. de O arquipélago do GULAG. Esta obra –como deixámos entrever, obra de difícil catalogação entre os gé-neros literários existentes, mas, no essencial, estritamente cingidaà mais rigorosa documentação histórica, só que em sua redacçãopassada através da pluma de um escritor de eleição – esta obra, éclaro que só pôde ser escrita porque o seu A. logrou conquistar asboas graças do novo “pai dos povos”, que, incapaz de alcançar to-das as consequências futuras do gesto, lhe concedeu o privilégio deaceder aos Arquivos ultrassecretos da KGB e transcrever toda essa

www.lusosofia.net

Page 25: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

“A Beleza salvará o mundo” 23

trágica documentação histórica hoje ao nosso alcance, em toda asua fidedignidade original.

Não precisamos de grandes dotes de intuição para entender-mos que a partir da revelação desse terrível corpus documentalmuita coisa iria mudar, no respeitante à concepção mirífica oci-dental do que era o paraíso soviético. O muro de silêncios cúmpli-ces e protectores não só entrou a abrir fenda mas começou a ruircom estrondo impossível de abafar. Mas enfim, estes fragmentosde história, não vindo directamente ao nosso tema, deixemo-los adesbanda.

O que certamente não seria de bom conselho era o pôr de bandaaqueles outros dados informativos de feição biográfica acerca doNobel de 70, ao decidirmo-nos a conviver com este homem, emqualquer das vertentes da sua actividade de escritor – actividademultifacetada, como de há muito nos foi dado perceber.

Para o momento presente da nossa análise, o que mais importasublinhar nesse período tão “fértil” da vida do concentracionário,ou se quisermos em linguagem bíblica, da sua travessia do deserto,é o facto de se ter operado na existência deste homem uma espéciede iluminação a nível profundo da psique : uma quase convulsãointerior que levou a profunda alteração na sua escala de valores ea olhar o mundo das coisas e dos humanos sob luz muito outra,rejuvenescida, no melhor sentido da palavra. Qualquer coisa de se-melhante ao que acontecera com Dostoievski, por igual degredadona Sibéria, embora em condições menos cruéis e degradantes.

Um e outro, mediante essa como que descida aos infernos, al-cançaram foi passar de cultuadores de uma tal ou qual utopia polí-tica para o culto misteriosamente fecundo de um certo visionarismoprofético.

Com as consequências bem à vista, ao menos dos iniciadosno universo artístico e humano de um e outro: Dostoievski, ex-poente máximo, e muito adentro da catalogação sprangueriana do“homo religiosus”, da arte romanesca, a merecer a qualificação,

www.lusosofia.net

Page 26: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

24 J. Alves Pires, S.J.

quase unânime, de o maior romancista de todos os tempos – aqueleque até hoje, sobretudo com essa pentalogia bem conhecida (Crimee castigo, O adolescente, Os demónios, O Idiota, Os irmãos Kara-mazov) elevou ao mais alto grau de realização o ideal artístico-romanesco; Soljenitsine, alguém que, sem abdicar em momentoalgum das exigências e prerrogativas da arte literária, soube utilizá-la com terrível eficácia no combate denodado pela dignificação dapessoa humana e da sociedade. Ao ponto de hoje podermos re-ferenciar à sua própria obra literária esse dito seu, tão feliz comoverdadeiro: a palavra de um grande escritor, dentro de uma nação,vale por muitos exércitos.

Resumindo e concluindo esta que apesar das aparências gosta-ria não fosse tomada por simples divagação ociosa: também es-tes dois profetas dos tempos modernos, Dostoievski e Soljenitsine,– muito à semelhança dos dos tempos antigos, desde Moisés eElias, passando por João Baptista e o próprio Cristo – houveramde retirar-se ao deserto, fazer a sua travessia dolorosa e catártica,para depois, de olhar purificado, poderem aceder a essa beleza se-creta dos seres e das coisas, ou seja do “esplendor da verdade”.

Depois sim, acharam-se preparados e disponíveis para departi-rem, construtivamente, salvadoramente, com os companheiros deviagem que são todos os humanos, as grandezas humanas apreen-didas e as belezas vivenciadas.

Não duvidemos, a beleza salvará o mundo, e tudo está em queo número destes sentidores e departidores da beleza vá crescendoem ritmo cada vez mais acelerado, até ao dia em que a secreta emisteriosa beleza, sempre libertadora e salvífica, nos pervada emcorpo e espírito.

E tudo nos convidaria a colocar aqui ponto final, nesta des-pretensiosa e informe reflexão sobre essa fala enigmática do prín-cipe “idiota” dostoievskiano, e segundo a qual “a beleza salvará omundo. Tudo parece encaminhado para um fecho oportuno aqui,apesar das vozes tão sentidas que julgo ouvir, vindas lá dos lados

www.lusosofia.net

Page 27: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

“A Beleza salvará o mundo” 25

de Soljenitsine, cuja obra tinha tanto a dizer-nos ainda, em ordema esclarecer-nos, nestes terrenos permeados de obscuridade – nãoapenas da obscuridade do enigma mas do mistério. E recordo queas palavras “mistério” e “misterioso” são das mais recorrentes naescrita artística soljenitsineana.

Para concluir com chave de oiro o nosso encontro com o admi-rável conquistador e pregoeiro da beleza, Soljenitsine, nada melhordo que transcrever aqui a oração por ele um dia escrita no reversode uma estampa iconográfica enviada a um amigo:

“Como é fácil para mim viver convosco, Senhormeu Deus!

Como me é fácil crer em Vós!Quando os meus pensamentos vacilam, assediados

pela dúvida, e o meu espírito desfalece,Quando os mais inteligentes não vêem nada para lá

deste entardecer e não sabem o que os espera amanhã,É então que Vós, Senhor, me enviais a clara certe-

za: Vós existis e Vós mesmo cuidareis de que nemtodos os caminhos da Beleza se nos fechem!

Do alto da celebridade terrena contemplo maravi-lhado o caminho sem esperança que aqui me trouxe,

De tal modo que até eu pude transmitir ao longe,no meio dos homens, o reflexo da Vossa glória!

Enquanto o julgardes necessário, Vós mesmo mehaveis de dar os meios,

E quando eu já nada puder fazer,É porque então já confiastes a outros esta missão...”4

4 Cf. André Martin, o. c., p. 91.

www.lusosofia.net

Page 28: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

26 J. Alves Pires, S.J.

Breve leitura da “Carta aos artistas”

Não há dúvida que tudo parece encaminhado para deixarmos cairaqui o ponto final sobre estas reflexões, pese embora a sua escassavalia. Mas dá-se o caso de não termos satisfeito uma parte do queprometemos logo de início: uma referência ao enquadramento emque João Paulo II, na “Carta aos artistas” datada da Páscoa de 1999,reassume o famoso dito do personagem dostoievskiano. E como oprometido é devido...

Ultrapassei já o espaço que de começo me propunha utilizarnestas minhas cogitações, e por isso sinto ainda mais prementeagora a obrigação de condensar. E no entanto a “Carta aos artistas”,no que diz respeito ao nosso tema, é tão densa de verdade estética ede sugestões que mal se compadece com afloramentos apressados.

Entre parêntesis, mas, no contexto, quase como obrigação, mui-to convém advertir que o “epistológrafo” aqui invocado, mais doque o Papa João Paulo II, é o escritor Karol Wojtyla, autor de umaobra artístico-literária consistente e significativa a vários níveis, eque não terá sido até hoje bastantemente estudada pela razão óbviade que os vectores da sua actividade cultural das duas últimas dé-cadas – marcante em definitiva neste nosso mundo, e aquela que,como é normal, concita as atenções – escapa aos enquadramentose qualificações do mero plano do artístico-imaginário.

Nos parágrafos a seguir, que tentarei reduzir ao mínimo, queroapenas pôr algum sublinhado em dois ou três tópicos de maior al-cance na “Carta aos artistas” e julgo virem de facto acrescentaralgo de substancial ao que vimos dizendo.

Já se percebeu de há muito que o conceito da beleza é um con-ceito analógico; que por conseguinte pressupõe o que os filósofoschamam o analogatum princeps, ou, no caso, a Beleza com maiús-cula, e depois diversos graus de aproximação a esse conceito deconteúdo integral, globalizante.

A pergunta que se põe é: qual o critério, ou o aferidor, para eu

www.lusosofia.net

Page 29: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

“A Beleza salvará o mundo” 27

poder dizer que o conceito de beleza utilizado por este escritor émais denso de conteúdo do que o utilizado por aqueloutro escritor?Qual é o referente?

A resposta é clara: é o ser humano. É evidente que no subsolode toda a criação artística, de toda a produção de beleza, estarásempre uma tal ou qual noção de homem. Se essa noção é abran-gente, isto é, se envolve a humana realidade integral, por parte doartista, naturalmente a arte, e portanto a beleza, que produzir ten-derá a ser por igual incarnativa da humana realidade global.

Bem sei que este raciocínio, mormente quando olhado em suasconsequências, tem seu quê de linear, e estaria a pedir matizaçãocircunspecta. Mas há a premência do tempo e do espaço, e valha-nos também de escusa o facto de, em relação aos nossos intentos,essa matização cair um tanto a deslado.

Na “Carta”, João Paulo II dirige-se aos “artistas, construtoresgeniais de beleza”, “a quem me sinto ligado por experiências dosmeus tempos passados e que marcaram indelevelmente a minhavida.”5 Depois, muito oportunamente, com a clareza e agudeza deexcelente filósofo, explica a diferença entre “criador” e “artífice”,para esclarecer que em sentido estrito “criador” só existe um: Deus,o único a poder tirar do nada – produzir ex nihilo sui et subiecti.O ser humano, o “artífice”, esse “utiliza algo já existente, a que dáforma e significado.”

Se é certo que nem todos são chamados a ser artistas, no sentidoespecífico do termo, não é menos certo que “todo o homem recebeua tarefa de ser artífice da própria vida : de certa forma, deve fazerdela uma obra de arte, uma obra-prima.”

Sublinha-se de seguida a estreita conexão entre as duas ver-tentes e/ou predisposições do ser humano: a moral e a artística.“Ambas se condicionam de forma recíproca e profunda.” O queequivale a dizer que “o artista, quando modela uma obra, exprime-

5 “Carta do Papa João Paulo II aos Artistas”. Secretariado Geral do Episco-pado. Ed. Paulinas, 1999. As citações são desta edição.

www.lusosofia.net

Page 30: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

28 J. Alves Pires, S.J.

se de tal modo a si mesmo que o resultado constitui um reflexosingular do próprio ser, daquilo que ele é e de como o é.” Todo oartista, na medida em que o é, tende a transfundir-se na obra de arteque cria, a incarnar nela a sua mundividência e a sua personalidade.

Logo a seguir a “Carta” põe em relevo a íntima relação entrearte e beleza: “O tema da beleza é qualificante, ao falar de arte”. Emuito a preceito invoca-se o livro do Génesis, onde diz que Deusolhando tudo o que tinha criado viu que tudo era “ belo” – o vocá-bulo grego da versão dos Setenta, mais apropriado que o de “bom”da Vulgata, para a tradução do correspondente vocábulo do originalhebraico. E depois a alusão, inevitável, ao convívio dos dois con-ceitos, “bom” e “belo”, que na filosofia grega, como atrás referido,desembocaria no conceito unificante e unificado: “kalokagathón”.Isso, porque, vistas bem de perto as coisas, pode dizer-se que “abeleza é a expressão visível do bem, do mesmo modo que o bem éa condição metafísica da beleza”.

Tudo isso expressou vigorosamente Platão quando no Fileboescreveu que “a força do Bem se refugiou na natureza do Belo”.

Pouco adiante, em sequência lógica e admiravelmente lúcidade raciocínio, a “Carta” põe em igual plano de urgência para asociedade do nosso tempo a necessidade de artistas e a necessidadedos demais intervenientes na construção da sociedade onde valha apena viver: pais, professores, cientistas, técnicos, testemunhas dafé, enfim, todos esses que garantem o crescimento sadio da pessoa eo progresso sólido da comunidade, “através daquela forma sublimede arte que é a ‘arte de educar”’.

Como de esperar, alude a “Carta” ao monumento de grandezaartístico-humana absolutamente único – a Bíblia ou o Livro porexcelência – quer pela beleza que contém em si mesmo, quer, etalvez mais ainda, pela que ao longo de milénios foi inspirando aartistas de todos os quadrantes e crenças.

E resume, concluindo: “para todos, crentes ou não, as realiza-

www.lusosofia.net

Page 31: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

“A Beleza salvará o mundo” 29

ções artísticas inspiradas na Sagrada Escritura continuam a ser umreflexo do mistério insondável que abraça e habita o mundo.”

Mesmo sob o aperreio do tempo não me eximo a citar a for-mulação feliz de uma ideia, que nem por muito repetida deixa deparecer inédita para não poucos: “toda a intuição artística autên-tica ultrapassa o que os sentidos captam e, penetrando na realidade,esforça-se por interpretar o seu mistério escondido. Ela brota dasprofundidades da alma humana, lá onde a aspiração de dar um sen-tido à própria vida se une com a percepção fugaz da beleza e daunidade misteriosa das coisas. Uma experiência partilhada por to-dos os artistas é a da distância incomensurável que existe entre aobra das suas mãos, mesmo quando bem sucedida, e a perfeiçãofulgurante da beleza vislumbrada no ardor do momento criativo: tudo o que conseguem exprimir naquilo que pintam, modelam,criam, não passa de um pálido reflexo daquele esplendor que bri-lhou por instantes diante dos olhos do seu espírito.”

É extensa a citação, e peço escusas, mas seria impossível con-densar-lhe, sem traição, o conteúdo. De resto é fácil concluir, auma leitura não de todo ligeira, que toda a “Carta” está redigidanuma linguagem de admirável poder condensativo, como se pre-tendesse, mais do que informar, sugerir tópicos de meditação nodilatado horizonte das questões humanas em análise. Atitude quepelo mais subtende todos os grandes escritos do Papa.

A “Carta” elabora de seguida poderosa síntese, percorrendo atraço grosso mas essencial os momentos cimeiros do que podería-mos chamar a história da humana criação da beleza artística, tendosempre, como seria de esperar, a referência inalienável que é a daplena interpretação da existência humana.

Esse percurso, a ocupar sensivelmente metade do texto – tal aimportância que a “Carta” atribui à fundamentação histórica daspropostas e/ou afirmações que faz – vamos naturalmente aqui so-brevoá-lo, pelos motivos repetidos e óbvios. Impossível no entanto

www.lusosofia.net

Page 32: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

30 J. Alves Pires, S.J.

escusar-me de aduzir, sublinhando, a introdução a esse recorridohistórico:

“Toda a forma autêntica de arte é, a seu modo, um caminhode acesso à realidade mais profunda do homem e do seu mundo.E, como tal, constitui um meio muito válido de aproximação aohorizonte da fé, onde a existência humana encontra a sua plenainterpretação. Por isso é que a plenitude evangélica da verdade nãopodia deixar de suscitar, logo desde os primórdios, o interesse dosartistas, sensíveis por natureza a todas as manifestações da belezaíntima da realidade.”

A arte, sendo por sua natureza transfigurativa do real concreto,prolongadora do real no sentido da vida possível, tende por issomesmo a ser apelo do insondável e do mistério, ou melhor dizendo,do Mistério, com maiúscula. É assim que na “Carta” se nos diz comtoda a razão que “mesmo quando perscruta as profundezas maisobscuras da alma ou os aspectos mais desconcertantes do mal, oartista torna-se de qualquer modo voz da esperança universal deredenção.”

A invocação, na “Carta”, da Constituição pastoral Gaudium etspes do Vaticano II tem enquadramento e ressonância muito pró-prios quando sabemos do papel que Karol Wojtyla desempenhouna elaboração do documento. É assim particularmente grada e so-nora a voz que aqui se faz ouvir ao citar o Vaticano II, pois arrancade convicções antigas e bem sazonadas: “os Padres Conciliares su-blinharam a “grande importância “ da literatura e das artes na vidado homem”. E cita o no 62 do Documento: “Elas procuram dar ex-pressão à natureza do homem, aos seus problemas e à experiênciadas suas tentativas para conhecer-se e aperfeiçoar-se a si mesmo eao mundo; e tentam identificar a sua situação na história e no uni-verso, dar a conhecer as suas misérias e alegrias, necessidades eenergias, e desvendar um futuro melhor”.

Ganha assim mais veemência e amplitude sonora o apelo finaldos PP. Conciliares feito aos artistas em 8 de Dez. de 1965: “O

www.lusosofia.net

Page 33: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

“A Beleza salvará o mundo” 31

mundo em que vivemos tem necessidade de beleza para não cairno desespero. A beleza, como a verdade, é a que traz alegria aocoração dos homens, é este fruto precioso que resiste ao passardo tempo, que une as gerações e as faz comungar no deslumbra-mento.”

Já para o final, feito o percurso das razões fundamentadoras,a “Carta” exorta os artistas “a descobrir a profundeza da dimensãoespiritual e religiosa que sempre caracterizou a arte nas suas formasexpressivas mais nobres.”

E passadas duas páginas aí estão os parágrafos conclusivos,como de despedida muito familiar e afectuosa, em tom prodigi-osamente entusiasta e vibrante, de molde a causar assombro, so-bretudo se temos presente que a mão que escreve estas palavras éa de alguém que após uma vida de realização e plenitude sem pa-ralelo neste nosso século, se encontra hoje tão debilitada, no corpoenfermo – embora com uma clarividência porventura só explicávelpela força daquele Espírito que sopra onde quer.

Vários outros parágrafos da “Carta” estariam a pedir aqui re-ferência sublinhada, porque em perfeita sintonia e sem dúvida airradiarem luz esclarecedora e forte sobre um tema que, já o fomospercebendo, se apresenta com tanto de nobre como de enigmáticoe misterioso – “a beleza salvará o mundo”. Não me sendo permi-tido no entanto, sem abuso, protelar por mais tempo a conclusãodestas mal cerzidas reflexões, reduzo-me a transcrever, evitandocomentar, ainda mais dois ou três incisos

“A beleza que transmitireis às gerações futuras seja tal queavive nelas a admiração deslumbrada. Diante da sacralidade davida e do ser humano, diante das maravilhas do universo, essa ad-miração é a única atitude condigna.”

Essa vossa visão deslumbrada e deslumbrante da humana re-alidade será suscitadora de entusiasmo, e “a humanidade poderá,depois de cada extravio, levantar-se de novo e retomar o seu cami-

www.lusosofia.net

Page 34: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

32 J. Alves Pires, S.J.

nho. Precisamente neste sentido foi dito, com profunda intuição,que “a beleza salvará o mundo”.

Porque, “A beleza é chave do mistério e apelo ao transcendente.É convite a saborear a vida e a sonhar o futuro. Por isso, a belezadas coisas criadas não pode saciar, e suscita aquela arcana saudadede Deus que um enamorado do belo, como S. Agostinho, soubeinterpretar com expressões incomparáveis: “Tarde Vos amei, ó Be-leza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei!”.(Confissões, 10, 27)

À maneira de conclusão

Têm cabimento, ao que julgo, duas rápidos anotações finais que dealgum modo ajudem um nadinha a ver mais de perto a coesão depensamento que apesar de tudo pervive nos raciocínios e nos váriostestemunhos, nestas páginas aduzidos no intuito de iluminarmosum pouco o enigma da proposição dostoievskiana, através do seupríncipe “idiota”, e segundo a qual “a beleza salvará o mundo”.

Vou reduzir-me à indicação semitelegráfica de dois ou três tópi-cos ao leitor, capazes de lhe facilitarem a tarefa de melhor percebera convergência e o alcance dos elementos aparentemente descosi-dos, incorporados no discurso que acabou de ler.

– O personagem de O idiota de Dostoievski, o príncipe Mych-kine, autor da intuição de que “a beleza salvará o mundo”, é vistoquase unanimemente pelos grandes comentadores do romance co-mo sendo uma das principais (para vários, a principal) figuras deCristo na obra romanesca do grande russo – que, como é geral-mente sabido traçou diversos esboços da figura de Cristo. Quandofalo em grandes comentadores do romance dostoievskiano, tenhopresentes, entre outros, nomes grados e tão sonantes como: o Ro-mano Guardini de O mundo religioso de Dostoievski, o N. Ber-

www.lusosofia.net

Page 35: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

“A Beleza salvará o mundo” 33

diaeff de O espírito de Dostoievski, o George Steiner de Tolstoiou Dostoievski, o L. Chestov de A filosofia da tragédia, o JacquesRolland de Dostoievski – a questão do outro.

– Seria talvez de bom aviso – recordo que, durante os anos deexilado na Sibéria, Dostoievski teve praticamente como única bi-blioteca uma Bíblia – e de não pequena valia pelo poder sugeridor,aproximarmos aquele personagem de O idiota ao Menino da pro-fecia de Isaías (cc. 9-11). Como estamos lembrados, esse Meninomisterioso, messiânico, é o ser incontaminado, capaz de ver as ma-ravilhas do mundo todos os dias como se fosse a primeira vez eensinar poesia aos adultos; esse Menino será o apaziguador univer-sal, e sob o seu mando não mais haverá guerras: o lobo e o cabritopastarão juntos, o leão e a pantera hão-de viver em harmonia, e oMenino poderá meter a mão na toca da víbora que nada de mal lheacontecerá.

Dir-se-ia que a intuição do príncipe “idiota” nasce da antevisãodessa universal harmonia futura.

– Apesar de bastantemente aludida atrás esta ideia, gostaria dea sublinhar – tanto mais que, a darmos ouvido à oportuna adver-tência de Nélson Rodrigues, uma ideia que não se repete morreinédita. Os três guias que mais assiduamente nos foram orientandona penosa viagem em demanda de alguma luz sobre o misteriososignificado da intuição do personagem de O idiota – o próprio A.do romance, o Nobel da Literatura em 1970 e o A. da “Carta aosartistas” – todos eles, embora por vias diferenciadas, antes de apa-recerem como profetas da alegria e da beleza, precisaram de fazer adolorosa travessia do deserto quaresmal. Só depois puderam avis-tar, desnubladamente, a terra prometida, e tiveram o irreprimívelimpulso de audácia para a anunciarem, como enviados urgentesem missão salvadora.

De bom grado me entregaria a explicitar os subentendidos destaafirmação, se o espaço/tempo o consentisse, ou se tal fosse por aíalém necessário. Na verdade não o é, pois no essencial tais su-

www.lusosofia.net

Page 36: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

34 J. Alves Pires, S.J.

bentendidos facilmente se entregam a quem tiver seguido com ummínimo de atenção e relacionado os principais elementos do dis-curso das páginas anteriores.

Metaforicamente falando, tudo se poderia fazer convergir paraaquele versículo do 4o Evangelho: Nisi granum frumenti cadensin terram, mortuum fuerit; ipsum solum manet; si autem mortuumfuerit, multum fructum affert. (Jo., XII, 24) Isto é, o grão de trigo,lançado à terra, só passando pela morte produzirá abundância defruto. Sapientemente o compreendeu, com um saber de experi-ência feito, o nosso Dostoievski, ao tomar este preciso versículodo Evangelho como epígrafe daquele que muitos, com muito boasrazões, têm como o maior dos seus romances: Os irmãos Karama-zov.

É que, em linguagem absolutamente católica, universal, o es-plendor e a beleza, isto é, a glória, da manhã de domingo da res-surreição só se são possíveis depois da tarde de sexta-feira santa.

Em Dostoievski, em Soljenitsine, em João Paulo II, o abismodo sofrimento faz-se história, sim, mas para, no final, ir desembo-car na alegria e na beleza.

Bibliografia

– Obras mais presentes na elaboração do texto, para lá das citadas.

Ch. Mauron, Des métaphores obsédantes au mythe personnel.José Corti, Paris, 1962.

Ch. Durand, Les structures anthropologiques de l’imaginaire.P.U.F., Paris, 1963

Jacques Maritain, L’intuition créatrice dans l’art et dans la poé-sie. Desclée de Brouwer, Paris, 1966.

www.lusosofia.net

Page 37: “A Beleza salvará o mundo” - LUSOSOFIA · i i i i i i i i “A Beleza salvará o mundo” J. Alves Pires, S.J. Índice Da evolução do conceito de beleza5 Sobre a urgente necessidade

ii

ii

ii

ii

“A Beleza salvará o mundo” 35

João Mendes, Teoria da literatura. Ed. Verbo, Lisboa, 1980.

Estética literária. Ibid., 1982.

Serge Doubrovsky, Pourquoi la nouvelle critique. Mercure deFrance, 1970.

Carlos Bousoño, Teoría de la expresión poética. 7a ed., 2 vols..Gredos, Madrid, 1985.

George Weigel, Biografía de Juan Pablo II – Testigo de espe-ranza. Trad. de Patricia Antón, Jofre Homedes y ElviraHeredia. Plaza & Janés, Barcelona, 1999.

www.lusosofia.net