A biblioteca em ruínas

20
A biblioteca em ruínas Maria Angélica Melendi In omnibus requiem quaesivi, et nunquam inveni nisi in angulo cum libro 1 . Tomasso da Kempis E venham, pois, os alegres incendiários de dedos carbonizados! Ei-los! Ei-los!... Vamos! Ateiem fogo às estantes das bibliotecas!... Filippo Tomasso Marinetti Dois studiolos Por volta de 1475, o napolitano Antonello de Messina, concluiu a távola que representa São Jerônimo no seu estúdio e que hoje está na National Gallery de Londres. O pequeno quadro (45.7 x 36.2 cm) nos deixa ver, como se fosse pela abertura de uma janela em arco de estilo catalão, o gabinete do Santo, a quem supomos concentrado na tradução da Bíblia para o latim. Sob as altas abóbadas de uma catedral, o estúdio de madeira simples ocupa o centro da cena e apoia-se sobre uma base com três degraus. São Jerônimo lê um libro, 1 Busquei a paz em todos os lugares e nunca a encontrei, a não ser num canto com um livro.

description

Ensaio sobre a metáfora da biblioteca na arte contemporânea.

Transcript of A biblioteca em ruínas

A biblioteca em runas

Maria Anglica Melendi

In omnibus requiem quaesivi, et nunquam inveni nisi in angulo cum libro[footnoteRef:1]. [1: Busquei a paz em todos os lugares e nunca a encontrei, a no ser num canto com um livro.]

Tomasso da Kempis

E venham, pois, os alegres incendirios de dedos carbonizados! Ei-los! Ei-los!... Vamos! Ateiem fogo s estantes das bibliotecas!... Filippo Tomasso Marinetti

Dois studiolosPor volta de 1475, o napolitano Antonello de Messina, concluiu a tvola que representa So Jernimo no seu estdio e que hoje est na National Gallery de Londres. O pequeno quadro (45.7 x 36.2 cm) nos deixa ver, como se fosse pela abertura de uma janela em arco de estilo catalo, o gabinete do Santo, a quem supomos concentrado na traduo da Bblia para o latim. Sob as altas abbadas de uma catedral, o estdio de madeira simples ocupa o centro da cena e apoia-se sobre uma base com trs degraus. So Jernimo l um libro, outros a maior parte deles entreabertos espalham-se sobre a mesa ou se enfileiram nas estante.Das janelas superiores do edifcio se vem-se pssaros revoando num cu sem nuvens. Atravs das do trreo, vislumbra-se um palcio branco em meio a uma campina verdejante por onde passeiam cavaleiros, outros dois homens cruzam o rio numa embarcao, enquanto um par de amas de tocas brancas brincam com os ces. No faltam ciprestes, galinhas nem juncos beira da gua.Mas Jernimo, que deixou seus tamancos, ao p dos degraus, est concentrado em sua leitura, iluminado por um feixe de luz que atravessa a penumbra, roa seu rosto e cai sobre as pginas do livro. O estdio contem tambm outros objetos sobre o cho: a cadeira romnica, uma arca de madeira sobre a que se pousa o chapu cardinalcio, um par de vasos de loua com plantas, um delicado gatinho. H uma nota manuscrita fincada no lado do scriptorium e, nas estantes, uma bilha de porcelana, um copo, algumas caixas e bandejas, umas chaves. Pela direita, do canto mais escuro do templo se aproxima o leo a quem Jernimo tirou o espinho do p e que agora seu amigo. No limiar da porta, sobre a pedra ocre, um pavo e uma perdiz olham para lados opostos[footnoteRef:2]. [2: 2 Para alguns alegoristas a perdiz alude verdade de Cristo e o pavo igreja e a oniscincia divina. Sobre o plano onde se pousa o escritrio veem-se duas plantas em vasos trata-se de um buxo que aponta para a f na Salvao e um gernio, smbolo da Paixo de Cristo. ]

Jorge Luis Borges publicou em 1945, o conto El Aleph, na revista Sur. No me interessa aqui o vo amor da personagem Borges pela obscena Beatriz Viterbo, nem a existncia de um (falso) Aleph no subsolo da casa da rua Garay. Sempre me intrigou, neste conto perfeito, a personagem de Carlos Argentino Daneri, o rival de Borges, seu doppelganger[footnoteRef:3]. Daneri, um escritor pomposo e medocre, primo e amante de Beatriz, que cria versos vulgares (que a pesar de tudo so borgianos); Daneri menosprezado pelo protagonista, que apesar disso o visita com frequncia. Esse Daneri (de nome to italiano, de estirpe to arrivista que tem Argentino como nome de pia) empreende um elogio do homem moderno: [3: O nome doppelgnger se originou das palavras alems doppel (significa duplo, rplica ou duplicata) e gnger (andante, ambulante ou aquele que vaga). Segundo a lenda, um ser que tem o dom de representar uma cpia idntica de uma pessoa que ele escolhe ou que passa a acompanhar]

Lo evoco dijo con una admiracin algo inexplicable en su gabinete de estudio, como si dijramos en la torre albarrana de una ciudad, provisto de telfonos, de telgrafos, de fongrafos, de aparatos de radiotelefona, de cinematgrafos, de linternas mgicas, de glosarios, de horarios, de prontuarios, de boletines...[footnoteRef:4] [4: BORGES, Jorge Luis. Obras Completas. Buenos Aires: Losada,1976. p. 618.]

A observao de Daneri de Borges , que Borges despreza, parece descrever um escritrio atual, ou, ainda, um estdio futuro. Persistindo em seu delrio, Carlos Argentino observara que para um homem assim viajar seria intil; o sculo XX subvertera fbula de Maom e a montanha: as montanhas, agora acudiriam ao moderno Maom.Do studiolo de So Jernimo ao gabinete do homem moderno, passaram-se vrios sculos. Se o do tradutor da Bblia, fecha-se sob as abbadas penumbrosas de uma catedral, o do intelectual moderno campeia na torre isolada albarr de uma cidade do futuro.Escolho estes dois estudos, estas duas bibliotecas ficcionais, porque tambm me parecem ntimas e silenciosas. No falarei da Biblioteca de Alexandria que foi incendiada trs vezes: a primeira por Jlio Csar, depois pelos zelotes e, finalmente pelo primeiro Califa. No falarei das bibliotecas destrudas pelo fogo a mando de Fhrers e Duces, de alguns imperadores chineses ou de vrios ditadores latino-americanos. Colees inteiras foram e sero destrudas para eliminar blasfmias, para esconder verdades inconvenientes, para persuadir opinies, para anular memrias candentes. No falarei de bibliotecas inundadas ou arrasadas pela fria das intempries. No falarei de Babel nem falarei de Mnemosyne. Minhas duas bibliotecas imaginrias, dois estdios ou dois escritrios, a que pintou Antonello e a que descreveu Borges (ou seu doppelganger), remetem, ou querem remeter, s bibliotecas particulares, que convivem conosco, s bibliotecas de pequenos centros vizinhais, parquias, sinagogas... As primeiras que se perdem, as que enterramos, as que ocultamos por medo ou por precauo.Bibliotecas em ruinasNa produo contempornea das artes visuais vem aparecendo paulatinamente aluses a essas bibliotecas arruinadas. s vezes como memoriais, feitos sob demanda, como os trabalhos de Misha Ullman e Rachel Whiteread. Outras surgem aqui o l dentro do trabalho de alguns artistas: acontecimentos intermitentes ou repetidos, quase sempre a resgatar recordaes, convocar nostalgias ou, ainda, instigar-nos a retomar hbitos perdidos. Tudo, na biblioteca, as paredes, as estantes, os livros , est sempre a um passo da runa. So Jernimo queixa-se do estado lamentvel dos velhos manuscritos, em parte porque o material no resiste a ao do tempo: a proximidade da gua e a umidade enegrecem os livros e os destroem[footnoteRef:5]. Gyorgy Faludy, citando o famoso romance de Ray Bradbury, tambm teme a fragilidade dos livros: [5: Arnt, Sicut enim libri iuxta aquas et humores cito obscurantor, delentur et pereunt p. 188]

... books only last a little timeand this one will be borrowed, scarred,burned by Hungarian border guards, lost by the library, broken-backed, its paper dried up, crisped and cracked,worm-eaten, crumbling into dust,or slowly brown and self-combust when climbing Fahrenheit has gotto 451, for that's how hot your town will be when it burns down... [footnoteRef:6] [6: FALUDY, Gyorgy, Learn This Poem of Mine by Heart: sixty poems and one speech. Toronto: Hounslow Press, 1983. p.67.]

Agua e fogo ameaam os livros, mas tambm traas, ratos e homens. No cabe aqui se estender sobre os inmeros relatos desses acontecimentos, nem da equivalncia metafrica entre os livros e os humanos. Novas tecnologias anunciam, tambm, o fim do livro impresso e com ele o fim da materialidade de um dos objetos mais singulares de nossa civilizao. A Biblioteca em ruinas como um topos da segunda metade do sculo XX, parece vir, em primeiro lugar, em decorrncia das demandas de memria do fim do sculo, quando aparece, nos memoriais da Shoah, como identificao dos judeus como povo do livro mas tambm, da lembrana traumtica da Bcherverbrennung, organizada entre 10 de Maio e 21 de junho de 1933[footnoteRef:7], poucos meses depois da chegada ao poder de Adolf Hitler e repetida em outros tempos e outros pases ao longo desse sculo. [7: A 10 de maio de 1933, 25 mil livros foram queimados em 34 cidades universitrias alems, em rituais em que compareceram oficiais nazis, reitores, professores e estudantes. Fizeram-se listas de escritores tidos como contrrios ideologia nazi, procurou-se fazer das universidades centros nacionalistas. Entregaram-se s chamas os escritos de Heinrich Mann, Ernst Glser, Erich Kstner, crticos ao regime, e as obras de socialistas como Bertolt Brecht e Karl Marx, mas tambm escritores como Erich Maria Remarque, Heinrich Heine, Ernest Hemingway, Jack London e Helen Keller, "influncias estrangeiras corruptoras", e at Albert Einstein, alemo de origem judia, Nobel da Fsica em 1921.]

Bibliotecas espectrais, as bibliotecas em runas so tambm runas do futuro. Nunca chegaram a existir em toda a sua plenitude, mas tambm nunca chegaram a ruir de fato. Interrompidas, estticas, paralisadas na sua incompletude preservada, vagando como fantasmas entre o mundo dos vivos e dos mortos, mantm uma vida em suspenso[footnoteRef:8]. [8: Num artigo publicado no Harper's magazine, em dezembro de 2001, Nas runas do futuro, Don DeLillo, v o atentado contra WTC como sintoma de uma doena religiosa, tecnolgica, moral e econmica: a guerra entre o passado e o futuro. O atentado parece ter corrompido definitivamente nossa relao com o futuro, afirma: agora tratamos de dar nome ao futuro no com a atitude habitual de esperana, mas impulsionados pelo medo. Esse futuro em runas modificaria a histria: pois a civilizao do futuro est ameaada por um estado teocrtico sem confins, flutuante e obsoleto at o ponto de depender do fervor dos suicidas para alcanar seus objetivos.]

Algumas bibliotecasEm Bebelplatz, Berlin, em 1995, onde os nazistas queimaram livros em 1933, o artista israelita Micha Ullman criou uma biblioteca subterrnea: o Memorial for the book burning. O memorial consiste de uma janela sobre o cho da praa sob a qual aparece uma pequena sala iluminada com estantes vazios. Esse vazio, como o vazio de cada sepultura, nunca se enche. Quanto mais profunda a cova, maior o vazio Na biblioteca sem livros o vazio palpvel, esperamos, em vo, ver o que no est. Uma placa de bronze, ao lado, cita Heinrich Heine: Aqueles que queimam livros, acabaro por queimar pessoas.O Judenplatz Holocaust Memorial, 2000, Viena de Rachel Whiterad, vulgarmente chamado Biblioteca sem nome (Nameless Library) um monumento fraguado em concreto cujas paredes so feitas de fileiras de livros. Como uma biblioteca qual tivessem sido arrancadas as paredes, as pginas dos livros que estariam contra os muros, agora veem-se do exterior. A massa de concreto que endureceu as pginas tambm moldou o negativo das portas duplas, fechadas. Vemos as bordas das capas dos livros, as pginas inutilizadas. Como todo o edifcio, os livros de cimento so plidos sob a luz fria do outono e pequenas imperfeies sobre a superfcie de alguns fazem com que paream gastos, usados, descoloridos pelo tempo. A chuva, as intempries e o tempo mancharo as superfcies da Biblioteca sem nome, aumentando o poder de evocao[footnoteRef:9]. [9: http://www.theguardian.com/profile/adriansearle]

distancia, os livros quase no se vem e o memorial parece ser feito de um empilhamento de placas. O topo da estrutura se corta em ngulo e, mesmo que parea ecoar nos tetos dos prdios barrocos que rodeiam a praa, a sua volumetria o faz parecer com um bunker, slido e pesado, subjugado a uma espcie de durao prolongada. O altura do memorial se afirma contra os prdios vizinhos, mais altos, como uma interrupo ao ritmo edilcio. A Biblioteca sem nome no dialoga com a estatua de Gotthold Ephraim Lessing, nem com os edifcios que rodeiam a praa e, muito menos, com os restos de uma sinagoga do sculo XV que foi descoberta na construo do memorial e que jaz runa belamente conservada , num vo subterrneo, sob a praa. O Judenplatz Holocaust Memorial, um bloco impenetrvel feito de livros silenciados para sempre, uma rememorao muda e silente que no desaparece no esquecimento cotidiano: um lugar onde as memrias acontecem.Em 2001, Marcelo Brodsky e Eduardo Feller, publicaram o vdeo Los condenados de la tierra, um lento percurso pelos livros desenterrados, que saem luz depois de anos. Um punhado de imagens que mostram livros destrudos sobre uma camada de terra escura; a frtil terra da pampa hmida. Los condenados de la tierra de Franz Fanon, La sociedade industrial contempornea de Fromm, Gorz, Marcuse e Flores Olea, El llano en llamas de Juan Rulfo, Revolucin terica de Carlos Marx; o mofo e humidade corroem as letras e devoram as capas das velhas edies de Siglo XXI e do Fundo de Cultura Econmica. Livros de sociologia, economia, romances: alguns dos livros de uma gerao que queria mudar o mundo.Na Argentina, um casal, entre tantos outros, tinha enterrado vrios dos seus livros num jardim da cidade de Mar del Plata, em 1976. Vinte anos mais tarde, seus filhos Leonardo e Javier os procuraram e desenterraram. Esses quatro livros foram enterrados durante a ditadura militar. Permaneceram sob a terra durante quase vinte anos, no jardim da casa de Nlida Valdez y Oscar Elissamburu, em Mar del Plata. Gozaram de digna sepultura, um privilgio que no tiveram muitas das vtimas da ditadura. Hoje, desenterrados pelos filhos, so um testemunho do que tivemos que passar. [...] Suas folhas, palavras e signos se converteram na memoria do que foram e em testemunho resgatado por uma nova gerao[footnoteRef:10]. [10: BRODSKY, Marcelo. Nexo. Buenos Aires: La Marca, 2001. p.77.]

No perodo ditatorial conhecido como el proceso, 1976-1983, uma ditadura militar instaurou, na Argentina, o estado de exceo. O terror implantado por ela fez a todos acreditarem que possuir um livro, uma agenda com nomes e endereos ou qualquer elemento que pudesse nos identificar com a ideologia perseguida poderia se converter na passagem at a tortura e a morte. Muitos se viram obrigados a enterrar seus livros ou deixa-los abandonados nas esquinas, junto com o lixo. Porm, o sentimento que prevalecia nos que enterraram seus livros era de esperana, no de medo. No os destruram nem os queimaram, os guardaram para serem recuperados. No momento mais perigoso de suas vidas, essas pessoas inturam que haveria um tempo em que esses livros poderiam renascer em outras mos. O vdeo de Brodsky e Feller, breve e singular, exibe o horror da exumao. A umidade, o tempo e as animlias enegreceram e corroeram as pginas amadas. Anselm Kiefer um fazedor de livros nicos, como manuscritos medievais. Seus livros no contem uma histria nem uma narrativa ficcional, nem tampouco poemas. So volumes em cujas pginas o artista coloca fotografias, frases, pinturas feitas com a toda a gama dos materiais que ele usa: cinzas, cabelos, unhas, arame de cobre, plantas secas, vidro, chumbo. The High Priestess/ Mesopotmia (1985-1989) consiste em duas estantes Tigres e Eufrates com mais de cem livros de chumbo de escala maior que a humana. Alguns esto vazios, outros contem fotografias escuras, folhas secas, areias. Pesadssimos, difceis de manusear, se no impossveis, esto quase a cair das prateleiras, inclinados, tortos; arames de cobre como teias de aranha atravessam os estantes e se pousam sobre os volumes. Em 1990, Breaking the Vessels/ A quebra dos vasos, repete o tema da biblioteca. A pea recria um tema cabalstico do sculo XVI[footnoteRef:11], do qual no existe tradio iconogrfica (exceto o diagrama conhecido como rvore da vida ou rvore sefirtica). Quarenta e um livros de folhas de chumbo esto dispostos em uma estante de ao, em cujo topo, num semicrculo de vidro, est grafado o nome do Ein Sof, o princpio oculto, o no manifestado, o incompreensvel. Os Sephirot, emanaes do nome divino, esto escritos em etiquetas aos lados e entre as prateleiras dos livros e se unem por arames de cobre. Estilhaos de vidros se espalham pelo cho e agregam perigo e gravidade a obra. Hiertica e solene, a pea se impregna de uma retrica da transcendncia que a enlaa com a grande arte religiosa do passado. [11: De acordo com Isaac Luria, o Ein Sof realiza um movimento, contrrio, de concentrao em si mesmo, abrindo espao para a emanao de seus atributos, numa estrutura hierrquica de esferas de luz, as dez sefirot ou emanaes. Cada sefirot tem seu vaso, que preserva a luz divina. A shevirat hakelim (quebra dos vasos) uma convulso csmica, que rompe os vasos que abrigavam as luzes das ltimas sefirot. Cf. SHOLEM, Gerhard. On the Kabbalah and it simbolisms. New York, Schocken Books, 1969. p.112.]

Estas instalaes tinha outra biblioteca na exposio do Grand Palais, Falling stars, 2007, esto impregnadas por uma fascinao pelas runas, no como o resultado de catstrofes, mas como incio de renascimento. Menos interessado na fixidez do monumento ou do memorial que nos processos de transformao fsica ou espiritual, Anselm Kiefer parece nos dizer que as runas deixam ver o mago das coisas, sua semente.Restore Now, 2006, de Thomas Hirschhorn, montada na 27 Bienal de So Paulo e atualmente em exibio em Inhotim, MG, no chega a ser plenamente uma biblioteca, mas nessa obra, uma acumulao de objetos diversos, entre eles, livros , se oferecem como instrumentos para uma interpretao reconstrutiva do mundo. As obras de Hirschhorn so dispositivos cenogrficos ativos que se apropriam do espao numa propagao anrquica: junto dos livros colados e parcialmente inutilizados, h um reservatrio de ferramentas desorganizado, mensagens de paz escritas com grandes pregos, fotos de trabalhadores massacrados. Os livros, como armas, amontoam-se no caos. O artista afirma:Se em Restore Now h livros de filosofia ampliados, se h livros de filosofia colados com fita adesiva, se colei ferramentas nos livros de filosofia, se os confrontei com imagens de seres humanos destrudos ou feridos, para dar forma afirmao: as ferramentas que esto l, ns as temos vamos utiliz-las, utilizemos os martelos, os parafusos, furadeiras, os p-de-cabra e utilizemos os livros de filosofia para consertar, bricolar, tampar, construir, mas tambm para quebrar (as desigualdades), para lutar (contra o racismo, os ressentimentos), para lutar contra (as injustias), essa a mensagem de Restore Now: ns temos as ferramentas ( por isso que a responsabilidade universal!), passemos ao! [footnoteRef:12] [12: LAGNADO, Lisette preciso trabalhar para lutar contra o politicamente correto e a m conscincia Revista Trpico, http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/2803,1.shl ]

Hirschhorn procura se dirigir ao homem comum e impulsa-lo a agir: a filosofia e arte podem agir. A fora da instalao reside na brutalidade das suas fotos sangrentas, das ferramentas e dos livros cannicos da filosofia ocidental contempornea agigantados, pregados, amarrados, colados. Se a mensagem do artista quer ser de convite a ao e a revolta, a percepo do visitante a da iminncia de catstrofe e runa. Nem as ferramentas, nem os livros podero salvar-nos. Mas recentemente, a jovem artista Maril Dardot, cujo trabalho se desenvolve, quase exclusivamente a partir de palavras, livros e bibliotecas, apresentou uma instalao chamada A biblioteca de Babel, 2005-2011. A artista criou um ambiente onde estavam esticadas algumas redes; na galeria havia tambm vasos de samambaias e avencas, esteiras e almofadas no cho. Espalhados, ao redor, caixotes de frutas continham livros que ficavam a disposio dos visitantes. Esses livros foram emprestados por amigos, vizinhos ou, ainda, desconhecidos que acudiram ao pedido da artista: H algum livro que voc gostaria de compartilhar com o mundo? Ao serem recebidos, foram fichados e carimbados, registrando que fizeram parte da exposio. Sobre os caixotes havia tambm dois fichrios de madeira com as fichas bibliogrficas dessa biblioteca ntima e provisria. Na 29a Bienal de So Paulo, 2010, a artista realizou, com Fbio Morais, um trabalho denominado Longe daqui, aqui mesmo, concebido como um dos terreiros, espaos participativos da mostra. De acordo com seus criadoresO terreiro Longe daqui, aqui mesmo uma espcie de labirinto feito de cmodos e passagens estreitas que convergem para uma grande sala central, num elogio a leitura como ato criativo[footnoteRef:13]. [13: Catlogo da 29a Bienal de So Paulo. So Paulo, 2010. p. 340.]

Uma construo precria, de tijolos sem revoco externo, cujas paredes, portas e tapetes estavam cobertos com capas de livros importantes para os artistas. Atravs do labirinto chegava-se a um espao central, onde se encontrava sala de leitura. Alguns pertenciam a uma coleo de livros de artistas enviados de varias parte do mundo, outros foram emprestados como resposta ao convite feita aos participantes da 29a Bienal: Com que livro voc construiria sua casa? [footnoteRef:14] Bancos e poltronas contribuam a criar um espao confortvel para se sentar e ler em silncio. [14: dem. ]

A maior parte das bibliotecas que enumeramos est morta; seus livros foram queimados, enterrados ou interditados pelo cimento ou pelo chumbo, ou ainda por fitas colantes, pregos e correntes. Bibliotecas impossveis que nos enfrentam aos seus prprios espectros calcinados. As ltimas, porm, as Maril Dardot e Fbio Morais, aparecem como o nascedouro da biblioteca. Em runas como as outras, mas tambm em construo, locais onde tudo precrio menos os livros, que resistiram entre a irmandade e o afeto de muitos. Rebentos de bibliotecas futuras.CodaExistem muitos outros trabalhos que se debruam sobre as estantes e os livros: a Bibliotheca de Rosangela Renn, 2003, onde moram lbuns de fotografias familiares, aquelas criaturas das regies fronteirias[footnoteRef:15], que habitam, para Benjamin todas as bibliotecas vivas; a Biblioteca para Dibutade de Lais Myrrha, onde apenas sobrevivem sombras de poeira no lugar onde estavam os volumes ou ainda Partially Buried, 1996, de Rene Green, instalao onde a busca da artista pelos restos do barraco enterrado de Robert Smithson, na Kent State University[footnoteRef:16], alegoriza com livros, fotos e discos de poca , sua nostalgia por um passado que ainda permanece, um passado que consegue alcanar o instante presente, a pesar do intransponvel do intervalo temporal. [15: BENJAMIN, Walter. Rua de Mo nica. Obras Escolhidas II. So Paulo, Brasiliense, 1993. p. 234.] [16: Partially Burried in Three Parts (19961999) enlaa vrios estratos de memrias como as runas de Partially burried Woodshed de Robert Smithson e a matana de estudantes pela Guarda Nacional em Kent State University, em 1970. Cf. SMITH, Terry, ENWEZOR, Okwui & CONDEE, Nancy (Editors) Antinomies of Art and Culture. Durham &London: Duke University Press, 2008. p. 324-334.]

A biblioteca, nestes trabalhos seria o lugar seguro e recolhido onde escutamos as vozes dos que esto distantes ou dos que j no esto. Nunca mais o perfeito studiolo de So Jernimo, ainda no a torre albarr de Carlos Argentino Daneri. Apenas um lugar deslocado do mundo cotidiano, a onde possam chegar todas as palavras do mundo, uma de cada vez, murmurando a travs das pginas dos livros. Mas tambm, um lugar ameaado pelo fogo, pela agua, pelos desastres climticos ou pelos ataques humanos. Tal vez o ltimo reduto de uma ptria perdida.

13